Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:01194/09
Data do Acordão:02/24/2010
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:DULCE NETO
Descritores:IMPOSTO MUNICIPAL SOBRE IMÓVEIS
PRIVILÉGIO CREDITÓRIO
Sumário:I - A partir da entrada em vigor do Código do Imposto Municipal sobre Imóveis, em 1 de Dezembro de 2003, e por força das disposições combinadas do seu artigo 122.º e do artigo 744.º do Código Civil, os créditos provenientes de IMI só gozam de privilégio creditório imobiliário desde que inscritos para cobrança no ano corrente na data da penhora ou acto equivalente e nos dois anos anteriores.
II - Daí que o crédito reclamado de IMI inscrito para cobrança posteriormente ao ano corrente na data da penhora, ainda que liquidado antes da venda ou da adjudicação do prédio a que diz respeito, não possa ser admitido e graduado como crédito privilegiado.
Nº Convencional:JSTA000P11526
Nº do Documento:SA22010022401194
Recorrente:MINISTÉRIO PÚBLICO
Recorrido 1:A... E OUTROS
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: Acordam na Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo:
1. O MINISTÉRIO PÚBLICO recorre para o Supremo Tribunal Administrativo da sentença de verificação e graduação de créditos proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Leiria, na parte em que graduou o crédito reclamado pela Fazenda Pública por dívida de Imposto Municipal sobre Imóveis (IMI) do ano de 2008 inscrito para cobrança no ano de 2009, isto é, inscrito posteriormente ao ano corrente na data da penhora do imóvel efectuada em 20/05/2008 no processo de execução fiscal n.º 2070200601002236.
Rematou as alegações de recurso com as seguintes conclusões:
1. O CCP aprovado pelo DL n.º 45104, de 1 de Junho de 1963, nomeadamente, o § 2° do seu artigo 230º, foi, na sequência do art. 35º-2 da Lei de autorização legislativa n° 106/88, de 17/9, revogado pelo artigo 3°, n.º 1 dos DL nºs 442-A/88 e 442-B/88 (que aprovaram os Códigos do IRS e IRC, respectivamente) e pelo DL n.º 442-C/88 (que aprovou o CCA), todos de 30 de Novembro de 1988, tendo este último ressalvado nos seus artigos 3º, 5º e 8º determinadas situações previstas no CCP, que não a dos autos.
2. Por sua vez, o DL n° 287/2003, de 12/11 (que aprovou o CIMI), que, por força do disposto no seu art.º 32° entrou em vigor em 1/12/2037 (com excepção de algumas das sua normas relativas à avaliação e peritagem) revogou no seu art. 31°-1 o CCA e o CCP, na parte ainda vigente, “considerando-se a contribuição o autárquica substituída pelo imposto municipal sobre imóveis (IMI) para todos os efeitos legais”.
3. De acordo com o art. 122° do CIMl, que veio substituir e reproduzir o 24°, n° 1 do CCA, o IMI “goza das garantias especiais previstas no Código Civil para a contribuição predial” não remetendo nenhum desses normativos, implícita ou explicitamente, para o disposto no § 2° do artigo 230° do revogado CCP.
4. O art. 744° do Cod.Civil é a única norma legal a conceber um tal benefício, não consentindo a sua letra e espírito uma interpretação no sentido de se poder conferir privilégio a créditos de CA / IMI liquidados após a penhora e até à venda ou adjudicação.
5. Quanto ao crédito relativo à CA, exequenda e reclamada, não está em causa o entendimento pacífico dos tribunais superiores indicados na sentença recorrida, que culminou com o citado Ac. do Pleno do STA de 11/7/2006 (Pº n.º 060/03), no sentido de que o legislador do CCA disse menos do que queria, na medida em que os créditos por CA, posteriores à datada da penhora e liquidados antes da venda ou da adjudicação beneficiavam do privilégio imobiliário previsto no art.º 744°-1 do Cod.Civil.
6. Só que, com a vigência do art. 122° do CIMI, renasce a dúvida outrora gerada com a entrada em vigor do CCA, concretamente do seu art.º 24°, n° 1, se encontrava ou não revogado o artº 230°, § 2 do CCP, (na redacção do Decreto-lei n.º 764/75 de 31/12), sendo certo que, como é sabido, a CA extinguiu e substituiu a CP e o IMI extinguiu e substituiu a CA.
7. Isso porque, temos que a argumentação a favor vigência do art. 230° § 2 do CCP deixou de subsistir com a entrada em vigor do CIMI, não só porque o art. 31° do DL 287/2003, de 12/11 é expresso e inequívoco a não querer deixar em vigor qualquer resquício do CCP, mas porque a revogação do art. 24° do CCA arrastou necessariamente a revogação da disciplina ou regime jurídico que lhe estava imanente ou associado, ou seja, se o art. 230º § 2 do CCP sobrevivia à sombra do art.º 24° do CCA, com a eliminação deste da ordem jurídica o mesmo sucedeu com aquele outro dispositivo legal.
8. Sendo certo que, a entender-se como revogado o citado art. 230° § 2 pelo CCA, a revogação deste pelo CIMI não implica uma repristinação daquele preceito, sob pena de violação do art. 7°-4 do Cod.Civil.
9. Pelo que, a ser assim, uma vez que, nos autos, a penhora do imóvel foi efectuada em 20/05/2008 e parte do IMI reclamado pelo RFP foi inscrito para cobrança em 20/3/2009, ou seja, posteriormente ao ano da penhora, não deveria o respectivo crédito ser admitido nem graduado.
10. A douta sentença ao admitir e graduar o crédito reclamado atrás referido, de IMI (de 2008 e inscrito para cobrança em 2009), para além do ano da data da penhora, violou os artigos 122°-1 do CIMI e 744° n.º 1 do Código Civil, pelo que deve ser anulada e substituída por outra que não admita tal crédito.
11. Já assim foi decidido por esse Douto STA, nos Acs. de 7/1/2009 (P° n.º 0863/08) e de 29/4/2009 (P° n.º 01008/08), o 1° dos quais no âmbito da acção 587/06.4 deste TAF.
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1.2. Não foram apresentadas contra-alegações.
1.3. O Exmo. Procurador-Geral-Adjunto junto do Supremo Tribunal Administrativo emitiu douto parecer no sentido de ser concedido provimento ao recurso, subscrevendo a posição defendida pelo Recorrente.
1.4. Colhidos os vistos dos Exmºs Juízes Conselheiros Adjuntos, cumpre decidir.
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2. A sentença recorrida deu por assente os seguintes factos:
A- Com base nas certidões de dívida de fls. 2 a 5 do processo de execução fiscal apenso, foi instaurada contra B… e C…, a execução fiscal n.º 2070200601002236 para cobrança coerciva das dívidas de IRS dos anos de 2001 a 2004 - fls. 1 do apenso.
B- Nos referidos autos de execução fiscal e para garantia da quantia exequenda, por auto de penhora de fls. 253, datado de 20/05/2008, foi penhorado aos executados a casa de rés-do-chão com logradouro e quintal, destinada a habitação, inscrita na matriz sob o artigo 2524 da freguesia de Salvaterra de Magos.
C- A penhora identificada na alínea antecedente foi registada na Conservatória do Registo Predial de Salvaterra de Magos, através da Ap. 15 de 2008/05/23 - fls. 30.
D- Sobre a fracção autónoma identificada em B) supra foi constituída hipoteca voluntária a favor do Banco Comercial Português, S.A., para garantia de empréstimo, concedido por este Banco aos executados, da quantia de 13.500.000$00; juro anual de 6,45%, acrescido de 4% em caso de mora; despesas de 540.000$00 e no montante máximo de 18.272.250$00, registada na Conservatória do Registo Predial de Peniche através da Ap. 10 de 2001/08/07 - fls. 14 a 26 e 29 e 30.
E- Através da escritura pública outorgada em 29/12/2008, o Banco Comercial Português, S.A. cedeu à reclamante A..., o crédito que detinha sobre os executados - fls. 36 a 202.
F- A transmissão de crédito referida na alínea antecedente foi registada na Conservatória do Registo Predial de Salvaterra de Magos através da Ap. 1390 de 2009/01/07 - fls. 223.
G- Os executados são devedores de IMI dos anos de 2007 e 2008, respeitante ao imóvel penhorado na execução fiscal - fls. 226 a 228 e 243.
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3. O inconformismo do Recorrente, integrante do objecto do presente recurso jurisdicional, reconduz-se à única questão de saber a decisão recorrida enferma de erro de aplicação e de interpretação do direito ao ter julgado que o crédito reclamado de Imposto Municipal sobre Imóveis (IMI) referente ao ano de 2008 mas inscrito para cobrança em 2009, isto é, inscrito posteriormente ao ano corrente na data da penhora, efectuada em Maio de 2008, pode ser graduado como crédito privilegiado nos termos previstos no artigo 744.º do Código Civil.
Com efeito, a sentença acolheu o entendimento de que todos os créditos reclamados pela Fazenda Pública – provenientes de IMI dos anos de 2007 e 2008 e inscritos para cobrança em 2008 e 2009, respectivamente - gozavam do privilégio imobiliário especial previsto no artigo 744.º do Código Civil, com a seguinte argumentação:
«Os créditos de IMI, por seu turno, fruem das garantias especiais previstas no Código Civil para a contribuição predial, em conformidade com o Art. 122.° do CIMI. Assim, face ao disposto no já mencionado Art. 744.°, n.º 1 do CC e verificando-se que o imposto reclamado incide sobre o imóvel penhorado, atendendo, ainda ao facto de a jurisprudência dos tribunais superiores entender que o Art. 24.°, n.º 1, do CCA deve interpretar-se no sentido de que os créditos por contribuição autárquica, posteriores à data da penhora e liquidados antes da venda ou adjudicação de bens, beneficiam do privilégio imobiliário previsto no Art. 744.º, n.º 1 do CC, interpretação que é de sufragar para o Art. 122.° do IMI, os créditos reclamados pela Fazenda Pública gozam de privilégio imobiliário especial.».
Já o Ministério Público, ora Recorrente, sustenta posição diversa, advogando que o IMI inscrito para cobrança em momento posterior ao ano corrente na data da penhora (no caso, o IMI referente ao ano de 2008, inscrito para cobrança no ano de 2009), não goza do privilégio creditório imobiliário previsto nas disposições combinadas dos artigos 122.º do Código do IMI e 744.º, n.º 1, do Código Civil, por força do que vem determinado no n.º 1 do artigo 31.º do Dec.Lei n.º 287/2003, de 12 de Novembro.
Vejamos.
O artigo 744.º do Código Civil preceitua, no seu n.º 1, que «Os créditos por contribuição predial devida ao Estado ou às autarquias locais, inscritos para cobrança no ano corrente na data da penhora, ou acto equivalente, e nos dois anos anteriores, têm privilégio sobre os bens cujos rendimentos estão sujeitos àquela contribuição».
Tal privilégio imobiliário especial, atribuído à contribuição predial, veio, porém, a ser estendido à Contribuição Autárquica pelo artigo 24.º do Código de Contribuição Autárquica (aprovado pelo DL nº 442-C/88, de 30 de Novembro) e, posteriormente, ao Imposto Municipal sobre Imóveis pelo artigo 122º do Código do IMI (aprovado pelo DL nº 287/2003, de 12 de Novembro). Com efeito, o artigo 24.º do Código da CA diz, no seu n.º 1, que «A contribuição autárquica goza das garantias especiais previstas no Código Civil para a contribuição predial», e o artigo 122.º do Código do IMI estabelece, no seu n.º 1, que «O imposto municipal sobre imóveis goza das garantias especiais previstas no Código Civil para a contribuição predial».
Deste modo, e visto que aquele preceito do Código Civil apenas confere privilégio imobiliário especial aos créditos de contribuição predial, contribuição autárquica e imposto municipal sobre imóveis, inscritos para cobrança no ano corrente na data da penhora ou acto equivalente e nos dois anos anteriores, não devendo, por força de tal preceito, ser considerada na verificação e graduação de créditos as contribuições/impostos inscritos para cobrança após esse período, a questão que se coloca é a de saber se existe alguma norma legal que o permita, ou, mais precisamente, se ainda se encontra em vigor o artigo 230.º, § 2º do Código de Contribuição Predial, dado que este preceito autorizava que se atendesse, na verificação e graduação dos créditos, ao imposto que viesse a ser liquidado até à data da venda ou da adjudicação do prédio.
Como se sabe, Código de Contribuição Predial foi revogado pelo Dec.Lei n.º 442-A/88 (que aprovou o Código do IRS), pelo DL n.º 442-B/88 (que aprovou o Código do IRC) e pelo DL n.º 442-C/88 (que aprovou o Código da CA, embora este tenha ressalvado seus nos arts. 3.º, 5° e 8.º determinadas situações previstas no Código de Contribuição Predial, que não a dos autos), diplomas que entraram em vigor em 1 de Janeiro de 1989.
Donde resultaria, em princípio, a revogação do referido do artigo 230.º § 2.º do Código de Contribuição Predial, pois que o Código de CA, que ressalva expressamente algumas disposições daquele Código de Contribuição Predial, não ressalvara essa disposição legal.
Todavia, a jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo, que culminou com o acórdão do Pleno da Secção de Contencioso Tributário de 8/11/2006, proferido no Recurso n.º 630/03, veio a adoptar entendimento contrário, argumentando que o legislador do Código da CA havia dito menos do que queria e que se devia considerar ressalvada a disposição contida no § 2.º do artigo 230.º do CCP, razão por que se devia considerar que os créditos por contribuição autárquica, posteriores à datada da penhora e liquidados antes da venda ou da adjudicação, ainda beneficiavam do privilégio imobiliário previsto no n.º 1 do art.º 744.°do Código Civil.
Perante tal posição jurisprudencial, acolhida e plasmada em diversos arestos (Cfr. entre outros, os acórdãos proferidos em 25/06/1998, no recurso n.º 22.143; em 10/03/2004, no recurso n.º 117/04; em 29/04/2004, no recurso n.º 113/04; em 10/11/2004, no recurso n.º 780/04; em 19/05/2004, no recurso n.º 630/03).
, firmou-se o entendimento de que apesar de a reclamação de créditos de contribuição predial e contribuição autárquica por parte do Estado se dever reportar aos inscritos para cobrança na data da penhora e nos dois anos anteriores, se devia, ainda, atender, na graduação, aos créditos que viessem a ser liquidados após a penhora e até à venda ou adjudicação, dado que «a remissão do privilégio da contribuição autárquica para a contribuição predial não poderá deixar de abranger o mencionado artº 230.º do C.C.Predial, na parte em que se refere ao indicado privilégio, que nesta parte sempre se deverá entender como em vigor.» - cfr. acórdão de 10/03/2004, no recurso n.º 117/04.
Todavia, o diploma que aprovou o Código do IMI (DL n.º 287/2003, de 12.11), veio decretar que «A partir da data da entrada em vigor do CIMI, são revogados os Códigos da Contribuição Autárquica, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 442-C/88, de 30 de Novembro, e da Contribuição Predial e do Imposto sobre a Indústria Agrícola, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 45104, de 1 de Julho de 1963, na parte ainda vigente, considerando-se a contribuição autárquica substituída pelo imposto municipal sobre imóveis (IMI) para todos os efeitos legais» (n.º 1 do artigo 31.º).
O que torna clara a intenção do legislador de revogar todos os preceitos ainda vigentes do Código de Contribuição Predial, inviabilizando a defesa de uma tese que persista no entendimento da manutenção de vigência de determinadas regras normativas previstas nesse Código, designadamente do § 2.º do seu artigo 230.º.
Na verdade, não só a lei é clara e inequívoca na vontade de abolir qualquer resquício daquele Código, como a revogação do artigo 24.° do Código de CA arrastou necessariamente a revogação de todo o regime jurídico que lhe estava imanente ou associado, ou seja, daquele § 2.º do artigo 230.º do CCP, o qual, segundo a citada jurisprudência, sobrevivia à sombra deste artigo 24.° do Código de CA.
Deste modo, tendo em conta que nem a letra nem o espírito do artigo 744.º do Código Civil consentem outra interpretação que não seja a de conferir privilégio imobiliário apenas aos impostos inscritos para cobrança no ano corrente na data da penhora ou acto equivalente e nos dois anos anteriores, e face à ausência de norma que permita ou autorize a extensão desse privilégio aos impostos liquidados até à data da venda ou da adjudicação do prédio, somos levados a concluir que a partir da entrada em vigor do Código do IMI, em 1 de Dezembro de 2003, e por força das disposições combinadas do seu artigo 122.º e do artigo 744.º do Código Civil, os créditos provenientes de IMI só gozam de privilégio creditório imobiliário desde que inscritos para cobrança no ano corrente na data da penhora ou acto equivalente e nos dois anos anteriores.
Em sentido idêntico, vejam-se os Acórdãos deste Tribunal de 7/01/2009, no recurso n.º 863/08 e de 29/04/2009, no recurso n.º 1008/08.
Assim sendo, e uma vez que, no caso vertente, a penhora do imóvel foi efectuada em 20/05/2008, não deveria o reclamado crédito de IMI inscrito para cobrança no ano de 2009 ter sido admitido e graduado, por não gozar do privilégio creditório imobiliário previsto nas disposições combinadas dos artigos 122.º do Código do IMI e 744.º, n.º 1, do Código Civil.
Termos em que merece inteiro provimento o presente recurso.
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4. Termos em que acordam, em conferência, os juízes da Secção de Contencioso Tributário deste Supremo Tribunal Administrativo em conceder provimento ao recurso relativamente ao crédito reclamado de IMI inscrito para cobrança no ano de 2009, o qual, assim, se exclui da graduação, nesta parte se revogando a sentença recorrida que no demais se mantém.
Custas pela Fazenda Pública, na 1.ª instância, e na proporção do seu decaimento.
Lisboa, 24 de Fevereiro de 2010. - Dulce Neto (relatora) – Alfredo Madureira - Valente Torrão.