Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0383/12
Data do Acordão:10/17/2012
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:FERNANDA MAÇÃS
Descritores:IMPUGNAÇÃO JUDICIAL
IVA
FUNDAMENTAÇÃO DO ACTO TRIBUTÁRIO
FUNDAMENTAÇÃO INSUFICIENTE
Sumário:I - Um acto encontra-se suficientemente fundamentado quando dele é possível extrair qual o percurso cognoscitivo e valorativo seguido pelo agente, permitindo ao interessado conhecer, assim, as razões de facto e de direito que determinaram a sua prática e porque motivo a Administração se decidiu num sentido e não noutro.
II - Caso a fundamentação externada não cumpra integralmente este objectivo, deve considerar-se que o acto enferma de vício de insuficiência de fundamentação, que a lei equipara nos seus efeitos à falta de fundamentação e constitui motivo de anulação do acto (art. 125º, nº 2, e 135º do Código do Procedimento Administrativo).
III - Não cumpre as exigências de fundamentação a remissão genérica para as normas do CIVA, nem as meras declarações, no sentido de que “a actividade exercida não se enquadra nos termos definidos pelo Decreto-Lei nº 199/96”, ou que “as operações tributárias em causa são aquisições intracomunitárias de bens”, porque demasiado genéricas, não permitindo a um destinatário normal aperceber-se integralmente das razões de facto e de direito da não aplicabilidade do regime daquele diploma, ficando, desta forma, comprometido o seu direito de defesa.
Nº Convencional:JSTA000P14698
Nº do Documento:SA2201210170383
Data de Entrada:04/09/2012
Recorrente:FAZENDA PÚBLICA
Recorrido 1:A......, LDA
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: Acordam na Secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo

I-RELATÓRIO

1. A A………, Lda., identificada nos autos, deduziu impugnação judicial, no Tribunal Administrativo e Fiscal de Leiria, contra as liquidações adicionais de IVA e juros compensatórios relativas aos anos de 1999, 2000 e 2001, no valor total de € 76.358,25, que declarou a nulidade das correcções em causa.
2. Não se conformando, a representante da Fazenda Pública veio recorrer para este Supremo Tribunal, apresentando alegações, com as seguintes Conclusões:
“A) A autora deduziu acção de Impugnação Judicial contra as notas de liquidação adicionais de IVA e juros compensatórios dos anos de 1999, 2000 e 2001, no valor total de € 76.358,25), incluindo juros de mora e custas;
B) A matéria tributável, objecto da impugnação da contribuinte, foi apurada com recurso a correcções de natureza meramente aritmética resultantes de inspecção levada a efeito pelos Serviços de Prevenção e Inspecção de Leiria à contabilidade da Impugnante e ao conteúdo das declarações apresentadas;
C) Face ao probatório, Sua Exa. o Meritíssimo Juiz considerou procedente a acção porque, na sua opinião, a Administração Fiscal não fundamentara correctamente a opção de tributar a venda de 3 viaturas nos termos do n° 5 do art. 16º do CIVA em vez de aplicar à situação o regime do DL n° 199/96 de 18 de Outubro;
D) Não concorda a Fazenda Pública com esta interpretação, tendo em conta que foi dado como provado que a impugnante está enquadrada na alínea a) do nº 1 do art. 2° do CIVA e porque os bens em causa não correspondem aos que são abrangidos no Decreto Lei acima mencionado.
E) Sendo a situação de compreensão imediata e clara nada justificava que fossem exigidas outras explicações para a opção da Administração Tributária que não podia agir de forma diferente como muito bem entendeu, Sua Exª. o Senhor Procurador.
F) Entende-se portanto que a fundamentação do Relatório da Inspecção foi clara, congruente e suficiente permitindo aos interessados a compreensão do iter seguido pela Administração Fiscal na liquidação impugnada nos termos do art. 77° da LGT,
Termos em que, com o douto suprimento de V. Exas., deverá ser concedido provimento ao presente, revogando-se a decisão recorrida, com o que será feita a costumada JUSTIÇA.

3. A recorrida A………, Lda., veio apresentar contra-alegações, das quais concluiu o seguinte:
“A) — Nos presentes autos a questão decidenda reporta-se à fundamentação das liquidações adicionais de IVA dos exercícios de 1999, 2000 e 2001.
B) No relatório de inspecção, que fundamenta as correcções efectuadas pela Administração Tributária, enquadram-se as aquisições de viaturas ligeiras de passageiros usadas como aquisições intracomunitárias, sem qualquer fundamentação de facto e ou de direito, operações tributáveis e sujeita a IVA nos termos do n.° 5 do artigo 16° do CIVA e que a recorrida é sujeito passivo, nos termos da alínea a) do n.° 1 do artigo 2° do CIVA.
C) — Ora, para além da identificação das normas legais, nada mais se adianta, que possa fundamentar, justificar ou evidenciar que as operações tributárias em causa são aquisições intracomunitárias de bens, nem são aduzidos argumentos que afastem a aplicação do regime previsto no Decreto-Lei n.° 199/96 de 18/10.
D) — E, contrariamente ao alegado nas doutas alegações da ERFP, a AT em sede de resposta ao direito de audição, não tomou em consideração todas as observações e argumentos invocados pela impugnante, uma vez que aí apenas se limita a dizer, sem mais, “a actividade exercida não se enquadra nos termos definidos pelo Decreto-Lei 199/96”.
E) — Na verdade, a ora recorrida entende que frases do tipo “a aquisição não se enquadra neste artigo, mas neste artigo”, não constituem a fundamentação exigível, necessária, suficiente ou clara dos actos tributários impugnados.
F) — Tanto mais que, feito o enquadramento legal da questão de facto, como doutamente fez a Meritíssima Juíza “a quo”, as aquisições de bens que deram origem às correcções tributárias se encaixam no âmbito de sujeição do Decreto-Lei n.° 199/96 de 18/10, que estabelece o Regime Especial de Tributação dos Bens em Segunda Mão, Objectos de Arte, de Colecção e Antiguidades.
G) — Com efeito, cabem no âmbito deste diploma as transmissões de bens de viaturas usadas, conforme se prevê na alínea a) do artigo 2° do supra mencionado decreto-lei.
H) — Embora a ERFP se faça valer do douto parecer proferido pelo Digno Magistrado do Ministério Público, o certo é que este incorre em erro na análise e interpretação do diploma legal, porque associa a aplicação do regime especial de tributação da margem apenas às transmissões de objectos de arte, de colecções e antiguidades.
I) — Na verdade, este regime especial aplica-se também à transmissão de bens em segunda mão, sendo estes entendidos como os bens móveis susceptíveis de reutilização no estado em que se encontram ou após reparação, com exclusão os objectos de arte, de colecção, das antiguidades, das pedras preciosas e metais preciosos, onde se enquadram as transmissões dos “veículos automóveis usados com 2 ou 3 anos” em causa nos autos.
J) — Daí que se entenda que a correcção fiscal não se encontra suficientemente fundamentada, pois não se encontram, em parte alguma do relatório que sustenta as liquidações adicionais do IVA, argumentos que afastem a aplicação do regime especial de tributação da margem nas transmissões de veículos em causa, aplicado pela impugnante.
L) — “insuficiência e obscuridade de fundamentação que subjaz à correcção” que não possibilitam ao destinatário aperceber-se porque foi tomada a decisão de correcção no sentido do afastamento de aplicação do regime especial do DL 199/96 e aplicação do CIVA (artigo 16° n°5). Termos em que deve o presente recurso ser julgado improcedente, mantendo-se a douta sentença recorrida.”

4. O Exmo. Magistrado do Ministério Público, junto deste Supremo Tribunal, pronunciou-se no sentido de ser negado provimento ao recurso.

5. Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.

II-FUNDAMENTOS

1- DE FACTO

A sentença recorrida deu como provada a seguinte factualidade:
“A. A Impugnante, A………, Lda., com o NIF ........., encontrava-se à data dos factos a exercer a actividade de construção de Edifícios, com o CAE 45211, com enquadramento em IVA, IRC — cfr. fls. 72 dos autos, não contestado.
B. No ano de 2003, a Impugnante foi objecto de uma acção de fiscalização levada a efeito pelos Serviços de Inspecção Tributária de Leiria, desencadeada no seguimento de ordem de serviço emitida n.° 376/02 693, de 17/07/2002, com o objectivo de se apurarem as causas das divergências apuradas entre o declarado pelos fornecedores através do sistema VIES e o inscrito pelo sujeito passivo nas declarações periódicas de IVA durante o exercício de 1999. — cfr. fls. 74 dos autos
C. A inspecção teve o seu início em 16/08/2002 e foi concluída em 17/02/2002 — cfr. fls. 74 dos autos.
D. No âmbito de uma acção de fiscalização supra identificada, foram apurados os seguintes factos:
“(…)
III — Descrição dos factos e fundamentos das correcções meramente aritméticas à matéria tributável
Face á análise efectuada aos registos contabilísticos e respectivos documentos de suporte verificaram-se várias irregularidades conforme descrição em cada um dos pontos seguintes:
(…)
III.2 Imposto Sobre o Valor Acrescentado
III.2.1 Exercício de 1999
III.2.1.1 Falta de Liquidação - Aquisições Intracomunitárias
(alínea a) do artigo 1.º e n.° 3 do artigo 17° do RITI)
A empresa adquiriu no mercado intracomunitário três viaturas ligeiras de passageiros e, verificou-se que não liquidou IVA sobre as respectivas aquisições nos seguintes montantes:


III.2.1.2 Falta de liquidação — Vendas
Com base nos registos efectuados na contabilidade, uma foi vendida durante o mês de Dezembro, dado que a atribuição da matricula “………” e a liquidação do imposto automóvel foi efectuado na alfândega de Peniche em 22 de Dezembro de 1999, pelo adquirente e a factura relativamente a esta venda foi emitida apenas em 05 de Janeiro de 2000.
Dado que o sujeito passivo se enquadra na alínea a) do n.° 1 do artigo 2° do CIVA, esta aquisição encontra-se para efeitos de sujeição a IVA, nos termos do n.° 5 do artigo 16° do CIVA. No entanto a empresa considerou a aquisição efectuada nos termos do Decreto-Lei 199/96 de 18 de Outubro.
Nestes termos, face ao que se encontra estipulado pelo já referido artigo 16° do IVA, o valor tributável inclui o valor de aquisição do bem, os Impostos, direitos, taxas e outras imposições, assim como as despesas acessórias e o que se verificou foi de que a empresa só liquidou IVA pela diferença entre o valor e aquisição e o valor da venda. Face às irregularidades verificadas, o IVA não liquidado nesta transacção foi o seguinte:

III.2.2 Exercício de 2000
III.2.2.1 Falta de Liquidação — Aquisições lntracomunitárias
[alínea a) do artigo 1º e n.° 3 do artigo 17° do RITI]
Verificou-se que o contribuinte não liquidou IVA sobre as seguintes aquisições intracomunitárias e nos seguintes montantes por período:

III.2.2 Falta de Liquidação — Vendas
Neste ano apurou-se que foram vendidas seis viaturas duas das quais faziam parte das existências em 31 Dezembro de 1999, no entanto só foram facturadas quatro e nestas, ao IVA liquidado não deu cumprimento ao já referido artigo 16° n.° 5 do CIVA. Os valores apurados em falta constam do quadro seguinte:



III.2.2.3 IVA deduzido indevidamente (artigo 20°)
A empresa incluiu na declaração periódica referente ao terceiro trimestre relativamente a Outros Bens e Serviços no valor de 676,37 Euros e em externa foram efectuadas correcções por recurso a métodos indirectos, no entanto, vem o sujeito passivo alegar te não deve haver lugar a recurso a métodos indirectos, mas sim à reposição do IVA deduzido Indevidamente no valor de 356,14 Euros, relativamente a custos contabilizados indevidamente.

III.2.3 Exercício de 2001
III.2.3.1 Falta de Liquidação — Aquisições Intracomunitárías
[alínea a) do artigo 1º e n.° 3 do artigo 17° do RITI]
Verificou-se que neste exercício o contribuinte efectuou a aquisição duma viatura no mercado intra comunitário no seguinte montante e período:


III.2.3.2 Falta de Liquidação — Vendas
Durante este exercício a empresa efectuou a venda de três viaturas, das quais não liquidou o IVA a que estava obrigada, cujo valor foi de 11.038.75 Euros conforme apuramento efectuado no quadro seguinte:



E. Em 19/12/2002, foi proferido despacho de concordância pelo Chefe de Divisão, por delegação, com as conclusões propostas no relatório supra — cfr. fls. 72 dos autos.
F. A Impugnante tomou conhecimento do teor das correcções constantes do relatório supra por carta registada com aviso de recepção que foi assinado em 20/01/2003 — cfr. fls. 96 e 97 dos autos.
G. A Impugnante tomou conhecimento das respectivas liquidações oficiosas de Imposto e Juros Compensatórios, por cartas que lhe foram dirigidas pela Direcção de Serviços doe Cobrança do Imposto Sobre o Valor Acrescentado, que apresentam todas elas como data limite de pagamento voluntário 31/03/2003 — cfr. fls. 17 a 26 dos autos.
H. As viaturas com o quadro ......... e ......... foram adquiridas por B……… à empresa C………, com sede social em ……… Denney, em 27 de Dezembro de 1999 e 29 de Março de 2000, respectivamente - cfr. fls. 51 e 52 (Doc.s 21 e 22 junto à p.i.)”.

2- DE DIREITO

2.1. Das questões a apreciar e decidir

Vem o presente recurso interposto pela Fazenda Pública, da sentença proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Leiria, de 29 de Abril de 2011, que julgou procedente a impugnação judicial deduzida contra as liquidações adicionais de IVA de 1999, 2000 e 2001, no entendimento de que tais actos tributários sofrem do vício de forma por falta/insuficiência de fundamentação.
Para tanto ponderou a Mmª Juíza “a quo”, entre o mais, que:
· “(…) a Administração Tributária qualificou as aquisições de viaturas ligeiras de passageiros usadas como aquisições intracomunitárias por considerar que “… o sujeito passivo se enquadra na alínea a) do n.° 1 do artigo 2º do CIVA, esta aquisição encontra-se para efeitos de sujeição a IVA, nos termos do n.° 5 do artigo 16° do CIVA…” ( Idem, cap. III.2.1.1), sem qualquer outro tipo de fundamentação e que em ponto algum daquele relatório se especifica, concretamente as razões que conduziram a qualificar aquelas operações como transmissões intracomunitárias, nem as que a conduziram a desconsiderar a aquisição efectuada nos termos do Dec.-Lei 199/96 de 18 de Outubro;
· “Na verdade na fundamentação que serve de base à correcções a Administração limita-se a descrever normas legais, que mais não fazem do que qualificar o sujeito interveniente como sujeito passivo de IVA e a indicar o modo de apuramento do valor tributável das transmissões de bens e prestações de serviços sujeitas a imposto;
· “Aqui chegados, deparamo-nos com uma situação de insuficiência e obscuridade da fundamentação que subjaz à correcção.
“Na verdade constatamos que não consta da informação que suporta a correcção qualquer elemento capaz de nos dar a conhecer os motivos que levaram ás correcções efectuadas por parte da Administração Tributária ( Ponto D do probatório.).
· “Ora não sendo possível aferir de forma clara, suficiente e congruente, os motivos da prática do acto, não é possível ao destinatário aperceber-se dos motivos por que a decisão foi naquele sentido (limitando este a sua defesa à especificação dos actos que diz ter realizado), nem ao Tribunal controlar a legalidade do acto impugnado (A este respeito refere-se o Acórdão do STA, proferido em 20/11/2002 no processo nº. 42180, segundo o qual um acto está suficientemente fundamentado sempre que um destinatário normal, colocado perante o acto em causa, possa ficar ciente das razões que sustentam a decisão nele prolatada. É, ainda, ilustrativo o Acórdão do STA, Recurso nº. 46796, de 14 de Março de 2001 segundo o qual se encontra devidamente fundamentado o acto que, directamente e por remissão, contém a indicação contextual dos motivos de facto e de direito que permitem ao seu destinatário normal, apreender o raciocínio decisório, as causas e o sentido da decisão.).
· “Termos em concluímos no sentido de que não foram cumpridas as exigências legais no que respeita à fundamentação substancial do acto tributário impugnado, o que implica a violação do disposto nos artigos 268°, n° 3, da Constituição da República, dos art°s. 82.° do CPT, 124°, n° 1, a) e b) 125° e 133°, n° 1 e n° 2 , al. d), todos do Código do Procedimento Administrativo declaro a nulidade do acto tributário viciado.
· “Fica assim, sem mais, prejudicada a analise das demais questões”.

Contra este entendimento se insurge a Fazenda Pública alegando que “tendo em conta que foi dado como provado que a impugnante está enquadrada na alínea a) do nº 1 do art. 2° do CIVA e porque os bens em causa não correspondem aos que são abrangidos no Decreto Lei acima mencionado, (…) a situação é “de compreensão imediata e clara nada justificava que fossem exigidas outras explicações para a opção da Administração Tributária que não podia agir de forma diferente como muito bem entendeu, (…) pelo que “a fundamentação do Relatório da Inspecção foi clara, congruente e suficiente permitindo aos interessados a compreensão do iter seguido pela Administração Fiscal na liquidação impugnada nos termos do art. 77° da LGT”.

Em face das conclusões, que delimitam o objecto e âmbito do recurso, nos termos do estatuído nos arts. 684º, nº 3, e 685º-A/1, do CPC, a questão a decidir é a de saber se a sentença recorrida incorreu em erro ao julgar procedente a impugnação, com fundamento em falta de fundamentação das liquidações adicionais de IVA em causa.

2.2. Do vício da falta de fundamentação das liquidações adicionais de IVA

Nos termos do disposto no art. 77º, nº 1, da LGT, “a decisão de procedimento é sempre fundamentada por meio de sucinta exposição das razões de facto e de direito que a motivaram (…)”. Por sua vez, o n.° 2 estipula que “a fundamentação dos actos tributários pode ser efectuada de forma sumária, devendo sempre conter as disposições legais aplicáveis, a qualificação e quantificação dos factos tributários e as operações de apuramento da matéria tributável e do tributo”.
A fundamentação dos actos tributários, enquanto exigência decorrente dos arts. 268º, nº 3, da CRP e 77º da LGT, tem uma dupla função: uma, endógena, de propiciar a reflexão da decisão pelo órgão administrativo e outra, exógena, externa ou garantística, de facultar ao cidadão a opção consciente entre o conformar-se com tal decisão ou afrontá-la em juízo.
Constitui entendimento da jurisprudência dos nossos tribunais que um acto se encontra suficientemente fundamentado quando dele é possível extrair qual o percurso cognoscitivo e valorativo seguido pelo agente, permitindo ao interessado conhecer, assim, as razões de facto e de direito que determinaram a sua prática e porque motivo a Administração se decidiu num sentido e não noutro (Cfr., entre outros, o Acórdão deste Supremo Tribunal, de 6/10/2010, proc. 0510/10, e o Acórdão do Pleno, de 2 /5/2012, recurso nº 307/11.).
Como ficou consignado, entre outros, no Acórdão deste Supremo Tribunal, de 14 de Junho de 2012, proc nº 327/12, “Caso a fundamentação externada não cumpra integralmente este objectivo, deve considerar-se que o acto enferma de vício de insuficiência de fundamentação, que a lei equipara nos seus efeitos à falta de fundamentação e constitui motivo de anulação do acto (art. 125º, nº 2, e 135º do Código do Procedimento Administrativo (CPA)”.
No mesmo Acórdão, seguindo jurisprudência uniforme deste Supremo Tribunal pode ainda ler-se que “a fundamentação é um conceito relativo, que varia em função do concreto tipo de acto e que «o grau de fundamentação exigível deverá estar directamente relacionado com o grau de litigiosidade existente, isto é, com a divergência existente entre a posição da administração e do contribuinte», sendo que o que releva para esse efeito, atento o carácter essencialmente instrumental do dever de fundamentação, é a efectiva possibilidade de um destinatário normal ficar habilitado, através da externação de motivos coeva ao acto, a conhecer as razões que o suportam, permitindo-lhe assim optar entre conformar-se com ele ou atacá-lo graciosa ou contenciosamente.
Assim, atento o carácter instrumental daquele dever, a suficiência da fundamentação do acto tributário deve aferir-se pelo comprometimento da possibilidade de reacção contra o acto, sendo que esse comprometimento deve ser aferido, não em abstracto, mas em face das concretas circunstâncias da concreta situação trazida a juízo”.
No caso em apreço, verifica-se que a Impugnante, ora recorrida, nas aquisições intracomunitárias de viaturas usadas optou pela liquidação do IVA segundo o Regime Especial dos Bens em Segunda Mão, constante do Decreto-Lei nº 199/96, de 18 de Outubro. Por sua vez, a Administração Fiscal, em relatório de inspecção, procedeu à correcção das liquidações de IVA efectuadas pela recorrida, por considerar que “o sujeito passivo se enquadra na alínea a) do nº 1 do artigo 2º do CIVA”, razão pela qual a aquisição está sujeita à liquidação do IVA, “nos termos do n.° 5 do artigo 16° do CIVA” (Idem, cap. III.2.1.1), sem adiantar qualquer outro tipo de fundamentação.
A questão a decidir é a de saber se a mera enunciação dos preceitos legais do regime normal do IVA são suficientes para satisfazer, no caso, as exigências de fundamentação.
Na sentença recorrida conclui-se que não, uma vez que “em ponto algum daquele relatório se especifica, concretamente as razões que conduziram a qualificar aquelas operações como transmissões intracomunitárias, nem as que a conduziram a desconsiderar a aquisição efectuada nos termos do Dec.-Lei 199/96 de 18 de Outubro.
“Na verdade na fundamentação que serve de base à correcções a Administração limita-se a descrever normas legais, que mais não fazem do que qualificar o sujeito interveniente como sujeito passivo de IVA e a indicar o modo de apuramento do valor tributável das transmissões de bens e prestações de serviços sujeitas a imposto”.
Pode ainda ler-se na sentença “a quo” que não constando “da informação que suporta a correcção qualquer elemento capaz de nos dar a conhecer os motivos que levaram ás correcções efectuadas por parte da Administração Tributária” ( Ponto D., do probatório), não é, por conseguinte, “possível aferir de forma clara, suficiente e congruente, os motivos da prática do acto,” (…) nem é “possível ao destinatário aperceber-se dos motivos por que a decisão foi naquele sentido (limitando este a sua defesa à especificação dos actos que diz ter realizado), nem ao Tribunal controlar a legalidade do acto impugnado”.
No mesmo sentido, corroborando o decidido na sentença recorrida, pode ler-se no Parecer do Ministério Público que “(…) o RIT limita-se a proceder à descrição de normas legais (artigos 2.° e 16.° do CIVA) que definem a incidência pessoal do IVA e indicam o modo de apuramento do valor tributável das transmissões de bens e das prestações de serviços sujeitas a imposto.
“Ou seja, a AT não deu a conhecer à recorrida o iter valorativo e cognoscitivo que a levou a não considerar aplicável o regime de tributação em IVA de bens em segunda mão constante do DL 199/96, de 18 de Outubro.
“Ao contrário do que sustenta a recorrente, nas suas conclusões, a situação não é de compreensão imediata e clara no sentido de não ser aplicável o regime de tributação do IVA em segunda mão, sendo desnecessárias outras explicações.
“De facto, tal aplicabilidade resulta, a nosso ver, claramente, do estatuído no artigo 2.° /a) e 3.° do DL 199/06, como refere a sentença recorrida, pelo que se impunha uma fundamentação bastante da opção tomada pela AT (Os acórdãos do STA de 2005.05.11, 2007.03.07, 1999.03.17 e 2011.04.13, proferidos nos recursos números 26/05, 647/06, 23312 e 16/10, respectivamente, disponíveis no sítio da Internet www.dgsi.pt, analisam situações de aquisições de automóveis em segunda mão, em que nem sequer se questiona a aplicabilidade do DL 199/06.)”.
Vejamos.
Como realça o Ministério Público, no seu Parecer, afigura-se, desde logo, que não é claro e evidente que a recorrida não tenha razão quanto ao regime de IVA por si adoptado.
Com efeito, o Decreto-Lei nº 199/96, de 18/10 (Editado ao abrigo da autorização legislativa constante da alínea f) do nº. 1 do artigo 34º e da alínea a) do artigo 42º da Lei nº. 10-B/96, de 23 de Março, que aprovou o Orçamento do Estado para 1996.), procedeu, em matéria de harmonização comunitária, à transposição para a ordem jurídica nacional da Directiva n° 94/5/CE, do Conselho, de 14 de Fevereiro de 1994, relativa à tributação, em imposto sobre o valor acrescentado, das transmissões de bens em segunda mão, objectos de arte, de colecção e antiguidades, conforme decorre do preâmbulo do respectivo diploma que introduziu a citada directiva no direito interno (art. 1º).
Este regime visa eliminar ou atenuar a dupla tributação ocasionada pela reentrada no circuito económico de bens que já tinham sido definitivamente tributados, decorrendo do seu art.° 1.° que estão sujeitas a imposto sobre o valor acrescentado, segundo o regime especial de tributação da margem as transmissões de:
bens em segunda mão;
— objectos de arte;
— de colecções, e
— de antiguidades.
efectuadas nos termos deste diploma, por sujeitos passivos revendedores ou por organizadores de vendas em leilão que actuem em nome próprio, ou conta de um comitente, de acordo com um contrato de comissão de venda.”
Ora, entendendo-se, nos termos da alínea a) do art. 2°, por “bens em segunda mão” “quaisquer bens móveis” (Bens em segunda mão são “os bens móveis susceptíveis de reutilização no estado em que se encontra ou após reparação, com exclusão dos objectos de arte, de colecção, das antiguidades, das pedras preciosas e metais preciosos, não se entendendo como tais as moedas ou artefactos daqueles materiais” [alínea a) do art.2º do Decreto-Lei nº 199/96, de 18 de Outubro].) e não se excluindo os veículos automóveis, não restam dúvidas que cabem no âmbito deste diploma as transmissões de viaturas em segunda mão. Por outro lado, tratando-se de um regime especial deverá o mesmo prevalecer sobre o regime geral.
De igual modo, constitui jurisprudência deste Supremo Tribunal, vazada, entre outros, nos Acórdãos: de 7/06/2000, processo nº 24828; de 1/5/05, processo nº 26/05; e de 7/3/2007, processo nº 647/06, “que a transmissão de bens em segunda mão (carros usados adquiridos em países da CE), ocorrida depois de 1/1/95, mas antes da vigência do Decreto-Lei nº 199/96, de 18/10, é regulada directamente pelas pertinentes normas da Directiva nº 94/5/CE, de 14/2/94”, ou seja, não se encontram sujeitas ao regime de incidência normal do IVA, mormente do RITI, mas sim ao regime aplicável às transmissões de bens em segunda mão.
Assim sendo, afigura-se que cabia à Administração Fiscal explicar as razões de facto e de direito que a levaram a concluir não ser aplicável o regime do Decreto-Lei nº 199/96, não sendo suficiente a mera remissão genérica para as normas do CIVA. Por outro lado, como refere a recorrida, nas suas contra-alegações, as meras declarações no sentido de que “a actividade exercida não se enquadra nos termos definidos pelo Decreto-Lei nº 199/96”, ou que “as operações tributárias em causa são aquisições intracomunitárias de bens”, porque demasiado genéricas, também não permitem a um destinatário normal aperceber-se integralmente das razões de facto e de direito da não aplicabilidade do regime daquele diploma.
E nem se argumente, como alega a Fazenda Pública, nas alegações, que a recorrida compreendeu “o iter cognoscitivo que presidiu à posição assumida pela Administração Fiscal” tanto assim que impugnou as liquidações adicionais discordando da tese seguida no relatório da inspecção.
Acontece que análise atenta da petição de impugnação judicial demonstra que a recorrida se limitou a descrever os factos relevantes e a dizer que liquidou o IVA segundo o regime jurídico constante no Decreto-Lei nº 199/96. A defesa completa da recorrida passaria pelo ataque às razões que levaram a Administração Fiscal a fazer as correcções com base no regime normal do IVA e a rejeitar, no caso, a aplicabilidade do regime especial.
E, na verdade, pode até acontecer que, designadamente, no caso em apreço, não estejam reunidos os pressupostos para a recorrida ser abrangida pelo regime especial de tributação conhecido “como da margem”, previsto no Decreto-Lei nº 199/96, de 18 de Outubro, em especial, na alínea d) do nº 1 do art. 3º daquele diploma, que abrange apenas as transmissões de bens efectuadas por um sujeito passivo revendedor desde que este tenha adquirido esses bens no interior da Comunidade, “A outro sujeito passivo revendedor, desde que a transmissão dos bens por esse outro sujeito passivo revendedor tenha sido efectuada ao abrigo do disposto neste diploma, ou regulamentação idêntica vigente no Estado membro onde a transmissão dos bens tiver sido efectuada”.
Porém, no caso concreto, tal defesa tornou-se impossível por a recorrida desconhecer as razões das correcções impugnadas. E, assim sendo, por ausência de externação dos motivos de facto e das razões de direito que suportam as correcções efectuadas pela Administração Fiscal, a fundamentação não cumpre um dos objectivos essenciais que é o de permitir ao destinatário reagir eficazmente contra as mesmas, ficando deste modo comprometido o seu direito de defesa.
Em face do exposto, não podemos deixar de concluir que, no caso, a fundamentação ao não proporcionar à recorrida a reconstituição do itinerário cognoscitivo e valorativo percorrido pela autoridade que praticou o acto, de forma a poder saber-se claramente as razões por que decidiu da forma que decidiu e não de forma diferente, é, em conformidade com jurisprudência reiterada manifestamente insuficiente (Cfr. entre outros, o Acórdão do STA, de 2009.04.15, proferido no recurso nº. 065/09 e o Acórdão de 14 de Março de 2001, Recurso nº 46796, disponíveis no sítio da Internet www.dgsi.pt.).
Assim sendo, não assiste razão à recorrente, uma vez que as liquidações sindicadas sofrem, pois, de vício de forma por falta/insuficiência de fundamentação, determinante da sua anulação, nos termos do disposto nos arts. 125º, nº 2, e 135º do Código do Procedimento Administrativo (CPA).
A sentença recorrida que decidiu neste sentido deve ser confirmada ainda que corrigida quanto aos efeitos do vício da falta de fundamentação, que não é a nulidade mas apenas a anulação, em conformidade com o estatuído no art. 135º do CPA.
Improcede, deste modo, o presente recurso.

III- DECISÃO

Termos em que os Juízes da Secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo acordam, em conferência, negar provimento ao recurso, confirmando a sentença recorrida.

Custas pela recorrente.

Lisboa, 17 de Outubro de 2012. - Fernanda Maçãs (relatora) - Valente Torrão - Francisco Rothes.


Segue acórdão de 28 de Novembro de 2012:

1. Na parte a seguir à decisória do Acórdão proferido nestes autos em 17 de Outubro de 2012, incorremos num lapso de escrita: escrevemos custas pela recorrente onde queríamos escrever sem custas.
2. Cumpre pois corrigir esse manifesto lapso material de escrita.
3. Assim e ao abrigo do disposto no art. 667º, nº 1, e 716º, nº 2, do Código de Processo Civil, os Juízes desta Secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo acordam, em conferência, rectificar o acórdão proferido nos autos em 17 de Outubro, nos termos acima expostos.

Notifique com as consequentes rectificações necessárias.

Lisboa, 28 de Novembro de 2012. – Fernanda Maçãs (relatora) – Valente Torrão - Francisco Rothes.