Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0497/15.4BEMDL 0355/18
Data do Acordão:10/06/2021
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:NUNO BASTOS
Descritores:IVA
ENTIDADE PÚBLICA
EXTINÇÃO
REPRESENTAÇÃO LEGAL
Sumário:Na impugnação judicial de decisão da administração tributária que indefira o pedido de revisão de autoliquidação de IVA efetuada por empresa municipal, entretanto extinta, o Município que intervenha na qualidade de antigo e único sócio daquela empresa não tem que se fazer representar pelo respetivo liquidatário.
Nº Convencional:JSTA00071254
Nº do Documento:SA2202110060497/15
Data de Entrada:04/11/2018
Recorrente:MUNICÍPIO DE ALFÂNDEGA DA FÉ
Recorrido 1:AT – AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA
Votação:UNANIMIDADE
Legislação Nacional:CSC ART158 ART164 N2
Aditamento:
Texto Integral: Acordam em conferência na Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo:

1. Município da Alfândega da Fé, contribuinte fiscal n.º 506 647 498, com sede no Largo D. Dinis, 5350-045 Alfândega da Fé, recorreu da decisão do Mm.º Juiz do Tribunal Administrativo e Fiscal de Mirandela que, considerando que a Impugnante não estava devidamente representada em juízo, absolveu a Administração Tributária da instância nos autos de impugnação judicial da decisão de indeferimento do pedido de revisão oficiosa n.º 0477201302000024, que EDEAF – Entidade Empresarial Municipal de Desenvolvimento de Alfândega da Fé, E.E.M., contribuinte fiscal n.º 506 666 573, formulou em 2014/07/31, ao abrigo do artigo 78.º da Lei Geral Tributária, tendo em vista a regularização de IVA que considera ter liquidado em excesso e referente aos períodos de junho a dezembro de 2009, 2010 e janeiro a março de 2011, no € 57.172,40.

O recurso foi admitido, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.

Notificada da sua admissão, a Recorrente apresentou alegações, que rematou com as seguintes conclusões: «(...)

a) A decisão recorrida é, salvo o devido respeito, que aliás é muito, injusta e precipitada, tendo partido de pressupostos errados;

b) Entende o Recorrente que a sua pretensão é legítima e sai manifestamente prejudicada pela manutenção da decisão recorrida;

c) Posteriormente ao encerramento da liquidação e após extinção da sociedade, apurando-se da existência de bens não partilhados, não se exigindo que tais bens sejam supervenientes, no sentido estrito da sua ocorrência histórica, mas apenas que não hajam sido partilhados pode ser intentada acção pelos sócios (neste sentido, na jurisprudência das Relações, acórdão da Relação do Porto, de 13 de Setembro de 2007, disponível em http://www.dgsi.pt).

d) Previne-se aqui a repristinação da sociedade: uma vez «desaparecida a sociedade-sujeito, e mantidos vivos os direitos da sociedade (…), só os sócios podem ser os novos titulares desse activo (…)» (Raúl Ventura, Dissolução e Liquidação de Sociedades, 1987, pág. 480).

e) As acções para cobrança de créditos, possibilitadas pelo nº 2 do artigo 164º do CSC e, no que ora releva, no caso previsto na segunda parte daquele preceito, a reivindicação de tais direitos de crédito por parte do sócio ficará limitada ao seu respectivo interesse.

f) As acções que haja necessidade de intentar para fazer reconhecer e efectivar o direito a esses bens podem ser propostas pelos liquidatários, actuando judicialmente como representantes da generalidade dos sócios; ou pelos sócios, sendo, porém, que estes apenas podem propor acções limitadas ao interesse de cada um. Esse é o sentido da norma do n.º2 do artigo 164º do CSC (cf. Raul Ventura, Dissolução e Liquidação de Sociedades, Coimbra 1987, pág. 470 e seguintes e 493).

g) Nesse sentido, o ora Recorrente, enquanto sócio da EDEAF, encerrada e liquidada, é pois parte legítima, não tendo, obrigatoriamente, de ser representado pelo liquidatário, como entendeu o Tribunal a quo.

h) Ao caso sub judice importa o regime estatuído pelo n.º 2 do artigo 164º do CSC.

i) O Tribunal a quo limitou-se a aplicar o n.º1 da aludida disposição e a p[r]imeira parte do n.º2.

j) Isto quando, nos termos da 2ª parte do n.º2 do artigo 164º do CSC resulta que quer o liquidatário enquanto representante dos sócios, quer os próprios sócios, “…qualquer destes pode…” propor em Tribunal acções para cobrança de créditos abrangidos pelo disposto no n.º1 do mesmo artigo.

k) O Recorrente é pois parte legítima na demanda.

Ainda que assim não fosse,

l) De harmonia com o que estabelece o nº 1 do artigo 30º do CPC, o Autor é parte legítima “…quando tem interesse directo em demandar…”.

m) Do nº 2 do mesmo artigo resulta que o interesse em contradizer se exprime “…pela utilidade derivada da procedência da acção…”.

n) Por seu turno, no nº 3 deste artigo 30º consigna-se que “Na falta de indicação da lei em contrário, são considerados titulares do interesse relevante para o efeito da legitimidade os sujeitos da relação controvertida, tal como é configurada pelo autor.”.

o) Assim sendo, e considerando que a concretização do direito indemnizatório que o Recorrente judicialmente reclama representa um activo da sociedade extinta a que pertencia, e que, por esse facto, implicará a sua partilha na medida da sua participação no ente dissolvido, patente se torna a legitimidade activa do Recorrente.

p) Não pode, pois, colher a argumentação sustentada pelo Tribunal a quo na decisão proferida.

q) A sentença proferida não julgou assim de harmonia com as normas aplicáveis à situação sub judice, em violação do disposto nos artigos 164º n.º1 e n.º2 do CSC e artigos 11 n.º1 e 2 e 30º do CPC ».

Pediu fosse concedido provimento ao recurso, fosse revogada a decisão recorrida e fosse declarada a legitimidade do Recorrente, prosseguindo os autos os seus termos.

A Fazenda Pública não apresentou contra-alegações.

Remetidos os autos a este tribunal, foi ordenada a abertura de vista ao Ministério Público.

O Ex.mo Sr. Procurador-Geral Adjunto lavrou douto parecer, onde concluiu que o presente recurso merece provimento e a decisão recorrida deve ser revogada e substituída por acórdão que, declarando a legitimidade ativa do Recorrente para a dedução da impugnação judicial, ordene a devolução do processo ao tribunal recorrido para prosseguimento dos trâmites.

Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.


◇◇◇

2. Tendo em vista a apreciação da questão da legitimidade processual ativa, o Mm.º Juiz a quo, julgou provados os seguintes factos:


1. Em 12/11/2004 foi constituída a Empresa Municipal de Desenvolvimento de Alfandega da Fé E.M (EDEAF) – Cfr. doc 1 da PI ( Certidão Permanente da EDEAF);

2. Durante os anos de 2009, 2010 e 2011, a EDEAF, inscrita no regime de IVA trimestral, liquidou IVA ao Município de Alfandega da Fé, à taxa normal, nas transferências recebidas e enviadas pelo Município, que tinham na sua origem a comparticipação financeira estabelecida ao abrigo de contratos programa entre ambos (Município e EDEAF) – art.º 9 da PI não impugnado e doc. n.º 2 deste articulado;

3. Em 9/10/2013 foi declarada a dissolução da EDEAF em procedimento administrativo voluntário de dissolução n.º 47/2013 – Cfr. doc 1 da PI;

4. Foi nomeado liquidatário A………………, com residência do Loteamento………….. , Lote ……, … Dtº - doc 1 da PI;

5. Em 17/12/2014 ocorreu o encerramento da liquidação por transferência global do património para o seu único sócio (Município de Alfândega da Fé) – doc 1 da PI;

6. Em 31/7/2014 a EDEAF apresentou junto da AT pedido de revisão oficiosa para efectuar regularização a seu favor do IVA pago em excesso referente aos anos de 2009 (meses de Junho a Dezembro), 2010, e 2011 (meses de Janeiro a Março), no valor global de 57.172,40€ - doc 7 da PI;

7. Em 9/6/2015 a EDEAF foi notificada da decisão de indeferimento - doc 8 da PI


◇◇◇

3. O presente recurso vem interposto de uma decisão que, considerando que a Impugnante não estava devidamente representada pelo liquidatário, absolveu a Administração Tributária da Instância.

A ora Recorrente não concorda com o assim decidido por entender, na essência, que não tinha que estar representada pelo liquidatário. Porque os antigos sócios de uma pessoa coletiva extinta não têm que ser representados pelo liquidatário desta e desde que a ação seja limitada ao seu interesse.

Assim sendo, a (única) questão a decidir é a de saber quem é o representante legal da Impugnante, ora Recorrente.

É certo que, na fundamentação da decisão recorrida, o Mm.º Juiz a quo enquadrou a questão a decidir na de saber quem representa a «sociedade EDEAF», isto é, a entidade municipal que, entretanto, se extinguiu.

Trata-se, porém, de um lapso manifesto. A Impugnante não é a “EDEAF” nem sequer representa a “EDEAF”.

A Impugnante é o Município de Alfândega da Fé e intervém em nome próprio, como sucessora e em substituição da sociedade extinta.

Pelo que, a entender-se que o Mm.º Juiz disse o que quis dizer, a decisão não pode manter-se com tal fundamento, ficando apenas a questão de saber se deve ser mantida com fundamento diverso, por a verdadeira Impugnante também não estar devidamente representada.

A questão de saber quem é o representante legal da Impugnante também não deve ser confundida com a questão da sua legitimidade processual.

Porque não tem a ver com a relação que a Impugnante tem com uma causa concreta (legitimatio ad causam), mas com a sua capacidade de se fazer representar em juízo (legitimatio ad processum).

Para responder a esta questão, não se indaga se a Impugnante alega ser sujeito da relação material controvertida, mas se a pessoa que a representa é a que, nos termos da lei, a deve representar em juízo.

A questão de saber quem é o representante legal da Impugnante está, por isso, a montante da questão da sua legitimidade processual, enquadrando no pressuposto processual da capacidade judiciária (ou, mais especificamente, da representação judiciária).

O que, de resto, foi entendido pelo Mm.º Juiz a quo, ao referir que «[a] questão não é tanto de legitimidade, um falta dela, mas sim a de representação em juízo».

Deve, por isso, entender-se que o Mm.º Juiz a quo, ao concluir que a Impugnante não está devidamente representada e decidir, com tal fundamento, absolver a “AT” da instância, decidiu com base na falta da capacidade judiciária tributária da Impugnante e não com base na sua ilegitimidade processual.

Assim sendo, as conclusões “l)” a “o)” das doutas alegações do recurso, por respeitarem à questão da legitimidade processual ativa, não têm pertinência para a decisão do presente recurso e não serão, por isso, apreciadas no seu âmbito.

O Mm.º Juiz a quo decidiu que a Impugnante não estava devidamente representada em juízo porque não vinha representada pelo liquidatário da “EFEAF”.

E porque a lei comercial manda que os liquidatários sejam considerados os representantes legais da «generalidade dos sócios» da extinta entidade empresarial (no caso, a “EDEAF”).

Deve observar-se, desde já, que o artigo 164.º, n.º 2, do Código das Sociedades Comerciais prevê que as ações para cobrança de créditos da extinta sociedade sejam propostas pelos liquidatários em representação da «generalidade dos sócios» porque, nestes casos, os liquidatários representam direitos diferentes do de cada um dos sócios.

Porque os sócios (cada um deles) têm direito ao saldo da liquidação, resultante da partilha. O direito ao crédito, esse, pertence à «generalidade dos sócios» e depende da (in)existência de passivo social não satisfeito ou acautelado e que ao liquidatário incumbe acautelar – vd. Artigo 158.º do mesmo Código.

Assim os liquidatários são representantes do direito que a «generalidade dos sócios» (de uma sociedade dissolvida) teriam antes da partilha: o direito a cobrar um ativo que concorre para a liquidação das responsabilidades da sociedade e para a partilha do ativo restante.

No caso, porém, a Impugnante foi o sócio único da extinta “EDEAF” e recebeu em liquidação a totalidade do seu património [ponto 5 dos factos provados].

Não há, por isso, um interesse da «generalidade dos sócios» distinto do interesse da Impugnante a acautelar. Pelo que também não faz sentido obrigar à sua representação pelo liquidatário, mesmo no quadro da legislação comercial, subsidiariamente aplicável às empresas municipais, também designadas empresas locais.

Pelo que a decisão recorrida não pode manter-se.


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4. Conclusão

Na impugnação judicial de decisão da administração tributária que indefira o pedido de revisão de autoliquidação de IVA efetuada por empresa municipal, entretanto extinta, o Município que intervenha na qualidade de antigo e único sócio daquela empresa não tem que se fazer representar pelo respetivo liquidatário.


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5. Decisão

Nos termos e com os fundamentos expostos, acordam os juízes da Secção Tributária deste Tribunal em conceder provimento ao recurso, revogar a decisão recorrida e ordenar a baixa dos autos para o prosseguimento dos seus termos, se nada mais a tal obstar.

Custas pela Recorrida.

D.n.

Lisboa, 6 de outubro de 2021

Assinado digitalmente pelo Relator, que consigna e atesta que, nos termos do disposto no art.15.º-A do Decreto-Lei n.º 10-A/2020, de 13 de Março, aditado pelo art. 3º do Decreto-Lei n.º 20/2020, de 1 de Maio, têm voto de conformidade com o presente Acórdão os restantes integrantes da formação de julgamento.

Nuno Filipe Morgado Teixeira Bastos (relator) – Paula Fernanda Cadilhe Ribeiro – Francisco António Pedrosa de Areal Rothes.