Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0665/12
Data do Acordão:07/11/2012
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:LINO RIBEIRO
Descritores:PROCESSO DE EXECUÇÃO FISCAL
AUDIÊNCIA PRÉVIA
DISPENSA DE PRESTAÇÃO DE GARANTIA
Sumário:I - O nº 1 do artigo 103º da LGT, ao referir que «o processo de execução fiscal tem natureza judicial», exprime literalmente o sentido de que a execução fiscal se realiza através de um «processo» e não de um «procedimento administrativo», no pressuposto hoje indiscutível que estamos perante realidades com natureza distintas.
II - Da alínea h) do nº 1 do artigo 54º da LGT e da alínea g) do nº 1 do artigo 44º do CPPT resulta que apenas se inclui no âmbito do procedimento tributário a «cobrança das obrigações tributárias, na parte que não tiver natureza tributária».
III - Como o processo de execução fiscal é todo ele de natureza judicial, independentemente da natureza materialmente administrativa ou jurisdicional dos actos que nele sejam praticados, a conclusão lógica é que as normas previstas para o procedimento não se aplicam à categoria processo de execução fiscal
IV - Pelos efeitos produzidos, o acto de indeferimento do pedido de isenção da prestação de garantia é um acto predominantemente processual: faz cessar o efeito suspensivo da execução iniciado com o pedido de isenção, procedendo-se de imediato à penhora ou à compensação de dívidas (cfr. nº 2 do art. 169º nº 1 do art. 89º do CPPT).
V - Por isso, à formação desse acto processual não se aplicam as regras do procedimento tributário, designadamente a do artigo 60º da LGT.
Nº Convencional:JSTA00067740
Nº do Documento:SA2201207110665
Data de Entrada:06/15/2012
Recorrente:FAZENDA PÚBLICA
Recorrido 1:A......
Votação:UNANIMIDADE COM 2 DEC VOT
Meio Processual:REC JURISDICIONAL
Objecto:SENT TAF VISEU
Decisão:PROVIDO
Área Temática 1:DIR PROC TRIBUT CONT - EXEC FISCAL
Legislação Nacional:CPPTRIB99 ART276 ART170 N4 ART44 N1 G ART151 ART89 N1 ART169 N2 ART170 N3 ART198 N2
LGT98 ART60 N1 B ART60 N6 ART52 N4 ART59 ART103 N1 N2 ART54 N1 H
CPA91 ART100 ART120
CPC96 ART715 N2
Jurisprudência Nacional:AC STA PROC0185/12 DE 2012/03/07; AC STA PROC0983/11 DE 2011/11/30; AC STA PROC0446/12 DE 2012/05/09; AC TC PROC331/92 DE 1992/10/21; AC TC PROC80/2003 DE 2003/02/12; AC TC PROC160/07 DE 2007/03/06
Referência a Doutrina:LIMA GUERREIRO LEI GERAL TRIBUTÁRIA ANOTADA 2000 PAG421-422
Aditamento:
Texto Integral: Acordam na Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo

1. A Fazenda Pública interpõe recurso jurisdicional da sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal de Viseu que julgou procedente a reclamação que, nos termos do artigo 276º do CPPT, A………, devidamente identificado nos autos, fez contra o despacho do Chefe de Finanças de Tondela que lhe indeferiu o pedido de dispensa de prestação de garantia, para efeito de suspensão da execução fiscal nº 2704201101008951.
Nas respectivas alegações, conclui o seguinte:
A) Vem o presente recurso interposto da douta sentença que concedeu provimento à reclamação apresentada e anulou o despacho de indeferimento de pedido de dispensa de garantia, por falta do exercício do direito de audição.
B) Foi convicção do Mmo Juiz a quo que: “...a suspensão da execução após prestação de garantia, nos casos enunciados nos art.°s 52° da LGT e 169° do CPPT, bem como a decisão sobre a dispensa de prestação dessa garantia, nos casos previstos na lei (n°s 3 a 6 do citado art.° 52° da LGT e art. 170° do CPPT), são de qualificar como verdadeiros actos administrativos em matéria tributária e não como meros actos de trâmite; e, assim, como actos administrativos definidores de uma situação jurídica que no caso é desfavorável ao contribuinte, impunha-se a sua prévia audição, de acordo com o estatuído nos arts. 100° do CPA e 60° da LGT.”.
C) No âmbito da execução fiscal n°2704201101008951, cujo devedor originário é o ora reclamante (ao contrário do que consta da alínea A) dos factos provados), foi este notificado para prestar garantia idónea.
D) Em 22-07-2011, o reclamante solicitou, ao abrigo dos art.°s 52°, n°4 da LGT e 170° do CPPT, a dispensa de prestação de garantia, pedido este indeferido pelo Órgão de Execução Fiscal, por falta de prova da insuficiência de bens penhoráveis bem como da sua irresponsabilidade na mesma.
E) Note-se que o contribuinte não foi notificado previamente à decisão para exercício do direito de audição, sendo a questão decidenda a obrigatoriedade ou não de tal procedimento.
F) À luz do art.° 103° n°1 da LGT, o processo executivo tem natureza judicial, sem prejuízo da participação dos órgãos da administração tributária nos actos que não tenham natureza jurisdicional, sendo que a intervenção desta entidade em nada contende com a referida natureza, vide Acórdão n.° 80/2003 do Tribunal Constitucional, de 12-02-2003.
G) No decurso do processo podem ser praticados tanto: actos administrativos em matéria tributária (que dão origem a procedimentos tributários autónomos, que correm paralelamente ao processo de execução e em sua conexão), como actos processuais de cariz não jurisdicional.
H) A Jurisprudência divide-se quanto à qualificação do acto de dispensa de garantia, vejamos, nomeadamente: o Acórdão do TCA Norte de 18-01-2012, processo n°361/11.6BECBR: “I O pedido de dispensa da prestação de garantia não dá origem a qualquer procedimento de natureza tributária, a exigir, por isso, que, antes da decisão, se dê ao interessado a oportunidade de participar na formação da mesma ao abrigo do disposto no artigo 60° da LGT ficando a decisão desse pedido a cargo da administração tributária, não enquanto exequente/credora, no exercício da actividade tributária, mas, simplesmente, enquanto órgão da execução fiscal, ou seja, no exercício das funções que lhe estão confiadas enquanto auxiliar ou colaborador operacional no processo de execução fiscal” e o Acórdão do STA de 07/12/2011, processo n°01054/11: “O pedido de dispensa de prestação de garantia não dá origem a qualquer procedimento de natureza tributária; a dispensa da prestação de garantia visa apenas disciplinar os termos em que a execução pode ficar suspensa ou prosseguir, integrando o quadro normativo que regula o seu andamento. Daí que a decisão desse pedido fique a cargo da AT, não enquanto exequente, enquanto credora, no exercício da actividade tributária, mas simplesmente enquanto órgão da execução fiscal, ou seja, no exercício das funções que lhe estão confiadas enquanto auxiliar ou colaborador operacional no processo de execução fiscal “., que se encontram em desacordo com o mais recente Acórdão do STA de 23-02-2012, processo n°059/12: “A decisão sobre o pedido de dispensa de prestação de garantia deve qualificar-se como um verdadeiro acto administrativo em matéria tributária, inserido no âmbito de um procedimento tributário autónomo e funcionalmente diferente do procedimento processual dirigido à cobrança coerciva de determinadas quantias, submetido, por isso, aos princípios e normas que disciplinam a actividade tributária. “.
I) Porém, afigura-se à Fazenda Pública que, independentemente da qualificação atribuída ao acto de dispensa de garantia, relativamente ao mesmo não impende sobre a Administração Fiscal a obrigatoriedade de notificação para direito de audição.
J) Prevê a alínea b) do n° 1 do art.° 60° da LGT o direito de audição antes do indeferimento total ou parcial dos pedidos, reclamações, recursos ou petições, concretizando o direito de participação dos cidadãos consagrado constitucionalmente, art.° 267°, n°5 CRP.
K) O pedido de dispensa de prestação de garantia, efectuado com base no art.° 52, n°4 da LGT, deve ser fundamentado de facto e de direito e instruído com prova documental necessária, em respeito ao art.° 170º, n° 3 do CPPT, sendo que a respectiva decisão terá de ser proferida no prazo de 10 dias a contar da sua apresentação, n°4 do citado normativo, sob pena de se presumir o seu indeferimento tácito, entendimento este também vertido por Jorge Lopes de Sousa in Código de Procedimento e Processo Tributário Anotado e Comentado, Volume II, anotação 5 ao art.° 170º.
L) Atento o curto prazo para a prolação da decisão não comporta, salvo melhor entendimento, o exercício do direito de audição em 8 a 15 dias, plasmado no art.° 60º, n° 6 da LGT.
M) Aliás, conforme foi já defendido em sede de contestação, a participação do contribuinte na formação da decisão dá-se ab initio, pois, é perante a notificação para prestação de garantia que o executado requer a sua dispensa, incumbindo-lhe apresentar desde logo prova do que alega.
N) Cabe aqui ao requerente o ónus da prova, devendo juntar ao pedido os elementos probatórios que considere pertinentes, não incumbindo á Administração Fiscal, ao contrário do que foi decidido, qualquer obrigação de solicitar mais documentos, ainda que o contribuinte os protestasse juntar.
O) É de sublinhar que o supra mencionado Acórdão do STA de 23-02-2012, processo n° 059/12, reitera posição consentânea com a defendida: “VIII - Ainda que não se aceite a aplicabilidade da referida norma do CPA (art.° 103°), o próprio requerimento em que o interessado expõe a sua pretensão, indicando todas as razões que, em seu entender, a justificam, e ao qual é obrigado a juntar logo todos os elementos de prova, desempenha já a função de audiência prévia, não havendo que chamá-lo novamente a participar na formação da decisão dada a regra geral contida no n.° 3 do artigo 60.° da LGT quando aplicada a todos os procedimentos tributários que culminem com um acto final lesivo, seja ele ou não um acto de liquidação.”.
P) Não desconhecemos o Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 14-12-2011, processo n° 01072/11, seguido de perto na sentença recorrida, contudo, ao mesmo não poderemos aderir face ao mais recente entendimento de tal instância, vertido na conclusão anterior, aliás, note-se que mesmo quando é dada diferente qualificação ao acto de decisão de dispensa de garantia, no caso do TCA Norte, a solução apontada é sempre da inexistência de direito de audição.
Q) Encontramo-nos, portanto, perante um erro de julgamento que urge suprir, devendo baixar os autos para se conhecerem as questões que ficaram prejudicadas.

1.2. Não foram apresentadas contra-alegações.
1.3. O Ministério Público junto deste STA emitiu o douto parecer no sentido de que deve ser dado provimento ao recurso, sendo de anular, consequentemente, o decidido.

2. A sentença recorrida deu com assentes os seguintes factos:
A) No SF de Tondela corre a execução fiscal n.º 2704201101008951, revertida contra o aqui reclamante;
B) No âmbito da execução mencionada em A., o reclamante apresentou em 22-07-2011, um pedido de dispensa de garantia, ao abrigo do art. 170.° do CPPT e do art. 52°, n.º 4 da LGT;
C) No requerimento mencionado em B., o ora reclamante invocou a falta de meios económicos para a prestação da garantia que lhe foi exigida, protestando juntar todos os elementos que a Administração Fiscal entendesse pertinentes;
D) O Exmo. Sr. Chefe do Serviço de Finanças de Tondela, em relação ao requerimento mencionado em B, proferiu despacho em 05 de Agosto de 2011, do qual consta o seguinte:
“…indefiro, com os fundamentos, por um lado, da falta de produção de prova da insuficiência dos bens penhoráveis, e, por outro, da falta de produção de prova da irresponsabilidade do executado pela situação de insuficiência/inexistência de bens ... o pedido de dispensa de prestação de garantia…;
Por último, importa referir, quanto à participação, prévia à decisão, o seguinte:

Nesta conformidade entendo dispensar quanto ao presente pedido, a audição, prévia à decisão, do ora executado, pelo que o indeferimento que, acima, decidi, produzirá efeitos imediatos”;
E) O despacho mencionado em D. foi notificado ao reclamante por oficio de 25-08-2011, com o seguinte teor:
Fica notificado, do teor do despacho proferido pelo Chefe do Serviço de Finanças em 2011-08-05, do qual se envia cópia, ao pedido entrado nestes serviços em 2011-07-22, no qual solicitava dispensa de prestação de garantia, referente ao processo de execução fiscal acima identificada e ao executado A……….
Com os melhores cumprimentos.…”
F) É contra a decisão do órgão de execução fiscal descrita em D., que o reclamante vem deduzir a presente reclamação, nos termos e para os efeitos do artigo 276.° do CPPT.”


3. O executado solicitou ao órgão de execução fiscal a dispensa de prestação de garantia para efeitos de obter o efeito suspensivo da execução, alegando falta de recursos económicos para a prestar. Com base nos elementos documentais apresentados, o órgão de execução indeferiu o pedido, com dispensa da audição prévia do executado.
A dispensa de audição prévia fundamentou-se no seguinte: “ está superiormente esclarecido que a audiência dos interessados pode ser dispensada, para além de outras situações, quando a administração tributária apenas aprecie os factos que lhe forem dados pelos contribuintes, limitando-se na sua decisão a fazer a interpretação das normas legais aplicáveis ao caso”.
Interposta reclamação judicial desse acto, para além do mais, foi invocada a violação do artigo 60º da LGT e 100º do CPA, por falta de audição prévia do executado ao indeferimento do pedido de dispensa de prestação da garantia.
A sentença recorrida considerou que o pedido de dispensa de prestação de garantia iniciou um “procedimento tributário” e que o acto reclamado caracteriza-se com “acto administrativo em matéria tributária”, no conceito definido pelo artigo 120º do CPA, pelo que se impunha a aplicação da regra da aliena b) do nº 1 do artigo 60º da LGT sobre a audição prévia do executado.
A recorrente discorda dessa decisão porque, independentemente da qualificação atribuída ao acto de dispensa de garantia, não existe direito de audição, por dois motivos: (i) o prazo de 10 dias previsto no nº 4 do artigo 170º do CPPT para se decidir o pedido, inviabiliza a audição prévia no prazo de 8 a 15 dias previsto no nº 6 do artigo 60º da LGT; (ii) a participação do contribuinte na formação da decisão dá-se no próprio requerimento em que expõe e prova as razões que justificam a dispensa.
A questão jurídica consiste, pois, em determinar se é ou não aplicável ao pedido de dispensa de garantia (e porventura a outros incidentes da execução fiscal) o princípio da audição prévia no procedimento tributário.
Deve dizer-se desde já que este problema tem vindo a ser julgado pela jurisprudência tributária mais recente no sentido de que a decisão do pedido de dispensa de garantia não é precedida da audição prévia do requerente. Mas se a decisão é essa, existe contudo alguma divergência quanto à justificação, que se prende essencialmente com as dificuldades de conceptualização da execução fiscal e dos actos que nela são praticados. Arvoram-se vários fundamentos para justificar inexistência da audição prévia: (i) não se trata de um acto praticado num “procedimento tributário”, mas num “incidente processual” (ac de 7/3/2012, rec. nº 185/12); (ii) é um procedimento “enxertado” na execução, mas não há instrução, porque toda a prova documental deve ser apresentada com o requerimento (ac. de 30/11/2011, rec. nº 0983/11); (iii) é um acto materialmente administrativo praticado num procedimento urgente em que se justifica a preterição da formalidade (ac. de 975/2012, rec. nº 0446/12).
A decisão recorrida baseou-se num acórdão mais antigo do STA, no qual se decidiu que, seguindo o respectivo sumário: (i) o processo de execução fiscal tem natureza judicial e embora a AT nele possa praticar actos que não tenham natureza jurisdicional é garantido aos interessados o direito de reclamação para o juiz da execução fiscal dos actos materialmente administrativos aí praticados por órgão da AT; (ii) o despacho que indefere pedido de dispensa de garantia qualifica-se como verdadeiro acto administrativo em matéria tributária e não como mero acto de trâmite, uma vez que não se confina nos estreitos limites da ordenação intraprocessual, antes projecta externamente efeitos jurídicos numa situação individual e concreta - cfr. art. 120º do CPA - pois que a decisão da AT de suspender ou não o processo de execução fiscal por virtude da prestação (ou da dispensa) de garantia implica e determina manifestos reflexos na esfera jurídica da reclamante; (iii) em face dessa definição como acto administrativo impunha-se a prévia audição do interessado, de acordo com o estatuído nos arts. 100º do CPA e 60º da LGT.
Em nosso entender, não é a caracterização do acto de dispensa como “acto materialmente administrativo” que impõe a obrigatoriedade da audição prévia, nem é a inexistência de “instrução” ou a “urgência” da decisão que justificam a dispensa da audição. Isto porque a natureza da execução fiscal e dos actos que nela praticados, assim como os meios de reacção que os interessados nela dispõem, não permitem concluir que se está perante um procedimento administrativo, ainda que “enxertado” num “processo judicial”, pelo que não há qualquer necessidade de utilizar as normas do CPA que excepcionam o direito de audiência prévia.
De resto, há muita dificuldade em se aceitar que o órgão de execução fiscal se move no âmbito de um procedimento administrativo e depois não se extrair daí todas as consequências, especialmente a de não se ter em conta que ele é uma estrutura de ordenação flexível que, por objectivos garantísticos e de interesse público, implica o esbatimento da rigidez formal dos actos procedimentais. É difícil aceitar que o dever de colaboração que orienta o procedimento dispense em todos os casos a instrução ou que o dever de celeridade predomine sempre sobre o princípio da participação dos interessados.
Na verdade, se por falta de tempo ou por outro motivo atendível o requerente não pode apresentar todos os meios de prova dos pressupostos da isenção da garantia indicados no nº 4 do art. 52º da LGT, seria contrário ao princípio da colaboração inscrito no artigo 59º da LGT que o pedido fosse decidido sem que o requerente tivesse oportunidade de instruir devidamente o pedido.
De igual modo, nenhuma consequência se deve extrair pelo facto do órgão de execução fiscal não decidir o pedido de dispensa da garantia no prazo de 10 dias. Se o decidir após esse prazo, naturalmente que continua a poder impugnar a decisão, se desfavorável, através da reclamação prevista no artigo 276º do CPPT. Mas se não houver decisão nesse prazo, o requerente não tem que presumir que o pedido foi indeferido para efeitos de reclamação, pois, enquanto não houver decisão expressa, mantêm-se a suspensão provisória da execução resultante da apresentação do pedido. A omissão de qualquer decisão dentro do prazo legalmente estabelecido, não corresponde a um efeito denegatório da pretensão, mesmo que seja apenas para efeito de assegurar o acesso ao tribunal. A inércia do órgão de execução não tem qualquer conteúdo substantivo, com a natureza de “acto materialmente administrativo”, nem serve de expediente técnico-jurídico para assegurar o acesso à justiça tributária, precisamente porque, enquanto não houver decisão expressa, o interesse do executado está satisfeito através da suspensão provisória da execução. O prazo de 10 dias para decidir o dito “procedimento” é assim meramente ordenador ou disciplinador, sem quaisquer consequências negativas para o requerente. Daí que não nos devemos impressionar com a alegação de que tal prazo determina a natureza urgente do procedimento, pois, pelo menos na perspectiva do executado, não há uma correlação necessária entre o prazo de decisão e a urgência na resolução da pretensão.
A inexistência de audição prévia radica na circunstância de se tratar de um acto praticado num processo de execução fiscal e não de um acto praticado num procedimento tributário. É quase intuitivo aperceber que os desvios ao desenvolvimento normal de um processo devem ser tratado como “incidentes” ou “processos incidentais”, consoante o grau de autonomia que tenham relativamente a ele, e não como categorias jurídicas estrutural e funcionalmente distintas, como é o caso do procedimento administrativo.
O nº 1 do artigo 103º da LGT, ao referir que «o processo de execução fiscal tem natureza judicial», exprime literalmente o sentido de que a execução fiscal se realiza através de um «processo» e não de um «procedimento administrativo», no pressuposto hoje indiscutível que estamos perante realidades com natureza distinta. E ao atribuir-se à execução fiscal a natureza judicial numa Lei de Bases, como é a LGT, está-se a impor a obrigatoriedade de se moldar a tramitação da execução segundo as formas próprias dos processos judiciais, o que implica a aplicação supletiva das regras do processo civil. E nenhum obstáculo de ordem constitucional existe à feitura de um processo com esse figurino, desde que não se acometa ao órgão de execução fiscal a prática de actos jurisdicionais (cfr. acs. do TC nº 331/92, de 21/10/92, nº 80/2003, de 12/2/03 e nº 160/07, de 6/3/07).
Ao atribuir natureza judicial à execução fiscal, apesar de impulsionada e movida por um órgão administrativo, a lei afasta qualquer tentativa de o enquadra na categoria jurídica de procedimento administrativo. O que bem se compreende porque actualmente procedimento e processo são realidades teleológica e formalmente diferenciadas. O procedimento surge não só como um instrumento de racionalização da actividade decisória da Administração, mas também como instrumento de legitimação da Administração, enquanto entidade que determina e regula os interesses em conflito, e assim, tomando decisões em que está pessoalmente empenhada. Ora, não isso que acontece na execução fiscal, em que o órgão de execução fiscal evidencia um estatuto supra partes, intervindo no exclusivo interesse da paz jurídica, obrigado a apreciar e decidir as questões enquanto autoridade exterior e neutra perante o litígio, mesmo que tenha que decidir contra si próprio, como acontece com o reconhecimento oficioso da prescrição.
Se bem repararmos, essa distinção é claramente assumido pelo legislador quando na alínea h) do nº 1 do artigo 54º da LGT e na alínea g) do nº 1 do artigo 44º do CPPT apenas inclui no âmbito do procedimento tributário a «cobrança das obrigações tributárias, na parte que não tiver natureza tributária». Como o «processo» de execução fiscal é todo ele de natureza judicial, independentemente da natureza materialmente administrativa ou jurisdicional dos actos que nele sejam praticados, a conclusão lógica é que as normas previstas para o procedimento não se aplicam à categoria processo de execução fiscal. Como frequentemente tem sido julgado pela jurisprudência deste Tribunal relativamente aos mais variados actos praticados na execução fiscal, as lacunas do processo de execução fiscal são integradas pelas normas do processo civil, o que bem acentua a natureza de «processo judicial» e não de «procedimento tributário».
Por isso mesmo, concorda-se inteiramente como o comentário que Lima Guerreiro faz ao artigo 103º da LGT, defendendo que «o processo de execução fiscal não tem, segundo o que a norma do número 1 expressamente declara, natureza meramente administrativa ou mesmo mista, mas é unitária e integralmente um processo judicial. Essa natureza integralmente judicial do processo não prejudica, no entanto, a participação dos órgãos da administração tributária nos actos sem natureza materialmente jurisdicional, ou seja, na prática dos chamados actos materialmente administrativos da execução fiscal. Não é, pois, cindível o processo de execução em uma fase formalmente administrativa e outra administrativa judicial. Ele é unitariamente um processo de natureza judicial» (cfr. Lei Geral Tributária – Anotada – Editora, Rei dos Livros, 2000, pág. 421 e 422).
A objecção que se pode dirigir contra esta tese consiste em acentuar que o acto de dispensa de prestação de garantia é uma “acto materialmente administrativo” e por conseguinte só pode ser produzido através de um procedimento.
Mas esta alegação não deve impressionar-nos.
Todos os actos lesivos dos direitos processuais do executado praticados pelo órgão de execução fiscal, ainda que apliquem normas de direito privado (v.g. constituição de penhor, hipoteca, reconhecimento de direito de preferência, etc.), são actos materialmente administrativos para efeitos de reclamação judicial. A conjugação do nº 2 do artigo 103º da LGT com os artigos 151º e 276º do CPPT indica-se o que significa, para efeitos de execução fiscal, o conceito de “acto materialmente administrativo”.
Como o modelo de execução fiscal è construído segundo a forma de processo judicial, mas comporta ao mesmo tempo momentos jurisdicionais, da competência do juiz, e momentos administrativos, da competência do órgão da administração tributária, o conceito de acto materialmente administrativo tem que analisado numa tripla dimensão: orgânica, funcional e material.
Do ponto de vista orgânico, são jurisdicionais quando praticados pelo juiz e são administrativos quando praticados por um órgão administrativo, seja o órgão de execução ou outro. Portanto, é irrelevante a distinção que por vezes se faz entre órgão que age como credor exequente e órgão que age como agente de execução.
Do ponto de vista funcional, são actos cujos efeitos se produzem no e para o processo de execução fiscal e que por isso se caracterizam por uma natureza formal ou instrumental, ao serviço da pretensão de fundo dirigida à cobrança de créditos tributários. Ora, se execução fiscal deve ser qualificada como um processo, então o conjunto de actos por ele formado são actos processuais e não actos procedimentais. São actos processuais porque fazem parte do complexo de actos que formam a sequência processual e/ou porque têm relevância no desenvolvimento da relação processual. Não são actos procedimentais, porque não estão enquadrados num procedimento tributário que funcione como instrumento de concretização da relação jurídica tributária material que se estabeleceu entre o contribuinte e a administração tributária. A única conexão material que existe entre o procedimento tributário e o processo de execução fiscal concretiza-se na necessária antecedência daquele relativamente a este, na medida em foi nele que se formou o acto tributário subjacente ao título executivo.
Do ponto de vista material, na definição do artigo 276º do CPPT, são actos que no processo afectam os direitos e interesses legítimos do executado ou de terceiro. São “actos materiais” porque afectam verdadeiras posições jurídicas materiais que o executado dispõe no processo. A circunstância de caracterizarem em pretensões de carácter instrumental, não impede o reconhecimento de que tais posições subjectivas são, em si mesmo, posições substantivas que, se forem respeitadas pelo órgão de execução fiscal, proporcionam ao executado utilidades efectivas, ainda que instrumentais.
A partir do momento em que é instaurada a execução fiscal, emerge na esfera jurídica do executado, ao lado da posição substantiva que dá corpo à relação jurídica tributária materializada no título executivo, uma posição específica, integrada poderes, faculdades, deveres e sujeições, reportada ao desenvolvimento, modificação ou definição da relação processual. Ora, se essa posição subjectiva processual for afectada por um acto processual ilícito, o nº 2 do artigo 103º da LGT garante ao executado a abertura da via jurisdicional para defesa dessa posição. O direito à reclamação, através do processo expedito e urgente regulado nos artigos 276º a 278º do CPPT, é pois um direito subjectivo processual que o executado tem para se defender dos actos processuais lesivas das posições jurídicas que a lei processual lhe atribui.
Em consonância com essa norma, o artigo 276º do CPPT estabelece que são susceptíveis de reclamação, as decisões proferidas pelo órgão de execução fiscal e outras autoridades da administração tributária «que no processo afectem os direitos e interesses legítimos do executado». Portanto, os actos materialmente administrativos objecto de reclamação são apenas aqueles que forem produzidos «no processo», ou seja, os actos processuais, ainda que simultaneamente aplicam normas de direito material.
E assim se deve caracterizar o acto que o indefere o pedido de isenção da prestação de garantia.
Pelos efeitos produzidos, é um acto predominantemente processual: faz cessar o efeito suspensivo da execução iniciado com o pedido de isenção, procedendo-se de imediato à penhora ou à compensação de dívidas (cfr. nº 2 do art. 169º nº 1 do art. 89º do CPPT).
É claro que o direito que o executado dispõe de ser isento de garantia, caso se verifiquem os requisitos positivos do «prejuízo irreparável» ou da «manifesta falta de meios económicos» e o requisito negativo de que «a insuficiência ou inexistência de bens não seja da responsabilidade do executado» (nº 4 do art. 52º da LGT), foi atingido pelo indeferimento dessa pretensão. Na medida em que a lei reconhece ao executado o direito à isenção de garantia, ele corresponde, em si mesmo, a um verdadeira posição jurídica substantiva, que lhe proporciona uma utilidade efectiva que lhe foi negada por aquele acto e que até pode ser fonte de pretensão indemnizatória, quando agredido por acto ilícito.
Mas essa posição jurídica material apresenta uma clara natureza instrumental, que lhe advém do facto de, por si só, não proporcionar ao executado a satisfação da posição subjectiva de fundo que defende na execução, e que é a de evitar o prosseguimento duma execução irregular ou injusta. A prestação da garantia ou a sua isenção são direitos de natureza processual, que funcionam como instrumentos ao serviço do interesse opositivo do executado, que apenas se concretizará com a procedência da impugnação judicial ou da oposição à execução. Os seus efeitos produzem-se quase exclusivamente no âmbito da execução, ainda que indirectamente se dirijam à obtenção do interesse de fundo que move o executado na execução. Por isso mesmo, ao proporcionar-lhe uma utilidade meramente instrumental, a isenção de garantia não pode deixar de ser qualificada como uma pretensão subjectiva de carácter processual.
Na execução fiscal a protecção jurídica dos direitos processuais do executado é assegurada através do controlo a posteriori dos actos executivos, sobre os quais cabe sempre ao juiz a última palavra. O status activus processualis do executado revela-se num processo jurisdicional realizado na e através da execução fiscal, que lhe dá garantias de defesa e contraditório bem superiores às que resultam da audiência prévia à prática do acto processual, ainda que dele resultem efeitos substantivos. Com efeito, seguindo o modelo do agravo em processo civil, o executado pode reagir imediatamente, no prazo de 10 dias, contra as eventuais ilegalidades praticadas no decurso da execução, com possibilidade da reclamação subir imediatamente se causar «prejuízo irreparável» ou, como tem defendido a jurisprudência, se a sua retenção a tornar absolutamente inútil.
Não se pode dizer que o executado precisa de ser previamente ouvido sobre os actos processuais que afectam os seus direitos processuais porque não há confiança na eficácia da protecção jurisdicional, quando a abertura de uma “fase jurisdicional” no próprio processo compensa de sobremaneira uma “fase procedimental”, ou porque é necessário garantir o “contraditório procedimental”, quando a celeridade processual lhe impôs o dever de instruir documentalmente os respectivos requerimentos (v.g. nº 3 do art. 170º e nº 2 do art. 198º do CPPT). A execução fiscal está estruturada para fornecer ao executado todas as garantias de defesa contra actos processuais ilegais, pelo que, se o legislador não teve necessidade de criar mais uma fase procedimental precedente à prática dos actos executivos, não se vislumbra que direitos fundamentais do executado possam justificar e exigir a introdução de uma nova “fase procedimental”, com o prejuízo que isso acarreta para realização célere do interesse público na cobrança dos tributos.
Em suma: determinada a natureza processual dos actos praticados pelo órgão de execução fiscal, conclui-se pela inaplicabilidade das normas próprias do procedimento tributário, como é o caso do artigo 60º relativo ao direito de audição prévia, ao acto que indeferiu o pedido de isenção de garantia.
No caso dos autos, foi indeferido um pedido de dispensa de garantia, acto processual cuja prática, nos termos em que se expôs, não precisa de ser precedido de audição prévia.
O Tribunal não pode socorrer-se do disposto no nº 2 do artigo 715º do CPC, aplicável ao presente recurso, porque a sentença recorrida, apenas deu como provado os factos pertinentes para a decisão da questão da falta de audição, havendo necessidade de se fixar a matéria de facto alegada na petição da reclamação para conhecer da verificação dos requisitos de que depende a dispensa de prestação de garantia, o que só o tribunal recorrido pode fazer.


4. Pelo exposto, acordam os juízes da Secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo em conceder provimento ao recurso, revogar a decisão recorrida, e ordenar a baixa do processo para conhecer da questão que ficou prejudicada.
Custas pelo recorrido.
Lisboa, 11 Julho de 2012. – Lino Ribeiro (relator) – Dulce Neto - Voto a decisão com distinta fundamentação, conforme declaração de voto que anexo. - Isabel Marques da Silva - voto a decisão.

Declaração de voto
Concordo com a decisão, mas não com toda a sua fundamentação.
Subscrevo-a totalmente quando afirma que o processo de execução fiscal constitui um processo judicial e não um procedimento tributário ou administrativo. Como se deixou dito no acórdão que relatei em 23/02/2012, no Processo n.° 059/12, o Órgão da Execução que instaura, conduz e tramita a execução fiscal constitui um sujeito processual que age como interlocutor no diálogo processual, “substituindo” o juiz e praticando nele todos os actos que, não contendendo com qualquer composição de interesses, sejam legalmente necessários para a obtenção do fim a que o processo se destina. E a competência que detém no processo não brota, em princípio, da função tributária exercida pela Administração Fiscal nem emana de um poder de autotutela executiva da Administração, resultando, antes, de uma competência que a lei lhe confere para intervir no processo judicial como órgão auxiliar ou colaborador operacional do Juiz, assumindo, assim, e como se refere no acórdão, um estatuto supra partes, intervindo no exclusivo interesse da paz jurídica, obrigada a apreciar e decidir as questões enquanto autoridade exterior e neutra perante o litígio.
Razão por que todos os actos inscritos no procedimento processual pelos sujeitos processuais (partes, mandatários, órgão da execução, funcionários, juiz) estão submetidos a estritas regras processuais, que encontram previsão nas normas que regulam o processo tributário e, subsidiariamente, nas normas inscritas no CPC por força do disposto no artigo 2°, alínea e), do CPPT.
Todavia, já assim não será nos casos em que a lei expressamente admite a intercalação, inserção ou “enxerto” nesse processo de cobrança coerciva de determinados procedimentos administrativo/tributários em que a Administração Tributária actua no exercício da sua função tributária ou de autotutela executiva, agindo sobre a relação jurídica tributária estabelecida entre si (como sujeito activo) e o contribuinte (como sujeito passivo) ou sobre a obrigação que dela emana, produzindo actos materialmente administrativos em matéria tributária ou actos tributários propriamente ditos, pois a estes procedimentos há que aplicar os princípios gerais que regulam a actividade administrativa e as normas que a LGT prevê para os procedimentos tributários, designadamente a norma contida no seu artigo 60.°, como é o caso paradigmático do despacho de reversão.
Nessas situações, a Administração Tributária abandona a neutralidade e o estatuto supra partes, assumindo a qualidade de parte credora/exequente, de sujeito activo da relação jurídica tributária, passando a intervir no seu exclusivo interesse.
Ora, na minha perspectiva, é o que acontece com a decisão sobre o pedido de dispensa de prestação de garantia, que deve qualificar-se como um verdadeiro acto administrativo em matéria tributária, inserido no âmbito de um procedimento tributário autónomo e funcionalmente diferente do processo judicial ou procedimento processual dirigido à cobrança coerciva de determinadas quantias, submetido, por isso, aos princípios e normas que disciplinam a actividade tributária.
Todavia, e como se deixou referido no citado acórdão, face à urgência objectiva, revelada pela norma ínsita no art.° 170.° do CPPT, de prolação dessa decisão, deve apelar-se ao regime contido no CPA, cujo artigo 103.°, n.° 1, estabelece que não há lugar a audiência dos interessados «Quando a decisão seja urgente», por força da aplicação subsidiária desta norma em conformidade com o disposto no artigo 2.°, alinea c) da LGT.
Razão por que, no caso vertente, seria dispensável a audiência prévia do devedor.
Dulce Neto