Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:01309/15.4BALSB
Data do Acordão:11/15/2018
Tribunal:1 SECÇÃO
Relator:MARIA DO CÉU NEVES
Descritores:RECLAMAÇÃO PARA A CONFERÊNCIA
ACTO LEGISLATIVO
INCOMPETÊNCIA EM RAZÃO DA MATÉRIA
Sumário:I - Os artigos 1º, nos 1 e 2, 2º, nos 2 e 7, 4º, nos 1, 2, 3 e 4, 9º e 10º, todos do Decreto-Lei n.º 92/2015 de 29 Maio, não prevêem actos administrativos, mas actos materialmente legislativos, resultantes do desempenho de uma função primária pelo Governo, comportando opções inovadoras relativamente a outras já adoptadas no âmbito de um processo legislativo complexo direccionado para a reorganização do sector do abastecimento de água e saneamento.

II - Nos termos do disposto na al. a) do nº 2 do artigo 4º e, na al. c) do nº 1 do artigo 24º do ETAF, o STA é incompetente em razão da matéria para conhecer de acção em que se impugnam actos de natureza legislativa.
Nº Convencional:JSTA000P23862
Nº do Documento:SA12018111401309/15
Data de Entrada:10/13/2015
Recorrente:MUNICÍPIOS DE COIMBRA, PENACOVA, CONDEIXA-A-NOVA E GÓIS
Recorrido 1:CONSELHO DE MINISTROS
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: Acordam na Secção do Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo
1. RELATÓRIO

Os Municípios de Coimbra, Penacova, Condeixa-a-Nova e Góis, intentaram a presente acção administrativa especial pedindo a declaração de nulidade ou a anulação, de “actos administrativos contidos no Decreto-Lei nº 92/2015 de 29 de Maio”, contra o Conselho de Ministros, indicando como contra interessados, os Municípios e Sociedades Anónimas devidamente identificados nos autos.

Peticionam, a final e em concreto, a declaração de nulidade ou a anulação dos seguintes actos:

«i) Do acto administrativo que extingue a Sociedade Águas do Mondego, S.A., concessionária do sistema multimunicipal de captação, tratamento e abastecimento de água do baixo Mondego-Bairrada – cfr. artº 4º, nº 2, nº 3 e nº 4;

ii) Do acto administrativo que constitui a sociedade Águas do Centro Litoral S.A. – cfr. artº 4º, nº 1;

iii) Do acto administrativo que extingue o actual sistema multimunicipal do Baixo Mondego-Bairrada – cfr. artºs 2º, nº 2 e 4º, nº 4;

iv) Do acto administrativo que cria o sistema multimunicipal de abastecimento de água e de saneamento do centro Litoral de Portugal- cfr. artº 1º, nº 1;

v) Do acto administrativo que extingue o contrato de concessão do sistema multimunicipal de captação, tratamento e abastecimento de água do baixo Mondego-Bairrada celebrado entre o Estado e a sociedade Águas do Mondego – artº 2º, nº 7;

vi) Do acto administrativo que decide a celebração de um novo contrato de concessão relativo a esse sistema multimunicipal criado – artº 1º, nº 2, 9º e 10º;

vii) Do acto que convoca a Assembleia Geral da Sociedade Águas do Mondego para o dia 30 de Junho, pelas 17.00h».


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Em sede de contestação apresentada pelo Conselho de Ministros, veio este, entre o mais, suscitar a excepção da incompetência em razão da matéria deste Supremo Tribunal Administrativo/incompetência da jurisdição administrativa, alegando que a presente acção surge na sequência da providência cautelar requerida pelos mesmos autores que correu termos neste STA, sob o nº 743/15 e que foi rejeitada por Acórdão datado de 29.07.2015, na sequência de reclamação, reiterando nestes autos que os actos administrativos praticados sobre a forma de lei não podem ser confundidos com as leis individuais ou leis-medida e que só podem ser impugnáveis contenciosamente as prescrições contidas em actos legislativos que não sejam individuais e concretas, como também traduzam o exercício da função administrativa, mas não sendo de admitir que os tribunais administrativos possam apreciar a validade de leis-medida.

Mais alega que o DL que os autores visam impugnar, constituem uma clara reestruturação político-legislativa do sector, extravasando totalmente da esfera própria da função administrativa, conforme vem sendo entendido por este Supremo Tribunal [Pleno] fazendo menção de inúmeros Acórdãos proferidos neste sentido, pelo que se encontra fora do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação, a título principal da constitucionalidade e legalidade de normas constantes de decretos-leis.

E concluiu que os actos impugnados pelos autores partilham da natureza e opção políticas e não da função administrativa, na medida em que traduzem uma opção própria e livre do Governo sobre a forma de prossecução de interesses essenciais da colectividade.


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Os autores responderam à matéria de excepção, nos termos que constam de fls. 642 a 663.

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Por despacho da Relatora, datado de 20 de Setembro de 2018, foi declarada a incompetência absoluta deste Supremo Tribunal, em razão da matéria, para conhecer do mérito da presente acção e, consequentemente, a absolvição do Réu da instância, atento o teor da al) a), do nº 2 do artº 4º do ETAF – cfr. despacho de fls. 674 a 682 dos autos.

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Os autores, inconformados, apresentaram a presente reclamação para a Conferência formulando as seguintes conclusões:

«a) Os actos impugnados nos autos são actos individuais e concretos, imediatamente exequíveis, praticados em exclusiva concretização de normas legais, os quais relativamente a elas nada inovam;

b) São assim actos praticados num desempenho de função secundária do Estado, a função administrativa:

c) A normação com carácter inovador na matéria dos sistemas multimunicipais é estabelecida pelos Decreto-lei nº 319/84, 294/94 e 92/2015;

d) E são estes diplomas que os actos cuja suspensão se requer executam e concretizam, nada inovando relativamente a eles;

e) O despacho reclamado contém uma petição de princípio por dar como provado o que pretende provar, visto não proceder a qualquer demonstração da razão pela qual tais actos seriam inovadores;

f) O despacho reclamado erra quando qualifica os actos requeridos nos autos como sendo da função legislativa por entender que seriam, apesar de individuais e concretos, inovadores, o que se afirma visto que, conforme resulta da presente reclamação, tais actos não contêm pinga de inovação, limitando-se a executar, sem nenhuma autonomia, o regime jurídico relativo aos sistemas multimunicipais previamente existente, estabelecido pelos citados Decreto-lei nºs 319/94, 294/94 e 92/2015;

g) O Decreto-lei nº 92/2015, na interpretação que lhe dá o despacho reclamado é inconstitucional por violação do disposto nos artigos 62º e 18º, nº 3 da Constituição, por conter, nessa interpretação, normas da função legislativa individuais e concretas que lesam direitos fundamentais análogos – o que é proibido constitucionalmente;

h) O Decreto-lei nº 92/2015, na interpretação que lhe é dada pelo despacho reclamado viola o disposto no artº 20º da Constituição porque de tal interpretação resulta a insusceptibilidade de as medidas e as decisões nele contidas serem sindicadas judicialmente, apesar de serem manifestamente prejudiciais para os seus destinatários e ilegais;

i) O despacho reclamado é tirado em violação directa do disposto no artigo 268º/4 da Constituição que reconhece aos interessados a possibilidade de impugnarem qualquer acto administrativo independentemente da sua forma, sendo, nessa mesma medida, inconstitucional naquela interpretação;

j) O Decreto-lei nº 92/2015 é ainda e uma vez mais naquela interpretação, inconstitucional por violar a autonomia municipal consagrada constitucionalmente nos artigos 237º e segs da Constituição e organicamente inconstitucional por violar o disposto no artigo 165º, nº 1, alínea q) da Constituição».


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Notificado o Réu Conselho de Ministros, este não emitiu pronúncia.

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Dispensados os vistos, por se tratar de questão já abundantemente debatida neste STA, foram os autos submetidos à Conferência para julgamento.

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2. FUNDAMENTAÇÃO

2.1. MATÉRIA DE FACTO

Resulta assente que:

1. Os autores instauraram neste Supremo Tribunal, a presente acção administrativa especial pedindo a declaração de nulidade ou a anulação, de “actos administrativos contidos no Decreto-Lei nº 92/2015 de 29 de Maio”, contra o Conselho de Ministros, indicando como contra interessados os Municípios e Sociedades Anónimas devidamente identificados nos autos.

2. Peticionam, a final e em concreto, a declaração de nulidade ou a anulação dos seguintes actos:

«i) Do acto administrativo que extingue a Sociedade Águas do Mondego, S.A., concessionária do sistema multimunicipal de captação, tratamento e abastecimento de água do baixo Mondego-Bairrada – cfr. artº 4º, nº 2, nº 3 e nº 4;

ii) Do acto administrativo que constitui a sociedade Águas do Centro Litoral S.A. – cfr. artº 4º, nº 1;

iii) Do acto administrativo que extingue o actual sistema multimunicipal do Baixo Mondego-Bairrada – cfr. artºs 2º, nº 2 e 4º, nº 4;

iv) Do acto administrativo que cria o sistema multimunicipal de abastecimento de água e de saneamento do centro Litoral de Portugal- cfr. artº 1º, nº 1;

v) Do acto administrativo que extingue o contrato de concessão do sistema multimunicipal de captação, tratamento e abastecimento de água do baixo Mondego-Bairrada celebrado entre o Estado e a sociedade Águas do Mondego – artº 2º, nº 7;

vi) Do acto administrativo que decide a celebração de um novo contrato de concessão relativo a esse sistema multimunicipal criado – artº 1º, nº 2, 9º e 10º;

vii) Do acto que convoca a Assembleia Geral da Sociedade Águas do Mondego para o dia 30 de Junho, pelas 17.00h».

3. Em 20 de Setembro de 2018 foi proferido o despacho ora reclamado, cujo teor se dá aqui por reproduzido, onde se considerou que os actos impugnados que integram o DL nº 92/2015 se assumem na função político-legislativa e nunca na função administrativa, uma vez que traduzem uma opção inovadora do Governo acerca de uma questão de prossecução de interesses essências da colectividade, maxime, pela criação de um novo sistema multimunicipal de abastecimento de água e saneamento, por forma a promover os objectivos nele estatuídos, sendo patente que se trata de normas que, pese embora se projectarem de um modo directo e imediato sobre determinadas entidades, representam no seu conjunto uma opção política quanto a estas necessidades colectivas, afastando-se desta forma dos actos administrativos, sob a forma de lei, ou seja, de actos secundários que esgotam na execução de qualquer outra lei formal ou material, sem carácter inovatório e, ainda que não existindo no requerimento inicial apresentado pelos autores, actos administrativos [nem mesmo os pedidos referidos em vii, e na al. b) que se mostram decorrentes da opção política/legislativa, não se assumindo autonomamente como actos administrativos, mas sim integrados na reorganização pretendida levar a cabo e, portanto, assumindo a mesma natureza] é evidente a incompetência, em razão da matéria deste Supremo tribunal para conhecer do objecto dos autos [cfr. al. a), do nº 2 do artº 4º do ETAF] assim se declarando a incompetência em razão da matéria deste Supremo Tribunal e consequentemente a absolvição do Réu da instância.

4. Neste Supremo Tribunal, sob o nº 743/15, os ora autores, intentaram providência cautelar com vista à suspensão de eficácia de “actos administrativos contidos no Decreto-Lei nº 92/2015 de 29 de Maio”, com pedido de decretamento provisório contra o Conselho de Ministros e contra os Ministros de Estado e das Finanças, do Ambiente, Ordenamento do Território e da Energia, em que se peticionava a suspensão de eficácia:

«i) Do acto administrativo que extingue a Sociedade Águas do Mondego, S.A., concessionária do sistema multimunicipal de captação, tratamento e abastecimento de água do baixo Mondego-Bairrada – cfr. artº 4º, nº 2, nº 3 e nº 4;

ii) Do acto administrativo que constitui a sociedade Águas do Centro Litoral S.A. – cfr. artº 4º, nº 1;

iii) Do acto administrativo que extingue o actual sistema multimunicipal do Baixo Mondego-Bairrada – cfr. artºs 2º, nº 2 e 4º, nº 4;

iv) Do acto administrativo que cria o sistema multimunicipal de abastecimento de água e de saneamento do centro Litoral de Portugal- cfr. artº 1º, nº 1;

v) Do acto administrativo que extingue o contrato de concessão do sistema multimunicipal de captação, tratamento e abastecimento de água do baixo Mondego-Bairrada celebrado entre o Estado e a sociedade Águas do Mondego – artº 2º, nº 7;

vi) Do acto administrativo que decide a celebração de um novo contrato de concessão relativo a esse sistema multimunicipal criado – artº 1º, nº 2, 9º e 10º;

vii) Do acto que convoca a Assembleia Geral da sociedade Águas do Mondego para o dia 30 de Junho, pelas 17.00h».

Mais requeriam os requerentes cautelares:

«B) «Contra os Ministros de Estado e das Finanças, do Ambiente, Ordenamento do Território e da Energia, o pedido de intimação a que se abstenham de celebrar o contrato de concessão do sistema referido em vi) da alínea anterior».


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2.2. O DIREITO

A presente reclamação dirige-se contra o despacho que julgou procedente a excepção da incompetência em razão da matéria para decidir do mérito da presente acção, pelo que se impõe conhecer do erro de julgamento que lhe é assacado.

E no essencial, limita-se a reiterar os argumentos aduzidos em sede de requerimento inicial, vislumbrando-se uma mera discordância com o decidido.

Consignou-se no despacho reclamado:

«Importa, pois, prioritariamente averiguar e decidir, tal como se fez no âmbito dos autos cautelares destes dependentes, se os “actos” atacados pelos autores, se apresentam como verdadeiros actos administrativos contenciosamente impugnáveis ou se, ao invés apenas configuram actos normativos emanados no âmbito da função legislativa, pois caso assim seja, são insusceptíveis de poderem ser controlados pela jurisdição administrativa (artº 13º do CPTA), sendo que a competência do tribunal se afere de harmonia com a relação jurídica controvertida tal como a configura o demandante, fixando-se a mesma no momento em que a acção é proposta.

Alegam os autores no que a este aspecto concerne, que os actos ora impugnados, contidos no DL nº 92/2015 de 29 de Maio, configuram actos administrativos sob a forma de lei e, que por serem actos individuais e concretos, podem ser objecto de impugnação contenciosa judicial, por força do princípio da impugnabilidade dos actos administrativos independentemente da sua forma (artº 268º, nº 4 da CRP) e do disposto no artº 52º do CPTA.

Ora, o DL nº 92/2015 de 29 de Maio, veio como resulta do seu próprio preâmbulo, redefinir o plano estratégico para o sector do abastecimento de água e saneamento, traçando objectivos de agregação regional reconhecidos e preconizados para a PENSAAR 2020:

«De acordo com as disposições conjugadas dos nºs 1 e 3 do artigo 1.º da Lei n.º 88-A/97, de 25 de julho, com a redação dada pela Lei n.º 35/2013, de 11 de junho, as concessões relativas às atividades de captação, tratamento e distribuição de água para consumo público, recolha, tratamento e rejeição de águas residuais urbanas só podem 3266 ser atribuídas a empresas cujo capital social seja maioritariamente subscrito por entidades do setor público, nomeadamente autarquias locais.

O presente decreto-lei vem, ao abrigo do Decreto-Lei n.º 92/2013, de 11 de julho, concretizar a referida estratégia, criando um novo sistema multimunicipal, em substituição de três sistemas multimunicipais atualmente existentes, e uma nova entidade gestora desse sistema – a Águas do Centro Litoral, S. A. -- que sucede nos direitos e obrigações às três sociedades atualmente existentes, a saber: (i) SIMRIA -- Saneamento Integrado dos Municípios da Ria, S. A., concessionária do sistema multimunicipal de saneamento da ria de Aveiro, criado pelo Decreto-Lei n.º 101/97, de 26 de abril, alterado pelo Decreto-Lei n.º 329/2000, de 22 de dezembro; (ii) a SIMLIS -- Saneamento Integrado dos Municípios do Lis, S. A., concessionária do sistema multimunicipal de saneamento do Lis, criado pelo Decreto-Lei n.º 543/99, de 13 de dezembro; e (iii) a Águas do Mondego -- Sistema Multimunicipal de Abastecimento de Água e de Saneamento do Baixo Mondego -- Bairrada, S. A., concessionária do sistema multimunicipal de abastecimento de água e de saneamento do Baixo Mondego -- Bairrada, criado pelo Decreto-Lei n.º 172/2004, de 17 de julho.

Na linha do previsto no Decreto-Lei n.º 133/2013, de 3 de outubro, alterado pela Lei n.º 75-A/2014, de 30 de setembro, pretende-se aplicar ao novo sistema multimunicipal um regime jurídico mais exigente no que respeita ao controlo da legalidade e à boa gestão pública na alocação de recursos públicos para a prossecução de atividades em modo empresarial.

Com vista a evitar a oneração das tarifas aplicáveis aos utilizadores do novo sistema, a sucessão determinada pelo presente decreto-lei é realizada segundo as regras de neutralidade fiscal atendendo à continuidade da atividade empresarial em causa, subsumindo-se na alínea a) do n.º 1 do artigo 73.º do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 442-B/88, de 30 de novembro.

A relevância material da criação da empresa que irá gerir o novo sistema criado por agregação dos sistemas existentes deve ser aferida à luz da extinção das atuais três empresas gestoras de sistemas multimunicipais, com um impacto positivo na redução da dimensão do setor empresarial do Estado com presença no setor dos serviços de águas.

A necessidade de proceder neste diploma legal a derrogações ao regime constante das bases das concessões dos serviços de águas fica a dever-se ao facto de este regime ser anterior à publicação do Decreto-Lei n.º 92/2013, de 11 de julho, que introduz a solução da criação de sistemas por agregação de sistemas existentes, solução que, ao ser materializada, convoca em determinados aspetos a necessidade de estabelecer um regime específico adaptado a esta realidade.

Sem prejuízo da possibilidade, na linha do preconizado no Decreto-Lei n.º 92/2013, de 11 de julho, de aquisição pela nova entidade gestora, a todo o tempo e mediante acordo, das participações sociais dos municípios que não queiram manter-se acionistas da sociedade, fica expresso o direito de os municípios acionistas das sociedades extintas não participarem no capital social da nova entidade gestora, mediante a possibilidade de venda da sua participação social à nova entidade gestora pelo valor correspondente ao valor da participação social de Diário da República, 1.ª série -- N.º 104 -- 29 de maio de 2015 que eram titulares na sociedade concessionária extinta sua participada. Este direito de venda conferido aos municípios, não obstante se efetivar nos termos regulados no presente decreto-lei, opera concomitantemente à constituição da nova entidade gestora, graças à retroação dos seus efeitos à data da entrada em vigor do presente decreto-lei.

A criação de um novo sistema multimunicipal que agrega os anteriores sistemas multimunicipais, que se extinguem, e, bem assim, a criação de nova entidade gestora, proporciona a obtenção de sinergias, com reflexo positivo nas tarifas, bem como na sustentabilidade económica e financeira do conjunto dos sistemas, sendo, assim, pautada por objetivos estratégicos e de interesse nacional.

Estes objetivos justificam que se dote esta concessão de um regime particularmente vocacionado para a sustentabilidade económica e financeira do sistema, para a respetiva estabilidade tarifária, para mitigar a heterogeneidade dos sistemas extintos, designadamente através do estabelecimento de um prazo de vigência adequado.

A importância estratégica da sustentabilidade económica e financeira justifica ainda a adoção de um regime tarifário e de faturação ajustado face aos existentes nos sistemas a extinguir. Não obstante, podem ser aplicados, numa primeira fase da vida do novo sistema, tarifários distintos aos utilizadores dos três sistemas anteriores, em vista de uma progressiva convergência tarifária desses anteriores sistemas.

No sentido de assegurar a garantia e o reforço da prestação de um serviço público -- de acordo com os princípios da universalidade no acesso, continuidade e qualidade de serviço, eficiência e equidade dos preços e a proteção dos interesses dos municípios utilizadores e dos cidadãos servidos pelo sistema -- cria-se um conselho consultivo, no qual têm assento todos os presidentes da câmara dos municípios utilizadores do novo sistema e ao qual compete o acompanhamento geral da atividade da sua entidade gestora, nomeadamente dos níveis de serviços praticados e da gestão das infraestruturas afetas à concessão.

Foram ouvidos os municípios abrangidos pelo sistema multimunicipal.

Foi ouvida a Entidade Reguladora dos Serviços de Águas e Resíduos e a Associação Nacional de Municípios Portugueses».

E como supra deixamos consignado, os autores pedem a declaração de nulidade ou a anulação dos “actos” contidos nos artigos 1º, nºs 1 e 2, 2º, nºs 2 e 7, 4º, nºs 1, 2, 3 e 4, 9º e 10º do DL nº 92/2015, ou seja, os actos decorrentes da criação do sistema multimunicipal de abastecimento de água e de saneamento do Centro Litoral do País, daqui decorrendo a criação de uma nova sociedade e a extinção de uma outra, bem como dos respectivos contratos de concessão e, consequentemente a criação de outros.

Ora, resulta do disposto da alínea b) do nº 1 do artº 4º do ETAF e do artº 72º do CPTA que não cabe aos tribunais administrativos a fiscalização da legalidade das normas e a impugnação de normas só respeita às emanadas ao abrigo de disposições de direito administrativo; igualmente não cabe qualquer impugnação de actos praticados ao abrigo da função legislativa – cfr. entre muitos outros, Ac. deste Supremo Tribunal, proferido em 03/07/2014, in proc. nº 0801/13.

É sabido que as funções legislativa e política, se assumem ambas como funções primárias, visando, em comum, a realização das opções sobre a definição e prossecução dos interesses essenciais da sociedade, enquanto que, as funções administrativa e jurisdicional assumem um carácter secundário e de subordinação às funções primárias, que se traduz na não interferência na formulação das escolhas essenciais da coletividade política, na necessidade de que as suas decisões encontrem fundamento em tais escolhas e de que não as contrariem” [cfr. Marcelo Rebelo de Sousa/André Salgado de Matos, in Direito Administrativo Geral, Tomo I, 3ª edição, 2008, p. 38].

Ora, se outros argumentos não existissem, bastava-nos esta distinção para de imediato percebermos que o objecto da presente acção se afasta daquilo que é o âmbito da jurisdição administrativa e, consequentemente da competência concedida aos tribunais administrativos, dado que, o que na sua essência está posto em causa pelos autores são os direitos pretensamente violados por acto jurídico-normativo resultante do exercício da função legislativa, ou seja, da emissão do DL nº 92/2015, por parte da função legislativa e da sua conformidade com a lei.

Trata-se de normas que se situam num plano normativo, concretizando as opções políticas, em conformidade com a reorganização dos serviços de abastecimentos de água e saneamento de águas residuais, ou seja, sempre num plano normativo/legislativo.

E nem o facto deste plano normativo/legislativo “atingir” em concreto os autores, extinguindo o actual sistema multimunicipal do Baixo Mondego/Bairrada e os contratos de concessão do sistema multimunicipal de captação, tratamento e abastecimento de água do Baixo Mondego/Bairrada, abala os considerandos de que estamos perante opções político-legislativas.

De facto, face à causa de pedir e aos pedidos formulados, não vislumbramos a existência de qualquer actuação materialmente administrativa, nem se inferem actos administrativos contidos no diploma legal, pois resulta evidente em relação a todos as normas postas em causa, a natureza legislativa das mesmas, nomeadamente o seu alcance genérico (que extravasa em termos de opção política as entidades criadas e extintas, não devendo ser olvidado que outros diplomas legais, foram publicados na mesma data e que estabeleceram o mesmo regime para a zona Norte e para a zona de Lisboa e Vale do Tejo), a sua natureza primária e inovadora, conformadores da função legislativa e política.

Acresce que, mesmo a existir a individualidade e concretização [que no caso concreto se estenderia a todo o território] como repetidamente alegam os autores, este Supremo Tribunal, em Acórdão do Pleno, proferido em 04/07/2013, in proc. nº 469/13, já teve oportunidade de esclarecer que «A um acto, para ser administrativo, não lhe basta ser individual e concreto. Para assim ser qualificado tem ainda de proceder do exercício da função administrativa» e estes decididamente não procedem da função administrativa, mas sim das opções legislativas desencadeadas.

No mesmo sentido o Ac. deste STA de 05/06/2014, in proc. nº 01031/13, que considerou que existe um acto materialmente legislativo quando o acto jurídico impugnado introduza na ordem jurídica uma opção primária e inovadora, (…) e isso “independentemente de saber se essa materialidade se exprime com carácter geral e abstrato, visando destinatários determináveis ou indetermináveis ou através de uma determinação individual e concreta».

Ainda no mesmo sentido, cfr. o Ac. do Pleno deste Tribunal, de 19/03/2015, in proc. nº 949/14, que expressamente refere que «a materialidade do ato legislativo não se confunde com o carácter geral e abstracto das determinações nele contidas”, sendo que, embora, por regra, “a «intencionalidade própria da função legislativa se tenda a exprimir na emissão de regras de conduta, de carácter geral e abstracto» também «é verdade que é frequente o fenómeno da aprovação de actos legislativos, que embora exprimam uma opção política primária, inovadora, introduzem uma ou mais determinações de conteúdo concreto», pelo que «o exercício da função legislativa só tendencialmente se concretiza na emanação de normas gerais e abstractas» já que «decisiva é a intencionalidade do ato, o facto de introduzir opções políticas primárias» e quando isso suceda, temos um ato materialmente legislativo, ainda que as opções nele contidas tenham conteúdo concreto» - cfr. ainda Mário Aroso de Almeida, in Manual de Processo Administrativo, 2010, pág. 283.

Cremos, pois, sem margem de dúvidas que os actos impugnados que integram o DL nº 92/2015 se assumem na função politico-legislativa e nunca na função administrativa, uma vez que traduzem uma opção inovadora do Governo acerca de uma questão de prossecução de interesses essências da colectividade, maxime, pela criação de um novo sistema multimunicipal de abastecimento de água e saneamento, por forma a promover os objectivos nele estatuídos, sendo patente que se trata de normas que, pese embora se projectarem de um modo directo e imediato sobre determinadas entidades, representam no seu conjunto uma opção política quanto a estas necessidades colectivas, afastando-se desta forma dos actos administrativos, sob a forma de lei, ou seja, de actos secundários que esgotam na execução de qualquer outra lei formal ou material, sem carácter inovatório.

Deste modo, face à natureza legislativa das normas impugnadas, ou melhor dizendo, não existindo no requerimento inicial apresentado pelos autores, actos administrativos, é evidente a incompetência da jurisdição administrativa para conhecer do objecto dos autos [cfr. al. a), do nº 2 do artº 4º do ETAF], como aliás se decidiu no Acórdão proferido em 29.07.2015, in proc. nº 743/15 na sequência de reclamação apresentada pelos autores, no que respeita à providência cautelar de que os presentes autos dependem, bem como em inúmeros Acórdãos proferidos pelo Pleno deste Supremo Tribunal, pelo que nos dispensamos de outros considerandos.

Atento o exposto, impõe-se declarar a incompetência absoluta deste STA, em razão da matéria, para conhecer do mérito da presente acção e, consequentemente, absolver o Réu da instância – artºs 96º e 99º do CPC».


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E é contra o assim decidido que os reclamantes se insurgem [sendo de referir que as conclusões apresentadas na presente reclamação, são rigorosamente iguais às apresentadas no processo cautelar de que estes são apenso, sob nº 743/15, processo este que terminou com a mesma decisão que ora se profere].

Ora, quanto à argumentação deduzida pelos reclamantes [já repetida] de que os actos cuja impugnação é requerida constituem actos da função administrativa, que assumem as características da individualidade e exequibilidade imediata, pouco acrescentaremos ao expedido no despacho reclamado, onde se forma clara se concluiu que, o diploma em causa [DL nº 92/15] assume carácter legislativo, exprimindo uma vontade política, primária e inovadora em relação ao regime jurídico antes instituído no que concerne ao abastecimento de água e de saneamento do centro do País.

Com efeito, este novo regime que veio redefinir o plano estratégico para o sector da água e saneamento, ao constar de um diploma com forma e valor de acto legislativo (artº 112º, nº 1, da CRP), exprime a vontade política, primária e inovadora do Governo, em relação ao regime anteriormente previsto nos DL’s 319/94 e 294/94, sendo que o Governo o faz no exercício das suas competências legislativas, procurando enquadrar neste regime normativo todo o território nacional [dado que na mesma data outros diplomas foram publicados, visando o mesmo fim, para a zona Norte e de Lisboa e Vale do Tejo], inexistindo por isso qualquer acto que se possa caracterizar de administrativo ou emanado da função administrativa do Estado.

Neste sentido cfr. Prof. Marcelo Rebelo de Sousa/André Salgado de Matos, in Direito Administrativo, Tomo I, 3ª ed., pág. 38: «A função política e a função legislativa, são qualificadas como “funções primárias” situadas em “plano de paridade constitucional” que têm em comum a “realização de opções sobre a definição e prossecução dos interesses essenciais da colectividade”, ambas assumem, por isso mesmo, um carácter tendencialmente inovador».

Mas, ainda que dúvidas houvesse, entre o carácter administrativo ou normativo das referidas disposições, este Tribunal por diversas vezes tem decidido que a dúvida haverá de resolver-se em favor da normatividade – cfr. a este propósito, os Acs. de 07/06/2006, proc. nº 01257/05 e de 03/11/2004, proc. nº 0678/04.

Num segundo segmento do “protesto” dos reclamantes, alegam estes que o Decreto-lei nº 92/2015 na interpretação que lhe dá o despacho reclamado é inconstitucional por violação dos artºs 62º, 18º, nº 3, 20º, 268º, nº 4 e 237º e segs e ainda organicamente a al) q) do nº 1 do artº 165º da mesma lei fundamental.

Quanto aos artºs 18º, nº 3 e 62º, nº 2 da CRP, respeitantes, no caso vertente, à propriedade privada, não vislumbramos, nem os reclamante o elucidam, de que forma a decisão que declarou a incompetência da jurisdição administrativa para conhecer do mérito da providência cautelar intentada, viola os referidos preceitos constitucionais, uma vez que o despacho reclamado nem sequer se pronúncia quanto ao mérito da pretensão, onde aí sim, estavam invocadas diversas inconstitucionalidades.

E se de facto os reclamantes entendem que o diploma legal padece de qualquer inconstitucionalidade, dispõem de meios específicos para o peticionar e ver, se for caso disso, declarada.

O que não podem é pretender através do despacho reclamado que determinou a incompetência material da jurisdição administrativa, ver aqui nesta sede, decididas as inconstitucionalidades que assacam ao acto no requerimento inicial.

E o mesmo se passa quando alegam que o DL nº 92/2015 viola o disposto no artº 20º da CRP [que consagra o acesso ao direito], porque de tal interpretação resulta a insusceptibilidade de as medidas e as decisões nele contidas serem sindicadas judicialmente; com efeito, tal afirmação não corresponde à verdade, pois como se referiu, a lei prevê outros mecanismos legais para se insurgirem contra as alegadas inconstitucionalidades, e de sindicarem as decisões que no concreto vierem a ser proferidas pelas entidades ora criadas; acresce que, nunca o acesso ao direito e à tutela efectiva poderia estar posta em causa, mediante um despacho que apenas declara a incompetência em razão da matéria para conhecer de determinadas matérias, para além de que as normas em que tal despacho se baseou não foram criticadas na presente reclamação.

Por outro lado, os reclamantes parecem olvidar que a função legislativa pode ser sempre sindicada, mas nem sempre junto dos tribunais administrativos, mas sim perante o Tribunal Constitucional, se forem apresentados argumentos dignos dessa sindicância, pelo que nunca o acesso ao direito se mostra posto em crise.

Por outro lado, também não se avista que o despacho reclamado tenha violado o disposto no nº 4 do artº 268º da CRP, pois, como se vem referindo, não estamos perante actos administrativos, mas sim perante actos legislativos, que têm uma via própria de reacção, pelo que, nem sequer se coloca a questão desta norma constitucional, sendo que além do mais, previamente à tutela dos direitos ou interesses ali protegidos, se impõem as regras de repartição de competências dos tribunais, pertencentes a várias jurisdições – cfr. a este respeito o recente Ac. nº 113/2015 do Tribunal Constitucional, in processo nº 885/14, publicado no DR, 2ª série, nº 132 de 09/07/2015, que de forma precisa e clara esclarece estas questões.

Por último, a questão da inconstitucionalidade do DL 92/2015 por violação do disposto no artº 165º, nº 1 e 237º e segs da CRP, por violação da reserva relativa da Assembleia da República e da autonomia municipal, igualmente não pode ser analisado por uma jurisdição que se declarou incompetente em razão da matéria, devendo os reclamantes cuidar de fazer valer os seus direitos junto de outra jurisdição que não a jurisdição administrativa.

Aliás, - e repetindo - o despacho reclamado ao julgar o Tribunal incompetente em razão da matéria, não cuidou sequer de analisar do mérito das normas nele contidas, pelo que é inequívoca a falta de razão dos reclamantes quando apodam o DL inconstitucional, por via da interpretação feita no despacho reclamado.

Impõe-se, pois, sem necessidade de outros considerandos, por manifestamente despiciendos, o indeferimento da reclamação apresentada.


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DECISÃO:

Atento o exposto, acordam em conferência os juízes da Secção de Contencioso Administrativo deste Supremo Tribunal, em indeferir a reclamação sub judice e consequentemente, manter a decisão judicial reclamada.

Custas pelos reclamantes, que se fixam no mínimo legal.

DN

Lisboa, 15 de Novembro de 2018. – Maria do Céu Dias Rosa das Neves (relatora) – António Bento São Pedro – José Augusto Araújo Veloso.