Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:039/21.2BEPRT
Data do Acordão:05/03/2023
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:ANABELA RUSSO
Descritores:REFORMA
JUROS
AMPLIAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO
Sumário:I - É pressuposto de aplicação do instituto de reforma previsto no artigo 616.º do CPC, que não haja lugar a recurso jurisdicional, tenha ocorrido lapso manifesto na determinação da norma aplicável ou na qualificação jurídica dos factos ou não tenham sido relevados na decisão documentos ou outros meios de prova plena que, só por si, impliquem decisão diversa da proferida.
II - Lapso manifesto na determinação da norma é o lapso evidente e incontroverso, revelado por elementos exteriores à decisão (despacho, sentença ou acórdão).
III - A mera discordância quanto ao julgamento realizado, designadamente quanto à interpretação ou densificação de uma norma legal expressamente vertida no acórdão não constitui lapso manifesto.
IV - Tendo um dos pedidos formulados pela parte vencedora sido objecto de apreciação em 1ª instância e aí julgado improcedente, é admissível recurso subordinado, independentemente do valor da sucumbência (artigo 633.º, n.ºs 1 e 5 do CPC).
Nº Convencional:JSTA000P30923
Nº do Documento:SA220230503039/21
Data de Entrada:01/19/2022
Recorrente:A..., S.A – SUCURSAL PORTUGAL
Recorrido 1:B..., S.A.
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral:
Acórdão

I - B..., S.A.”, notificada, na qualidade de Recorrida, do acórdão por nós proferido nestes autos, veio, ao abrigo do preceituado no artigo 616.º, n.º 2 do Código de Processo Civil (CPC), pedir a sua reforma na parte em que não admitiu a ampliação do objecto do recurso.

II - Alega, como fundamento da sua pretensão reformatória, em resumo nosso, por um lado, que não podia autonomamente interpor recurso subordinado, uma vez que o valor de sucumbência (considerando o valor de juros peticionados) é inferior ao valor da alçada do tribunal; por outro, que sempre se imporia a condenação oficiosa da entidade vencida em juros indemnizatórios, como tem sido jurisprudência constante do Supremo Tribunal Administrativo, por estar em causa a anulação de um acto tributário que originou um pagamento indevido de prestação tributária.

III - Tudo, pois, para concluir que interpretamos erroneamente a disciplina contida no artigo 633.º do CPC. E, consequentemente, que o acórdão deve ser reformado, dele devendo passar a constar a condenação da Recorrente no valor equivalente aos juros indemnizatórios, contados à taxa de 4%, desde a data do pagamento indevido (08.08.2019) até à data da integral e efectiva devolução daquela importância.  

IV - A Recorrente, notificada, insurgiu-se contra qualquer reforma do acórdão, subscrevendo integralmente, nesta parte, o julgamento realizado por este Supremo Tribunal. Invoca, através de jurisprudência que cita e transcreve, que a questão dos juros indemnizatórios, suscitada perante o Tribunal a quo, foi por este apreciada e, consequentemente, que não existe nenhuma questão que devesse ter sido oficiosamente apreciada. E que, não existindo qualquer erro palmar no acórdão, tanto mais que, querendo, a Recorrente poderia ter interposto recurso subordinado do julgamento nessa parte, independentemente do valor da sucumbência, ao abrigo do n.º 5 do artigo 633.º do CPC, carece de fundamento o próprio erro de julgamento invocado.

V - Também o Excelentíssimo Procurador-Geral Adjunto, em parecer doutamente elaborado, pugnou pela integral improcedência do pedido de reforma, defendendo que não estão verificados os pressupostos consagrados no artigo 616.º do CPC e que, tal como bem sublinhado pela Recorrida, nem a Recorrente estava impedida de ter recorrido nem a este Tribunal ad quem se colocava qualquer questão de conhecimento oficioso mas, tão só, de apreciar o eventual erro de julgamento quanto a questão previamente conhecida e decidida pelo Tribunal a quo.

VI - Colhidos os vistos dos Excelentíssimos Juízes Conselheiros Adjuntos, cumpre, agora, decidir.

VII – E, fazendo-o, dir-se-á antes de mais que, o artigo 616.º do CPC (que regula taxativamente as hipóteses de reforma da decisão judicial, aplicável aos despachos recorríveis e acórdãos, dispõe, sobre a epígrafe “Reforma da sentença”, para o que ora releva atento o fundamento da reforma peticionada, que:

«(…)

2 - Não cabendo recurso da decisão, é ainda lícito a qualquer das partes requerer a reforma da sentença quando, por manifesto lapso do juiz:

a) Tenha ocorrido erro na determinação da norma aplicável ou na qualificação jurídica dos factos;

b) Constem do processo documentos ou outro meio de prova plena que, só por si, impliquem necessariamente decisão diversa da proferida.

VIII - A jurisprudência dos nossos Tribunais Superiores tem vindo a efectuar ao longo dos anos um recorte muito rigoroso do que pode ou deve ser admitido como constituindo objecto de um pedido da reforma ao abrigo do citado preceito legal, distinguindo quer o que deve constituir objecto de pedido de reforma e o que deve constituir objecto de recurso quer, no que ao primeiro conjunto de situações, densificando o que pretendeu o legislador por “lapso manifesto”. Recorte este que, como bem se compreende, é fundamental, por a possibilidade de reforma da decisão judicial, legalmente reconhecida constituir um desvio ou excepção à regra estrutural (e secular) do nosso regime processual, consagrada no artigo 613.º, n.º 1 do CPC: proferida a decisão judicial, fica extinto o poder jurisdicional do juiz. Ou seja, salvo nas situações taxativamente elencadas no artigo 616.º do CPC, está absolutamente proibido ao julgador que proferiu o julgamento, proceder à sua alteração.

IX - Como a Recorrida e o Excelentíssimo Procurador explicitaram, através da transcrição da jurisprudência deste Supremo Tribunal Administrativo, a aplicação ou legitimação de recurso ao instituto de reforma está dependente de que não haja lugar a recurso jurisdicional, que tenha ocorrido lapso manifesto na determinação da norma aplicável ou na qualificação jurídica dos factos, ou não tenham sido relevados na decisão documentos ou outros meios de prova plena que, só por si, implicasse decisão diversa da proferida.

X – É tendo presente essa jurisprudência e a densificação que a doutrina vem fazendo do artigo 616.º do CPC, que nos permitimos dizer de forma directa que o lapso manifesto é o lapso evidente e incontroverso, revelado por elementos exteriores à decisão (despacho, sentença ou acórdão). E que não é lapso manifesto a uma mera discordância quanto ao julgamento. Ou seja, «a reforma do acórdão, que possui carácter excepcional, não abrange as situações em que o requerente se limita a manifestar a sua discordância com a decisão tomada, mas aquelas situações em que a decisão enferme de erros palmares, patentes, que, pelo seu carácter manifesto, se teriam evidenciado ao autor ou autores da decisão, não fora a interposição de circunstância acidental ou uma menor ponderação tê-la levado ao desacerto. (Acórdão da Secção do Supremo Tribunal Administrativo de 1 de Julho de 2020, processo n.° 0153/07.7BECTB, integralmente disponível para consulta em dgsi.pt)

XI - Feito este brevíssimo enquadramento legal, rapidamente se conclui que não existe, do ponto de vista formal, qualquer lapso manifesto ou erro palmar na norma aplicável no segmento decisório cuja reforma se peticiona, argumento jurídico que suporta o pedido em apreço.

XII - Na verdade, o que este Supremo Tribunal julgou, no que ao objecto de reforma concerne, foi, e passamos a transcrever, que: “A delimitação que fizemos do objecto do recurso indicia já fortemente que este Supremo Tribunal Administrativo, mesmo que confirme o julgamento do Tribunal a quo quanto à ilegalidade do acto de repercussão, por ser plenamente eficaz a norma consagrada no artigo 85.°, n.° 3 da LOE/2017, não apreciará a bondade do julgamento relativo aos juros indemnizatórios, objecto do pedido de ampliação do recurso que a Recorrida formulou ao abrigo do artigo 636. ° do CPC.

Na verdade, como resulta do último artigo citado, a ampliação do objecto do recurso apenas permite que a parte vencedora, que, por o ser, não possui, em regra, legitimidade para recorrer, requeira, em ampliação do recurso, para o que ora releva, a apreciação de fundamentos não apreciados ou em que a parte vencedora decaiu.

Acontece, porém, que o pedido de juros indemnizatórios não é um fundamento da ilegalidade do acto, antes constituindo esta ilegalidade um dos fundamentos do pedido de juros indemnizatórios formulado.

Pelo que, tendo a ora Recorrida ficado vencida quanto ao pedido de juros indemnizatórios, devia, com a legitimidade que lhe é reconhecida pelo artigo 630.° do CPC, ter interposto recurso, independente ou subordinado, nos termos do artigo 633.° do CPC, visando a reapreciação e revogação da sentença nessa parte.

Não o tendo feito, a sentença de 1ª instância, nessa parte, independentemente do acerto ou desacerto do julgamento realizado, transitou, estando, em conformidade com o preceituado no artigo 635.°, n.° 5 do CPC, vedado a este Tribunal ad quem a sua reapreciação».

XIII - Em conclusão, o que resulta claramente do acórdão é que a interpretação que este Supremo Tribunal Administrativo faz do artigo 633.º do CPC e a distinção que julga que não pode deixar de ser feita entre o que é passível de constituir objecto de ampliação do recurso ou deve ser objecto de recurso subordinado ou independente determinava que, no caso, o pedido de alteração da decisão de improcedência do pedido de juros formulado nos tivesse sido colocada sob a forma de recurso subordinado e não, em contra-alegações, sob a forma de ampliação do objecto do recurso jurisdicional.

XIV - Da fundamentação convocada pela Recorrida para sustentar este pedido de reforma percebe-se claramente que não concorda com essa interpretação ou recorte, isto é, que discorda do nosso julgamento, por entender que a situação emergente dos autos legítima o seu recurso à “mera ampliação do objecto do recurso”, e que esta é que é a interpretação jurídica mais correcta do artigo 633.º do CPC. Porém, como a Recorrida bem sabe, e já o deixámos evidenciado, tal dissentimento ou discordância não constituem fundamento de pedido de reforma, mas, tão só, de recurso jurisdicional, se a tanto houver lugar. E não serve, na ausência de previsão legal deste (uma vez que o acórdão reformando é já um acórdão d Supremo Tribunal Administrativo) para legitimar uma última tentativa de alteração do julgado. Por não ter sido esse o objectivo e os valores prosseguidos pelo legislador com a consagração legal do instituto de reforma.

XVI - Temos, pois, por seguro, que, no caso, não existe qualquer lapso manifesto de qualquer norma legal, o que determina o fracasso da reforma aduzida.

XVII - Sem prejuízo do que fica dito e a título de nota final adiantamos ainda que os próprios fundamentos invocados e que visam a demonstração do “erro palmar” na aplicação do regime de recursos carecem de qualquer sentido.

Por um lado, porque a Recorrente confunde a possibilidade de o Tribunal poder oficiosamente atribuir juros indemnizatórios ou de eles serem peticionados ou exigidos com o erro de julgamento da sentença na decisão de os atribuir ou não. A questão que a Recorrente colocou em ampliação do recurso, como deixámos claro, foi a do erro de julgamento na sentença de 1ª instância quanto ao pedido de juros expressamente peticionados. Ou seja, a Recorrida pediu a condenação da Recorrente em juros indemnizatórios e o Tribunal a quo, dando-lhe razão no que concerne à ilegalidade do acto impugnado, entendeu, ainda assim, que não estavam verificados os pressupostos previstos no artigo 43.º da LGT por razões relativas à qualidade ou natureza jurídica das partes, julgando o pedido nessa parte improcedente. Donde, discordando desse julgamento de direito, como se deixou dito no acórdão cuja reforma ora nos é pedida, devia a Recorrida, como parte vencida nessa parte, ter interposto recurso jurisdicional subordinado, pedindo a sindicância desse julgamento, como expressamente previsto no artigo 633.º, n.º 5 do CPC.

Acresce, por outro lado, que é destituído de fundamento legal a alegada inexistência de previsão legal de interposição do recurso jurisdicional subordinado atento o valor do pedido em que ficou vencida. Como de forma rigorosa sublinharam quer a Recorrente quer o Excelentíssimo Magistrado do Ministério Público, nos termos, conjugadamente, dos já citados n.ºs 1 e n.º 5 do artigo 633.º do CPC, podia, independentemente da decisão impugnada ser desfavorável para a ora Recorrida “em valor igual ou inferior a metade da alçada do tribunal de que se recorre», ter interposto recurso subordinado.

XVIII – Decisão

Por tudo quanto ficou exposto, acordam os Juízes que integram esta Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo não atender ao pedido de reforma, mantendo, em conformidade, inalterável, o acórdão proferido.

Custas pela Requerente/Recorrida, fixando-se a taxa de justiça em 2 UC2s.

Notifique.

Lisboa, 3 de Maio de 2023. - Anabela Ferreira Alves e Russo (relatora) - José Gomes Correia - Aníbal Augusto Ruivo Ferraz.