Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0355/12
Data do Acordão:10/24/2012
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:DULCE NETO
Descritores:RECLAMAÇÃO DE CRÉDITOS
IVA
PRIVILÉGIO MOBILIÁRIO GERAL
AMPLIAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
Sumário:I - O limite temporal estabelecido no artº 736º, n.º 1, 1ª parte, do Código Civil não se aplica aos impostos indirectos.
II - Sendo o IVA um imposto indirecto, os respectivos créditos devem considerar-se, à luz daquela norma, como legalmente privilegiados sem qualquer limitação temporal.
III - Tal não significa o reconhecimento automático do privilégio para todos os créditos de IVA reclamados e não impugnados, pois é necessário que o julgador examine se, no caso concreto, ocorrem todos os requisitos legais para o reconhecimento do privilégio e para a graduação dos créditos em conformidade com a lei, designadamente que a penhora tenha incidido sobre um bem móvel e que o titular desse bem seja o devedor das dívidas reclamadas.
IV - Caso o devedor do IVA reclamado seja uma sociedade e não tenha havido acto de reversão para responsabilizar o gerente pelo seu pagamento, o privilégio mobiliário de que usufrui o Estado incide sobre os bens móveis existentes no património da sociedade devedora, e não também sobre o bens móveis do seu gerente.
V - Carecendo o Supremo Tribunal Administrativo de poderes cognitivos para clarificar e fixar elementos factuais relevantes para o julgamento da questão de saber se os créditos reclamados gozam ou não, no caso concreto, do privilégio invocado, impõe-se a baixa dos autos ao Tribunal recorrido, de modo a obter-se matéria de facto suficiente à apreciação da questão, nos termos dos artigos 729.º e 730.º do CPC.
Nº Convencional:JSTA00067870
Nº do Documento:SA2201210240355
Data de Entrada:03/30/2012
Recorrente:FAZENDA PÚBLICA
Recorrido 1:B... E OUTRA
Votação:MAIORIA COM 1 VOT VENC
Meio Processual:REC JURISDICIONAL
Objecto:SENT TAF AVEIRO
Decisão:PROVIDO
Área Temática 1:DIR PROC TRIBUT CONT.
Legislação Nacional:CCIV66 ART736 N1.
CPC96 ART809 ART265 N2.
CPPTRIB99 ART246 N2 ART241.
Jurisprudência Nacional:AC STA PROC01291/02 DE 2002/10/30; AC STA PROC0131/11 DE 2011/05/18
Referência a Doutrina:PIRES DE LIMA E ANTUNES VARELA CÓDIGO CIVIL ANOTADO VOLI 4ED PAG757.
CASALTA NABAIS DIREITO FISCAL 4ED PAG48.
MIGUEL LUCAS PIRES DOS PRIVILÉGIOS CREDITÓRIOS REGIME JURIDICO E SUA INFLUENCIA NO CONCURSO DE CREDORES PAG310.
CARDOSO DA COSTA CURSO DE DIREITO FISCAL 1972 PAG35-36.
Aditamento:
Texto Integral: Acordam, em conferência, na Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo:

1. A FAZENDA PÚBLICA interpôs recurso jurisdicional da sentença de verificação e graduação de créditos proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Aveiro no apenso à execução fiscal n.º 0132200801045288 instaurada no Serviços de Finanças de Oliveira de Azeméis contra a sociedade “A……, Ldª para cobrança de dívidas de IVA dos anos de 2006 e 2007, no valor global de € 16.547,95, e que veio a reverter contra B……..
Concluiu as respectivas alegações com as seguintes conclusões:
1. No âmbito do processo de execução fiscal n.º 0132200801045288, foram penhorados valores mobiliários, consistentes em 1914 unidades de participação do fundo “…….”, no valor total de € 9.750,00, registados na conta de registo/depósito n.º 0003.0047855816 titulada pelo executado, ora reclamado;

2. Esta penhora foi efectuada em 24/02/2010 por via electrónica, pelo pedido n.º 013220090000037151, através do SIPA;

3. O referido processo de execução fiscal corre termos no SF de Oliveira de Azeméis, para cobrança coerciva das dívidas provenientes de IVA dos períodos de Janeiro a Agosto de 2006 e Março e Setembro de 2007, nos montantes de € 16.547,95, juros de mora e acréscimos legais;

4. Pela Fazenda Pública foram reclamados créditos no valor total de € 29.611,20 e respectivos juros de mora, respeitantes a IVA de períodos dos anos de 2003, 2004, 2006 e 2007, em cobrança coerciva nos processos de execução fiscal nºs 0132200701023918, 0132200701007734, 0132200701008277, 0132200701010441, 0132200701024175, 0132200701025236, 0132200701033204, 0132200701037625, 0132200801002759, 0132200801003704, os quais gozam de privilégio creditório mobiliário geral;

5. Não se conforma a Fazenda Pública com a douta sentença recorrida, porquanto a mesma, por um lado, não reconheceu nem graduou os créditos por si reclamados relativos a IVA de 2003, 2004, 2006 e 2007, garantidos por privilégio creditório mobiliário geral nos termos da primeira parte do n.º 1 do artigo 736° do CC, e, por outro lado, considerou que os créditos exequendos de IVA dos anos de 2006 e 2007 beneficiavam apenas da preferência resultante da penhora efectuada no processo executivo n.º 013200801045288, nos termos do disposto no artigo 822° do CC, e não de privilégio creditório mobiliário geral;

6. Do disposto na primeira parte do n.º 1 do artigo 736° do CC resulta que o Estado tem privilégio creditório mobiliário geral para garantia dos créditos por impostos indirectos, beneficiando de tal privilégio sem limitações quanto aos anos de cobrança, ao contrário do que sucede com os impostos directos, em que apenas são privilegiados os inscritos para cobrança no ano corrente da penhora, ou acto equivalente, e nos dois anos anteriores;

7. Conforme a doutrina e jurisprudência dominantes, o IVA, como imposto indirecto, goza do privilégio creditório mobiliário geral, sem qualquer limitação temporal, previsto na primeira parte do n.º 1 do artigo 736.° do CC;

8. Assim, tendo em conta a data da penhora (24/02/2010) e que os créditos provenientes de IVA, exequendos (dos anos de 2003, 2004, 2006 e 2007) e reclamados (de 2006 e 2007), gozam, todos eles, de privilégio creditório mobiliário geral, sem qualquer limitação temporal nos termos do artigo 736.º, n.º 1, do CC, deveriam os primeiros ter sido reconhecidos e graduados após o crédito garantido por penhor, isto é, em segundo lugar, a par, com os créditos exequendos, os quais beneficiam não só da garantia dada pela penhora como também pelo mesmo privilégio creditório mobiliário geral;

9. Não o tendo feito, a douta sentença recorrida violou o disposto nos artigos 240°, nº 1, do CPPT, nos artigos 733° e 736° do CC.

1.2. Não foram apresentadas contra-alegações.

1.3. O Exmo. Procurador-Geral-Adjunto emitiu douto parecer no sentido de ser concedido provimento ao recurso, por entender que assiste razão à Recorrente.

1.4. Colhidos os vistos dos Exmºs Juízes Conselheiros Adjuntos, cumpre decidir.

2. A sentença recorrida deu por assente os seguintes factos:

1) Por apenso à execução n.º 0132200801045288 e apensos que o Serviço de Finanças de Oliveira de Azeméis instaurou contra o executado, por reversão, B……, nif. ……., residente na Rua ……., n.º ……, ……, Travanca ...., vieram reclamar créditos:

· o «Banco C……., S.A.», no montante total de € 9.570,00, resultante de dívidas relativas a empréstimos que lhe efectuou, garantidos por penhor constituído sobre os bens penhorados nos autos executivos, a 30.12.2009;

· o Representante da Fazenda Pública, relativos a Imposto sobre o Valor Acrescentado (IVA) referentes a períodos dos anos de 2003, 2004, 2006 e 2007, em cobrança coerciva em diversos processos executivos, no valor global de € 29.611,20, e respectivos juros de mora, devidamente discriminados nos documentos juntos - cfr. fls. 45 a 55, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.

2) O processo executivo com o n.º 0132200801045288 e apensos, corre termos por dívidas provenientes de Imposto sobre o Valor Acrescentado (IVA), de períodos dos anos de 2006 e 2007, no valor global de € 16.547,95 e acréscimos legais - cfr. pef. apenso.

3) No processo executivo, a 24.02.2010, foram penhorados valores mobiliários, concretamente 1914 unidades de participação do fundo “…….”, no valor de € 9.570,00 - cfr. fls. 56 dos autos.

4) Sobre os bens penhorados nos autos executivos, a 30.12.2009 foi constituído penhor a favor «Banco C……, S.A.» - cfr. fls. 16 a 10 dos autos.


3. O inconformismo da Recorrente, integrante do objecto do presente recurso, reconduz-se à questão de saber a decisão recorrida enferma de erro de julgamento ao ter considerado que os créditos reclamados pela Fazenda Pública, provenientes de dívidas de IVA dos anos de 2003, 3004, 2006 e 2997, não gozam de privilégio creditório mobiliário para serem pagos através do produto da venda do bem móvel do executado B……, tendo em conta a data da penhora desse bem, em 24/02/2010.
Com efeito, no processo de execução fiscal n.º 0132200801045288, revertido contra o responsável subsidiário B……. para cobrança de dívidas de IVA dos anos de 2006 e 2007 da sociedade A……., LDA, e após penhora em 24/02/2010 de um bem móvel desse responsável subsidiário, vieram reclamar créditos: (i) o «Banco C……., S.A.», garantidos por penhor constituído em 30/12/2009; (ii) e a Fazenda Pública por créditos de IVA dos anos de 2003, 2004, 2006, e 2007, em cobrança coerciva em diversos processos executivos.
A sentença recorrida não reconheceu os créditos reclamados pela Fazenda Pública com a seguinte argumento: «tendo em conta a data da penhora, ou seja, 24.2.2010, e os períodos daqueles impostos, dos anos de 2003 a 2007, estes não gozam do referido privilégio mobiliário».
Contra tal se insurge a Fazenda Pública, defendendo que os mencionados créditos, por serem impostos indirectos, gozam de privilégio creditório mobiliário geral sem qualquer limitação temporal.
No que lhe assiste inteira razão, pois, como repetidamente tem sido explicado pela jurisprudência e pela doutrina, o limite temporal estabelecido no artº 736º, n.º 1, 1ª parte, do Código Civil não se aplica aos impostos indirectos, tal como o IVA – cfr. entre outros, os acórdãos do STA de 30/10/2002, no recurso n.º 1291/02, e de 18/05/2011, no recurso n.º 131/11; na doutrina, PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, inCódigo Civil Anotado, Vol. I, 4.ª ed., pág. 757 – nota 1 ao artigo 736.º do Código Civil, CASALTA NABAIS, in “Direito Fiscal”, 4ª ed. pág. 48 e MIGUEL LUCAS PIRES, inDos privilégios creditórios: Regime jurídico e sua influência no concurso de credores”, pág. 310.
Com efeito, a parte inicial do n.º 1 do artigo 736.º do Código Civil estabelece que o Estado e as autarquias locais têm privilégio mobiliário geral para garantia dos créditos por impostos indirectos (...), beneficiando, pois, de tal privilégio sem limitações quanto aos anos de cobrança, ao contrário do que sucede com os impostos directos, os quais, conforme resulta da segunda parte do mesmo preceito legal, gozam de privilégio apenas se inscritos para cobrança no ano corrente na data da penhora, ou acto equivalente, e nos dois anos anteriores». E, como refere CARDOSO DA COSTA (In “Curso de Direito Fiscal”, Almedina, 1972, pág. 35-36 e nota 1.), «o teor do art. 736º, nº 1, e os trabalhos preparatórios mostram que o objectivo da lei é o de limitar a duração do privilégio no caso dos impostos cuja incidência se renova anualmente – os impostos periódicos. Pretendeu-se evitar que o privilégio mobiliário geral assumisse proporções excessivas, com prejuízo dos demais credores, no caso dos impostos cujas colectas se vão acumulando sucessivamente».
Deste modo, e contrariamente ao que foi considerado na sentença, o artigo 736º do Cód.Civil não faz nenhuma limitação no tempo no que toca aos impostos indirectos, como é o caso do IVA, já que à luz do critério de distinção entre impostos indirectos e impostos directos que está subjacente na norma – e que é o critério do tipo de relação jurídica base do imposto, ou seja, na configuração instantânea ou duradoura do elemento temporal do facto tributário – o IVA constitui, inequivocamente, um imposto indirecto, de obrigação única, que pretende tributar cada acto de consumo.
Pelo que se torna inquestionável o invocado erro de julgamento, devendo os créditos de IVA reclamados considerar-se, à luz da norma contida no art.º 736º do Código Civil, como legalmente privilegiados sem qualquer limitação temporal.

Tal não significa, porém, que se possa passar, de imediato, ao reconhecimento desse privilégio creditório para todas as dívidas de IVA reclamadas e à sua graduação como tal, pois o facto de o limite temporal estabelecido no n.º 1 do artº 736º do C.Civil não se aplicar aos créditos de IVA não implica que os concretos créditos reclamados disponham do invocado privilégio, isto é, que reúnam todas as condições para que lhes seja reconhecido pelo julgador o privilégio mobiliário invocado pela Reclamante e que se possa passar, de forma automática, à sua graduação como tal.
Com efeito, a graduação dos créditos reclamados pressupõe que nada mais obste, legalmente, ao reconhecimento do privilégio invocado, o que passa, inevitavelmente, por examinar se se trata de dívidas contraídas pelo executado titular do bem penhorado – o B…… - ou de dívidas que, embora contraídas pelo outro executado na mesma execução (a sociedade devedora originária) já reverteram contra aquele responsável subsidiário por força de despacho de reversão da execução fiscal.
Efectivamente, sendo o privilégio creditório uma faculdade que a lei, em atenção à causa do crédito, concede a certos credores, independentemente do registo, de serem pagos com preferência a outros, e que os privilégios mobiliários gerais abrangem o valor de todos os bens móveis existentes no património do devedor à data da penhora ou acto equivalente, torna-se inquestionável que os créditos reclamados de IVA só fruem de privilégio mobiliário sobre o bem móvel penhorado – que pertence ao património do executado B……. – se for este o responsável pelo seu pagamento, se for ele o devedor desse IVA. Caso essas dívidas tenham sido constituídas pela sociedade de que este era gerente e não tenha havido acto de reversão para responsabilizá-lo pelo seu pagamento, o privilégio mobiliário de que usufrui o credor (Estado) incide apenas sobre os móveis existentes no património da sociedade devedora, e não também sobre o património do seu gerente.
E não basta ao Reclamante invocar um privilégio creditório para que o julgador aceite, de forma automática e na ausência de impugnação do crédito, a presença jurídica do privilégio, cumprindo-lhe, antes, examinar se se verificam todos os pressupostos para esse reconhecimento legal à luz das normas jurídicas vigentes e à luz dos contornos factuais do caso concreto, de forma a proceder à graduação dos créditos (exequendos e reclamados) no lugar que legalmente lhes compete. O que, aliás, aconteceu no caso vertente, onde o juiz se recusou a reconhecer o invocado privilégio aos créditos reclamados pela Fazenda Pública, pese embora a inexistência de qualquer contestação a essa reclamação.
No caso vertente, o Serviço de Finanças de Oliveira de Azeméis deu cumprimento ao disposto no art.º 241.º do CPPT, instruindo os autos com informação sobre dezenas de processos de execução fiscal pendentes naquele Serviço para pagamento de dívidas de IRC e IVA, com identificação das respectivas certidões de dívidas, indicando, designadamente, a execução fiscal aqui em causa (n.º 0132200801045288), mas não procedeu à identificação de quem é o executado em todos esses processos executivos, se eles foram instaurados contra o referido B……. ou se, apesar de instaurados contra a sociedade A…….., LDA, já reverterem contra ele, como parece ter acontecido apenas na execução fiscal aqui em causa. Aliás, o facto de estarem também certificadas dívidas de IRC leva mesmo a supor que tais processos têm como devedora originária a referida sociedade.
Na verdade, apenas na certificação desta execução n.º 0132200801045288 se adverte que ela diz respeito ao crédito exequendo e que se encontra na “Fase: F 695: Reversão (c/Despacho)”, sendo que relativamente a todos os outros processos executivos se refere somente que se encontram na “Fase: F 600 – Pagamento coercivo insuficiente”, sem indicação do executado e/ou de acto de reversão.
Apesar dessas deficiências, a Fazenda Pública reclamou os créditos em cobrança nos indicados processos de execução fiscal nºs 0132200701023918, 0132200701007734, 0132200701008277, 0132200701010441, 0132200701024175, 0132200701025236, 0132200701033204, 0132200701037625, 0132200801002759, 0132200801003704, todos respeitantes a IVA, sem esclarecer se o B…….. é neles executado.
E, perante a decisão tomada pelo Mmº Juiz do Tribunal “a quo”, de não reconhecer o privilégio mobiliário geral face ao limite temporal que, erradamente, concluiu existir para o IVA, acabou por não ser apurada essa factualidade indispensável para aferir da existência, no caso concreto, do invocado privilégio, e que o julgador tinha o dever de clarificar no exercício do seu poder geral de controlo e dos poderes de direcção do processo, previstos nos artigos 809º e 265º, n.º 2, do CPC, aplicáveis ex vi dos artigos 2.º e 246º do CPPT, de modo a proceder à graduação dos créditos exequendos e reclamados no lugar que legalmente lhes compete.
Neste contexto, e dado que o julgamento da questão de saber se, no caso concreto, os créditos de IVA reclamados gozam de privilégio para serem pagos através do produto da venda do referido bem móvel, pressupõe uma realidade de facto que não foi clarificada nem se encontra pré-estabelecida na sentença, e que este Supremo Tribunal, com poderes de cognição limitados a matéria de direito (Tal como resulta da normatividade inserta no ETAF, aprovado pela Lei nº 107-D/2003, de 31 de Dezembro, a competência do Supremo Tribunal Administrativo para apreciação dos recursos jurisdicionais interpostos de decisões dos Tribunais Tributários restringe-se, exclusivamente, a matéria de direito,),carece de poderes de cognição em sede de facto, não tendo poderes cognitivos para clarificar e fixar esses elementos, impõe-se a baixa dos autos ao Tribunal recorrido, de modo a obter-se matéria de facto suficiente à apreciação da questão e subsequente graduação dos créditos de harmonia com o quadro jurídico cujos contornos se deixaram aqui definidos.

4. Termos em que acordam, em conferência, os juízes da Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo, em, concedendo provimento ao recurso, revogar a sentença impugnada, para que seja proferida outra que, ampliada a matéria de facto nos termos indicados, aplique o direito que no presente acórdão se apontou.
Sem custas.

Lisboa, 24 de Outubro de 2012. - Dulce Neto – (relatora por vencimento) - Isabel Marques da Silva - Lino Ribeiro. (Com voto de vencido).

Voto de Vencido

A única questão de direito que está sub judice é a de saber se os créditos reclamados, por serem impostos indirectos, gozam de privilégio creditório mobiliário geral, nos termos do artigo 736° do Código Civil, sem qualquer limitação temporal.
O acórdão responde a essa questão, no sentido de que nesses impostos, como é o caso do IVA, o artigo 736° não faz nenhuma limitação no tempo, dado que não se verifica, em princípio, a sua renovação, pelo que o imposto beneficia do privilégio até que não seja atingido pela prescrição.
Concordamos inteiramente com esta solução.
Todavia, o acórdão vai mais longe do que está sub judice quando questiona a existência dos créditos reclamado pela recorrente, remetendo o processo à primeira instância para decidir essa questão.
Em nossa opinião, não é aceitável que o Supremo Tribunal agite no processo esta questão, que é nova, pelos seguintes motivos.
Em primeiro lugar, nesta espécie de recurso, o tribunal não pode conhecer senão de questões de direito, estando as questões de facto subtraídas ao seu exame (al. b) do art. 26° do ETAF). Ora, para chegar à conclusão que os créditos reclamados contra o executado podem não existir, o acórdão questiona os factos alegados e os documentos apresentados pela reclamante, invadindo o campo da questão de facto. Na verdade, a reclamante alegou que tem créditos de imposto sobre o executado, juntando documentos relativos a dez execuções para cobrança coerciva de impostos, e o acórdão, sem que as partes e a sentença tenham posto em dúvida tal afirmação, procede a uma apreciação de tais factos, apontando “deficiências” à reclamação de créditos impeditivas da aferição em concreto da existência do crédito e impõe a realização de mais diligências. Medindo-se a competência do Supremo «exclusivamente» pela questão de direito, temos dúvidas que o acórdão se possa ocupar de uma questão de facto e de uma questão probatória, ainda que seja apenas para censurar o tribunal a quo pelo facto de não ter usado os seus poderes de direcção e controlo no apuramento de factos relativos a uma questão que não faz parte do âmbito do objecto do recurso.
Por outro lado, o que a decisão impugnada não aceitou foi que os créditos reclamados estivessem assegurados com a garantia do privilégio geral, pressupondo implicitamente que os créditos sobre o executado existem. Com efeito, só se pode a averiguar se o crédito está coberto por garantias reais quando se admite que ele existe. De certo modo, até parece contraditório que na decisão do caso concreto se diga que o reclamante tem razão quanto à existência da garantia e depois se mande averiguar se o crédito existe enquanto tal. Para a recorrente, a questão da existência dos créditos era assunto que arrumado pela sentença e por isso vê-se confrontada com um solução jurídica que, nesse capítulo, é mais desfavorável que a constante da decisão impugnada. Do ponto de vista da recorrente, há uma espécie de reformatio in pejus, em que se modifica a sentença para pior, para além do pedido e, por consequência, contrariando o princípio dispositivo num dos seus mais frisantes aspectos: ne eta judex ultra petita. Ora, não é lógico que o resultado do recurso possa contrariar o interesse que lhe deu origem.
Por fim, mesmo que se admita o contrôle da decisão recorrida em aspectos incluídos na «questão-de-facto», ainda assim no caso concreto não se pode deixar de reconhecer os créditos reclamados. A recorrente reclamou créditos fiscais alegando que o executado é o respectivo devedor e que tais créditos estão em cobrança coerciva em vários processos de execução, juntando documentos que atestam a existência desses processos. O executado foi notificado para impugnar tais créditos e não os impugnou. Se não era o devedor das quantias exequendas, tinha o ónus de contestar que não foi citado para as execuções ou que foi citado, mas que as impugnou as liquidações exequendas. Quer a alegação da reclamante a imputar as dívidas fiscais ao executado, quer os factos exarados nos documentos que acompanham a reclamação, relativos à pendência dos processos executivos, são factos que não foram contestados pelo executado. E se não houve impugnação, é indiferente saber se são dívidas próprias ou alheias, porque os n°s 2 e 4 do artigo 868° do CPC consideram existentes e reconhecidos os créditos não impugnados: «se nenhum dos créditos for impugnado... proferir-se-á logo sentença que conheça da sua existência». Esta confissão presumida é um meio de prova suficiente para provar a existência do crédito sobre o executado, sendo desnecessária procurar outros meios de prova dos factos alegados.

Lisboa, 24 de Outubro de 2012.
Lino Ribeiro.