Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:01512/14.4BEPRT
Data do Acordão:05/04/2023
Tribunal:1 SECÇÃO
Relator:TERESA DE SOUSA
Descritores:APRECIAÇÃO PRELIMINAR
RESPONSABILIDADE CIVIL EXTRACONTRATUAL
ACIDENTE DE VIAÇÃO
PROPRIETÁRIO
VEÍCULO
Sumário:Não é de admitir revista se a questão objecto desta, respeitante à prova da propriedade de um veículo em acidente de viação, determinante do direito de ser ressarcido pelos estragos por aquele sofridos, terá sido decidida pelo acórdão recorrido com acerto, estando juridicamente fundamentada através de um discurso consistente e plausível, pelo que não se justifica a reapreciação por este STA, com vista a uma melhor aplicação do direito.
Nº Convencional:JSTA000P30963
Nº do Documento:SA12023050401512/14
Data de Entrada:03/28/2023
Recorrente:AA
Recorrido 1:A...,
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: Formação de Apreciação Preliminar

Acordam no Supremo Tribunal Administrativo

1. Relatório
AA, vem interpor recurso de revista, nos termos do art. 150º, nº 1 do CPTA, do acórdão do TCA Norte, de 20.12.2022, que concedeu provimento ao recurso jurisdicional interposto pela Ré A..., SA, [A...] revogando a sentença proferida na acção que intentou no TAF do Porto contra esta Ré e o Município de Vila Nova de Gaia com vista a efectivar a responsabilidade civil extracontratual, pedindo a condenação dos réus a indemnizá-la, a título de danos patrimoniais e não patrimoniais, decorrentes de um acidente de viação.
A Autora/Recorrente fundamenta a admissibilidade da revista na relevância jurídica e social e na necessidade de uma melhor aplicação do direito.

A Recorrida defende, além do mais, que a revista não deve ser admitida.

2. Os Factos
Os factos dados como provados são os constantes do acórdão recorrido para onde se remete.

3. O Direito
O art. 150º, nº 1 do CPTA prevê que das decisões proferidas em 2ª instância pelo Tribunal Central Administrativo possa haver, excepcionalmente, revista para o Supremo Tribunal Administrativo “quando esteja em causa a apreciação de uma questão que, pela sua relevância jurídica ou social, se revista de uma importância fundamental” ou “quando a admissão do recurso seja claramente necessária para uma melhor aplicação do direito”.
Como resulta do próprio texto legal, e a jurisprudência deste STA tem repetidamente sublinhado, trata-se de um recurso excepcional, como, aliás, o legislador sublinhou na Exposição de Motivos das Propostas de Lei nºs 92/VIII e 93/VIII, considerando o preceito como uma “válvula de segurança do sistema”, que só deve ter lugar, naqueles precisos termos.

A Autora/Recorrente demandou os Réus na acção administrativa, por responsabilidade civil extracontratual emergente de acidente de viação, pedindo a condenação daqueles a pagar-lhe a quantia de €20.013,76, acrescida de juros de mora, contados desde a citação até integral pagamento.

O TAF do Porto por sentença de 31.07.2019 julgou a acção parcialmente procedente quanto à Ré A..., condenando-a no pagamento à A. da quantia de €4.513,76, a título de danos patrimoniais e na quantia de €1.000,00, a título de danos não patrimoniais, acrescidas de juros de mora, à taxa de 4%, devidos a partir trânsito em julgado daquela sentença e até efectivo e integral pagamento. Mais julgou a acção improcedente quanto ao Réu Município.
A Ré A... apelou para o TCA Norte alegando, além do mais, que a decisão recorrida viola o disposto nos arts. 3º e 7º da Lei nº 67/2007, de 31/12, bem como o art. 1305º do Código Civil (CC), porquanto os pressupostos para a responsabilidade civil da Recorrente só se encontrariam preenchidos se a Recorrida tivesse demonstrado ser proprietária do veículo sinistrado - o que só poderia fazer através da junção do documento único automóvel -, pelo que não tem direito a ser ressarcida pelos danos decorrentes do acidente de viação.
O acórdão recorrido considerou assistir razão à Recorrente. Teve em conta o previsto no art. 483º, nº 1 do CC, tendo referido que, “(…) em matéria de responsabilidade civil extracontratual, está consagrado o princípio de que quem tem direito à indemnização é o titular do direito violado ou do interesse imediatamente lesado com a violação da disposição legal, não o terceiro que só reflexa, ou indirectamente, seja prejudicado (cfr. Almeida Costa, Direito das Obrigações, 10.ª edição, 607).
Ora, o direito que teria sido violado com os estragos materiais causados no veículo é o direito de propriedade sobre o veículo. Foi na esfera jurídica do proprietário (a) do veículo que se produziram tais danos.
Desconhecemos, contudo, que a Autora fosse ou seja a titular desse direito de propriedade sobre a viatura. A matéria de facto não o diz. Para tal terá contribuído a circunstância de a Autora, apesar de ter alegado ser proprietária do veículo, não ter juntado documento comprovativo.
E era à Autora, nos termos do n.º 1 do artigo 342.º do CC, que competia provar o facto constitutivo do direito que invoca, no caso o direito de propriedade sobre o veículo.
Não o fez.
Não sabemos, portanto, se foi na esfera jurídica desta que se produziram tais danos materiais. (…)
Isto porque o prejuízo sofrido com a sua reparação apenas constitui dano indemnizável por se tratar de uma ofensa ao direito de propriedade e às faculdades que daí decorrem”. Citando o art. 1305º do CC concluiu que o argumento da Autora, em sede de contra-alegações de recurso, “no sentido de se ter provado (embora a título incidental), através da expressão “veículo da Autora” ínsita num dos pontos do probatório, que esta é proprietária do mesmo, manifestamente não colhe. Tal formulação é desprovida de valor jurídico, pois não exprime qualquer título jurídico (nem que espécie de título) da Autora sobre o veículo.
O mesmo se verificando quanto aos danos pela privação do uso, já que a matéria de facto aponta para que a Autora utilizasse o veículo, mas não se sabe a que título: se como proprietária (ou titular de outro direito real), se como titular de uma relação jurídica creditícia que mantinha como o proprietário do mesmo; ou se não tem mesmo qualquer título. O que significa que a Autora não provou ser titular de qualquer direito que tenha sido ofendido. Seja o direito de propriedade ou qualquer outro direito de uso ou utilização do veículo.
Termos em que o acórdão concedeu provimento ao recurso, revogou a sentença recorrida e julgou a acção improcedente.

Na sua revista a Recorrente alega que o acórdão recorrido incorreu em nulidade por não especificação dos fundamentos de direito – art. 615º, nºs 1, al. b) e 4 do CPC, por não ter indicado princípio, regra ou norma que fundamente que teria que demonstrar ser proprietária do veículo e só o poderia fazer através de prova documental idónea. Mais alega que o ónus da prova da propriedade ficou preenchido ao juntar o “auto de notícia” do sinistro do qual consta que a Autora declarou ser proprietária do veículo, tendo aquele ónus ficado preenchido pelas “deduções feitas pela Juiz a quo.
Diremos, desde já, que a argumentação da Recorrente não convence.
Desde logo, quanto à nulidade de decisão arguida verifica-se, mesmo no juízo sumário que a esta Formação cabe realizar, que a mesma não ocorre, não se justificando admitir a revista para a apreciar.
Com efeito, o acórdão recorrido indicou normas jurídicas que determinavam a necessidade de a Recorrente fazer prova do direito que invoca – o direito de propriedade do veículo -, do qual emergiria o direito a ser ressarcida pelos estragos por ele sofridos. Tais preceitos são os respeitantes ao ónus da prova – art. 342º do CC, ao conceito de proprietário – art. 1305º do CC, conjugado este com o disposto no art. 483º, nº 1 do CC, do qual decorre que, em matéria de responsabilidade civil extracontratual, se consagrou que quem tem direito à indemnização é o titular do direito violado ou do interesse imediatamente lesado com a violação da disposição legal, todos eles enunciados no acórdão sub judice.
Aliás, o acórdão foi mais longe, admitindo que o direito que a Autora se arroga, de ser indemnizada pela privação do uso do veículo e os estragos resultantes do sinistro, poderia decorrer tanto do direito de propriedade, como de outro direito real, ou como titular de uma relação creditícia que mantivesse com o proprietário do mesmo. O que acontece é que a Autora não provou ser titular de qualquer direito que tenha sido ofendido, conforme decorre do probatório.
Assim, a questão objecto da presente revista terá sido decidida pelo acórdão recorrido com acerto, estando juridicamente fundamentada através de um discurso consistente e plausível, pelo que não se justifica a reapreciação por este STA, com vista a uma melhor aplicação do direito.
Igualmente não se vislumbrando que se esteja perante questão com especial relevância jurídica ou social que demande a intervenção deste Supremo Tribunal, pelo que, perante a aparente exactidão do acórdão recorrido não deve ser admitido o recurso, por não se justificar postergar a regra da excepcionalidade da revista.

4. Decisão
Pelo exposto, acordam em não admitir a revista.
Custas pela Recorrente, sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficia.

Lisboa, 4 de Maio de 2023. – Teresa de Sousa (relatora) – José Veloso – Fonseca da Paz.