Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:01013/14
Data do Acordão:10/09/2014
Tribunal:1 SECÇÃO
Relator:VÍTOR GOMES
Descritores:RECURSO DE REVISTA EXCEPCIONAL
NÃO ADMISSÃO DO RECURSO
Sumário:Não é de admitir o recurso de revista para apreciar questões a que o acórdão recorrido deu resposta que não aparenta erro manifesto e que não assumem, nas circunstâncias do processo, relevância jurídica ou social, não transcendendo o caso sujeito.
Nº Convencional:JSTA000P18055
Nº do Documento:SA12014100901013
Data de Entrada:09/22/2014
Recorrente:A..., SA E B..., SA
Recorrido 1:C..., SA E D..., LDA E OUTROS
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: Formação de Apreciação Preliminar


Acordam na Secção do Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo


1. Por acórdão de 15/7/2014, o Tribunal Central Administrativo Norte negou provimento a recurso interposto por A………… SA e B………. SA da sentença do TAF de Aveiro que, em acção de contencioso pré-contratual, anulou a adjudicação de um contrato de empreitada à ora recorrente e condenou a B………. a adjudicá-lo às recorridas C………………, SA e D…………… Ldª.

A adjudicatária A……………. SA interpôs recurso deste acórdão, com vista à apreciação das seguintes questões, que considera de importância jurídica fundamental para efeitos do n.º 1 do art.º 150.º do CPTA:
- Se o efeito preclusivo decorrente do disposto do n.º 2 do art.º 87.º do CPTA impede que o tribunal de recurso conheça da questão da falta de identificação dos contra-interessados, apenas suscitada na fase de recurso;
- Se, num concurso público, (i) a adjudicação pode ser invalidada com fundamento em violação dos princípios da concorrência, da boa fé e da transparência por parte de um dos concorrentes (ii) e se o júri e a entidade adjudicante violam o princípio do inquisitório por não procederem a diligências para averiguar a legitimidade da utilização de determinadas peças escritas por parte do adjudicatário.

A adjudicante B…………. interpôs igualmente recurso com vista, no essencial, à apreciação desta última questão, designadamente, se ao júri do concurso cabe averiguar a existência de plágio numa das propostas, denunciado por uma das empresas concorrentes, e rejeitá-la com esse fundamento.

2. As recorridas opõem-se à admissão da revista, argumentando com a reduzida probabilidade de repetição da controvérsia pela singularidade do caso e a ilegitimidade da B…………….. por apenas impugnar parte dos fundamentos de ilegalidade do acto, pelo que a decisão sempre se manterá pelos fundamentos de invalidade não impugnados.
Se o recurso for admitido, as recorridas pretendem a ampliação do seu âmbito à apreciação das ilegalidades que esgrimiram quanto à lista de preços unitários, ao critério da valia técnica da proposta e à caução, que foram julgados improcedentes pelo tribunal de 1ª instância.

3. As decisões proferidas pelos tribunais centrais administrativos em segundo grau de jurisdição não são, em regra, susceptíveis de recurso ordinário. Apenas consentem recurso nos termos do n.º 1 do art.º 150.º do CPTA, preceito que dispõe que das decisões proferidas em segunda instância pelo Tribunal Central Administrativo pode haver, a título excepcional, recurso de revista para o Supremo Tribunal Administrativo “quando esteja em causa a apreciação de uma questão que, pela sua relevância jurídica ou social, se revista de importância fundamental” ou “quando a admissão do recurso seja claramente necessária para uma melhor aplicação do direito”.
Como se refere na exposição de motivos do CPTA "num novo quadro de distribuição de competências em que o TCA passa a funcionar como instância normal de recurso de apelação, afigura-se útil que, em matérias de maior importância, o Supremo Tribunal Administrativo possa ter uma intervenção que, mais do que decidir directamente um grande número de casos, possa servir para orientar os tribunais inferiores, definindo o sentido que deve presidir à respectiva jurisprudência em questões que, independentemente de alçada, considere mais importantes. Não se pretende generalizar o recurso de revista, com o óbvio inconveniente de dar causa a uma acrescida morosidade na resolução dos litígios. Ao Supremo Tribunal Administrativo caberá dosear a sua intervenção, de forma a permitir que esta via funcione como válvula de segurança do sistema".
Para o efeito, constitui questão jurídica de importância fundamental aquela – que tanto pode incidir sobre direito substantivo como adjectivo – que apresente especial complexidade, seja porque a sua solução envolva a aplicação e concatenação de diversos regimes legais e institutos jurídicos, seja porque o seu tratamento tenha suscitado dúvidas sérias, ao nível da jurisprudência, ou da doutrina. E, tem-se considerado de relevância social fundamental questão que apresente contornos indiciadores de que a solução pode corresponder a um paradigma ou contribuir para a elaboração de um padrão de apreciação de casos similares, ou que tenha particular repercussão na comunidade.
A admissão para uma melhor aplicação do direito justifica-se quando questões relevantes sejam tratadas pelas instâncias de forma pouco consistente ou contraditória, com recurso a interpretações insólitas, ou por aplicação de critérios que aparentem erro ostensivo, de tal modo que seja manifesto que a intervenção do órgão de cúpula da justiça administrativa é reclamada para dissipar dúvidas acerca da determinação, interpretação ou aplicação do quadro legal que regula certa situação.

4. No presente processo, a primeira questão para a qual se requer a admissão da revista consiste em saber se o art.º 87.º, n.º 2, do CPTA, impede o tribunal superior, em todo e qualquer caso, de conhecer de questões que obstem ao conhecimento do objecto do processo não apreciadas no despacho saneador.
Efectivamente, a questão da determinação da extensão da preclusão constante do n.º 2 do art.º 87.º do CPTA poderá constituir, em si mesmo, uma questão juridicamente relevante para o contencioso administrativo, atendendo à complexidade das suas consequências e possibilidade de repetição, tendo justificado a admissão de recurso de revista no acórdão de 22/5/2014, Proc. 0267/14.
Todavia, no caso presente, a relevância que à questão poderia ser atribuída surge notoriamente enfraquecida pela circunstância de estarmos perante a impugnação da decisão de adjudicação num procedimento pré-contratual em que é impugnante o concorrente graduado em 2º lugar e de a omissão de indicação dos contra-interessados dizer respeito a concorrentes com ordenação posterior à dos concorrentes litigantes, cuja situação parece indiferente ao resultado da acção, visto que não têm interesse juridicamente relevante na manutenção do acto impugnado que os não beneficia, nem o provimento do processo impugnatório os pode directamente prejudicar.
Assim, a questão da determinação da extensão do efeito preclusivo decorrente do n.º 2 do art.º 87.º do CPTA, a que o acórdão recorrido deu uma resposta que não aparenta erro manifesto, não assume, nas circunstâncias do presente processo, relevância jurídica ou social, pelo que não se admite o recurso para a sua discussão.

5. Em resumo, na base do decidido pelas instâncias quanto ao mérito da impugnação da adjudicação está o facto de a adjudicatária (ora recorrente) ter apresentado no concurso em causa uma memória descritiva que, em aspectos fundamentais dos trabalhos a executar, é substancialmente igual aos da proposta de um consórcio concorrente. Na sua proposta, a adjudicatária serviu-se, sem autorização, de elementos que uma das empresas que integra esse outro consórcio concorrente lhe fornecera no âmbito de outra empreitada semelhante para a mesma entidade (B………), na expectativa de executar os trabalhos correspondentes como subempreiteira (cfr. als. L a R da matéria de facto assente).
Questionam as recorrentes se, num concurso público, a actuação imputável ao concorrente adjudicatário pode acarretar a invalidade da adjudicação por violação dos princípios da boa fé, da concorrência e da transparência e se sobre o Júri e a entidade adjudicante impendia o dever de averiguar a utilização indevida da “memória descritiva” alheia e excluir a concorrente com esse fundamento.
Trata-se de questões cuja análise está, em grande medida, dependente da ponderação de uma situação de facto com reduzida probabilidade de repetição e, portanto, para que se não vislumbra significativa probabilidade de servir de paradigma da solução de casos futuros. Assim, apesar de abstractamente colocarem problemas de alguma complexidade e de eventual interesse doutrinário, não são de molde a justificar a intervenção excepcional do órgão de cúpula da jurisdição porque a sua aptidão ou interesse prático-jurídico para a fixação de soluções que sirva de orientação para os tribunais, para a Administração e para os particulares é reduzida, não transcendendo o caso sujeito.

6. A primeira recorrente afirma, sem esforço sério de demonstração, que a aplicação e interpretação do n.º 1 do art.º 150.º do CPTA no sentido de que as questões suscitadas para as quais se requer a admissão da revista excepcional não cumprem os pressupostos nele previstos padecerá de inconstitucionalidade por violação do disposto no art.º 20.º da Constituição e, assim, do direito à tutela jurisdicional efectiva na dimensão do direito ao recurso.
Esta arguição de inconstitucionalidade, além de infundamentada, é manifestamente improcedente.
Com efeito, não se retira do n.º 1 do art.º 20.º da Constituição ou de qualquer outro preceito ou princípio constitucional a garantia de terceiro grau de jurisdição, que é, afinal, aquilo que a recorrente pretende. Como o Tribunal Constitucional tem repetido em jurisprudência constante, em matéria de conformação dos recursos jurisdicionais, designadamente quanto ao duplo grau de recurso ou terceiro grau de jurisdição, o legislador goza de larga margem de discricionariedade. Da consagração constitucional da existência dos tribunais supremos e da organização hierárquica dos tribunais pode retirar-se que o legislador não pode excluir totalmente os recursos para o órgão de cúpula de cada uma das jurisdições. Mas em nenhum lugar do texto constitucional ou dos princípios nele ínsitos se vincula o legislador a consagrar dois graus de recurso, nomeadamente em matérias de contencioso administrativo que é o que agora importa.
É certo, como se disse no acórdão n.º 197/2009, do Tribunal Constitucional:
“que do facto de não ser constitucionalmente imposto que o legislador ordinário consagre um terceiro grau de jurisdição no contencioso administrativo, não se segue que o mesmo legislador, se decidir prever esse terceiro grau em determinadas situações, tenha irrestrita liberdade na regulação desse recurso. O Tribunal Constitucional sempre tem entendido que se o legislador, apesar de a tal não estar constitucionalmente obrigado, prevê, em certas situações, um duplo ou triplo grau de jurisdição, na respectiva regulamentação não lhe é consentido adoptar soluções desrazoáveis, desproporcionadas ou discriminatórias, devendo considerar-se vinculado ao respeito do direito a um processo equitativo e aos princípios da igualdade e da proporcionalidade. Como se referiu no Acórdão n.º 628/2005, a garantia constitucional do direito ao recurso não se esgota na dimensão que impõe a previsão pelo legislador ordinário de um grau de recurso, pois “tal garantia, conjugada com outros parâmetros constitucionais, pressupõe, igualmente, que na sua regulação o legislador não adopte soluções arbitrárias e desproporcionadas, limitativas das possibilidades de recorrer – mesmo quando se trate de recursos apenas legalmente previstos e não constitucionalmente obrigatórios (assim, vejam-se os Acórdãos do Tribunal Constitucional n.ºs 1229/96 e 462/2003 (…)”.
Acontece que, no caso, nenhuma destas violações vem alegada nem se descortina a sua existência. Na verdade, a decisão de admissão, ou não, do recurso excepcional de revista: (i) tem de ser adequadamente fundamentada; (ii) está sujeita à verificação de requisitos legalmente predeterminados, que, apesar de definidos através de conceitos indeterminados, não se deve qualificar como puramente discricionária ou arbitrária; e (iii) está confiada a uma formação colegial dos juízes mais experientes do STA (tendo a Lei n.º 4-A/2003, de 19 de Fevereiro, alterado a redacção originária do n.º 5 do artigo 150.º do CPTA no sentido de a decisão de admissão do recurso excepcional de revista deixar de competir à “formação de três juízes à qual caiba o julgamento da revista” para passar a competir a uma “formação constituída por três juízes de entre os mais antigos da Secção de Contencioso Administrativo”, alteração aplaudida pela doutrina, que apontava à opção primitiva três defeitos: ser claro o risco de desincentivo à admissão por parte de quem teria o trabalho suplementar de julgar; dificultar-se a estabilidade na tarefa de densificação jurisprudencial dos pressupostos de admissibilidade; e haver contradição, desprovida de justificação material, com a solução acolhida no n.º 3 do artigo 93.º do CPTA para a determinação preliminar dos pressupostos do reenvio prejudicial – cf. Sérvulo Correia, obra citada, p. 697, nota 413)”.

É este o entendimento que se acompanha.


7. Decisão
Pelo exposto, decide-se não admitir os recursos e condenar os recorrentes nas custas.

Lisboa, 9 de Outubro de 2014. – Vítor Gomes (relator) – Alberto Augusto Oliveira – São Pedro.