Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0312/11.8BEVIS 360/15
Data do Acordão:07/02/2020
Tribunal:1 SECÇÃO
Relator:SUZANA TAVARES DA SILVA
Descritores:PROCESSO DISCIPLINAR
PROVA
Sumário:I - A lei reconhece ao arguido em procedimento disciplinar o direito a requerer meios de prova, mas não o direito a exigir a realização de meios de prova, o que significa que uma vez requerida por si a realização de um meio de prova, cabe ao instrutor avaliar da respectiva pertinência e necessidade.
II - Na fase de controlo judicial o Tribunal pode e deve fiscalizar a existência de um eventual vício decorrente do erro nos pressupostos de facto por insuficiência ou desadequação da prova produzida para alicerçar o juízo de imputação subjectiva da factualidade; mas este é um juízo autónomo do Tribunal, que apenas “reabre” a via para a produção de nova prova quando considere que a que foi produzida é insuficiente ou não suficientemente sólida para “resistir” aos questionamentos ou aos novos elementos que poderiam decorrer das diligências requeridas pelo arguido.
Nº Convencional:JSTA000P26179
Nº do Documento:SA1202007020312/11
Data de Entrada:06/24/2015
Recorrente:A................
Recorrido 1:MUNICÍPIO DE SANTA COMBA DÃO
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: Acordam na secção do Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo:


I – Relatório

1 – A……………… interpôs recurso de revista para este Supremo Tribunal Administrativo do acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte que, em 20 de Novembro de 2014, confirmou a sentença proferida no TAF de Viseu, a qual julgou totalmente improcedente a acção administrativa especial por si intentada contra o Município de Santa Comba Dão para impugnação do acto (deliberação de 8 de Abril de 2011) que lhe aplicara a pena disciplinar de demissão.

2 – Por acórdão de 28 de Maio de 2015, foi a presente revista admitida relativamente às quatro questões suscitadas pela Autora, que aí foram identificadas do seguinte modo:
«[…]

- Pode o tribunal não admitir a prova de factos que alegados pelo autor, para fundamentar o vício de violação de lei e julgar improcedente o erro nos pressupostos de facto alegado? [sic]
- Pode o tribunal recusar uma diligência de prova (no caso auditoria à contabilidade) requerida pelo arguido que poderia comprovar ou infirmar a factualidade que lhe é imputada com o argumento da morosidade ou onerosidade, ou que condicione a sua realização à obrigação do arguido suportar os custos?
- Pode considerar-se que o arguido cometeu uma infracção disciplinar (no caso, apropriação de dinheiros públicos) sem se ter dado como provado factos que demonstrem a prática de tal infracção?
- Deve ser aplicado ao caso o estatuto de 1984, por ser mais favorável, por permitir a aplicação da pena de aposentação compulsiva a comportamentos que no estatuo de 2009 apenas permitem aplicar a pena de demissão?
[…]».


3 – A Autora, e aqui Recorrente, apresentou alegações que concluiu da seguinte forma:
«[…]

1.ª O presente recurso de revista vem Interposto do Acórdão proferido pelo Tribunal Central Administrativo Norte em 20 de Novembro de 2014, que julgou totalmente improcedente a acção administrativa especial de impugnação do acto que aplicara a pena disciplinar de demissão à ora recorrente.

2.ª Resulta claramente do acórdão em recurso que o Tribunal a quo não permitiu à recorrente provar os factos que alegara para sustentar o vício de violação de lei por erro nos pressupostos de facto e depois julgou improcedente tal vício com o argumento de que ela não lograra provar que os actos em que se baseara a decisão punitiva estavam errados.

3.ª Entendeu o aresto em recurso que a recorrente não lograra demonstrar que a factualidade apurada em sede disciplinar enfermava de erro, pelo que a pena de demissão revelava-se correcta.

4.ª Salvo o devido respeito, ao não permitir à recorrente provar os factos que alegara para demonstrar o vício assacado ao acto impugnado e depois ao considerar esse vício como improcedente com o argumento de não ter sido demonstrado o erro dos pressupostos factuais da decisão punitiva, o aresto em recurso violou frontalmente o direito à tutela judicial efectiva e os princípios da presunção da inocência e da igualdade das partes, transformando a inocência que se deveria presumir numa culpabilidade certa, que vai ao ponto de dar por certo tudo o que a Administração disse e torna desnecessária qualquer prova em sentido contrário ao que por ela foi decidido o que mais parece ser um entendimento próprio de um tribunal de um Estado Totalitário do que de um Estado que se diz de Direito.

5.ª Em qualquer dos casos, julga-se que o acórdão recorrido suscita quatro questões fundamentais cujo relevo social e jurídico se afigura ser inquestionável no universo do Direito e da justiça administrativa, a saber:

1.ª é compatível com o direito fundamental à tutela judicial efectiva (v. art.º 268.º/4 da Constituição), com o princípio da presunção da inocência (v. art.º 32.º/10 da Constituição) e com o princípio da igualdade das partes (v. art.º 6.º do CPTA) que o Tribunal não permita a uma das partes provar os factos que alegara para fundamentar o vício de violação de lei por erro nos pressupostos e depois julgue improcedente tal vício com o argumento de tais factos não terem sido provados e, portanto, a factualidade dada por provada unilateralmente pela Administração em sede disciplinar não ter sido abalada?

2.ª é compatível com garantia constitucional de audiência e defesa (v. n.º 3 do art.º 269.º da Constituição), com a presunção de inocência (v. art.º 32.º/10 da Constituição) e com o princípio da gratuitidade do procedimento administrativo (v. art.º 11.º do CPA) que o titular do poder disciplinar recuse realizar uma diligência de prova - v.g. uma auditoria à contabilidade – requerida pelo arguido e que poderia comprovar ou infirmar a factualidade que lhe era imputada com o argumento da morosidade ou onerosidade de tal diligência ou que condicione a sua realização à obrigação do arguido suportar os respectivos custos?

3.ª é compatível com o direito fundamental à tutela judicial efectiva, com o princípio da presunção da inocência e com o disposto nos n.ºs 3 e 4 do art.º 607.º do CPC, que o Tribunal considere que o arguido cometeu uma determinada infracção disciplinar in casu apropriação de dinheiros públicos sem ter dado por provado os factos que considerou terem sido praticados pelo arguido ou, ao menos, sem dar por assente um só facto que demonstre a prática de tal infracção?

4.ª o estatuto disciplinar de 1984 é globalmente mais favorável do que o estatuto Disciplinar de 2009 quando prevê a possibilidade de se aplicar a pena de aposentação compulsiva a comportamentos que à face do Estatuto de 2009 só podem ser punidos com pena de demissão, devendo, portanto, as infracções cometidos na vigência daquele estatuto de 1984 serem punidas nos termos do mesmo e não do estatuto de 2009?

Com efeito,

6.ª A primeira questão fundamental saber se a jurisdição administrativa está vinculada, em homenagem ao direito à tutela judicial efectiva e aos princípios da igualdade das partes e da presunção de inocência do arguido, a permitir ao impugnante provar, por qualquer meio de prova lícito, os factos integrantes do vicio de violação de lei por erro nos pressupostos de facto que imputa a um acto administrativo , é uma questão recorrente, que se coloca na maioria das acções especiais de impugnação e seguramente em sede de impugnação de penas disciplinares, pelo que tal questão possui a "vis expansiva" que justifica a admissibilidade do recurso de revista.

Para além disso,

7.ª A intervenção do Supremo Tribunal nesta questão fundamental justifica-se igualmente por haver decisões díspares nessa matéria por parte dos Tribunais integrantes da jurisdição administrativa e por a própria doutrina vir considerando, ao contrário do que se entendeu no aresto em recurso, que se o administrado imputar ao acto impugnado o vício de violação de lei por erro nos pressupostos de facto o Tribunal não pode denegar-lhe a possibilidade de, através de qualquer meio de prova admissível, demonstrar e provar a veracidade dos factos que fundamentam o vício em causo (v. CARLOS CADILHA, A prova em contencioso administrativo, CJA n.º 69.°, pág. 46, COLAÇO ANTUNES, O juiz administrativo, súbdito da prova procedimental, CJA nº 56, págs. 3 e segs., e CARLOS CARVALHO, O juiz administrativo e o controlo jurisdicional da prova procedimental do processo disciplinar, CJA nº 101, pág. 23).

Acresce que,

8.ª A segunda questão fundamental colocada pelo acórdão em recurso possui igualmente a importância jurídica e social e a capacidade expansiva que justificam a intervenção do Supremo Tribunal em sede de revista, uma vez que saber-se se a garantia constitucional de audiência e defesa (v. n.º 3 do art.º 269.° da Constituição) e de presunção de Inocência (v. art.º 32.º/10 da Constituição) permite ou não fazer repercutir sobre o administrado que se presume inocente o encargo de suportar as despesas com os diligências que são aptas a comprovar a sua inocência ou culpabilidade é matéria de extraordinário relevo jurídico e social desde logo por contender com direitos e garantias fundamentais e que, seguramente, se colocará em todos os processos disciplinares onde haja lugar à necessidade de produção de prova.

De igual modo,

9.ª A terceira questão colocada pelo acórdão em recurso justifica a intervenção deste Venerando Supremo Tribunal apenas para uma melhor aplicação do direito, uma vez que, face ao disposto nos n.º s 3 e 4 do art.º 607.º do CPC, tem-se por certo que nenhum Tribunal pode efectuar qualquer qualificação jurídica de um comportamento sem, no mínimo, especificar e dar por provado um só facto que seja subsumível à qualificação jurídica alcançada e o aresto em recurso considerou que a recorrente cometera uma determinada infracção disciplinar sem, contudo, dar por provado um só facto que integre a qualificação jurídica alcançada. o que conduz à nulidade do acórdão.

Por fim,

10.ª A quarta questão colocada no acórdão em recurso reveste importância jurídica suficiente para justificar a Intervenção deste Venerando Supremo Tribunal, estando-se perante matéria de complexidade jurídica assinalável, uma vez que em causa está um problema de sucessão de leis no tempo e, sobretudo, de se saber qual o regime disciplinar que é globalmente mais favorável e que, portanto, será aplicável quando a infracção é cometida na vigência de um estatuto disciplinar e na altura da punição já está em vigor um novo regime disciplinar.

Consequentemente

11.ª Julga-se estarem preenchidos in casu os pressupostos de que o n.º 1 do art.º 150.º do CPTA faz depender a admissibilidade do recurso de revista, devendo este ser admitido e apreciadas e resolvidas as questões de importância fundamental suscitadas pelo acórdão recorrido, tanto mais que ainda recentemente este Venerando Supremo Tribunal considerou que, por princípio, deve admitir-se o recurso de revista dos litígios referentes à aplicação de penas expulsivas, sobretudo quando em causa esteja a utilização ou não utilização de determinados meios de prova (v. Acº de 30/9/2014, Proc. nº 01012/14, relatado pelo Sr° Juiz Conselheiro Vítor Gomes).

12.ª Para além de estarem preenchidos os pressupostos da admissibilidade do recurso de revista, deverá dizer-se que o aresto em recurso incorreu na nulidade prevista na alínea b) do nº 1 do art.° 615.° do CPC, uma vez que considerou que a arguido cometeu uma determinado infracção disciplinar apropriação de dinheiros públicos , sem, contudo, especificar um só facto que comprove essa apropriação, não tendo dado por provado que quantias foram entregues à arguida, quando e por quem foram entregues tais quantias, nem ao menos quando e como é que ela as utilizou em proveito próprio.

De igual modo,

13.ª O aresto em recurso incorreu na nulidade prevista na alínea d) do nº 1 do art.º 615.º do CPC, uma vez que é completamente omisso quando às questões jurídicas suscitadas nas conclusões 12.ª a 15.ª nulidade do procedimento disciplinar por omissão de uma formalidade essencial e nos conclusões 16.ª e 17.ª ilegalidade da aplicação do estatuto disciplinar de 2009 a factos praticados na vigência do estatuto de 1984 das alegações de recurso.

Acresce que,

14.ª Ao formar a sua convicção e ao decidir o mérito do acção apenas com base na prova documental constante do processo disciplinar prova essa que não foi presenciada pelo Tribunal a quo e que não faz prova plena do que quer que seja, não passando de um entre vários meios de prova admissíveise sem sequer permitir à parte que se presume inocente produzir prova sobre os factos que alegara para fundamentar os vícios imputados à deliberação punitiva maxime o vicio de violação de lei por erro nos pressupostos e facto , o aresto em recurso actua como um Tribunal de um Estado totalitário onde só há uma verdade e nem sequer é preciso que a parte contrária possa demonstrar a sua inocência, por já se saber que é culpada e incorre em flagrante violação dos art.ºs 6.º, 87.º e 90.º do CPTA dos quais decorre que, havendo mais do que uma solução plausível para a questão de direito, o Tribunal Administrativo não pode deixar de abrir um período de prova destinado a cada uma das partes provar os factos que alega em defesa da solução que preconiza para a questão de direito , interpretando tais preceitos em sentido materialmente inconstitucional, por violação do direito à tutela judicial efectiva e do princípio da presunção do inocência.

15.ª Refira-se, aliás, que a tese de que ao Tribunal basta a prova documental produzida pela Administração e que nem é necessário permitir à parte contrária provar os factos que sustentam os vícios que imputa ao acto administrativo é uma tese completamente ultrapassada, que continua a ver os Tribunais Administrativos como órgãos de topo da Administração não havendo, portanto, qualquer necessidade de apreciar o que já fora apreciado no seio da Administração nem de permitir a produção de mais prova pelo arguido e não como verdadeiros Tribunais, que devem respeitar a igualdade das partes, de presumir inocente quem é acusado e de lhe permitir provar os factos que alega em defesa da solução de direito que preconiza em juízo.

16.ª A violação de lei processual é igualmente bem notória no segmento em que o Tribunal a quo não especifica como provado qualquer comportamento da recorrente que permita considerar que ela praticou uma infracção e, muito menos, que se apropriou de dinheiros públicos não sendo dado por provado qualquer facto que comprove onde quando e quais as verbas públicas de que se teria apropriado , o que representa uma clara violação das regras processuais consagradas nos n.ºs 3 e 4 do art.º 607.° do CPC.

17.ª Embora o Tribunal a quo não tenha conhecido de tal questão e por isso enferme de nulidade, a verdade é que o procedimento disciplinar enfermava de nulidade insuprível por omissão de uma diligência probatória essencial à descoberta da verdade material a auditoria à contabilidade da tesouraria do Município ―, uma vez que a morosidade ou onerosidade de tal diligência não legitima que a Administração condicione a sua realização à obrigação do [sic] arguido suportar os respectivos custos, na medida que a imposição de tal obrigação representa uma violação do princípio da gratuitidade do procedimento administrativo (v. art.º 11.° do CPA) do princípio constitucional do presunção de inocência (v. art.º 32.º/10 da Constituição) e do direito fundamental de audiência e defesa (v. n.º 3 do art.º 269.° da Constituição).

Por fim

18.ª Apesar de igualmente não ter conhecido da questão do estatuto mais favorável e consequentemente, do vício resultante de se aplicar um estatuto a factos praticados na vigência de um outro estatuto, a verdade é que o estatuto disciplinar de 1984 deve-se considerar globalmente mais favorável do que o estatuto Disciplinar de 2009 quando prevê a possibilidade de se aplicar a pena de aposentação compulsiva a comportamentos que, à face do Estatuto de 2009, só podem ser punidos com pena de demissão, pelo que, ao não se pronunciar sobre tal questão e ao não anular o acto impugnado por aplicar um estatuto menos favorável a factos ocorridos no vigência de um outro estatuto, o aresto em recurso não só é nulo como violou lei substantiva o art.º 4 da Lei n.º 58/2008, de 9 de Setembro.

Nestes termos,
a) Deve ser admitido o recurso de revista por se verificarem os pressupostos do art. 150.º do CPTA
b) Deve ser concedido provimento ao recurso, revogando-se a decisão recorrida, com as legais consequências
Assim será cumprido o Direito e feita JUSTIÇA
[…]».


4 – O Município de Santa Comba Dão contra-alegou, pugnando pela manutenção da decisão recorrida.

5 - O Excelentíssimo Senhor Procurador-Geral Adjunto junto deste Tribunal, notificado nos termos e para os efeitos do artigo 146.º, n.º 1, do CPTA, pronunciou-se no sentido do parcial provimento do recurso.


6 - Colhidos os vistos legais, cabe decidir.


II – Fundamentação

1. De facto
Remete-se para a matéria de facto dada como provada no acórdão recorrido, a qual aqui se dá por integralmente reproduzida, nos termos do artigo 663.º, n.º 6, do CPC.


2. Questão a decidir

Verificar se o acórdão recorrido enferma das nulidades que lhe vêm imputadas.

Responder às quatro questões suscitadas pela Recorrente (v. supra) e que vieram a ser admitidas como objecto da presente revista, o que impõe esclarecer: i) o tipo e âmbito de controlo judicial que pode ser efectuado relativamente à prova produzida no âmbito do procedimento disciplinar; ii) a fiscalização que, igualmente em sede de controlo judicial do procedimento disciplinar, se pode fazer do juízo de imputabilidade da infracção a partir da prova de factos instrumentais; e iii) se e em que medida vale no procedimento disciplinar a regra da aplicação retroactiva da lei sancionatória mais favorável.

Lembramos ainda que a revista vem admitida não apenas por se considerar que estamos ante questões com relevância jurídica ou social fundamental (fundamento que serviu, sobretudo, para a admissão da primeira questão), mas também para uma melhor aplicação do direito, ou seja, admitindo-se que o presente recurso consubstancia uma “válvula de segurança do sistema” e que, por essa razão, esta é também uma oportunidade para sindicar melhor aspectos que foram tratados de forma mais perfunctória no acórdão recorrido.

3. De direito
3.1. Da nulidade por falta de especificação dos fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão
Alega a Recorrente que o acórdão recorrido “considerou que a recorrente cometera a infracção disciplinar de apropriação de dinheiros públicos”, mas que “nem um só facto foi dado por provado que permita concluir que a arguida se apropriou de quaisquer dinheiros públicos”. Porém, não lhe assiste razão pois como se explicou e fundamentou no acórdão recorrido, a propósito, precisamente, da mesma nulidade que a Recorrente imputava já à sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal de Viseu, a prova dos factos que sustentam a aplicação da medida sancionatória constam do procedimento disciplinar e a sua produção é conduzida pelo órgão instrutor, verificada pelo órgão decisor antes da prática do acto que põe termo ao procedimento disciplinar, cabendo depois ao Tribunal, no âmbito da acção administrativa que impugne aquela decisão, “formular um juízo sobre a conformidade com a realidade dos pressupostos de facto que a Administração teve em conta aquando da prolação do acto”. Quer isto dizer que a especificação que a Recorrente pretendia ver produzida na matéria de facto da sentença é afinal a que consta do procedimento administrativo disciplinar e que aí não tem de ser reproduzida.
Questão diferente ― também suscitada no âmbito da presente revista é saber se a prova produzida é adequada e suficiente para ser subsumida na norma que prevê a pena disciplinar aplicada e qual o tipo de controlo ou fiscalização que o Tribunal pode e deve fazer a respeito da prova produzida no procedimento disciplinar. Contudo, um eventual erro de juízo quanto à adequação e suficiência dos meios de prova utilizados ou quanto à avaliação da prova produzida para permitir considerar verificada a previsão normativa da medida sancionatória aplicada consubstancia um erro de julgamento e não uma nulidade da sentença judicial.
Carece, por isso, de fundamento a alegada nulidade do acórdão recorrido.


3.2. Da nulidade por omissão de pronúncia
Alega ainda a Recorrente que o acórdão do TCA Norte é nulo por “não se ter pronunciado sobre as questões jurídicas suscitadas pela recorrente nas conclusões 12.ª a 17.ª das alegações de recurso”, a saber: a “nulidade do procedimento disciplinar por ter omitido uma formalidade essencial à descoberta da verdade (a realização da auditoria)” e a “ilegalidade da aplicação do estatuto disciplinar de 2009 factos praticados na vigência do estatuto de 1984”.
Mas também quanto a estas questões não assiste razão à Recorrente. Primeiro, porque o acórdão recorrido discorre longamente sobre a função do tribunal no controlo da prova produzida pela Administração em sede de procedimentos sancionatórios, maxime procedimentos disciplinares. Se alguma observação merece a fundamentação expendida será pelo facto de ter optado por “colagens” sucessivas de referências jurisprudenciais e doutrinais, o que, redundando maioritariamente numa via indirecta de resposta às questões suscitadas em vez de as afrontar directamente com um discurso argumentativo próprio, ainda assim é um estilo de fundamentação, legalmente admissível, sempre que dele resulte a resposta às questões suscitadas, como sucede neste caso.
Com efeito, do arrazoado infere-se, com meridiana clareza, que a decisão recorrida considerou que o TAF de Viseu (em cuja decisão a questão é confrontada directamente) tinha julgado correctamente a questão ao avaliar a prova produzida no âmbito do procedimento disciplinar como adequada e suficiente para sustentar a imputação da infracção à arguida, e aqui Recorrente, assim como ao considerar que o órgão instrutor não estava obrigado a realizar a auditoria requerida pela Ré. É isso que resulta dos seguintes parágrafos do acórdão recorrido:
“[E]fetivamente, dada a natureza inquisitória do procedimento disciplinar e em conjugação com o princípio da verdade real, em regra, vigora o princípio da livre apreciação das provas, segundo o qual o órgão instrutor tem a liberdade de, em relação aos factos que hajam servir de base à aplicação do direito, os apurar e determinar como melhor entender, interpretando e avaliando as provas de harmonia com a sua própria convicção.
[…]
“[N]ão logrou a Recorrente demonstrar que tenha ocorrido qualquer erro de julgamento grosseiro ou palmar incidente sobre a factualidade apurada, que pudesse determinar a censura do tribunal recorrido”.
E o mesmo sucede quanto à questão da “ilegalidade da aplicação do estatuto disciplinar de 2009”, podendo ler-se o seguinte no acórdão recorrido:
“[A]cresce ao referido que não se vislumbra que tenha ocorrido qualquer erro na interpretação e aplicação das normas aplicáveis do Estatuto Disciplinar, mormente no que concerne à escolha e à medida da pena”.
Existe, portanto, uma “resposta” do TCA Norte às questões suscitadas pelo Recorrente nas suas alegações de recurso perante aquele tribunal, mesmo que maioritariamente essa resposta se fundamente em referências doutrinais e jurisprudenciais, o que equivale a dizer que o acórdão recorrido não enferma, estruturalmente, do vício que lhe vem imputado.
Assim, o que a Recorrente parece pretender com a imputação da alegada nulidade ao acórdão é sublinhar que da fundamentação nele expendida não retirou uma resposta directa e clara às questões que havia formulado nas alegações, mas uma tal exigência não se retira da al. d) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC, o mesmo é dizer que tal não consubstancia causa de nulidade da decisão judicial. Com efeito – como a jurisprudência deste Supremo Tribunal Administrativo tem dito à sociedade (V., por todos, acórdão de 7 de Dezembro de 2010 (proc. 1075/09), onde se pode ler: “A nulidade da sentença por falta de especificação dos fundamentos de facto e de direito que justifiquem a decisão ocorre quando falte em absoluto a indicação desses fundamentos, e não quando ocorre deficiência ou incongruência da fundamentação, erro na subsunção dos factos à norma jurídica ou erro na interpretação desta”. Conclusão reiterada, entre outros,) –, a deficiência na fundamentação não constitui fundamento de nulidade da decisão judicial e sim erro de julgamento quando dela resulta uma desadequada subsunção dos factos ao direito ou uma errada interpretação e aplicação do direito.
Em suma, o acórdão recorrido não enferma de nenhuma das nulidades alegadas pela Recorrente. Importa agora analisar os alegados erros de julgamento.

3.3. Tipo e âmbito do controlo judicial da prova no procedimento disciplinar
3.3.1. A primeira questão que vem suscitada no âmbito da presente revista é a de saber se, tendo um arguido em processo disciplinar solicitado a produção de uma prova (realização de uma auditoria financeira), qualificando-a como essencial à sua defesa, e, tendo a entidade responsável pelo procedimento considerado que tal diligência não era necessária, por a prova da infracção já resultar de outros elementos e, com base nesse entendimento, ter informado o arguido de que a prova requerida poderia ser realizada, mas a expensas suas, tal decisão se pode considerar ilegal (em sentido amplo), bem como saber de que forma deve a recusa fundamentada da realização dessa prova ser sindicada no âmbito do processo judicial de impugnação da decisão que pôs termo ao procedimento disciplinar.
A primeira dimensão do problema equivale a questionar se existe um direito do arguido em procedimento disciplinar à efectiva realização dos meios de prova por si solicitados e se tal direito se configura como uma garantia fundamental de defesa no âmbito daquele procedimento. Ora, a questão da produção da prova oferecida pelo arguido é expressamente regulada pelo legislador e, à data em que foi instaurado o procedimento disciplinar, o seu regime jurídico constava do artigo 53.º da Lei n.º 58/2008, de 9 de Setembro (Estatuto disciplinar dos trabalhadores que exercem funções públicas) (Actualmente consta do artigo 218.º da Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas (Lei n.º 35/2014, de 20 de Junho).). De acordo com aquele artigo legal “[A]s diligências requeridas pelo arguido podem ser recusadas em despacho do instrutor, devidamente fundamentado, quando manifestamente impertinentes e desnecessárias”. Daqui se infere que, atenta a natureza acusatória do procedimento disciplinar, cabe ao instrutor, no âmbito do espaço de valoração própria (discricionariedade) que a lei lhe confere, decidir, fundamentadamente, quanto à pertinência e necessidade (oportunidade) das diligências de prova requeridas pelo arguido, pelo que tem base legal a decisão de recusar a realização de uma diligência, in casu a realização de uma auditoria, sempre que essa recusa assente em decisão fundamentada do responsável pela instrução do processo.
Foi o que sucedeu neste caso, em que a instrutora decidiu no despacho fundamentado de 28 de Outubro de 2010 recusar a realização da auditoria financeira por considerar que “a mesma se revelava desproporcional ai fim em vista” e porque a mesma, no seu entender, “não permitia a prova dos factos alegados a que se destinava, uma vez que os mesmos já se encontravam documentalmente provados no processo”.
De resto, no caso a diligência acabou por não ser, sequer, recusada de forma peremptória, pois o órgão administrativo ainda admitiu que a mesma, apesar de desnecessária, poderia ser realizada, desde que a Requerente e arguida suportasse os respectivos custos. Lembre-se que a decisão do recurso hierárquico que veio a ser interposto da decisão da instrutora antes mencionada acabaria por ser no sentido de permitir à arguida oferecer a prova que pretendia, pelo que o Presidente da Câmara Municipal de Santa Comba Dão, tendo considerado que a diligência probatória era admissível, sempre que correspondesse a uma via de a defesa carrear para o processo os meios de prova que considerava necessários e adequados no âmbito do seu impulso processual, pelo que aquela diligência probatória, sendo considerada desnecessária pelo órgão instrutor, e apenas necessária pela defesa, poderia ser oferecida, mas o respectivo custo teria de ser suportado pela arguida. Em outras palavras, o órgão decisor considerou que os meios de prova produzidos na fase instrutória eram suficientes para fundamentar a sua decisão, mas não quis impedir a arguida de oferecer os meios de defesa que considerasse adequados e necessários, sempre que tais diligências fossem da sua responsabilidade.
E, contrariamente ao que alega a Recorrente, a necessidade de suportar os custos não consubstancia, neste caso, um meio artificioso de obviar à produção de um meio de prova em prejuízo do arguido, mas sim uma forma de “viabilizar” (autorizar) a produção de um meio de prova (lembre-se que a auditoria nunca poderia ser realizada sem o consentimento da entidade auditada) que é considerado desnecessário e supérfluo pela entidade instrutora e decisora do procedimento, pelo que o seu custeio pela Requerente não pode, in casu, ser qualificado como uma redução de garantias fundamentais em sede de processo sancionatório.
Lembre-se, também, que os fundamentos apresentados para a decisão de recurso de realização do meio de prova requerido, assim como a juridicidade da mesma, i. e. a sua conformidade com os princípios jurídicos da actividade administrativa, podem sempre ser sindicados judicialmente. Mais, que não se limita a isso a garantia do arguido neste caso (não se limita ao direito de impugnação da decisão administrativa discricionária do instrutor do processo relativa à recusa da realização da diligência probatória), pois o próprio mérito e oportunidade dessa decisão, ou seja, a pertinência e necessidade do meio de prova requerido pelo arguido no procedimento disciplinar, podem ainda ser “reavaliados” pelo decisor ― que atenta a natureza acusatória do procedimento disciplinar é sempre uma pessoa diferente do instrutor e ser por ele ordenada a respectiva realização antes de proferida a decisão final (artigo 55.º, n.º 1 da Lei n.º 58/2008 (Presentemente, artigo 220.º, n.º 1 da Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas.)). Foi, de resto, nesta sede, ainda administrativa, que mediante recurso hierárquico veio a ser decidido autorizar a realização daquela auditoria, embora a expensas (da inteira responsabilidade) da arguida.
Assim, podemos concluir que a lei reconhece ao arguido em procedimento disciplinar o direito a requerer meios de prova, mas não o direito a exigir a realização de meios de prova, o que significa que uma vez requerida por si a realização de um meio de prova, cabe ao instrutor avaliar da respectiva pertinência e necessidade, determinação que é depois controlada, em geral, pelo decisor do procedimento disciplinar no âmbito do juízo que faz sobre a fundamentação da instrução antes de proferir a decisão, ou ainda, em particular, em caso de impugnação administrativa daquela recusa, e, também, numa fase já processual, aquela determinação quanto à realização ou não das diligências probatórias requeridas é ainda controlada pelo tribunal no contexto da fiscalização do acto que aplica a medida sancionatória e, mormente, da sua adequada fundamentação.
É nesta fase de controlo judicial que o Tribunal pode e deve fiscalizar a existência de um eventual vício decorrente do erro nos pressupostos de facto por insuficiência ou desadequação da prova produzida para alicerçar o juízo de imputação subjectiva da factualidade. Mas este é um juízo autónomo do Tribunal, que apenas “reabre” a via para a produção de nova prova quando considere que a que foi produzida é insuficiente ou não suficientemente sólida para “resistir” aos questionamentos ou aos novos elementos que poderiam decorrer das diligências requeridas pelo arguido.
Algo que é metodologicamente diverso do alegado pela Recorrente, que configura (ou pretende configurar) este poder-dever do juiz que controla jurisdicionalmente a prova procedimental do processo disciplinar em mero juiz garante dos direitos e das liberdades do arguido, ou seja, como “mero executante” (ou mesmo súbdito) de um direito potestativo do arguido à determinação da realização da prova cuja produção foi recusada pelo órgão instrutor e considerada (expressa ou tacitamente) desnecessária pelo decisor do procedimento disciplinar. A produção dessa prova pode ser considerada pelo Tribunal igualmente desadequada ou desnecessária e, como tal, julgada não desconforme ao direito a decisão que a recusou. Daí não advém nenhuma diminuição de garantias do arguido no procedimento disciplinar, e, menos ainda, qualquer violação das normas e princípios constitucionais em matéria de garantias processuais dos arguidos. Pelo contrário, só assim será possível evitar que o processo de controlo de juridicidade dos actos administrativos em procedimento disciplinar seja manipulado pelo arguido com expedientes dilatórios. As especificidades legais do procedimento disciplinar não neutralizam, nesta questão, o normal “funcionamento” da metódica de controlo da juridicidade dos actos da administração.

3.3.1.1. Antes de avançarmos para a segunda dimensão da questão enunciada relativa à fiscalização judicial da prova em procedimento disciplinar importa ainda sublinhar – de forma reiterada e autónoma – que a solução legal antes referida não se nos afigura violadora de qualquer regra ou princípio constitucional em matéria de protecção dos arguidos: i) seja da tutela jurisdicional efectiva (artigo 20.º da CRP), na medida em que, como vimos, existem diversas etapas posteriores e tipos de controlo daquela decisão que podem levar à “reversão” de uma decisão que negue a realização de diligência probatórias requeridas pelo arguido, sempre que isso se justifique; ii) seja, de forma mais directa, das garantias procedimentais de defesa no âmbito dos procedimentos sancionatórios (artigo 32.º da CRP).

3.3.2. Alega em segundo lugar a Recorrente que a prova produzida no procedimento disciplinar que fundamentou a decisão de aplicação da pena de demissão foi circunstanciada e não permitiu formular com certeza (adequada e convictamente) um juízo de imputabilidade da infracção. E sobre esta questão concluiu o acórdão que admitiu a revista que “o Acórdão recorrido não faz qualquer demonstração de que a factualidade objectivamente dada como assente leve à prova da imputação da apropriação de dinheiros públicos”, sendo por isso justificável a intervenção em sede de revista para que o Tribunal “dentro do seu âmbito de cognição possa contribuir para uma melhor aplicação do direito”. Cabe, assim, dividir a análise desta questão em dois momentos: i) o primeiro para definir o âmbito de cognição do Tribunal; e, o segundo, ii) para verificação, dentro das balizas previamente definidas, da conformidade jurídica do juízo de imputabilidade da infracção.

3.3.2.1. Quanto à definição do âmbito de cognição do tribunal relativamente à prova produzida em procedimento disciplinar importa esclarecer que o Tribunal tem liberdade para formular um juízo autónomo sobre a prova produzida no procedimento disciplinar e a sua suficiência e adequação para a fundamentação do juízo de imputação da infracção.
Assim, nesta sede não cabe julgar se a prova requerida pelo arguido era essencial para aquele juízo de imputação/não imputação da infracção, mas tão só se a prova produzida no procedimento é suficiente para alicerçar o juízo de imputação da infracção formulado pela entidade que decidiu o procedimento, e se o Tribunal a quo, na decisão que tomou quanto àquela adequação incorreu ou não e algum erro de julgamento. Não cabe ao Tribunal, e menos ainda em sede de revista, voltar a apreciar a factualidade para formular novo juízo sobre a adequação e necessidade do meio de prova requerido, esse é um juízo do âmbito da função administrativa, o que o tribunal pode é verificar se, em face das provas produzidas, o juízo de imputabilidade se afigura fundamentado e juridicamente sustentado e, em sede de controlo da decisão judicial que faz aquela (re)avaliação, verificar se existiu algum erro de julgamento.

3.3.2.2. Aplicando esse critério ao caso sub judice resulta evidente que não existe erro de julgamento do TCA Norte no juízo que formula sobre o julgamento da matéria de facto, designadamente, quando considera que não merece censura a apreciação do TAF de Viseu sobre a inexistência de défice instrutório no procedimento disciplinar, quanto à conformidade com a realidade dos pressupostos de facto que a Administração teve em conta na decisão (i. e. que a prova aí reunida e documentada era suficiente para sustentar o juízo de imputação da infracção disciplinar), assim como ao considerar que nenhuma ilegalidade ou inconstitucionalidade existiu na decisão de recusa de suportar os custos da realização da auditoria.

3.3.3. Por último, cumpre ainda, no âmbito da presente revista, verificar se a decisão recorrida errou ao sufragar o entendimento vertido na sentença do TAF de Viseu, segundo a qual:
«[…] Alega a Autora que o acto impugnado viola igualmente o disposto no n.º 1 do art.º 4.º da Lei n.º 58/2008, pois os factos imputados à arguida teriam ocorrido antes de 1 de Janeiro de 2009 e ela foi punida ao abrigo do estatuto disciplinar aprovado por aquela lei, quando o regime do estatuto disciplinar aprovado pela DL n.º 24/84 era globalmente mais favorável – pois aqui os factos imputados à arguida eram punidos com a pena de aposentação compulsiva para quem como ela tinha mais de cinco anos de descontos e no novo estatuto disciplinar tais factos são punidos com a pena de demissão –, não podendo, como tal, ser este último o estatuto a aplicar in casu.
Ora, a infracção disciplinar imputada à arguida na acusação é prática de desvio de dinheiros públicos, prevista na alínea m) do n.º 1 do art. 18.º do Estatuto Disciplinar, aprovado pela Lei n.º 58/2008, de 09/09, sendo punida com a pena de demissão. Nos termos do anterior Estatuto Disciplinar do Funcionários e Agentes da Administração Central, Regional e Local, aprovado pelo DL n.º 24/84, de 16/01, a infracção disciplinar consubstanciada na prática de desvio de dinheiros públicos era também sancionada com a pena de demissão – cfr. art. 26.º, n.º 4, al. d) do ED
Do disposto no n.º 1 do art. 4.º da Lei n.º 58/2008, resulta que relativamente aos factos praticados antes da entrada em vigor do novo Estatuto, este novo regime só se aplica se em concreto se revelar mais favorável ao trabalhador.
Sendo que, à data da prática de parte dos factos pela arguida – os reportados aos anos lectivos 2007/2008, 2008/2009, até à entrada em vigor no novo ED, a pena em abstracto aplicável ao desvio de dinheiros públicos – actos delituosos praticados pela arguida - era a demissão - cfr. art. 26.º, n.º 2, al. d) do ED.
O presente processo disciplinar, foi instaurado, tendo por base a prática de desvios públicos, actos que ocorreram em Novembro de 2009, estando já em vigor o novo ED, aprovado pela Lei n.º 58/2008.
Assim, no caso concreto, a prática de infracção disciplinar consubstanciada no desvio de dinheiros públicos de que a arguida vem acusada, inviabiliza a manutenção da relação funcional existente e conduz à aplicação de pena de demissão.
Pelo que, não houve violação do art. 4.º, n.º 1 da Lei n.º 58/2008, pois que à luz dos dois regimes disciplinares sancionatórios a conduta da arguida conduziria à aplicação da pena de demissão[…]».

E também quanto a este ponto não se nos afigura que mereça censura o acórdão recorrido ao reiterar o entendimento do TAF de Viseu. Senão vejamos.
O processo disciplinar foi mandado instaurar em 9 de Dezembro de 2009, ou seja, já na vigência do Estatuto Disciplinar aprovado pela Lei n.º 58/2008, mas estão aqui em causa infracções disciplinares cometidas nos anos lectivos de 2007/2008 e 2008/2009, isto é, que abrangem um período anterior à data da entrada em vigor deste diploma. Nos termos do disposto na al. d) do n.º 4 do artigo 26.º do Estatuto Disciplinar aprovado pelo Decreto-Lei n.º 24/84, de 16 de Janeiro, a infracção “desvio de dinheiros públicos”, a que a Administração subsumiu o comportamento da arguida, era, em abstracto, punível com a pena de demissão e, de acordo com a alínea m) do n.º 1 do artigo 18.º do Estatuto Disciplinar aprovado pela Lei n.º 58/2008, a mesma infracção é igualmente punível com a pena de demissão sempre que a infracção inviabilize a manutenção da relação funcional.
Perante este quadro normativo a Recorrente alega que “por ser globalmente mais favorável o estatuto disciplinar de 1984 ao prever a pena de aposentação compulsiva” deveria o mesmo ter sido aplicado à parte das infracções cometidas durante a sua vigência. Porém, não tem razão, pois a alínea d) do n.º 4 do artigo 26.º comina com a pena de demissão o “desvio de dinheiros públicos”, infracção imputada à arguida.
De resto, como se afirma desde o relatório de instrução, a sanção é, em abstracto, a mesma à luz dos dois quadros normativos.
E nem o disposto no n.º 1 do artigo 4.º da Lei n.º 58/2008, onde se prevê que o novo estatuto “é imediatamente aplicável aos factos praticados, aos processos instaurados e às penas em curso de execução na data da sua entrada em vigor, quando o seu regime se revele, em concreto, mais favorável ao trabalhador e melhor garanta a sua audiência e defesa”, altera esta situação. Pois mesmo a entender-se que ao abrigo do novo estatuto não poderia a pena ter sido de demissão sem que a entidade administrativa fizesse prova de que aquela infracção inviabilizava a manutenção da relação funcional, sempre há que concordar com o que se concluiu na sentença do TAF de Viseu, e corroborou no acórdão recorrido, de que existem fundamentos, in casu, que permitem concluir que a decisão da entidade recorrida de optar pela demissão é fundamentada, porquanto a circunstância de a arguida e aqui Recorrente já ter sido sancionada anteriormente, também em processo disciplinar, por factos similares, “explica” a inviabilidade na manutenção da relação funcional.

III – Decisão

Nos termos e com os fundamentos expostos, acordam os Juízes da Secção de Contencioso Administrativo em negar provimento à presente revista.

Custas pela Recorrente.


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Lisboa, 2 de Julho de 2020. - Suzana Maria Calvo Loureiro Tavares da Silva (relatora) – José Francisco Fonseca da Paz – Maria do Céu Dias Rosa das Neves.