Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0575/11
Data do Acordão:10/19/2011
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:CASIMIRO GONÇALVES
Descritores:GRADUAÇÃO DE CRÉDITOS
IRS
PRIVILÉGIO CREDITÓRIO
Sumário:O nº 1 do art. 240º do CPPT deve ser interpretado no sentido de abranger não só os credores que gozem de garantia real, "stricto sensu", como também aqueles a que a lei substantiva confere causas legítimas de referência, como é o caso dos privilégios creditórios.
Nº Convencional:JSTA000P13360
Nº do Documento:SA2201110190575
Recorrente:FAZENDA PÚBLICA
Recorrido 1:B... E OUTRO
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: Acordam na Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo:
RELATÓRIO
1.1. A Fazenda Pública interpõe recurso da sentença proferida pelo TAF de Almada nos autos de verificação e graduação de créditos que ali correm termos por apenso à execução fiscal nº 3409200501101765 e apensos, do SF de Almada 3ª, instaurada contra A…, por dívidas de IVA do ano de 2005.
1.2. A recorrente termina as alegações formulando as conclusões seguintes:
1. Os créditos relativos ao IRS relativo aos três últimos anos gozam de privilégio mobiliário geral e de privilégio imobiliário sobre os bens existentes no património do sujeito passivo à data da penhora, nos termos do estatuído no artigo 111° do CIRS;
2. Para aquele normativo relevam os anos a que respeitam os rendimentos que justificaram a liquidação do imposto e não o momento em que foram postos a cobrança;
3. Privilégio creditório é a faculdade que a lei, em atenção à causa do crédito, concede a certos credores, independentemente do registo, de serem pagos com preferência a outros (art. 733º do Código Civil);
4. A circunstância do privilégio creditório geral ser uma mera preferência de pagamento não implica o afastamento do crédito da reclamação e graduação no lugar que lhe competir;
5. Pois que, ainda que os privilégios creditórios gerais não constituam garantias reais, mas meras preferências de pagamento, “(...) o seu regime é o das garantias reais, para o efeito de justificar a intervenção no concurso de credores.” (cf. Salvador da Costa, “O Concurso de Credores”, 3ª Edição, Almedina, 2005, pág. 388);
6. Motivo porque de harmonia com entendimento jurisprudencial largamente majoritário do STA “O artigo 240° n° 1 do CPPT deve ser interpretado amplamente no sentido de abranger não apenas os credores que gozam de garantia real stricto sensu mas também aqueles a que a lei substantiva atribui causas legítimas de preferência, nomeadamente, privilégios creditórios.” (cf. A título de exemplo o Acórdão do STA de 18/05/2005, recurso n° 0612/04, in www.dgsi.pt);
7. Ao não admitir o crédito de IRS relativo ao exercício de 2005, reclamado pela Fazenda Pública, a douta sentença ora recorrida incorreu em erro de direito na interpretação e aplicação das normas constantes nos arts. 240°, n° 1 e 246° ambos do CPPT e no art. 111° do CIRS.
Termina pedindo o provimento do recurso e a revogação da sentença, a substituir por outra que admita, reconheça e gradue os créditos reclamados, de IRS do ano de 2005 e respectivos juros, no lugar que lhes competir.
1.3. Não foram apresentadas contra-alegações.
1.4. O MP emite Parecer nos termos seguintes:
«1. A jurisprudência do STA tem-se pronunciado de forma consolidada, a propósito da interpretação da norma constante do art. 240° nº l CPPT, no sentido de que podem reclamar os seus créditos no processo de execução fiscal não apenas os credores que gozem de garantia real stricto sensu mas também aqueles a quem a lei substantiva atribui causas legítimas de preferência, designadamente privilégios creditórios (acórdãos STA Pleno SCT 13.04.2005 processo n° 442/04; 18.05.2005 processo n° 612/04; acórdãos STA SCT 2.07.2003 processo n° 882/03, 4.02.2004 processo n° 2078/03, 6.12.2006 processo n° 929/06, 9.05.2007 processo n° 239/07, 17.06.2009 processo n° 432/09).
A especial autoridade dos arestos citados e o desiderato de interpretação e aplicação uniformes do direito aconselham a observância da sua doutrina (art. 8° n° 3 CCivil).
2. O Tribunal Constitucional declarou a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma constante do art.104º CIRS (numeração resultante do DL n° 198/2001, 2 Julho) na interpretação segundo a qual os privilégios imobiliários gerais conferidos à Fazenda Pública preferem à hipoteca, nos termos do art. 751° CCivil, por violação do princípio da confiança, ínsito no princípio do Estado de direito - art. 20º CRP (acórdão n° 362/2002, 17.09.2002, DR I-A n° 239, 16.10.2002).
3. Os créditos de IRS relativos aos três últimos anos gozam de privilégio mobiliário geral e de privilégio imobiliário sobre os bens existentes no património do sujeito passivo à data da penhora (art. 111° CIRS).
Os respectivos juros de mora gozam do mesmo privilégio atribuído por lei à dívida sobre que recaírem (art. 8º DL n° 73/99, 16 Março).
4. Aplicando estas considerações ao caso sob análise:
O crédito reclamado de IRS e respectivos juros de mora (ano 2005) deve ser admitido e graduado em segundo lugar, após o crédito reclamado pela B…, garantido por hipoteca.»
1.5. Corridos os vistos legais, cabe decidir.
FUNDAMENTOS
2. Na sentença recorrida julgaram-se provados os factos seguintes:
1. Em 12/04/2000, entre A…, ora executado, e a B… foi celebrado um contrato de Mútuo com hipoteca no montante de Esc.: 780.000$00 incidindo esta sobre a fracção autónoma designada pela letra "S", correspondente à arrecadação número dezoito do prédio urbano constituído em propriedade horizontal, sito na Quinta ..., Rua ..., n° ..., Monte da Caparica, freguesia da Caparica, concelho de Almada, descrito na 1ª Conservatória do Registo Predial de Almada sob o número 4090 da referida freguesia e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo 11727-S, com valor patrimonial de € 3.950,00 (cfr. docs. juntos a fls. 6 a 18 dos autos);
2. Em 30/05/2000, foi registada hipoteca a favor da B…, incidente sobre o imóvel melhor identificado em 1), penhorado no processo de execução de que os autos constituem apenso, com vista à garantia da quantia de Esc.: 780.000$00 referente a capital, à taxa de juro anual de 6,24%, acrescido em 4% em caso de mora e com montante máximo de Esc.: 1.019.616$00 (cfr. fls. 13 do processo executivo junto aos autos, cujo teor aqui que se dá por integralmente reproduzido);
3. A Fazenda Pública instaurou em 05/10/2005, contra o executado A… o processo de execução fiscal n° 34092005/1101765 do Serviço de Finanças de Almada 3ª tendo por objecto dívidas de IVA do exercício de 2005, no montante de € 827,64 e de que os presentes autos de verificação e graduação de créditos constituem apenso (cfr. processo de execução fiscal junto aos autos);
4. Ao processo identificado no ponto anterior foram apensos os processos de execução fiscal n° 3409200501134825, 3409200601013297 e 3409200601018655, referentes a IVA e coimas (cfr. doc. junto a fls. 35 do processo executivo junto aos autos);
5. Em 30/04/2007, no âmbito do citado processo de execução fiscal, e para pagamento das dívidas nele referidas, foi efectuada a penhora da fracção autónoma designada pela letra "S", correspondente à arrecadação número dezoito do prédio urbano constituído em propriedade horizontal, sito na Quinta ..., Rua ..., n° .., Monte da Caparica, freguesia da Caparica, concelho de Almada, descrito na 1ª Conservatória do Registo Predial de Almada sob o número 4090 da referida freguesia e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo 11727-S, com valor patrimonial de € 3.950,00, a qual foi registada a favor da Fazenda Nacional em 16/05/2007, para garantia da quantia de € 5,291,70 (cfr. fls. 13 do processo executivo junto aos autos, cujo teor se dá por integralmente reproduzido);
6. Em 31/10/2006, foi inscrito para cobrança o IRS do exercício de 2005 do ora executado no montante de € 6.474,93 (cfr. doc. junto a fls. 46 dos autos);
7. O executado é devedor à Fazenda Pública dos créditos exequendos e reclamados;
8. O executado é devedor à B… da quantia reclamada.
3.1. Atendendo a esta factualidade a sentença recorrida decidiu julgar «improcedente a reclamação de créditos apresentada pela Fazenda Pública» (créditos relativos a IRS, do ano de 2005), não os reconhecendo nem graduando, consequentemente, por considerar, em síntese, que os créditos que gozam apenas de privilégio imobiliário geral e que não tenham, para além dele, uma garantia real, não podem ser reclamados nos termos do art. 240º do CPPT, porquanto não gozam de garantia real sobre os bens penhorados, entendimento este sufragado nos acs. deste STA, de 16/6/2004, rec. nº 442/04 e de 7/7/2004, no rec. nº 612/04, este último transcrito na decisão recorrida.
A recorrente, por seu lado, apoiando-se no entendimento maioritário da jurisprudência deste STA, entende que o nº 1 do art. 240º do CPPT deve ser interpretado em termos amplos, no sentido de abranger não apenas os credores que gozam de garantia real stricto sensu mas também aqueles a que a lei substantiva atribui causas legítimas de preferência, nomeadamente, privilégios creditórios.
3.2. A questão controvertida e que importa decidir é, portanto, a de saber se o crédito de IRS reclamado pela FP, relativo ao ano de 2005, deve ou não ser reconhecido e graduado.
Vejamos.
4.1. O art. 111º do CIRS dispõe:
«Para pagamento do IRS relativo aos três últimos anos, a Fazenda Pública goza de privilégio mobiliário geral e privilégio imobiliário sobre os bens existentes no património do sujeito passivo à data da penhora ou outro acto equivalente.»
Por sua vez, o nº 1 do art. 240º do CPPT dispõe que podem reclamar os seus créditos no prazo de 15 dias após a citação nos termos do artigo anterior os credores que gozem de garantia real sobre os bens penhorados.
E o art. 246º do mesmo Código manda aplicar na reclamação de créditos as disposições do CPC, mas sendo admissível apenas a prova documental.
4.2. A questão a decidir passa, essencialmente, pela interpretação do nº 1 do transcrito art. 240º do CPPT, em termos de saber se tal normativo deve ser interpretado em sentido amplo, de modo a terem-se por abrangidos na letra da lei não apenas os credores que gozam de garantia real, mas também aqueles a quem a lei substantiva atribui causas legítimas de preferência, designadamente, privilégios creditórios, ou se, pelo contrário, deve interpretar-se em sentido estrito, de modo a terem-se ali abrangidos apenas os credores que gozam de uma verdadeira garantia real, que atribua ao seu titular um direito de sequela.
Trata-se de questão que, como decorre, aliás, da fundamentação da sentença recorrida, das Conclusões da recorrente e do Parecer do MP, tem sido amplamente apreciada e decidida por este STA, com orientação largamente maioritária, que também aqui perfilhamos, no sentido de que «o nº 1 do artigo 240º do CPPT deve ser interpretado amplamente, no sentido de abranger não só os credores que gozam de garantia real “stricto sensu”, mas também aqueles a quem a lei substantiva atribui causas legítimas de preferência, como é o caso dos privilégios creditórios».
A propósito, escreve-se no acórdão desta Secção do STA, de 12/1/2011, rec. nº 725/10:
O «… legislador fiscal determinou a execução de bens individualizados do património do executado para satisfação do crédito do exequente, permitindo todavia aos credores que gozem de garantia real sobre os bens penhorados que reclamassem os seus créditos na execução. É o que resulta do disposto no artigo 240º, nº 1, do Código de Procedimento e de Processo Tributário, em consonância com o artigo 865º do Código de Processo Civil no respeitante à execução comum.
Mas, para alguma doutrina, direitos reais de garantia em sentido próprio serão apenas a penhora, o penhor, a hipoteca, o direito de retenção e a consignação de rendimentos. Já quanto aos privilégios creditórios, que o artigo 733º do Código Civil define como «a faculdade que a lei, em atenção à causa do crédito, concede a certos credores, independentemente do registo, de serem pagos com preferência a outros», não há unanimidade, entendendo alguns que não serão verdadeiros direitos reais de garantia, mas qualidades do crédito, atribuídas por lei em atenção à sua origem.
Praticamente unânime é o entendimento quanto aos privilégios gerais: estes não são qualificáveis como direitos reais de garantia. Em todo o caso, há, na doutrina, como na jurisprudência, concordância quanto a que os privilégios creditórios conferem preferência sobre os credores comuns.
Nos termos do artigo 111º (antes artigo 104º) do Código do IRS, para o pagamento de IRS relativo aos três últimos anos a Fazenda Pública goza de privilégio mobiliário geral e imobiliário sobre os bens existentes no património do sujeito passivo à data da penhora ou de acto equivalente.
Gozando o crédito reclamado de privilégio imobiliário, não preferindo embora aos credores com garantia real, não deixa, por isso, de poder ser reclamado e graduado no lugar que lhe competir. Neste sentido se têm pronunciado quer o Supremo Tribunal Administrativo quer o Supremo Tribunal de Justiça, em inúmeros acórdãos. Aliás, assim o impõe a unidade do sistema jurídico, pois não faria sentido que a lei substantiva estabelecesse uma prioridade no pagamento do crédito e a lei adjectiva obstasse à concretização da preferência, impedindo o credor de acorrer ao concurso. Exigir a esse credor que, para fazer valer o privilégio, obtivesse penhora ou hipoteca, seria deixar sem sentido útil o privilégio, pois nesse caso o crédito passaria a dispor de garantia real, sendo-lhe inútil o privilégio legal. Assim, afigura-se dever o artigo 240º, nº 1, do Código de Procedimento e de Processo Tributário ser interpretado no sentido de abranger não apenas os credores que gozam de garantia real, stricto sensu, mas também aqueles a quem a lei substantiva atribui causas legítimas de preferência, designadamente, privilégios creditórios – cf. neste sentido, quase textualmente, o acórdão do Pleno desta Secção do Supremo Tribunal Administrativo, de 18-5-2005, no recurso nº 612/04, o qual, por sua vez, seguiu o acórdão do Pleno também desta Secção do Supremo Tribunal Administrativo, de 13-4-2005, no recurso nº 442/04, a confirmar os acórdãos fundamento desta Secção do Supremo Tribunal Administrativo, de 2-7-2003, e de 4-2-2004, proferidos respectivamente nos recursos nº 882/03, e nº 2078/03».
E no mesmo sentido podem ver-se, ainda, entre outros, os acs. desta Secção do STA, de 12/11/09, rec. nº 919/09, de 18/11/09, rec. nº 920/09, de 27/1/10, rec. nº 01201/09, de 12/2/10, rec. nº 1035/09, de 8/9/10, rec. nº 01118/09, de 12/1/11, rec. nº 0725/10, de 4/5/11, rec. nº 044/11 e de 14/9/11, rec. nº 0573/11.
Ora, considerando o disposto no nº 3 do art. 8º do CCivil e porque não vemos motivo para divergir deste entendimento, que, aliás, adoptámos, entre outros, no proc. 044/11, acima referido, havemos de concluir que o crédito em causa deve ser admitido, reconhecido e graduado no lugar que lhe couber, ou seja, no caso, logo a seguir aos créditos garantidos por hipoteca.
DECISÃO
Nestes termos acorda-se em, dando provimento ao recurso, revogar a sentença na parte em que vem recorrida e, julgando admitido e reconhecido o crédito reclamado pela Fazenda Pública referente a IRS do ano de 2005 e respectivos juros de mora, proceder à respectiva graduação no lugar que lhe compete, ficando, assim, a graduação na forma seguinte e saindo as custas precípuas do produto da venda:
1º - Os créditos reclamados pela B…, garantidos por hipoteca registada em 30/05/2000 e juros até ao limite de três anos;
2º - O crédito de IRS reclamado pela Fazenda Pública, referente a IRS do ano de 2005, bem como os respectivos juros de mora.
3º - Os créditos exequendos.
Sem custas.
Lisboa, 19 de Outubro de 2011. - Casimiro Gonçalves (relator) - António Calhau - Isabel Marques da Silva.