Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0729/05
Data do Acordão:11/29/2005
Tribunal:2 SUBSECÇÃO DO CA
Relator:ANTÓNIO MADUREIRA
Descritores:INTERVENÇÃO PROVOCADA.
RESPONSABILIDADE CIVIL EXTRACONTRATUAL DOS ENTES PÚBLICOS.
NEGLIGÊNCIA MÉDICA.
Sumário:I. A intervenção provocada, mesmo com o fundamento previsto na alínea a) do artigo 320.º do CPC - ter o chamado, em relação ao objecto da causa, um interesse igual ao do Autor ou do Réu -, só é admissível, contrariamente ao estabelecido para a intervenção espontânea, até ser proferido despacho saneador (cfr. artigos 325.º, 326.º n.º 1, 322.º, n.º 1, e 323.º, n.ºs 1 e 2, todos do referido Código, ex vi artigo 72.º, n.º 1, da LPTA).
II. Constitui actuação ilícita e culposa, por violadora das legis artis da medicina, a actuação de médicos de um hospital que atenderam e trataram um doente que tinha sofrido uma infecção dentária, medicando-o apenas para esta simples infecção, quando a sua situação clínica era já compatível com evolução para uma infecção generalizada (sépsis), que lhe não diagnosticaram e que sobreveio àquela, causando-lhe a morte.
III. Os referenciados deficientes diagnóstico e tratamento são de considerar causais do dano sofrido - a morte -, pois que, a infecção generalizada, podia ter sido evitada com o adequado tratamento. E, não tendo sido, podia ainda ter sido curada, pois que essa infecção, sendo uma situação clínica grave, potencialmente letal, não é, sempre, geradora da morte dos pacientes, pelo que é de aceitar que se tivesse sido tratada devidamente não teria ocorrido a morte. O que significa que a conduta dos médicos em causa não é de considerar indiferente na produção do dano e, como tal, que é perfeitamente razoável considerar que, sem a sua conduta ilícita e culposa, a morte não teria acontecido.
Nº Convencional:JSTA0006018
Nº do Documento:SA1200511290729
Recorrente:HOSPITAL DISTRITAL DE SANTARÉM
Recorrido 1:A... E OUTROS
Votação:UNANIMIDADE
Área Temática 1:*
Aditamento:
Texto Integral: Acordam, em conferência, na 2.ª Subsecção da Secção do Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo:
1. RELATÓRIO.
1. 1. A..., B... e ..., com os devidos sinais nos autos, propuseram, no Tribunal Administrativo de Círculo de Coimbra, contra o Hospital Distrital de Santarém, uma acção para a efectivação da responsabilidade civil deste, decorrente da morte do seu familiar (marido e pai) ..., em virtude de deficiente tratamento médico que nele lhe foi ministrado e de que veio a resultar a sua morte.
Após a sua tramitação legal, designadamente a elaboração do despacho saneador e a marcação do dia para a audiência de julgamento, o Hospital Réu veio, através do requerimento de fls 172-173 dos autos, requerer a intervenção provocada dos médicos a quem era imputado o tratamento alegadamente deficiente e determinante da morte do ....
Esse pedido foi indeferido pelo despacho de fls 185.
Com ele se não conformando, interpôs o réu o competente recurso (fls 189), que foi admitido pelo despacho de fls 194, no qual lhe foi atribuído efeito devolutivo e fixado o regime diferido de subida - com o primeiro que, depois dele, viesse a subir imediatamente.
O recorrente apresentou alegações (cfr.fls 199/201), nas quais formulou as seguintes conclusões:
1.ª) - O incidente da intervenção provocada, nos termos do artigo 325.º do CPC, pode ocorrer até ao momento da intervenção espontânea.
2.ª) - No caso, até ao julgamento da causa, artigo 320.º, n.º 1 e 320.º, alínea a), ambos do CPC.
3.ª) - Os demandados têm interesse em intervir na causa e tal como o Réu chamante o prefigurou.
4.ª) - Porque interveniente na relação material controvertida.
5.ª) - Interesse esse em contradizer os factos fundamento da obrigação de indemnizar.
6.ª) - E interesse na improcedência porque do contrário resulta como consequência jurídica abstracta a constituição do direito de regresso.
Os Autores contra-alegaram (cfr.fls 211-213), tendo, em síntese, defendido a bondade do despacho recorrido, e tendo também pedido a condenação do recorrente como litigante de má fé, ao abrigo do disposto nos artigos 334.º do C. Civil e 456.º, n.º 2, alíneas a) e d) do C.P.Civil, em multa e em indemnização a seu favor, devendo esta não ser inferior a 5 0000,00 euros (conclusões 6.ª a 8.ª).
1. 2. Tendo a acção prosseguido a sua tramitação legal, foi proferida sentença em 30/6/2004, que, a julgando parcialmente procedente, condenou o Réu a pagar aos Autores a importância de 573 737,39 euros (oitocentos e setenta e três mil setecentos e trinta e sete euros e setenta e nove cêntimos) e juros à taxa legal, desde a citação até integral pagamento (fls 241-270).
Com ela se não conformando, interpôs o Réu novo recurso, em cujas alegações (cfr. fls 288-289) formulou as seguintes conclusões:
1.ª) - Entre os pressupostos da responsabilidade civil encontra-se a culpa e o nexo de causalidade com o dano.
2.ª) - A culpa integra de actuação positiva ou de falta de previsão ou ponderação.
3.ª) - A actuação médica é determinada por situações concretas, nomeadamente o que resulta das queixas do doente.
4.ª) - As queixas do doente referiram-se apenas e só á matéria relativa à extracção dentária (Alíneas A-C-D-F-G-N-S-V da Especificação).
5.ª) - Sendo que a actuação médica anterior à dos médicos do Réu actuaram apenas e só perante essas queixas.
6.ª) - A intervenção solicitada a médico do Réu no primeiro atendimento acentuava o processo infeccioso resultante de extracção de um dente.
7.ª) - Não foi referenciada nenhuma circunstância de queixa que devesse determinar outra actuação médica.
8.ª) - A apreciação da prova contem como critério e limite um juízo de credibilização baseada do senso e experiência comuns e a lei impõe que dela se retire a demonstração de factos.
9.ª) - Os documentos em sede de prova têm o valor que necessariamente resulta do seu próprio teor e na sua capacidade de demonstrar factos.
10.ª) - Facultam os autos a fls 79 matéria especialmente importante para a análise do resultado nomeadamente Relatório de Autópsia que refere especificadamente: "Clinicamente sépsis com coagulação intravascular. Baço séptico: pneumonia grave bilateral com áreas de hepatização vermelha. Múltiplas petéquias nas pleuras viscerais, superfície epicárdica e na árvore pielocalicial. Órgãos de estase. Congestão e edema pulmonar.”
Documento esse junto pela autoria.
11.ª) - Naquele relatório consta como causa de morte uma pneumonia, ali qualificada de grave, bilateral e referencias a congestão e edema pulmonares e petéquias da pleura interna.
12.ª) - Todas a demais referências são relativas á existência de pus (baço séptico) ou encharcamento de órgãos (órgãos de estase).
13.ª) - O infeliz ... faleceu de uma pneumonia grave, não tratada, e que gerou um processo de infecção generalizada, com falência orgânica múltipla habitualmente designada de “sépsis” ou septicémia”.
14.ª) - É essa a causa da morte, sendo que outra não resulta dos autos.
15.ª) - E é causa de morte credibilizada pela qualidade do documento que a demonstra, artº 341 do CC junto pelo autor.
16.ª) - No mesmo Relatório de Autópsia e na sua parte manuscrita, resulta ter sido analisada a cavidade oral, com pormenor e vigor no que se refere aos órgãos do pescoço, onde se refere: Órgãos do pescoço - faringe, laringe, traqueia, esófago e tiróide - sem particularidades aparentes."
17.ª) - Sendo que resulta evidente que aquele tipo de avaliação revelaria de imediato a existência de infecção dentária resultante de ablação dentária 6 dias antes.
18.ª) - Infecção dentária que não foi referenciada naquela observação directa e tê-lo-ia sido se fosse actual.
19.ª) - O infeliz ... não faleceu em virtude de infecção resultante de um processo de extracção dentária, antes falecendo de pneumonia grave, bilateral, que por nunca ter sido tratada gerou a falência orgânica múltipla e disseminada comummente designada por sépsis.
20.ª) - Circunstância que gera prejuízo para a prova da Autoria, sendo que à mesma cabia provar a causalidade entre a actuação médica e o resultado, nomeadamente pelo que consta do Relatório de Autópsia que juntou aos autos, artº 478, n.º 1 do CPC.
21.ª) - Mas mesmo que assim não fosse, não logrou a Autoria fazer prova suficiente do quesito primeiro, ou seja a relação directa que estabeleceu entre a não suposta verificação do enxantema e a sépsis (cfr. quesito).
22ª) - Sendo que a matéria parcialmente provada - ou seja, apenas o que se refere a manchas no tronco e pernas - não é suficiente para afirmar a censura, imprevidência ou violação do dever de cuidado.
23.ª) - Circunstância que resulta clara da resposta dada (n°2 e n°1) a fls. 147 da Consulta Médico Cientifica que generaliza a existência daquelas manchas com inúmeras situações clínicas possíveis.
24.ª) - Não se verifica no julgado o nexo de causalidade necessário para afirmar a responsabilidade, nomeadamente considerando a actuação médica e a causa da morte.
25.ª) - Mas mesmo que assim fosse não se verifica culpa dos agentes em concreto, ou seja perante as queixas do doente, elementos documentais e elementos clínicos, todos constantes dos autos e que são sempre e todos referentes á situação resultante da extracção dentária a valorar na presente instância pelo disposto a art 341°, 346°, 362° e 371°, todos do Código Civil.
26.ª) - Situação (infecção dentária) tratada à data da morte e que não a determinou.
27.ª) - Facultam os autos elementos documentais a apreciar na presente instância e que devem determinar a absolvição do pedido.
Os Autores, ora recorridos, contra-alegaram (fls 301-312), tendo formulado as seguintes conclusões:
A) - Como não oferece quaisquer dúvidas, não tem também o apelante ponta de razão, quer ao nível dos factos quer ao nível do direito, tendo o tribunal “a quo” decidido bem e de forma justa.
B) - Resultam, claramente, como provados não só os factos constantes da especificação mas também os que foram levados para o questionário os imprescindíveis para a boa decisão da causa.
C) - Na sequência de uma extracção do dente do siso, feita na Quarteira pelo odontologista ... ... por apresentar sintomas de dor e febre que apontavam para a existência de uma infecção, foi assistido por vários médicos na Quarteira, em Loulé e no Cartaxo.
D) - No dia 26/07/96, o ... regressou ao Cartaxo onde residia e, por continuar com dores no corpo e com febre, dirigiu-se ao Centro de Saúde do Cartaxo onde foi assistido pelo Dr. ....
E) - Este médico leu uma carta que lhe havia sido enviada pela sua colega de Loulé, observou o doente e detectou-lhe uma pequena mancha no tronco e membros inferiores e colocou a hipótese de diagnóstico síndrome febril indeterminado com quatro dias de evolução, com exantema monocleose infecciosa ou septicemia ou sépsis (infecção generalizada).
F) - Nesse mesmo dia 26/07/96, o doente foi assistido pelo Dr. .... Este médico não deu importância à carta do colega do Cartaxo. Examinou o doente cujos resultados depois de constatar que estavam alterados, atribuiu-os ao estado febril do doente e manteve o antibiótico anteriormente prescrito, “Augumentin ".
G) - No dia 27/07/96, o ... contou ao Dr. ... que lhe tinha sido feita uma extracção dentária com abcesso no dia 24/07/96. Relatou as assistências médicas que teve e os sintomas que permaneciam.
H) - Apesar dos sintomas alarmantes contados ao Dr. ... por ... e mulher este não lhe fez análises, não lhe mediu a temperatura, não lhe mediu a tensão e não o mandou despir para examinar possíveis manchas.
I) - Durante o dia 28/07/96 o ... permaneceu na cama continuando a queixar-se com dores e febre.
J) - No dia 29, pela manhã, começou a sentir arrepios e convulsões. Dirigiu-se então de ambulância ao Centro de Saúde do Cartaxo onde foi ordenada a sua transferência para o Hospital de Santarém com diagnóstico de possível choque séptico ou coagulação vascular disseminada (conforme doc. de fls. 60).
L) - No Hospital de Santarém foram efectuados novos exames conforme fls. 68 a 82, tendo sido ordenada a sua imediata transferência para o Hospital de Santa Maria, em Lisboa, onde deu entrada pelas 19 horas de 29/07/96 e onde faleceu no dia seguinte pelas 08 horas e 25 minutos em consequência de sépsis conforme relatório da autópsia de fls.79.
M) - Os médicos ... e ... sabiam que a extracção de um dente nas condições já referidas nos autos acarretava risco de disseminação e infecção que podia causar septicemia e determinar a morte se não fosse medicado a tempo.
N) - O médico deve agir segundo as exigências das leges artis e os conhecimentos científicos então existentes, actuando com um dever objectivo de cuidado, assim como certos deveres especiais, como seja o dever de utilizar técnica adequada (...) Acórdão do STA de 22/01/2004, proferido no Processo n° 1665/02.
O) - Por outro lado, nos termos do artigo 6° do DL n° 48.051, de 21/11/1967, “ a ilicitude não está centrada exclusivamente no resultado danoso - ilicitude de resultado - e está sempre na dependência do desvalor de um determinado comportamento - ilícito de conduta” - Acórdão do STA de 20/04/2004, proferido no Processo n° 0982/03 - Caracterizando-se assim essa obrigação de meios numa obrigação de prestação da melhor assistência possível, nela cabendo o diagnóstico e tratamentos atempados e cientificamente correctos.
P) - No caso em apreço, será possível imputar a falta de diagnóstico às leges artis?
Confrontando a factualidade dada como provada com os normativos aplicáveis verifica-se que apesar do choque séptico ser uma decorrência invulgar de qualquer processo infeccioso, qualquer que seja a infecção, os agentes do Réu sabiam que a extracção de um dente nas condições já referidas acarretava risco de disseminação da infecção que podia causar septicemia e determinar a morte se não fosse medicado a tempo.
Q) - Por outro lado, nada nos autos nos permite concluir que o quadro clínico apresentado pelo doente, apesar de aparentemente poder ser imputável a outra doença, justificasse o diagnóstico e a forma como foi assistido pelos agentes do Réu.
R) - Aliás, como se refere no já citado acórdão do STA de 20/04/2004, o resultado danoso (morte) “é, por si só, um forte índice de que a conduta do Serviço do Réu, que antecedeu tal resultado danoso, não se pautou pelas regras da arte e/ou da prudência comuns, sobretudo se atendermos ao facto de se esta condição, tivesse sido atempadamente diagnosticada e tratada, não teria tido como consequência a morte do ....
S) - Assim sendo, é forçoso concluir que os médicos do Hospital Distrital de Santarém não diagnosticaram como podiam e deviam, a infecção referida a tempo de ser tratada o que veio a causar a morte do marido e pai dos autores.
T) - Ora, aplicando os princípios doutrinários expostos ao caso em apreço, verifica-se que pese embora o falecido tenha adquirido a doença da qual resultou a sua morte em momento anterior à intervenção (negligente) dos médicos do Hospital Distrital de Santarém, foi em consequência da sua actuação que veio a ocorrer a morte, pois esta não teria ocorrido se o doente tem sido medicado e/ou tratado a tempo.
U) - No caso sub judice, por se tratar de facto ilícito, não é de exigir uma certeza ou um alto grau de probabilidade, basta admitir-se como razoável que o evento danoso não se teria verificado se tal facto não tivesse ocorrido ou que o facto ilícito não deva considerar-se indiferente para produzir o dano.
V) Por outro lado, ainda, apreciando de forma abstracta o facto ilícito, a inexistência de tratamento adequado perante uma doença potencialmente letal não pode deixar de ser considerada, segundo as regras da experiência e normalidade, como apropriada ou adequada para produzir os danos sofridos.
X) - Pelo que se conclui que a falta de diagnóstico e tratamento adequado no Hospital Distrital de Santarém, nas circunstâncias descritas, é causa adequada do evento, (morte), por o dano se apresentar como uma consequência normal ou como um efeito provável dessa verificação, sendo por isso de considerar, no plano jurídico, que a morte da vítima e danos consequentes foram devidos à negligente conduta dos agentes do Hospital Distrital de Santarém.
1. 3. O Exm.º Magistrado do Ministério Público emitiu o parecer de fls 322, que se passa a transcrever:
A sentença sob recurso, julgando a acção parcialmente provada e procedente, condenou o ora recorrente Hospital Distrital de Santarém ao pagamento aos autores da quantia de € 573.737,79 para ressarcimento de danos patrimoniais e não patrimoniais que haviam sido peticionados.
Para tanto, ponderou-se, em suma, na sentença que a morte do pai e marido dos AA da acção ocorrera devido a falta de diagnóstico e tratamento adequado nesse HDS, o que, atentas as circunstâncias dadas como provadas, seria atribuível a conduta negligente dos médicos desse estabelecimento hospitalar que o teriam assistido.
Não se crê que a sentença recorrida mereça qualquer censura, porquanto traduz correcta interpretação e aplicação do direito ao quadro factual dado por assente, sendo sabido que a procedência de pedido de indemnização fundado em danos decorrentes de erro clínico no tratamento de doentes pressupõe a prova da omissão dos cuidados devidos no seu tratamento e que essa omissão foi causa adequada dos danos verificados, no caso em apreço como decorrência da morte do marido e pai dos AA da acção.
Com efeito, como se salienta na sentença, resulta da matéria de facto assente que, pese embora o choque séptico ocorrido seja uma decorrência invulgar de um processo infeccioso, os médicos que assistiram o falecido sabiam que “a extracção de um dente nas condições já referidas acarretava um risco de disseminação da infecção que podia causar septicemia e determinar a morte caso não fosse medicada a tempo”.
Ora, perante esse quadro que não desconheciam, o certo é que os médicos em causa omitiram os cuidados necessários e adequados a obstar que a infecção detectada se generalizasse com o consequente perigo de eclosão de septicemia - cfr. resposta negativa ao quesito 6.° da base probatória.
Em tais circunstâncias, o falecimento verificado deveu-se á não realização dos actos médicos que normalmente se traduzem numa assistência diligente de acordo coma as normas e aplicáveis ao exercício da medicina, dessa forma se tendo violado as regras próprias das " legis artis”.
Termos em que se é de parecer que o recurso deverá ser improvido, mantendo-se, em consequência, a sentença recorrida."
1. 4. Foram colhidos os vistos dos Exm.ºs Juízes Adjuntos, pelo que cumpre decidir.
2. FUNDAMENTAÇÃO
2. 1. OS FACTOS:
2. 1. 1. Relativamente ao recurso de agravo do despacho de fls 194, consideram-se provados os factos constantes do requerimento de fls 172-173 e que o mesmo foi apresentado após elaboração do despacho saneador e a marcação do dia para a audiência de julgamento, mas antes da realização desta.
2. 1. 2. Relativamente ao recurso da sentença, foram nesta dados como provados os seguintes factos, que não estão questionados:
1. No dia 24 de Julho de 1996, o falecido ..., marido da Autora e pai do B... e do menor ..., porque sentia uma dor de dentes que persistia desde o dia anterior, consultou o ... - alínea A) dos Factos Assentes.
2. Assim, no consultório sito na Av. Dr. ..., ..., n° ..., ..., o ..., odontologista de profissão, fez o teste de percussão batendo com um pequeno martelo no dente do ..., reagindo este com dor ao ser-lhe batido o dente número 28, vulgarmente designado por dente do siso - alínea B) dos Factos Assentes.
3. Não obstante a referida dor que apontava para a existência de uma infecção, o ... extraiu o dente supra referido sem ter realizado qualquer estudo prévio, nomeadamente sem ter feito uma radiografia para ver a implantação do dente e sem ter, previamente, feito tratamentos antibacteriológicos e analgésicos, como exigiam as queixas clínicas manifestadas pelo ... e para prevenir complicações interiores - alínea C) dos Factos Assentes.
4. Após ter extraído o dente, o ... limitou-se a fazer uma simples desinfecção com betadine e após uma compressa na gengiva do paciente, sem prescrever qualquer medicamento antibiótico, anti-inflamatório, acrescentando que “se vissem algumas coisas brancas penduradas que seriam peles" e que “não se admirassem” - alínea D) dos Factos Assentes.
5. Durante a noite de 24 para 25 de Julho de 1996, ... teve febre alta, continuava com dores e apresentava a face inchada - alínea E) dos Factos Assentes.
6. Próximo da meia noite do dia 24 de Julho de 1996, ... foi examinado no seu domicílio por ..., médico belga, o qual achou que a gengiva “estava muito feia” - alínea F) dos Factos Assentes.
7. É foi-lhe receitado um antibiótico, “Augmentin”, aconselhando-o a ir ao Hospital ou a regressar a casa onde vivia no Cartaxo e continuar ali o tratamento caso as dores e a febre persistissem - alínea G) dos Factos Assentes.
8. No dia 25 de Julho, como os sintomas se mantinham, ..., dirigiu-se ao Centro de Saúde de Loulé onde foi assistido pela Dra. ..., a quem disse que lhe tinha sido extraído um dente, após o que ficou com febre e com dores, não conseguindo alimentar-se, não tendo referido a existência de abcesso - alínea H) dos Factos Assentes.
9. No Centro de Saúde de Loulé fez exames e análises conforme ficha clínica de fls. 70, do Processo Crime que correu termos no 1° Juízo Criminal da Comarca de Santarém com o n° 34/2000, e foi-lhe diagnosticado uma possível infecção urinária, tendo-lhe sido receitado um antibiótico, “Augmentin”, com efeito ao nível da infecção urinária e da cavidade bocal, o anti-inflamatório e analgésico “Nimed” e um desinfectante da cavidade bocal, “Betadine”, para tomar em casa em doses prescritas - alínea I) dos Factos Assentes.
10. Enquanto permaneceu no respectivo Centro de Saúde, a já referida Médica ministrou-lhe 500 c.c. de “Dextrose “ (vulgarmente designado Surol) e “Benuron”, comprimidos para prevenir a desidratação e combater as dores - alínea J) dos Factos Assentes.
11. No dia 26 de Julho de 1996, o falecido ... regressou ao Cartaxo onde residia e, por continuar com dores no corpo e com febre, dirigiu-se ao Centro de Saúde do Cartaxo onde foi atendido pelo Dr. ... - alínea L) dos Factos Assentes.
12. Este Médico, Dr. ..., leu a carta da sua Colega de Loulé, observou o doente e detectou-lhe uma pequena mancha vermelha no tronco e membros inferiores e colocou, como hipóteses de diagnóstico, síndrome febril indeterminado, com quatro dias de evolução, com Exantema (as referidas manchas), Monocleose Infecciosa ou Septicémia ou Sépsis (infecção generalizada) - alínea M) dos Factos Assentes.
13. Perante o quadro clínico não esclarecido, decidiu transferir o doente para o Hospital Distrital de Santarém para melhor avaliação em cuidados diferenciados, tendo escrito uma carta dirigida ao colega do Hospital de Santarém, dando conta da sua “Observação e Diagnóstico", conforme consta de documento de fls. 55 - alínea N) dos Factos Assentes.
14. Nesse mesmo dia 26 de Julho de 1996, ... foi assistido no Hospital Distrital de Santarém pelo Dr. ... - alínea O) dos Factos Assentes.
15. Este médico não deu relevância à carta do Colega do Cartaxo, examinou o doente e fez-lhe análises e exames, conforme consta de fls. 56 a 58, cujos resultados, depois de constatar que estavam alterados, atribuiu-os ao estado febril do paciente e manteve o antibiótico anteriormente prescrito, “Augmentin”, adicionando-lhe, para reforço da terapêutica, comprimidos de Glindamicina e um ansiolítico - alínea P) dos Factos Assentes.
16. No dia 27 de Julho de 1996, acompanhado pela mulher, voltou ao Hospital Distrital de Santarém, onde foi assistido pelo Dr. ... - alínea Q) dos Factos Assentes.
17. No referido dia 27, o ... contou ao Dr. ... que lhe tinha sido feita uma extracção dentária com abcesso no dia 24 de Julho - alínea R) dos Factos Assentes.
18. Relatou todas as assistências médicas que teve e os sintomas que permaneciam - alínea 5) dos Factos Assentes.
19. Apesar dos sintomas alarmantes contados ao Dr. ... por ... e esposa, este não lhe fez análises, não lhe mediu a temperatura, não lhe mediu a tensão arterial e não o mandou despir para examinar possíveis manchas - alínea U) dos Factos Assentes.
20. Após uma conversa de cariz particular, escreveu na ficha clínica de fls. 59 “infecção dentária" e prescreveu “Aspergic 1000", que o doente devia tomar se tivesse dores - alínea V) dos Factos Assentes.
21. Durante todo o dia 28 de Julho de 1996, ... permaneceu na cama continuando a queixar-se com dores e febre - alínea X) dos Factos Assentes.
22. No dia 29 de Julho, pela manhã, começou a sentir arrepios de frio e convulsões - alínea Z) dos Factos Assentes.
23. Dirigiu-se então de ambulância ao Centro de Saúde do Cartaxo, onde foi ordenada a sua transferência para o Hospital Distrital de Santarém com diagnóstico de eventual choque séptico ou coagulação vascular disseminada, conforme consta do documento de fls. 60 - alínea A1) dos Factos Assentes.
24. O Dr. ... alertou telefonicamente, nessa altura, o Serviço de Urgências do Hospital Distrital de Santarém para a grave situação em que se encontrava o doente, sugerindo a sua observação e internamento na Unidade de Cuidados Intensivos - alínea B1) dos Factos Assentes.
25. No Hospital Distrital de Santarém foram efectuados novos exames, conforme fls. 68 a 82, tendo sido ordenada a imediata transferência do doente para o Hospital de Santa Maria em Lisboa, onde deu entrada pelas 19 horas do dia 29 de Julho de 1996 e onde faleceu no dia seguinte pelas 08 horas e 25 minutos, em consequência de “Sépsis”, conforme relatório da Autópsia de fls. 79- alínea C1) dos Factos Assentes.
26. Os Drs. ... e ... sabiam que a extracção de um dente nas condições já referidas acarretava risco de disseminação da infecção que podia causar septicémia e determinar a morte se não fosse medicado a tempo - alínea D l) dos Factos Assentes.
27. O ... passou por dor e o sofrimento antes de morrer, sobretudo tendo em conta as circunstâncias em que a morte ocorreu, cerca de seis dias a movimentar-se dos Hospitais e Casas de Saúde para sua casa e de sua casa para esses locais com temperaturas muito altas, dores insuportáveis e uma angústia indescritível por sentir que estava a morrer - alínea El) dos Factos Assentes.
28. Aquando do falecimento de ..., os filhos deste e da Autora A..., B... e ..., eram ambos ainda menores - alínea F1) dos Factos Assentes.
29. Para sustentar a casa, o ... entregava à Autora a quantia de cerca de 300.000$00 (trezentos mil escudos) por mês - alínea G1) dos Factos Assentes.
30. Este montante entregue à esposa A... provinha, 124.760$00 de uma pensão paga pela Caixa Geral de Aposentações de quem ... era pensionista com o n° 0398654 e do vencimento de 176.000$00 por mês que recebia como Servente de Pedreiro (Docs. Se 6) - alínea H1) dos Factos Assentes.
31. Como ressarcimento dos danos patrimoniais causados aos Autores, tendo em conta a contribuição de 300.000$00 (trezentos mil escudos) mensais ou seja de 300.000$00 14 meses, em cada ano, deixaram auferir com a morte do ... 4.200.000$00 (quatro milhões e duzentos mil escudos) - alínea I1) dos Factos Assentes.
32. O ... à data dos factos que deram origem à sua morte tinha 45 anos de idade e, em função da previsão do tempo médio de vida para os homens, tinha uma esperança de vida de pelo menos 25 anos, se tivermos em linha de conta que os rendimentos deixados de auferir por esta família foram, pondo de parte não só a inflação como os aumentos salariais, 1.200.000$00 (quatro milhões e duzentos mil escudos) por ano, tendo em 25 anos, deixado de auferir o montante de 4.200.000$00x25 = 105.000.000$00 (cento e cinco milhões de escudos) - alínea J1) dos Factos Assentes.
33. O Dr. ... quando examinou o ... no dia 26 de Julho de 1996, não detectou no seu corpo as manchas no tronco e pernas - resposta ao artigo 1.º da Base Instrutória.
34. Os Drs. ... e ... não diagnosticaram um quadro de sépsis face aos sintomas apresentados por ... - resposta ao artigo 2° da Base Instrutória.
35. O choque séptico é decorrência invulgar de qualquer processo infeccioso - resposta ao artigo 7° da Base Instrutória.
36. Qualquer que seja a infecção - resposta ao artigo 8° da Base Instrutória.
2. 2. O DIREITO:
Estão interpostos, como foi referido, dois recursos: um do despacho que não admitiu a intervenção provocada dos médicos do Réu a quem é imputado o tratamento alegadamente deficiente e determinante da morte do ...; outro da sentença que, julgando a acção parcialmente procedente, condenou o Réu no pagamento da indemnização já referenciada.
O conhecimento do agravo precede, naturalmente, o do recurso interposto da sentença, na medida em que o seu provimento implicaria a anulação dessa sentença.
2. 2. 1. Recurso relativo ao indeferimento da intervenção provocada:
O despacho recorrido indeferiu esse pedido, por o considerar extemporâneo, na medida em que considerou que apenas podia ter sido requerido até ser proferido despacho saneador e foi requerido posteriormente à prolação desse despacho.
O Réu, ora agravante, não se conforma com esse indeferimento, defendendo que a intervenção podia ser requerida enquanto não estivesse julgada definitivamente a causa.
Mas não lhe assiste razão.
Com efeito, o pedido por ele formulado baseava-se no facto de, sendo os chamados os autores dos factos alegadamente determinantes da morte do ..., poderem ser, pelo menos, objecto do exercício do direito de regresso por parte do chamante, o que significa que tinham, em relação ao objecto da causa, um interesse igual ao deste.
Nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 325.º do CPC (diploma a que se referirão futuras citações sem qualquer menção), qualquer das partes tem direito a chamar a juízo o interessado com direito a intervir na causa, seja como seu associado, seja como associado da parte contrária, podendo, nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 326.º, essa intervenção ser requerida em articulado da causa ou em requerimento autónomo, até ao momento em que podia deduzir-se a intervenção espontânea em articulado próprio. Donde resulta que, contrariamente ao estatuído para a intervenção espontânea (que, na situação prevista na alínea a) do artigo 320.º, pode ser requerida a todo o tempo, enquanto a causa não estiver definitivamente julgada - artigo 322.º, n.º 1 - primeira parte), a intervenção provocada, mesmo com o fundamento previsto nessa parte do preceito (ter o chamado, em relação ao objecto da causa, um interesse igual ao do Autor ou do Réu), só pode ser requerida (tal como a situação prevista, para a intervenção espontânea, na segunda parte desse mesmo preceito) enquanto o interveniente espontâneo puder deduzir a sua pretensão em articulado próprio.
De acordo com o estabelecido no artigo 323.º, a intervenção espontânea pode ser deduzida em articulado próprio antes do despacho saneador, quando o processo a comportar, até ser designado dia para discussão e julgamento em 1.ª instância, quando o processo o não comportar, ou até ser proferida sentença em 1.ª instância, se não houver lugar a despacho saneador nem a audiência final.
No presente caso, a acção segue a forma ordinária dos processos civis de declaração (artigo 72.º, n.º 1, da LPTA) e , como tal, admite despacho saneador (cfr. artigos 508.º e 510.º), donde resulta que a intervenção espontânea só era admissível até ser proferido esse despacho.
Está assente que essa intervenção provocada foi requerida já depois de elaborado o despacho saneador e de ter sido marcado dia para a audiência de discussão e julgamento, pelo que bem andou o despacho recorrido ao indeferir esse chamamento.
Improcedem, assim, todas as conclusões das alegações do recorrente.
Os Autores, ora agravados, defendem que o Réu sabia bem da falta de fundamento da sua pretensão, visando, com o incidente em causa, gerar um procedimento meramente dilatório, o que torna ilegítima essa pretensão e o faz incorrer em litigância de má fé.
Mas, salvo o devido respeito, não vemos razão para assim considerar.
Com efeito, o Réu demonstrou inequívoco interesse no chamamento dos médicos, face à sua condenação em processo crime pela actuação que constitui a causa de pedir na presente acção, o que o tornaria titular de "pelo menos" direito de regresso contra os mesmos (cfr. artigo 2.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 48 051, de 31/11/67), titularidade essa que tornaria admissível esse chamamento (artigos 325.º, n.º 1, e 320.º, alínea a)). E, relativamente ao momento até ao qual esse chamamento podia ser requerido, indicou as razões por que entendia que podia ser requerido até ao julgamento da causa, razões essas que não foram acolhidas no despacho recorrido, das quais se apercebeu perfeitamente, só que discordou delas, continuando a defender as suas, com fundamentos de que discordamos, como resulta do que acima se referiu, mas que se nos afiguram não ser de considerar absurdos ou de tal modo inconsistentes que possam levar a formular um juízo sério sobre a sua intenção de apenas protelar o andamento do processo ou de dificultar a acção da justiça.
Consideramos, assim, que não existem elementos que permitam caracterizar a conduta do Réu como integrante de litigância de má fé.
2. 2. 2. Recurso da sentença:
A sentença recorrida julgou a acção parcialmente procedente, tendo condenado o Réu em montantes que este não chega a questionar, defendendo a total improcedência da acção, por inverificação dos requisitos facto ilícito, culpa e nexo de causalidade da responsabilidade civil extracontratual por actos ilícitos de gestão pública dos entes públicos, regulada pelo Decreto-Lei n.º 48 051, de 21/11/67.
A sentença julgou verificados todos os requisitos que considera estabelecidos na lei para essa espécie de responsabilidade, que considerou serem: o facto; a ilicitude; a culpa; o dano; e o nexo de causalidade.
Os Autores exercitam o seu direito à indemnização contra o Réu, decorrente da morte de ..., seu marido e pai, que atribuem a tratamento deficiente e negligente que lhe foi prestado no Hospital Réu, sendo indiscutível que se está, conforme considerou a sentença recorrida, perante um caso de responsabilidade civil extracontratual por actos ilícitos de gestão pública dos entes públicos, regulada pelo Decreto-Lei n.º 48 051, de 21/11/67.
Os requisitos enunciados nessa sentença e a sua caracterização não estão questionados nem merecem reparos. O que o Réu, ora recorrente, questiona é que a conduta dos seus agentes a quem é atribuído esse deficiente e negligente tratamento ao falecido ... seja de considerar ilícita e culposa e que tenha sido a causa determinante da morte deste.
A sentença recorrida considera que sim, defendendo, em síntese, que essa morte se ficou a dever a sépsis (infecção generalizada), que ocorreu na sequência de deficiente diagnóstico e tratamento à vítima, efectuados no seguimento de uma infecção decorrente da extracção do dente do siso, executada por serviços estranhos ao Réu.
Este, por sua vez, defende que os tratamentos ministrados foram os adequados perante o estado clínico apresentado, que era o de infecção dentária, e que a morte ocorrida não se ficou a dever a essa infecção, mas sim à infecção decorrente de uma pneumonia grave, não tratada, que determinou falência orgânica múltipla.
2. 2. 2. 1. Relativamente à causa da morte do infeliz ..., não há qualquer dúvida de que a mesma foi um processo de infecção generalizada com falência orgânica múltipla, habitualmente designada de "sépsis" ou "septicémia", não merecendo qualquer reparo, face aos elementos constantes dos autos, a consideração, em que assentou a construção da sentença recorrida, de que esse processo infeccioso foi desencadeado por uma infecção decorrente da extracção do dente do siso, infecção esta que, embora não sendo vulgarmente determinante da sépsis, a pode determinar, porquanto esta pode seguir-se a qualquer processo infeccioso.
Com efeito, resulta do relatório de autópsia de fls 79-82 dos autos que a vítima se apresentava "clinicamente sépsis, com coagulação intravascular disseminada. Baço séptico; pneumonia bilateral com áreas de hepatização vermelha. Múltiplas petéquias nas pleuras viscerais, superfície epicárdica e na árvore pielocalicial. Órgãos de estase. Congestão e edema pulmonares. Aterosclerose generalizada de grau ligeiro."
Nada dele nos permite extrair a conclusão, que defende o recorrente, de que a infecção generalizada foi causada por uma pneumonia não tratada, antes sendo de concluir que essa pneumonia se apresenta como a falência pulmonar decorrente da infecção. Infecção essa que deverá ser considerada, face aos restantes elementos constantes dos autos como uma infecção dentária (cfr. a consulta técnico-científica realizada no Conselho Médico Legal de Coimbra do Instituto Nacional de Medicina Legal de fls 147-148 dos autos e as respostas aos quesitos decorrentes dos depoimentos das testemunhas inquiridas - quatro médicos -, que não constam dos autos, mas que, tendo em conta a matéria da base instrutória a que responderam e a sua sequência e relacionamento com os factos dados como assentes, não podem deixar de se reportar a infecção dentária - vd., por exemplo, factos constantes das alíneas M) a B1) dos factos dados como assentes e, em especial os constantes da alínea V)).
A sentença recorrida, considerou que a sépsis - infecção generalizada -, que foi a verdadeira causa da morte do infeliz ..., podia e devia ter sido detectada, posição de que parte para considerar verificados os requisitos facto ilícito e culpa dos agentes do Réu e, consequentemente, deste.
Vejamos.
O facto ilícito traduz-se numa conduta voluntária dos órgãos ou agentes dos entes públicos que, no exercício das suas funções e por causa delas, violem as normas legais e regulamentares ou os princípios gerais aplicáveis e os actos materiais que infrinjam estas normas e princípios ou ainda as regras de ordem técnica e de prudência comum que devam ser tidas em consideração (artigo 6.º do referido Decreto-Lei n.º 48 051).
O que está em causa, no caso sub judice, é a violação das chamadas legis artis pelos médicos do Réu que atenderam e trataram a vítima.
Com relevância para a apreciação deste requisito, são de considerar os seguintes factos, dados como provados e que não merecem reparo, face aos elementos constantes dos autos:
- o falecido ... extraiu, no dia 24 de Julho de 1996, no consultório do Dr. ..., sito na ..., o dente do siso, na sequência do que foi acometido de febre alta e fortes dores no corpo;
- face a este quadro clínico, dirigiu-se ao Centro de Saúde de Loulé, no dia 25 do mesmo mês e ano, onde foi assistido pela Dra. ..., que lhe diagnosticou um infecção dentária e o medicou;
- no dia 26, regressou ao Cartaxo, onde residia e, por continuar com dores no corpo e com febre, dirigiu-se ao Centro de Saúde do Cartaxo onde foi atendido pelo Dr. ...;
- este Médico, Dr. ..., leu a carta da sua Colega de Loulé, observou o doente e detectou-lhe uma pequena mancha vermelha no tronco e membros inferiores e colocou, como hipóteses de diagnóstico, síndrome febril indeterminado, com quatro dias de evolução, com Exantema (as referidas manchas), Monocleose Infecciosa ou Septicémia ou Sépsis (infecção generalizada);
- e, perante o quadro clínico não esclarecido e a falta de meios auxiliares de diagnóstico, decidiu transferir o doente para o Hospital Distrital de Santarém para melhor avaliação em cuidados diferenciados, tendo escrito uma carta dirigida ao colega do Hospital de Santarém, dando conta da sua “Observação e Diagnóstico";
- nesse mesmo dia 26 de Julho de 1996, o ... foi assistido no Hospital Distrital de Santarém pelo Dr. ...;
- este médico não deu relevância à carta do Colega do Cartaxo, examinou o doente e fez-lhe análises e exames, cujos resultados, depois de constatar que estavam alterados, atribuiu ao estado febril do paciente e manteve o antibiótico anteriormente prescrito, “Augmentin”, adicionando-lhe, para reforço da terapêutica, comprimidos de Glindamicina e um ansiolítico;
- no dia 27 de Julho de 1996, acompanhado pela mulher, voltou ao Hospital Distrital de Santarém, onde foi assistido pelo Dr. ..., a quem contou que lhe tinha sido feita uma extracção dentária com abcesso no dia 24 de Julho, relatou todas as assistências médicas que teve e os sintomas que permaneciam;
- apesar de lhe terem contado todos os referidos sintomas, este não lhe fez análises, não lhe mediu a temperatura, não lhe mediu a tensão arterial e não o mandou despir para examinar possíveis manchas;
- após uma conversa de cariz particular, este médico escreveu, na ficha clínica de fls. 59, “infecção dentária" e prescreveu “Aspergic 1000", que o doente devia tomar se tivesse dores;
- durante todo o dia 28 de Julho de 1996, o ... permaneceu na cama continuando a queixar-se com dores e febre;
- no dia 29 de Julho, pela manhã, começou a sentir arrepios de frio e convulsões, tendo-se dirigido, de ambulância, ao Centro de Saúde do Cartaxo, onde foi ordenada a sua transferência para o Hospital Distrital de Santarém com diagnóstico de eventual choque séptico ou coagulação vascular disseminada;
- o Dr. ... alertou telefonicamente, nessa altura, o Serviço de Urgências do Hospital Distrital de Santarém para a grave situação em que se encontrava o doente, sugerindo a sua observação e internamento na Unidade de Cuidados Intensivos;
- no Hospital Distrital de Santarém foram efectuados novos exames, tendo sido ordenada a imediata transferência do doente para o Hospital de Santa Maria em Lisboa, onde deu entrada pelas 19 horas do dia 29 de Julho de 1996 e onde faleceu no dia seguinte pelas 08 horas e 25 minutos, em consequência de “Sépsis”.
- os médicos do Hospital de Santarém sabiam que a extracção de um dente nas condições em que foi efectuada a da vítima acarretava risco de disseminação da infecção que podia causar septicémia e determinar a morte se não fosse medicado a tempo.
Deste conjunto de factos resulta que o ... foi medicado, no Hospital de Santarém, apenas para uma infecção dentária, com o antibiótico “Augmentin”, já anteriormente prescrito no Centro de Saúde de Loulé, ao qual foram adicionados, para reforço da terapêutica, comprimidos de Glindamicina, tendo-lhe ainda sido prescrito um ansiolítico e Aspergic 1000", para as dores.
Esta medicação foi-lhe prescrita nos dias 26 e 27 de Julho, tendo-lhe sido dada alta em cada um desses dias, tendo vindo a falecer, após permanência em sua casa até ao dia 29 à tarde, na manhã do dia seguinte, vítima de uma infecção generalizada.
Ora, esta infecção generalizada não foi diagnosticada nem tratada pelos médicos deste hospital, não obstante para ela já apontar o diagnóstico do médico do Centro de Saúde do Cartaxo do dia 26 de Julho, no qual pela primeira vez foi assistido nos serviços do hospital.
Na verdade, na carta que enviou a estes serviços, aquele médico referia a existência de enxantemas (manchas vermelhas) no tronco e nos membros inferiores da vítima, manchas essas que não foram apreciadas pelos médicos do hospital e que podem estar presentes em quadros clínicos de sépsis, como resulta da consulta técnico-científica de fls 147-148, na qual também se conclui que a sintomatologia apresentada pela vítima era "compatível com evolução para choque séptico".
De tudo isto resulta que bem andou a sentença recorrida ao considerar ilícita a conduta dos médicos do Hospital de Santarém, por violação das legis artis no tratamento da vítima.
Com efeito, esta violação ocorre quando um médico não actua de acordo com o cuidado e os conhecimentos científicos que são exigidos a um médico de conhecimentos e capacidade médias, não satisfazendo, assim, o dever de utilizar as técnicas adequadas.
E, in casu, não obstante a existência dos referidos enxantemas ser compatível com outras situações patológicas, também era compatível com a sépsis, para cuja evolução apontava o quadro clínico do paciente. E, como tal, este quadro não podia ter deixado de ser equacionado.
Esta falta traduz uma inaceitável conduta dos médicos em causa, que apenas continuaram a medicar o paciente para uma simples infecção dentária, quando o seu quadro clínico apontava para provável evolução para choque séptico, do qual veio a falecer, choque esse que, não sendo vulgar na sequência de uma infecção dentária, era possível, e disso tinham conhecimento os médicos em causa (como foi dado como provado, sendo certo que se o não soubessem deviam sabê-lo, o que conduziria às mesmas consequências jurídicas). Foi a sépsis que motivou a falência de órgãos vitais e apenas aconteceu, em princípio, ou seja, de acordo o estado actual do conhecimento científico e da reacção normal ao tratamento adequado, por o tratamento ministrado (para a infecção dentária) não ter sido reforçado com antibióticos de espectro alargado nas doses recomendáveis para esta situação de infecção.
Nesta conformidade, consideramos que os médicos dos serviços do Réu não diagnosticaram devidamente, como deviam e podiam, a verdadeira situação clínica da vítima e, como tal, não lhe ministraram o tratamento adequado, pelo que a sua conduta é de considerar ilícita.
O Réu, ora recorrente, nas suas alegações, não ataca verdadeiramente esta posição, ou não a ataca em toda a sua extensão, antes defendendo que a vítima faleceu em virtude de uma pneumonia, que não foi tratada, aceitando que esta apenas foi tratada a uma infecção dentária.
Mas, como foi referido, não foi a pneumonia a causa da sua morte. E, por outro lado, o seu tratamento como se de uma simples ou normal infecção dentária se tratasse apenas a deficiente diagnóstico da sua situação clínica pode ser imputado, pois que, que conforme foi referido e resulta dos elementos constantes dos autos, essa situação já era de maior gravidade, porquanto era compatível com evolução de choque séptico.
Foi deste choque que a vítima veio a falecer, sem ter sido tratada para ele, pelo que, não sendo uma infecção dentária (patologia de que foi tratada) uma situação normalmente letal, o resultado danoso (morte) dela decorrente é de considerar, como bem se salienta no acórdão deste STA de 20/4/2004, proferido no recurso n.º 982/03, citado na sentença recorrida, "só por si, um forte índice de que a conduta do serviço da Ré, que antecedeu tal resultado gravoso, se não pautou por essas regras de arte e/ou prudência comum".
Improcedem, assim, as conclusões das alegações do recorrente relativamente à inverificação deste requisito.
2. 2. 2. 2. E o mesmo acontece no que respeita ao requisito culpa.
Na verdade, de acordo com jurisprudência pacífica, a culpa é o nexo de imputação ético-jurídica que liga o facto ao agente.
Para que se verifique, é, portanto, necessário que a conduta do agente seja censurável, a título de dolo ou negligência.
In casu, só a última forma estando em causa, existirá culpa se os médicos dos serviços do Réu devessem e pudessem ter tido condutas diferentes daquelas que tiveram e que produziram o resultado danoso que lhes é imputado, ou seja, se não actuaram com os deveres de cuidado e de competência (conhecimentos técnicos) que lhes eram exigidos, em função da actuação de um médico de diligência e capacidade médias.
E, como bem salientou a sentença recorrida, "as suas intervenções não foram concordantes com as correctas legis artis, em omissão culposa dos deveres que lhes cumpria observar, uma vez que podiam e deviam ter diagnosticado e prescrito o adequado tratamento ao doente, evitando o seu falecimento", donde resulta que é censurável e, como tal, culposa, a sua actuação.
Culpa que consideramos verificar-se efectivamente e que resulta do que acima foi expendido com mais pormenor relativamente ao requisito facto ilícito e que nos dispensamos de repetir, porquanto, tal como vem considerando a nossa jurisprudência, nesta espécie de responsabilidade, as condutas dos agentes, decorrentes do desrespeito dos deveres de cuidado e de aplicação das técnicas adequadas, preenchem simultaneamente os requisitos facto ilícito e culpa.
Improcedem, assim, também as conclusões das alegações relativas à inverificação deste requisito.
2. 2. 2. 3. Resta apreciar a verificação do requisito nexo de causalidade, que o recorrente também questiona, o que fez através da apreciação praticamente conjunta dos três requisitos em causa, dado haver uma grande interligação entre eles.
Concordando com essa interligação, pensamos decorrer do que já expendemos que também o nexo de causalidade se verifica.
Explicitando melhor, diremos que o nexo de causalidade é o elemento da responsabilidade que liga, objectivamente, os danos ao facto ilícito e culposo.
De acordo com o estabelecido no artigo 563.º do C. Civil, que consagra a teoria da causalidade adequada na formulação negativa de Ennecerus/Lehmann “A obrigação de indemnização só existe em relação aos danos que o lesado provavelmente não teria sofrido se não fosse a lesão”.
Para que se verifique é, portanto, necessário que os danos, apreciados segundo um juízo de prognose póstuma, sustentado em critérios de normalidade e razoabilidade ou de ordem técnica e na experiência comum, possam ser considerados consequência normal da lesão, ou seja, que a acção ou omissão da Administração se mostre adequada à produção do dano, gerando razoáveis probabilidades de o originar.
Tal como já considerámos, a morte do ... ficou-se a dever a uma infecção generalizada, que não foi devidamente diagnosticada e tratada pelos médicos dos serviços do Réu, infecção essa que podia ter sido evitada com o adequado tratamento. E, não tendo sido, podia ainda ter sido curada, pois que essa infecção, sendo uma situação clínica grave, potencialmente letal, não é, sempre, geradora da morte dos pacientes, pelo que é de aceitar que se tivesse sido tratado devidamente a sua morte não teria ocorrido. O que significa que a conduta dos médicos em causa não é de considerar indiferente na produção do dano e, como tal, que é perfeitamente razoável considerar que, sem a sua conduta ilícita, a morte não teria acontecido, o que nos leva a considerar verificar-se o nexo de causalidade entre essa conduta ilícita e culposa e o dano/morte.
Improcedem, assim, todas as conclusões das alegações do recorrente, pelo que são de considerar verificados, tal como decidiu a sentença recorrida, os requisitos facto ilícito, culpa e nexo de causalidade da responsabilidade civil do Réu, que vêm questionados no presente recurso.
3. DECISÃO
Em face de todo o exposto, acorda-se em negar provimento a ambos os recursos, confirmando-se as decisões recorridas.
Sem custas.
Lisboa, 29 de Novembro de 2005.
António Madureira (relator) – Fernanda Xavier – João Belchior.