Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0639/09
Data do Acordão:11/18/2009
Tribunal:2 SUBSECÇÃO DO CA
Relator:ALBERTO AUGUSTO OLIVEIRA
Descritores:DOMÍNIO PÚBLICO
DOMÍNIO PRIVADO
PARQUE FLORESTAL DE MONSANTO
Sumário:I - O Parque florestal de Monsanto encontra-se submetido ao regime florestal total;
II - A desafectação do domínio público para o domínio privado do Município de Lisboa de parcelas de terrenos integrantes do Parque florestal de Monsanto só podia ser feita por diploma com valor correspondente àqueles pelos quais se integraram no domínio público daquele município;
III - A constituição de direitos de superfície sobre parcelas de terrenos integrantes do Parque florestal de Monsanto não podia ser feita pelo Município de Lisboa sem prévio diploma legal que o permitisse, de valor equivalente ao que determinou a sujeição do mesmo ao regime florestal total.
Nº Convencional:JSTA00066110
Nº do Documento:SA1200911180639
Data de Entrada:06/15/2009
Recorrente:ASSOC DE MORADORES E AMIGOS DA FREGUESIA DE S. FRANCISCO DE XAVIER
Recorrido 1:CM DE LISBOA E OUTRAS
Votação:UNANIMIDADE
Meio Processual:REC JURISDICIONAL.
Objecto:SENT TAC LISBOA.
Decisão:PROVIDO.
Área Temática 1:DIR ADM GER - DOM PUB.
Legislação Nacional:DL 24625 DE 1934/11/01 ART1 ART9.
DL 29135 DE 1938/11/16 ART1.
D DE 1901/02/12 ART25 ART26 PARÚNICO.
D DE 1903/12/24 ART3 PAR1 PAR2 ART4 PAR4 ART212.
DL 794/76 DE 1976/11/05 ART1.
CONST89 ART84 N2 ART246.
LAL84 ART2 ART88 N1 A.
RGU DO PLANO DIRECTOR MUNICIPAL DE LISBOA APROVADO PELA RCM 94/93 DE 1993/07/14 IN DR N226 DE 1993/09/29 ART18 ART19 ART78 ART81 ART82.
DL 254/2009 DE 2009/09/24 ART5 JJ.
CPA91 ART133 N2 D.
Referência a Doutrina:MARCELLO CAETANO MANUAL DE DIREITO ADMINISTRATIVO 9ED TII PAG898 PAG899 PAG932 PAG965.
Aditamento:
Texto Integral: Acordam na Secção de Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo:
1.
1.1. A Associação de Moradores e Amigos da Freguesia de S. Francisco de Xavier de Lisboa interpôs, enquanto autora popular, recurso contencioso de anulação contra a Câmara Municipal de Lisboa (CML), A…, Lda. e B…, Lda., pedindo que fossem declaradas nulas e de nenhum efeito:
a) As deliberações da Recorrida de 2.10.1987, face à proposta nº 326/87 e de 27.8.1997, face à proposta nº 519/97;
b) A afectação ao domínio público privado da CML do prédio com área de 18 ha do Parque Florestal de Monsanto e descrito sob as fichas 00786/191288 e 02575/980630, freguesia da Ajuda da 3ª Conservatória do Registo Predial de Lisboa, desanexados na sequência das referidas deliberações;
c) A escritura de constituição de direito de superfície lavrada a fls. 47 a 50v do livro de notas 26-M do Notário Privativo da CML, em 16.6.1998;
d) E mandadas cancelar as supra referidas descrições prediais e todos os registos que sobre as referidas fichas foram averbados.
1.2. Por sentença do Tribunal Administrativo do Círculo de Lisboa (fls. 799/812), depois de se julgar inexistir qualquer nulidade, foi o recurso rejeitado, por extemporaneidade.
1.3. Inconformada, a Associação de Moradores e Amigos da Freguesia de S. Francisco de Xavier de Lisboa interpõe o presente recurso jurisdicional.
1.3.1. Nas suas alegações, começa por defender alteração da matéria de facto, nos seguintes termos:
“I - Da alteração da matéria de facto - adição de factos manifestamente provados por acordo das partes e conformidade com a Prova documental presente nos autos
Com elevado respeito, pensa a recorrente que os factos estão especificados com enorme insuficiência e, inclusivamente, com a obliteração de matéria factual oportunamente alegada, uma vez que os autos, (i.e. a posição das partes, a prova documental e o processo administrativo instrutor) revelam, com manifesta e segura evidência, um conjunto notável de factos provados, com manifesta relevância e impacto para os autos e na justiça da decisão final.
Sendo certo que, caso assim se não considerasse (o que se admite como mera hipótese de patrocínio), o caminho a seguir deveria ter sido a elaboração do questionário e o julgamento de facto, e não o desfecho ditado pela sentença ora em crise.
A recorrente vem propor ao Venerando Tribunal a quo que os factos provados sejam alterados de modo a que passem a constar os seguintes:
1) Pelo Decreto-Lei nº 24.625 de 1 de Novembro de 1934, foi criado no concelho de Lisboa o "Parque Florestal de Monsanto", com uma área aproximada de 600 hectares, sob a promoção da Câmara Municipal de Lisboa, e mediante a expropriação de terrenos particulares ou transferência para a posse da Câmara Municipal de Lisboa de prédios rústicos do Estado (facto provado através do diploma em causa).
2) O Parque Florestal de Monsanto foi devidamente demarcado, tendo a última delimitação rigorosa do parque sido efectuada de modo conjunto pela Câmara Municipal de Lisboa e pela Direcção Geral das Florestas em Maio de 1979 (facto provado por acordo das partes. cf. ainda o processo administrativo instrutor).
3) Delimitação na qual se encontra abrangida a área de 180.000 m2 em causa nos presentes autos e infra referida, descrita 3ª Conservatória do Registo Predial de Lisboa, sob as fichas 00786/191288 e 02575/980630, freguesia da Ajuda (facto provado pela certidão da descrição e inscrições em vigor).
4) Por deliberação da Câmara Municipal de Lisboa tomada em sessão de 2 de Outubro de 1987, face à Proposta 326/87 foi deliberado "desafectar do domínio público da Câmara para o domínio privado da Câmara a parcela de terreno municipal, com cerca de 18 ha integrada no Parque Florestal de Monsanto indicado a tracejado na carta anexa. / Os limites precisos da mesma serão definidos na carta da cidade de Lisboa à escala 1/100. fls. 62, F2 , F3 e E2 ... " (esta redacção é manifestamente mais completa que a apresentada pelo Digníssimo Tribunal recorrido sob a alínea A) a folhas 6 da douta sentença - sem compreensão, segundo o critério da recorrente, o Digníssimo tribunal recorrido omite pura e simplesmente a parte final da deliberação transcrita) (facto provado por documento junto com a petição inicial, cf. ainda o processo administrativo instrutor).
5) Na mesma deliberação camarária, foi aprovado "constituir a favor da sociedade A… e um direito de superfície sob a parcela de terreno sita no Parque Florestal de Monsanto orlada a cor vermelha na cópia da planta 249/87, com área de 20 ha, confrontando em todo o perímetro com a CML, destinada à construção de um parque de diversões aquáticas e desportivas de lazer nas condições constantes da mesma proposta" (este facto foi omitido pura e simplesmente na douta sentença recorrida, afigurando-se da maior relevância para o correcto enquadramento de facto e de direito da questão em litígio) (facto provado por documento junto com a petição inicial, cf. ainda o processo administrativo instrutor).
6) Pela deliberação de 27.8.1997, face à proposta n° 519/97, foram tecidos os seguintes considerandos: "Considerando a vigência do Plano de Ordenamento e Revitalização do Parque Florestal de Monsanto, aprovado em 1989, que se encontra globalmente integrado no Plano Director Municipal e a que urge dar continuidade; // Considerando que o Parque Urbano do Alto do Duque faz dele parte integrante, tendo sido implementado na sequência da sua aprovação; // Considerando que para dificuldades económicas e devido ao acidente nele ocorrido em Junho de 1993, o mesmo se encontra desactivado; // Considerando que é de inegável interesse público dotar o Parque de infra-estruturas próprias que se traduzam em pólos de animação e recreio que levem as pessoas a usufruir das potencialidades do Parque Florestal de Monsanto; Considerando ter-se encontrado sociedade interessada em fazer a exploração do espaço, propondo-se criar nele um parque temático de diversões; // Considerando que este espaço foi atribuído, em regime de direito de superfície, à Sociedade A…, Lda., por deliberação de Câmara de 1987/10/02, nunca tendo sido celebrada a correspondente escritura e que esta Empresa dá o seu acordo a revogação da atribuição e posterior cedência a outra Entidade" e deliberado: "Revogar a constituição do direito de superfície a favor da Sociedade A…, Lda., da parcela de terreno sito no Parque Florestal de Monsanto, identificada na proposta nº 326/87 aprovada em sessão de Câmara de 1987/10/02. // Constituir a favor da B… Lda., o direito de superfície sobre a parcela de terreno orlado a vermelho na cópia da planta anexa, com a área de 81,200m2 e o valor de 8.120.000$00 " a destacar do prédio sito na Av. … no Parque Florestal de Monsanto, destinado a construção de um Parque Temático de Diversões. ( ... ) (seguimos aqui a redacção constante da sentença impugnada na alínea B dos factos provados) (facto provado por documento junto com a petição inicial, cf. ainda o processo administrativo instrutor).
7) Por escritura celebrada a 16 de Junho de 1998, a Câmara Municipal de Lisboa, a fls. 47 a fls. 50v do livro de notas 26-M do Notário Privativo da Câmara Municipal de Lisboa, dando execução à deliberação tomada na sua reunião de 27 de Agosto de 1997, que aprovou a proposta nº 519/97, constituiu a favor da B… um direito real de superfície, com vista a que este construa, numa parcela com 81 mil m2 do terreno em causa, um Parque de diversões (esta redacção é manifestamente mais completa que a apresentada pelo Digníssimo Tribunal recorrido sob a alínea C) a folhas 6 da douta sentença - sem compreensão para a recorrente, o Digníssimo Tribunal recorrido omite pura e simplesmente a parte final do enunciado presente na escritura que titula o direito de superfície) (facto provado por documento junto com a petição inicial).
8) Na sequência, foi desanexado da ficha 00786/191288 (Ajuda) da 3ª Conservatória do Registo Predial de Lisboa - criada na sequência da primeira deliberação - uma parcela de terreno com 81.200m2, que foram formar a descrição nº 02575/980630 (Ajuda) (este facto foi omitido pura e simplesmente na douta sentença recorrida) (facto provado pela certidão da descrição e inscrições em vigor).
9) Na escritura de constituição do direito de superfície, a Câmara denomina a parcela de terreno que pertence ao Parque Florestal de Monsanto de lote de terreno para construção (este facto foi omitido pura e simplesmente na douta sentença recorrida) (facto provado por documento junto com a petição inicial).
10) Nos termos do art. 4 da escritura de constituição do direito de superfície a favor da B… ficou estipulado que todos os projectos a apresentar pelo titulares do direito de superfície deverão ser aprovados nos termos do Decreto-Lei nº 445/91, de 20 de Novembro (regime jurídico do licenciamento municipal de obras particulares) (este facto foi omitido pura e simplesmente na douta sentença recorrida) (facto provado por documento junto com a petição inicial).
11) A sociedade B… apresentou junto da CML estudo sobre o impacto sonoro do Parque temático de Diversões (seguimos aqui a redacção constante da sentença impugnada na alínea D dos factos provados) (facto provado por documento junto com a petição inicial).
A sentença recorrida deu ainda por provados outros 4 factos que apenas têm interesse processual para o julgamento de mérito das excepções de legitimidade, litispendência e extemporaneidade do recurso contencioso, questões essas que foram julgadas com correcção, razão pela qual se torna desnecessário reproduzir os mesmos factos”.
1.3.2. E apresenta as seguintes conclusões:
“I. O digníssimo Juiz recorrido não elegeu a totalidade dos factos que se devem considerar provados face às alegações das partes, a uma apreciação crítica dos documentos juntos com a petição inicial ao longo do processo e, bem assim, do processo administrativo instrutor (nº 1318/PGU/97 apenso ao processo 3404/PGU/98).
II. Assim, uma apreciação crítica de toda a prova documental, face à posição das partes, permite que o elenco dos factos provados seja composto por aqueles que a recorrente propõe supra no ponto I destas alegações, cujo conteúdo se considera aqui reproduzido para todos os efeitos legais, nomeadamente de ordem processual e substantiva.
III. As deliberações tomadas nas reuniões da recorrida Câmara Municipal de Lisboa de 2 de Outubro de 1987, face à proposta 326/87 e de 27 de Agosto de 1997, face à proposta nº 519/97 são nulos e de nenhum efeito. IV. Pois que ao determinarem a afectação ao domínio privado da Câmara Municipal de Lisboa do prédio com área de 180.000 m2 (18 ha) do Parque Florestal de Monsanto e descrito sob as fichas 00786/191288 e 02575/980630, freguesia da Ajuda da 3ª Conservatória do Registo Predial de Lisboa, violam e invadem as atribuições e as competência do Governo.
V. As deliberações em causa e a execução das mesmas evidenciam com clareza que os terrenos em causa são transformados de "parque florestal" em "terrenos aptos à construção",
VI. O Parque Florestal de Monsanto está sujeito ao regime jurídico, por acto legislativo, Florestal total.
VII. E no âmbito desse regime, conforme normativos abundantemente referidos ao longo dos autos, a alteração do uso ou da ocupação dos solos para fins urbanísticos carece de prévia aprovação da Administração Pública, pois que o regime florestal total tende a subordinar o modo de ser da floresta ao interesse geral, isto é, aos fins de utilidade nacional que constituem a causa primeira da sua existência e criação, impondo o legislador expressamente que a Câmara Municipal de Lisboa só pode, mediante autorização do Governo, fazer a concessão da exploração de recintos e instalações de recreio dentro do Parque Florestal da Cidade - conforme é letra expressa pelo legislador em vários normativos, publicados em épocas históricas diversas.
VIII. Este entendimento não é ferido por qualquer leitura de normativos posteriores ou anteriores às deliberações nulas em causa, nomeadamente daqueles que regulamentam as atribuições e competências das autarquias locais, sejam de direito ordinário ou de natureza constitucional.
IX. Tal como é posição firme dos Tribunais Administrativos.
X. Deste modo, também é nula e de nenhum efeito a escritura de constituição de direito de superfície lavrada a fls 47 a fls. 50v no livro de notas 26-M do Notário Privativo da Câmara Municipal de Lisboa, em 16 de Junho de 1998.
XI. Pelo que devem ser declaradas as alegadas nulidades e ordenado o cancelamento das supra referidas descrições prediais e todos os registos que sobre as referidas fichas foram averbados.
XII. Procedendo inteiramente o pedido.
XIII. Ao julgar de outro modo o digníssimo Juiz recorrido violou, entre outras, as normas que se extraem do Decreto-Lei nº 24.625, de 1 de Novembro de 1934, do Decreto-Lei nº 29.135 de 16 de Novembro de 1938, do Decreto de 24 de Dezembro de 1903, do Decreto-Lei nº 380/74, de 22 de Agosto e do art. 1° da Lei dos Solos, aprovado pelo Decreto-lei nº 794/76, de 5 de Novembro”.
1.4. A recorrida Câmara Municipal de Lisboa apresentou alegações nas quais, depois de se reportar à factualidade assente na sentença e à fundamentação da mesma para a decisão, discorre:
“Por deliberação de 2 de Outubro de 1987, a CML deliberou desafectar do seu domínio público para o seu domínio privado, uma parcela de terreno com cerca de dezoito hectares.
Deliberou, ainda, constituir a favor da A… o direito de superfície sobre essa mesma parcela.
E, esse poder, milita sem margem para dúvidas na sua esfera de competências. Esse mesmo poder derivava, quer do DL nº 100/84, de 29 de Março, quer da Lei nº 42/98, de 6 de Agosto quer, por último, da própria Constituição.
Como muito bem é referido na decisão em crise, a Câmara Municipal não retirou o terreno, por via das deliberações em causa, do designado regime florestal total, mas apenas os desafectou do domínio público para o domínio privado. Daí que não tenha ocorrido qualquer desanexação, mas tão-somente, uma mera desafectação. Ora, fazendo o Parque Florestal de Monsanto parte integrante do domínio público da Câmara, compete a esta administrá-lo, tal como fez.
Por outro lado, o Parque Florestal de Monsanto está, por via do RPDM (Regulamento do Plano Director Municipal) integrado na chamada Área Verde de Recreio. Analisadas as normas regulamentares que disciplinam estas áreas, facilmente se conclui ser permitida a construção de infra-estruturas e de equipamentos de apoio ao recreio e lazer.
No que se refere à alegada falta de atribuições, importa deixar expresso que discordamos da tese da ora recorrente. Na verdade, é consabido que as atribuições constituem o conjunto de fins que, por lei, incumbe às pessoas colectivas de direito público atingir.
Resulta do artigo 13° da Lei nº 159/99, de 14 de Setembro, que os municípios dispõem de atribuições quer no domínio dos equipamentos urbanos, quer no domínio dos tempos livres e desporto. Acresce ser da competência dos órgãos municipais, o planeamento, a gestão e a realização de investimentos no domínio dos espaços verdes (artigo 16° do citado diploma legal), bem como planear e gerir instalações e equipamentos para a prática desportiva e recreativa (artigo 21 ° nº 1, alínea b).
Assim sendo, dúvidas não subsistem de que são atribuições dos municípios tudo o que respeita a equipamentos urbanos, bem como tudo o que se relaciona com tempos livres e desporto das respectivas populações”.
1.5. A recorrida B…, Lda. alegou, concluindo:
“1. A decisão recorrida tomou em consideração todos os factos e documentos juntos aos autos com interesse para a decisão da causa, não havendo necessidade de aditar qualquer novo facto aos factos assentes, ou de alterar a redacção dada a estes;
2. Os terrenos em causa não foram desafectados do regime florestal a que se encontravam e continuam a encontrar sujeitos;
3. Tais terrenos passaram apenas do domínio público da Câmara Municipal de Lisboa para o seu domínio privado, continuando sujeitos ao mesmo regime florestal;
4. Tal passagem do domínio público para o domínio privado pode ser feita por acto administrativo, não tendo que ser feita por diploma legal;
5. Não houve, assim, inobservância de forma legal nos actos em causa nos autos;
6. O diploma que criou o Parque Florestal de Monsanto previu desde logo a possibilidade de a Câmara Municipal de Lisboa fazer a concessão e exploração ele recintos e instalações dentro daquele Parque:
7. Com o DL 100/84 deixou de ser necessária prévia autorização do Governo para aquele efeito;
8. Apesar disso, tem de entender-se que o Governo o consentiu ao aprovar o Plano Director Municipal de Lisboa, no qual aquele parque florestal surge como área verde de recreio que permite a construção de infraestruturas e equipamentos de apoio ao recreio e lazer;
9. Os actos praticados integram-se nas atribuições da Câmara de Lisboa;
10. Aqueles actos não afectam nem o ambiente nem a qualidade de vida dos cidadãos em geral e nomeadamente dos residentes da freguesia de S. Francisco Xavier:
11. E muito menos afectam o conteúdo essencial daqueles direitos.
12. Por outro lado, os direitos fundamentais protegidos pelo artigo 133 nº 2 alínea d) do CPA não abrange os direitos ao ambiente e qualidade de vida.
13. Os actos recorridos não enfermam, pois, de nulidade”.
1.6. O EMMP emitiu parecer no sentido do não provimento do recurso, louvando-se na posição já assumida pelo MP nos autos.
Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.
2.
2.1. A sentença considerou a seguinte factualidade:
“A. Pela deliberação de 2.10.1987, referente à proposta nº 326/87 foi deliberado desafectar do domínio público da Câmara para o domínio privado da Câmara a parcela de terreno municipal com cerca de 18 ha integrada no Parque Florestal de Monsanto (ponto 2-a) da deliberação) e construir a favor da sociedade A…, Lda. o direito de superfície sobre a parcela de terreno, destinada à construção de um Parque de Diversões Aquáticas e Desportivas de Lazer (ponto 3 idem) (cfr. doc. 2 de fls. 295 a 297 idem);
B. Pela deliberação de 27.8.1997, face à proposta nº 519/97, foram tecidos os seguintes considerandos: "Considerando a vigência do Plano de Ordenamento e Revitalização do Parque Florestal de Monsanto, aprovado em 1989, que se encontra globalmente integrado no Plano Director Municipal e a que urge dar continuidade; // Considerando que o Parque Urbano do Alto do Duque faz dele parte integrante, tendo sido implementado na sequência da sua aprovação; // Considerando que por dificuldades económicas e devido ao acidente nele ocorrido em Junho de 1993, o mesmo se encontra desactivado; // Considerando que é de inegável interesse público dotar o Parque de infraestruturas próprias, que se traduzam em pólos de animação e recreio que levem as pessoas a usufruir das potencialidades do Parque Florestal de Monsanto; // Considerando ter-se encontrado sociedade interessada em fazer a exploração do espaço, propondo-se criar nele um parque temático de diversões; // Considerando que este espaço foi atribuído, em regime de direito de superfície, à Sociedade A…, Lda., por deliberação de Câmara de 1987/10/02, nunca tendo sido celebrada a correspondente escritura e que esta Empresa dá o seu acordo à revogação da atribuição e posterior cedência a outra Entidade" e deliberado: "Revogar a constituição do direito de superfície a favor da Sociedade A…, Lda., da parcela de terreno sito no Parque Florestal de Monsanto, identificada na proposta n° 326/87 aprovada em sessão de Câmara de 1987/10/02. // Constituir a favor da B…, Lda, o direito de superfície sobre a parcela de terreno orlado a vermelho na cópia da planta anexa, com a área de 81,200m2 e o valor de 8120.000$00, a destacar do prédio sito na Avª … no Parque Florestal de Monsanto, destinado à construção de um Parque Temático de Diversões. ( ... )" (cfr doc. 1 de fls. 289 a 294 ibidem);
C. Por escritura lavrada em 16.6.1998, a CML, a fls. 47 a 50v do livro de notas 26-M do Notário Privativo da Câmara, deu execução à deliberação que antecede, constituindo a favor da B… o direito real de superfície sobre a indicada parcela de terreno "para construção" "instalação de um Parque de Diversões" (cfr. doc. 1 de fls. 84 a 88 ibidem);
D. A sociedade B… apresentou junto da CML estudo sobre o impacto sonoro do Parque temático de Diversões (cfr. doc. 5 de fls. 172 a 203 ibidem);
E. A Recorrente é uma Associação de moradores e amigos da freguesia de S. Francisco de Xavier constituída em 29.6.1999, sem intuitos lucrativos e que visa a promoção e defesa da qualidade de vida, ambiente, urbanismo, cultura, tempos livres e património na área geográfica da referida freguesia, especialmente do património edificado e área florestal de Monsanto (cfr. doc. 2 de fls. 89 a 101 que se dá por integralmente reproduzido);
F. A ora Recorrente instaurou, em 1999, no Tribunal Cível da Comarca de Lisboa acção de processo comum declarativo sob a forma ordinária, tramitada como proc. 568/99, na 1ª Secção, contra CML e as sociedades A… e B…, pedindo a declaração de nulidade: da escritura de constituição do direito de superfície lavrada a fls. 47 a 50v do livro de notas 26-M do Notário Privativo da Câmara; da afectação ao domínio privado da Câmara da referida parcela de terreno na sequência das deliberações camarárias de 2.10.1987 e 27.8.1997; a devolução ao domínio público daquela parcela e o cancelamento das descrições prediais e de todos os registos que foram averbados (cfr. doc 6 de fls. 204 a 224 ibidem);
G. Em 1.9.1999 deu entrada neste Tribunal o recurso contencioso de anulação, pedindo a declaração de nulidade: das deliberações camarárias de 2.10.1987 e 27.8.1997; da afectação ao domínio privado da Câmara da referida parcela; da escritura de constituição do direito de superfície lavrada a fls. 47 a 50v do livro de notas 26-M do Notário Privativo da Câmara; e o cancelamento das descrições prediais e de todos os registos que foram averbados (cfr. de fls. 2 a 20 ibidem);
H. Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 6.2.2003, proferido no processo, nº 10379/02-6, foi mantida a sentença do Tribunal Cível da Comarca de Lisboa na parte que declarou a incompetência do tribunal em razão da matéria e absolveu as RR. da instância (cfr. de fls. 710 a 714 ibidem).”
2.2.1. Pretende a recorrente alteração da matéria de facto com “adição de factos manifestamente provados por acordo das partes e conformidade com a Prova documental presente nos autos”.
Verifica-se que não se trata, tanto, de factualidade não considerada pela sentença, mas, sim, de “redacção mais completa”.
De qualquer modo, sem necessidade de outras considerações, e pois que se trata de matéria provada, será tida em consideração na presente decisão.
2.2.2. Para mais fácil compreensão do que está em causa no presente recurso jurisdicional, é útil transcrever o seguinte sector da fundamentação de direito da sentença:
“1. Da não observância na prática dos actos administrativos requeridos da forma legal
Da factualidade dada por assente resulta que, pela primeira das deliberações, de 2.10.1987, a CML decidiu desafectar uma parcela de terreno do Parque Florestal de Monsanto do domínio público da Câmara para o domínio privado da mesma e constituir um direito de superfície sobre a mesma a favor da sociedade A…; sendo que pela deliberação de 27.8.1997, manteve essa desafectação e constituiu o direito de superfície para a B….
Defende a Recorrente, em síntese, que, por o Parque Florestal de Monsanto, criado pelo Decreto-Lei nº 24.625, de 1 de Novembro de 1934, ter ficado sujeito ao regime Florestal Total, nos termos do Decreto-Lei nº 29.135, de 16 de Novembro de 1938, e este diploma, no § 4° do artigo 4° dispor que “a submissão de quaisquer terrenos ou matas ao regime florestal, far-se-á por decreto publicado no Diário do Governo, a fim de produzir os devidos efeitos perante os poderes públicos, nos termos do artigo 32° da parte IV do Decreto de 24 de Dezembro de 1901”, o acto de desafectação recorrido deveria ter observado a forma de decreto, como aconteceu com a desanexação do Parque Florestal de Monsanto de uma área para ser integrada na Tapada da Ajuda (Decreto-Lei nº 379/88, de 24 de Outubro).
A Entidade recorrida entende que o referido Decreto de 1903 se deve considerar implicitamente revogado quer pela Lei nº 33/96, de 17 de Agosto, que aprova as bases da política florestal e pelo Decreto-Lei nº 205/99, de 9 de Junho, que veio regular o processo de elaboração, aprovação e execução e alteração do plano de gestão florestal e que, se assim não se entender, o mencionado artigo 4° não exige a forma de decreto para a desafectação de parte do terreno do domínio público para o domínio privado, não deixando de integrar o regime florestal total.
Apreciando.
Sendo a primeira deliberação recorrida de 1987, à data estava em vigor o referido Decreto de 1903 e não os diplomas indicados pela Entidade recorrida (de 1996 e 1999, respectivamente). Afastada a revogação ainda que implícita da norma citada, importa determinar se, no caso da deliberação de desafectação da parcela do terreno do Parque Florestal de Monsanto, em litígio, era exigida a forma de decreto.
A norma indicada refere-se expressamente aos casos em que ocorre a submissão de terrenos ou matas ao regime florestal, por forma a produzir os efeitos pretendidos perante os poderes públicos. No caso indicado, como exemplo pela Recorrente, ocorreu uma desanexação de uma parcela de terreno do Parque de Monsanto que foi excluída do regime de floresta total e integrada na Tapada da Ajuda. Ora, na situação em apreço não ocorreu a desanexação ou exclusão da parcela de terreno do regime florestal mas apenas uma desafectação do regime público para o privado da CML que continua a ser responsável pela sua administração. O mesmo se passa relativamente à segunda deliberação em que a situação de desafectação da mesma parcela de terreno se mantém, com os mesmos contornos, diferindo apenas na entidade a favor de quem o respectivo direito de superfície foi constituído.
Face ao que deve improceder o vício invocado como gerador de nulidade das deliberações recorridas.
2. Da carência de aprovação prévia da administração Pública.
Alega a Recorrente que, considerando a importância da zona do Parque Florestal de Monsanto (demarcada legalmente) e o previsto no artigo 1° da Lei dos Solos, aprovada pelo Decreto-Lei nº 794/76, de 5 de Novembro, - “a alteração do uso ou da ocupação dos solos para fins urbanísticos ... carece de prévia aprovação da Administração Pública” -, e, constando da escritura de constituição do direito de superfície a favor da B…, que a parcela de terreno desafectada do Parque Florestal de Monsanto é para construção, a Entidade recorrida deveria ter obtido para o efeito a aprovação prévia do Ministério das Obras Públicas, Comércio e Indústria.
Contrapõe a Entidade recorrida que, em observância do princípio constitucional da autonomia do poder local (artigo 240°, actual 238°, da CRP), detém, legalmente, poderes que lhe permitem agir no domínio da gestão do seu património, incluindo o do seu domínio público (indicando o Decreto-Lei nº 100/84, de 29 de Março, entretanto revogado pela Lei nº 169/99, de 18 de Setembro e a Lei 42/98, de 6 de Agosto) com vista a prosseguir as suas atribuições, no interesse público geral, não tendo a Administração Central que actuar nesse domínio.
Apreciando.
O vício invocado pela Recorrente prende-se directamente com o teor da escritura de 16.6.1998, pela qual a CML deu execução à deliberação de 27.8.1997, constituindo a favor da B… o direito real de superfície sobre a indicada parcela de terreno, referindo que era para "construção" e "instalação de um Parque de Diversões".
À data vigorava o referido Decreto-Lei 100/84, que actualizou e reforçou as competências das autarquias locais em observância do princípio constitucional da autonomia das autarquias locais, constando no artigo 2° que constitui atribuição das autarquias locais o que diz respeito aos interesses próprios, comuns e específicos das populações respectivas, designadamente, à administração de bens próprios e sobre sua jurisdição.
Pela revisão constitucional de 1989, foi introduzido o artigo 84° relativo ao "Domínio público", dispondo no nº 2 que a lei define os bens, no que ao caso interessa, que integram o domínio público das autarquias locais, bem como o seu regime, condições de utilização e limites.
Em 1994, foi ratificado pelo Governo o Regulamento do Plano Director Municipal de Lisboa (Resolução de Conselho de Ministros nº 94/94, de 14.7, publicada no DR nº 226 de 29 de Setembro) que, entre outras, identifica as áreas verdes, integradores de um conjunto de categorias de espaços diferenciados - de protecção, de recreio e de produção, recreio, lazer e pedagogia - em função da Estrutura Verde da Cidade e pelos usos e ocupações permitidos (preâmbulo e artigos 18°, 19°, 78°, 81° e 82° do referido Regulamento), sendo que o Parque Florestal de Monsanto está, de acordo com a planta de classificação do espaço urbano anexa ao regulamento, integrado na denominada área verde de recreio, que permite a construção de infraestruturas e equipamentos de apoio ao recreio e lazer, observadas determinadas regras.
Com este enquadramento constitucional e legal e, considerando que não foi alterada a área demarcada pelo Governo como a correspondente ao Parque Florestal de Monsanto, a deliberação recorrida aprova um acto de gestão de uma parcela de domínio público da Entidade recorrida, no âmbito do princípio constitucional da autonomia do poder local, de uma actuação soberana da Entidade requerida enquanto autoridade autárquica que gere e administra os bens do domínio público que lhe estão afectos com vista à prossecução das suas atribuições, de interesse público, designadamente, a satisfação das necessidades (recreativas e de lazer) da população. E porque se trata de uma zona verde considerada de recreio é permitida a desafectação de uma parcela de terreno compreendida em zona florestal do domínio público para o privado para construção de equipamentos, no caso por entidade privada a quem foi conferido o direito de superfície da mesma, que preencha os fins a que se destina, o recreio e lazer da população da área, sem que para tanto tenha de previamente obter autorização da Administração Central. Donde, não procede o alegado vício, conducente à nulidade da deliberação em causa.
3. Da deliberação de desafectação ter sido tomada de modo estranho às atribuições da pessoa colectiva a que o órgão pertence e sem a forma legal própria.
Considerando a argumentação exposta no ponto que antecede, para que se remete, afigura-se que, tendo a CML praticado actos de gestão relativamente a bens que pertencem ao seu domínio público com vista a dotar a zona de um parque de diversões para recreação da população, actuou na prossecução das suas atribuições, exercendo competências que são suas, pelo que improcede o alegado vício”.
A recorrente discorda de toda a apreciação que na sentença lhe foi desfavorável e sustenta que as deliberações camarárias controvertidas são nulas e de nenhum efeito, pois “ao determinarem a afectação ao domínio privado da Câmara Municipal de Lisboa do prédio com área de 180.000 m2 (18 ha) do Parque Florestal de Monsanto e descrito sob as fichas 00786/191288 e 02575/980630, freguesia da Ajuda da 3a Conservatória do Registo Predial de Lisboa, violam e invadem as atribuições e as competências do Governo” (conclusão IV).
Vejamos.
2.2.3. Deverá começar-se com uma sinalização do regime jurídico aplicável.
Pelo DL n.º 24.625, de 1 de Novembro de 1934, foi determinado que a “Câmara Municipal de Lisboa promoverá a criação, na serra de Monsanto, de um Parque florestal da cidade” (art. 1.º), sendo a execução do projecto “feita pela Câmara Municipal de Lisboa, sob fiscalização do Governo”, podendo a mesma Câmara “mediante autorização do Governo, fazer a concessão da exploração de recintos e instalações de recreio dentro do Parque florestal da cidade”. (art. 9.º).
Pelo DL n.º 29:135, de 16 de Novembro de 1938, “Tornando-se necessário sujeitar ao regime estabelecido por lei para as propriedades florestais do Estado o Parque florestal de Monsanto, criado pelo Decreto-Lei n.º 24.625” (do preâmbulo) determinou-se sujeitar “ao regime florestal total o Parque florestal de Monsanto, sendo-lhe aplicáveis as disposições legais e regulamentares daquele regime, com se fosse propriedade do Estado” (art. 1.º)
O regime florestal havia sido aprovado pelo Decreto de 24 de Dezembro de 1901. E vinha aí caracterizado do seguinte modo:
“Art. 25.º O regime florestal compreende o conjunto de disposições destinada a assegurar não só a criação, exploração e conservação da riqueza silvícola, sob o ponto de vista da economia nacional, mas também o revestimento florestal dos terrenos cuja arborização seja de utilidade pública, e conveniente ou necessária para o bom regime das águas e defesa das várzeas, para a valorização das planícies áridas e benefício do clima, ou para a fixação e conservação do solo, nas montanhas, e das areais, no litoral marítimo.
Art. 26.º O regime florestal, sendo essencialmente de utilidade pública, incumbe por sua natureza ao Estado; pode, entretanto, sob tutela deste, ser desempenhado auxiliar ou parcialmente pelas corporações administrativas, pelas associações, ou pelos particulares individualmente.
§ único. O regime florestal é total ou parcial, conforme é respectivamente aplicado em terrenos do Estado, por sua conta e administração, ou em terrenos das câmaras municipais, câmaras de agricultura […]”
Por sua vez, o Decreto de 24 de Dezembro de 1903 regulamentou a execução do regime florestal de 1901. Nele se dispunha que a submissão de matas ou terrenos ao regime florestal haveria de ser feita por “decreto publicado no Diário do Governo” (art. 4, § 4.º).
Assim, quando o DL n.º 29.135, de 16 de Novembro de 1938, sujeitou o parque florestal de Monsanto ao regime florestal, fê-lo com plena obediência à forma legal exigida.
Mas foi, como se vê, mais além do que estava previsto genericamente no artigo 26.º, § único do Decreto de 1901, pois o submeteu ao regime florestal total, e não apenas ao regime parcial.
Com isso estabeleceu uma diferença de substância.
É que, conforme o Decreto de 1903, enquanto “O regime florestal total tende a subordinar o modo de ser da floresta ao interesse geral, isto é, aos fins de utilidade nacional que constituem a causa primária da sua existência ou criação” (art. 3.º, § 1.º), já o regime florestal parcial “subordinando a existência da floresta a determinados fins de utilidade pública, permite contudo que na sua exploração sejam atendidos os interesses imediatos do seu possuidor” (art. 3.º, § 2.º)
A submissão de modo mais intenso dos terrenos sob regime florestal total aos fins genericamente definidos no artigo 25.º do Decreto de 1901, revela-se, por exemplo, na restrição dos usos e servidões que já existissem sobre eles: “Procurar-se-á, quanto possível, e sem maior gravame para os povos, restringir os usos e servidões que afectam as matas nacionais, procurando resgatá-los por meio de indemnizações, ou limitá-los a uma parte da mata, sem prejuízo das leis gerais” artigo 212.º do Decreto de 1903.
Ao submeter-se ao regime florestal total, o Parque florestal de Monsanto ficou, assim, sujeito a um regime como se fosse propriedade do Estado.
Como se viu, à data da sua criação, antes, pois, da submissão ao regime florestal total, ficara contemplada a possibilidade de concessão da exploração de recintos e instalações de recreio dentro do Parque florestal da cidade, sob autorização do Governo.
Em 1970 essa restrita possibilidade de concessão foi estendida, pelo DL 297/70, de 27 de Junho.
Passou a permitir-se, ainda, entre o mais, mas sempre sob autorização ministerial, a própria “constituição do direito de superfície”, para “o estabelecimento, dentro da referida área, de instalações destinadas a serviços de utilidade pública que visem directamente objectivos culturais, formativos e de informação” (art. 1.º, n.º 1, c).
Esse Diploma veio a ser revogado pelo DL n.º 380/74, de 22 de Agosto, que não fixou qualquer nova disciplina.
Pois, que o DL 297/70 revogara o regime do artigo 9.º do DL 24625, estabelecendo um novo regime, e o DL 380/74 revogou este, sem definir qualquer novo regime, e porque a revogação da lei revogatória não importa o renascimento da lei que esta revogara (artigo 7.º, n.º 4, do C. Civil), deve concluir-se que deixou de existir qualquer regime legal especial sobre a possibilidade de exploração por particulares dos terrenos do Parque florestal de Monsanto.
2.2.4. Realizada esta primeira resenha do regime jurídico a ter em conta, para o que releva dos autos, convém sublinhar-se, ainda, que, ao contrário do que chegou a ser suscitado pela Câmara Municipal de Lisboa, o mencionado Decreto de 24 de Dezembro de 1901, que aprovou o regime florestal, só foi revogado pelo DL n.º 254/2009, de 24 de Setembro, através do seu artigo 5.º, jj).
A sua vigência, até então, vem reconhecida pelo preâmbulo desse Decreto-Lei, e a sua aplicação é confirmada por inúmeros exemplos, entre os quais os que foram apontados pelos recorrentes.
O mesmo ocorre com Decreto de 24 de Dezembro de 1903, que regulamentou a execução do regime florestal de 1901, que vem a ser revogado através do artigo 5.º, II) do citado diploma de 2009.
E impõe-se neste mesmo lugar notar, desde já, que não se trata, no quadro do presente recurso, de pôr em causa o poder do Município de Lisboa de gerir o seu próprio património.
Trata-se é de verificar se existem, em relação ao património de que se cuida, vinculações especiais.
2.2.5. No presente processo há dois passos sucessivos: o primeiro, a desafectação de terrenos integrados no parque florestal do domínio público para o domínio privado; o segundo, a aprovação da constituição de direito de superfície a favor das recorridas particulares.
Devemos começar pelo problema da desafectação.
2.2.6. Têm defendido os recorridos que a CML não procedeu a nenhuma desanexação do regime florestal, mas a simples desafectação do domínio público para o domínio privado; sustentam os recorrentes que, em substância, houve uma desanexação.
O que surge indiscutido é que os bens sobre os quais incidiu a desafectação, pertenciam ao domínio público do Município de Lisboa. Por isso que o mesmo deliberou desafectá-los desse domínio e afectá-los ao domínio privado.
Na circunstância, no quadro normativo que se descreveu, a integração dos terrenos que vêm a constituir o Parque florestal de Monsanto, como domínio público municipal, advém do DL 24625 de 1 de Novembro de 1934, com a sua criação e do DL 29135, de 16 de Novembro de 1938, com a sujeição ao regime florestal total.
Na doutrina de Marcello Caetano, poderemos dizer que pelo primeiro foi feita a classificação dos bens como bens dominais ─ “A classificação é o acto pelo qual se declara que uma certa e determinada coisa reúne os caracteres próprios de dada classe legal de bens dominiais” (Manual de Direito Administrativo, 9ª edição, tomo II, pág. 898).
Pelo segundo foi feita a sua afectação ─ “A afectação é o acto ou prática que consagra a coisa à produção efectiva de utilidade pública”. “A afectação pode resultar de um acto administrativo (decreto ou ordem que determine a abertura, utilização ou inauguração)” (ibidem pág. 899).
Ora, «A dominialidade cessa por virtude do desaparecimento das coisas, ou em consequência do desaparecimento da utilidade pública que as coisas prestavam ou de surgir um fim de interesse geral que seja mais convenientemente preenchido noutro regime.
[...]
No segundo caso as coisas continuam a existir mas, por decisão expressa da Administração ou com o seu consentimento tácito, deixam de ter utilidade pública ou perdem o carácter dominial: há, então, a desafectação.
A desafectação expressa pode resultar:
1) de lei que tire o carácter dominial a toda uma categoria de bens, v.g. que declare alienáveis os palácios nacionais (desafectação genérica);
2) de lei ou acto administrativo que declare não dominial, ou sem utilidade pública, certa e determinada coisa (desafectação singular) (ibidem, pág. 932).
Em síntese, “Desde que o carácter público de uma coisa desapareça, quer por desclassificação quer por desafectação, ela continua a pertencer em propriedade à pessoa colectiva de direito público a que se achava submetida, com a diferença de que passa do regime da propriedade pública ao da propriedade privada, transitando, desse modo, do domínio público para o domínio privado» (ibidem, pág. 965.)
Ora, tendo sido produzida a classificação e afectação por diploma legal, a desafectação haveria de ser, pelo princípio da igualdade das formas, produzida por acto do mesmo valor.
Mas não foi o que se passou, no presente caso.
Investido de determinado domínio público por força de diploma legal, o município desafectou-o desse domínio sem que fosse seguido o mesmo formalismo.
Ora, como se disse, se bem que lhe caiba, em geral, a gestão do seu património não poderá modificar-lhe a natureza sem que intervenha diploma do mesmo valor daquele que fixou a sua natureza.
Na circunstância, a produção desse diploma é estranha às atribuições do município, apenas podendo ser produzido pelo Governo.
Assim, a deliberação contenciosamente impugnada, de 1987, na parte em que procede à desafectação do domínio público para o domínio privado, padece do vício de nulidade por força do artigo 88.º, n.º 1, a), da Lei n.º 100/84, de 29 de Março.
Ora, todos os demais actos impugnados no recurso são consequência daquela deliberação, não podendo ter sido produzidos sem aquela. Assim, também eles se devem considerar nulos.
2.2.7. Não deixará, no entanto, de se analisar a questão, no estrito segmento da aprovação da constituição dos direitos de superfície, na admissão de que havia sido possível a desafectação acabada de cominar de nulidade.
Mais uma vez, não se trata de controverter as atribuições e competências gerais do Município de Lisboa.
Ocorre é a circunstância de o Parque Florestal de Monsanto estar submetido ao regime florestal total, “como se de propriedade do Estado se tratasse”.
Deve notar-se que, ao contrário do que defendem as recorridas, a ratificação pelo Governo do Regulamento do Plano Director Municipal de Lisboa não pode representar a intervenção formal do mesmo exigida.
O RPDM não dispõe sobre a constituição de direito de superfície, e menos ainda contempla especificamente a constituição de direito de superfície sobre a área concretamente em causa.
Assim, na ausência, como se viu, de regra especial sobre a possibilidade de constituição de direito de superfície (pela revogação do diploma que a previa) só por diploma do mesmo valor daquele que era exigido para a sujeição ao regime florestal total poderia vir a permitir-se a constituição dos direitos de superfície.
Na verdade, sem autorização governamental directa, não é possível a constituição do direito de superfície, pela razão de que o regime florestal total não contempla essa possibilidade.
Se a sujeição ao regime florestal depende de decreto, só diploma com idêntico valor poderá prever ou possibilitar a criação do direito de superfície.
Ora, não existindo, à data, qualquer diploma especial permitindo aquela criação, não poderá deixar de se declarar a nulidade das deliberações que as aprovaram.
A primeira deliberação, de 1987, na parte em aprovou a constituição do direito de superfície a favor da sociedade A…., Lda., é nula, ainda por violação do art. 88.º, n.º 1, a), da Lei n.º 100/84, de 29 de Março.
A segunda deliberação, de 1997, pela qual aprova a constituição do direito de superfície a favor da recorrida particular B…, Lda, é também nula por violação do mesmo dispositivo, articulado, já então, com o disposto no artigo 133.º, n.º 2, alínea b), do CPA.
3. Pelo exposto, concede-se provimento ao presente recurso, revogando-se a sentença.
Concede-se provimento ao recurso contencioso, declarando-se nulas as deliberações impugnadas.
Custas pela recorrida particular que alegou neste recurso jurisdicional. Taxa de Justiça 300 euros; procuradoria 150 euros.
Custas no tribunal de 1ª instância, pelas duas recorridas particulares. Taxa de justiça 150 euros; procuradoria 75 euros.
Lisboa, 18 de Novembro de 2009. – Alberto Augusto Andrade de Oliveira (relator) – António Políbio Ferreira Henriques – Rosendo Dias José.