Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0268/17.3BELRA
Data do Acordão:10/14/2020
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:ANABELA RUSSO
Descritores:APENSAÇÃO
PORTAGEM
RECURSO
CONTRA-ORDENAÇÃO
NULIDADE
Sumário:I - A aplicação de várias coimas em processos distintos pela prática, pela mesma arguida, de várias contra-ordenações tributárias, não integra nulidade insuprível dessas decisões administrativas, subsumível na alínea d) do nº 1 do artigo 63° do RGIT, por referência à alínea c) do n° 1 do artigo 79° do mesmo diploma legal, pelo simples facto de não ter sido feito o cúmulo material das coimas;
II - Prevendo o artigo 25º do RGIT que as sanções aplicadas às contra-ordenações em concurso são sempre cumuladas materialmente, nada obsta a que, em razão dos princípios da economia processual e uniformidade de decisões, o Tribunal proceda – em despacho liminar ou em qualquer momento antes de ser designada data para o julgamento ou antes da prolação da decisão por mero despacho- à apensação dos referidos processos de contra-ordenação e realize o cúmulo material das coimas.
Nº Convencional:JSTA000P26477
Nº do Documento:SA2202010140268/17
Data de Entrada:07/22/2020
Recorrente:MINISTÉRIO PÚBLICO
Recorrido 1:AT-AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral:
ACÓRDÃO

1. RELATÓRIO

1.1. O Ministério Público, inconformado com a decisão do Tribunal Administrativo e Fiscal de Leiria - que, julgando procedente o recurso judicial interposto pela “A………, Lda”., anulou as cinco decisões administrativas de aplicação de coima proferidas pelo Serviço de Finanças de Caldas da Rainha por infracção decorrente da falta de pagamento da taxa de portagem-, interpôs recurso jurisdicional para este Supremo Tribunal Administrativo.

1.2. Tendo alegado, aí concluiu nos seguintes termos:

«1ª- Se é verdade que a apensação de processos de contraordenação deverá ter lugar em sede administrativa, no caso daqueles aí penderem e se verificarem os pressupostos legais, para tanto, a violação dessa obrigação é insuscetível de gerar qualquer nulidade, pelo menos, de natureza insuprível.

2ª- Pelo que, perante o incumprimento desse dever procedimental pela entidade administrativa, ocorrido na situação dos autos, mesmo assim, impunha-se à Mmª juiz recorrida o poder-dever de determinar a apensação, a efetuar em sede judicial, por força do prescrito nos art. s 25º do RGIT, 36º do RGCO, 25º, 28º e 29º, do CPP, estes aplicáveis «ex vi» do art. 3º/b), do RGIT.

– A jurisprudência tem vindo de forma reiterada e uniforme a firmar esse entendimento no sentido de que: «o facto de não se ter ordenado a apensação de todos os processos na fase administrativa, não impede que seja ordenada essa mesma apensação na fase judicial, cfr. artigo 29º, n.º 2, (do CPP) no despacho liminar ou em qualquer momento, antes de ser designada data para o julgamento ou antes da prolação da decisão por mero despacho, cfr. artigo 64º do RGIMOS e 82º do RGIT.

Nesta medida, incumbe ao juiz a quem compete o julgamento das impugnações das decisões administrativas, apreciar da aplicabilidade do disposto naquele artigo 25º do CPP, configurando-se, assim, o reconhecimento da conexão de processos e a determinação da apensação dos mesmos como um dever e não como uma faculdade que é concedida ao juiz, tudo em vista da melhor realização da justiça e da economia de meios».

4ª- Desta feita, a atribuição da competência deste Tribunal para operar à apensação dos Processos de contraordenação, acarreta necessária e concomitantemente a competência para sindicar a matéria impugnada, constante de todas as decisões de aplicação de coimas em concurso, e caso as mesmas sejam confirmadas será a Mmª Juiz recorrida a competente para fixar a coima única, em cúmulo material.

5ª - É, também, esse, o sentido que a jurisprudência tem vindo a firmar:

“… como pondera o MP, nesse caso não se vislumbra fundamento para que o próprio Tribunal, concluindo pelo acerto das decisões da entidade administrativa, não proceda ao cúmulo que caiba operar (jurídico e/ou material, ou ambos, se for o caso, aferindo a data das infracções) condenando a arguida numa única coima”.

6ª – A anulação das decisões constantes nos processos de contraordenação, por inobservância do disposto no art. 25º do RGIT, carece de cobertura legal, sendo que o incumprimento do dever de apensação dos processos de contraordenação pela entidade administrativa não afeta a validade das mesmas.

7ª- Apela-se também aqui o que o que tem ditado a jurisprudência : “ mesmo que se entendesse competir, em primeira lugar, à entidade administrativa a realização desse cúmulo, não se nos afigura que haja fundamento legal para considerar que as decisões administrativas de aplicação de coima enfermam de nulidade insuprível que afecte a sua validade: não vemos que a tais decisões, singularmente consideradas, faltem os requisitos que a lei impõe ou não especifiquem os elementos que contribuíram para a fixação da coima (al. d) do nº 1 do art. 63º e nº 1 do art. 79º, ambos do RGIT).

Tanto mais que, como se disse, só poderá operar-se o cúmulo (material ou jurídico) depois de fixadas as respectivas coimas singulares a cumular”.

8ª- Donde, o não ordenar a apensação dos processos de contraordenação pelo Tribunal e ao ordenar a remessa dos autos à entidade administrativa para aquele efeito e ao anular as decisões condenatórias administrativas, violou, a Mmª Juiz recorrida, os sobreditos dispositivos legais, máxime, o art. 25º do RGIT.

9ª- Devendo, por isso, ser revogado o despacho recorrido, e substituído por outro que determine a apensação dos 5 processos de contraordenação, a efetuar em sede judicial, e, se conheça, se a tal nada mais obstar, do mérito da impugnação».

1.3. A Autoridade Tributária e Aduaneira e a Recorrida particular, notificadas da interposição e da admissão do recurso jurisdicional não exerceram o direito de resposta.

1.4. Apresentados os autos ao Exmo. Procurador-Geral-Adjunto neste Supremo Tribunal Administrativo, foi emitido parecer no sentido de que, confirmados os pressupostos de apensação dos processos, nada impede que esta seja feita em processo judicial, onde deverá ser apreciada a questão de mérito suscitada se a tal nada mais obstar.

1.5. Colhidos os vistos, cumpre, agora, decidir.

2. OBJECTO DO RECURSO

2.1. Como é sabido, sem prejuízo das questões de que o tribunal ad quem possa ou deva conhecer oficiosamente, é o teor das conclusões com que a Recorrente finaliza as suas alegações que determina o âmbito de intervenção do tribunal de recurso [artigo 635.º do Código de Processo Civil (CPC)].

Essa delimitação do objecto do recurso jurisdicional, na sua vertente negativa, permite concluir se o recurso abrange tudo o que na sentença foi desfavorável ao Recorrente ou, se este, expressa ou tacitamente, se conformou com parte das decisões de mérito proferidas quanto a questões por si suscitadas (artigos 635.º, n.º 3 e 4 do CPC), situação em que não podem ser reapreciadas pelo Tribunal ad quem. Na sua vertente positiva, a delimitação do objecto do recurso, especialmente nas situações de recurso para o Supremo Tribunal Administrativo como é o caso, constitui ainda o suporte necessário à fixação da sua própria competência, nos termos em que esta surge definida pelos artigos 26.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF) e 280.º e seguintes do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT).

2.2. No caso sub judice, emerge das conclusões das alegações apresentadas pelo Recorrente que o objecto do presente recurso se circunscreve à questão de saber se, sendo instaurado um único recurso de decisão de aplicação de coima como ataque a várias decisões autónomas de aplicação de coima que estejam em concurso, o Tribunal pode ou deve determinar, a pedido do arguido, do Ministério Público ou mesmo oficiosamente, a sua apensação. Ou, pelo contrário, deve anular as coimas individualmente aplicadas e ordenar a remessa dos vários procedimentos à Entidade Administrativa a fim de que aí seja determinada a apensação e a aplicação de uma coima única.

3. FUNDAMENTAÇÃO

3.1. Fundamentação de facto

3.1.1. A decisão recorrida efectuou o julgamento da matéria de facto nos seguintes termos:

“Com relevância para a decisão dos presentes autos, consideram-se provados os seguintes factos:

1) Em 17/11/2016 foram levantados, à recorrente, os autos de notícia n.ºs 300000106171/2016, 300000106215/2016 e 300000112675/2016, no âmbito dos processos de contra-ordenação n.ºs13502016060000076068, 13502016060000076084 e 13502016060000076637, respectivamente, todos pela prática da infracção de falta de pagamento de taxa de portagem, em violação do artigo 5.º, n.º 1, alínea b), conduta punida pelo artigo 7.º, ambos do Decreto-Lei n.º 25/2006, de 30/06 (autos de notícia de fls. 5, 6, 17, 32 e 33 do SITAF, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido).

2) Em 18/11/2016 foram levantados, à recorrente, os autos de notícia n.ºs 300000114802/2016 e 300000121910/2016, no âmbito dos processos de contra-ordenação n.ºs 13502016060000076718 e 13502016060000077250, respectivamente, pela prática da infracção de falta de pagamento de taxa de portagem, em violação do artigo 5.º, n.º 1, alínea a), conduta punida pelo artigo 7.º, ambos do Decreto-Lei n.º 25/2006, de 30/06 (autos de notícia de fls. 48, 49 e 64 do SITAF, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido).

3) Por comunicações datadas de 04/01/2017, foi dado conhecimento à recorrente que lhe foram aplicadas, em 29/12/2016, uma coima no valor de 751,14€, acrescido de custas no valor de 76,50€, em consequência da prática dos factos constantes do auto de notícia n.º 300000106171, uma coima no valor de 42,53€, acrescido de custas no valor de 76,50€, em consequência da prática dos factos constantes do auto de notícia n.º 300000106215 e uma coima no valor de 200,63€, acrescido de custas no valor de 76,50€, em consequência da prática dos factos constantes do auto de notícia n.º 300000112675, respectivamente nos processos de contra-ordenação referidos em 1) (notificações das decisões de aplicação de coimas de fls. 82 a 84 e 95 a 97 do SITAF).

4) Por comunicações datadas de 05/01/2017, foi dado conhecimento à recorrente que lhe foram aplicadas, em 01/01/2017, uma coima no valor de 176,74€, acrescido de custas no valor de 76,50€, em consequência da prática dos factos constantes do auto de notícia n.º 300000114802 e uma coima no valor de 30,99€, acrescido de custas no valor de 76,50€, em consequência da prática dos factos constantes do auto de notícia n.º300000121910, respectivamente nos processos de contra-ordenação referidos em 2) (notificações das decisões de aplicação de coimas de fls. 85, 86, 98 e 99 do SITAF).

5) A recorrente apresentou um único articulado de alegações de recurso de contra-ordenação, sobre as cinco decisões de aplicação de coima referidas em 3) e 4) no dia 24/01/2017 (alegações de recurso e envelope de fls. 78 a 87 e 91 a 101 do SITAF).

3.1.2. Mais consignou o Tribunal Administrativo e Fiscal de Leiria que “Não foram considerados provados ou não provados outros factos com relevância para a decisão da presente causa”. E que a sua convicção se baseou “nos documentos juntos aos autos, designadamente os constantes dos processos de contra-ordenação, os quais não foram postos em causa, merecendo total credibilidade, conforme descrito à frente de cada facto provado”.

3.2. Fundamentação de direito

Como resulta da leitura do requerimento de recurso apresentado pela arguida, doravante Recorrida, o inconformismo e, consequentemente, o objecto do litígio por esta apresentado centra-se exclusivamente no concreto montante que lhe é exigível pagar em resultado da soma das várias coimas que, por infracção ao disposto no artigo 5.º, n.º 1 al. b), da Lei n.º 25/2006, de 30-6.

Ou seja, notificada de que lhe são imputadas um conjunto de infracções por ter, no caso, cinco vezes, circulado em via sujeita a pagamento de portagem sem proceder ao respectivo pagamento, e das coimas que individualmente lhe foram fixadas por essas infracções, a Recorrente veio, por referência a todas elas apresentar um único recurso, visando discutir, por um lado, a legalidade, no caso concreto, de aplicação de coimas por cada um dos processos e, por outro, o valor total que resulta da soma dessas coimas, que, em seu entender, não respeita o cúmulo tal como este se mostra definido nos artigos 25.º e 29.º do RGIT.

Mais alegou, por fim, que não se recorda de ter efectuado a circulação por esses troços da via sem ter efectuado o respectivo pagamento, admitindo que exista in casu um mal-entendido ou, se tal ocorreu, se ficou a dever a manifesto mau funcionamento do sistema “ via verde” que nunca antes lhe foi comunicado, pelo que, conclui, tendo já procedido, inclusive, ao pagamento do valor das portagens, carecem de fundamento as coimas aplicadas.

A Meritíssima Juíza a quo, após ter proferido despacho facultando às partes a possibilidade de se oporem à apreciação da causa por despacho veio, por nada nesse sentido lhe ter sido comunicado, entendeu que havia uma única questão a apreciar, conexionada com a invocada exigibilidade de aplicação de uma coima única com respeito pelo cúmulo material, terminando por anular todas as coimas aplicadas.

Para assim o decidir, expendeu, em resumo nosso, o seguinte raciocínio:

A única questão colocada a juízo é saber se foi violado o artigo 25.º do RGIT, em termos de aferição da coima única a aplicar à recorrente.

Alega, assim, a recorrente que, foram instaurados contra si cinco processos de contra-ordenação, devendo ter sido aplicada uma coima única, com respeito pelos limites máximos legalmente estabelecidos.

Vejamos.

Como resulta dos factos provados 1), 2), 3) e 4), estamos perante um cenário de prática de diversas infracções, todas subsumíveis à falta de pagamento de taxas de portagem, consubstanciadas na violação do artigo 5.º da Lei n.º 25/2006, de 30/06 e punidas pelo artigo 7.º do mesmo diploma legal, pela mesma arguida, relativa às mesmas viaturas, ou seja, uma situação de concurso de contraordenações, às quais foram aplicadas cinco coimas, separadamente, que perfazem o valor global de 1.202,03€.

Verifica-se, assim, no caso vertente, que o direito à aplicação do disposto no artigo 25.º do RGIT não foi respeitado, tendo sido aplicadas tantas sanções quantas as infracções verificadas.

Efectivamente, em casos como este, impõe-se que a entidade administrativa organize um único processo administrativo, mediante a apensação dos processos de contra-ordenação que correm contra o mesmo arguido pela prática da mesma infracção, para efeitos de aplicação de uma coima única, atendendo ao critério estabelecido no artigo 25.º do RGIT que, como se disse, prevê o cúmulo material das sanções aplicadas em contra-ordenação, o que se justifica desde logo por razões de economia processual e uniformidade de julgamento.

Neste mesmo sentido já se pronunciou a jurisprudência dos Tribunais Superiores, podendo ler-se o seguinte, no acórdão do STA de 30/03/2011, proc. n.º 0757/10:

“(…) recomenda-se que seja organizado pela autoridade competente um único processo e seja proferida uma única decisão de aplicação de coima, e estando fixado no probatório que o comportamento de que a recorrente foi acusada nos presentes autos repetiu-se várias vezes ao longo do ano de 2004 e 2005, para além de que dos próprios elementos constantes da decisão administrativa de aplicação da coima decorria que a sua prática era «frequente» e a

recorrente trouxera ao processo informação e documentação referente à existência de dez outros processos de contra-ordenação tributários, afigura-se admissível, por razões de economia processual, o prévio conhecimento da questão eleita como decidenda e bem assim que, assumida a consequência de anulação da decisão administrativa de aplicação da coima para que a situação fosse contemplada á luz da (nova redacção) do artigo 25.º do RGIT, se considerassem prejudicadas as questões suscitadas pela recorrente, tanto mais que também essa nova decisão de aplicação de coima única sempre seria susceptível de recurso, não havendo, nessa medida, prejuízo para a recorrente (…).

Não sendo possível ao tribunal «a quo» fixar a coima única aplicável às contra-ordenações fiscais em concurso nos termos dos artigos 77.º e 78.º do Código Penal, justifica-se a anulação da decisão administrativa de aplicação da coima e a remessa dos autos à administração fiscal para que esta o faça (…).”.

Também o recente Ac. STA de 18/01/2017, proc. n.º 01374/16, proferido a propósito de execuções fiscais, mas cuja doutrina é aplicável igualmente em sede de contra-ordenações, refere:

“(…) ao órgão de execução fiscal não assiste liberdade de escolha, não lhe é permitida discricionariedade na sua actuação e, nessa medida, não está legalmente autorizado a “optar” por proceder ou não proceder à apensação das execuções (…).”.

Afigura-se ser justamente esta a situação com que nos deparamos nos presentes autos, o que não foi devidamente considerado pela autoridade administrativa.

De facto, de molde a cumprir o disposto no artigo 25.º do RGIT, deveria a entidade administrativa coligir um único processo administrativo contra a recorrente, designadamente por apensação dos vários processos de contra-ordenação, aplicando as coimas correspondentes a cada uma das contra-ordenações e somá-las, sendo o somatório o montante da coima única a aplicar numa só decisão, sempre impugnável pela recorrente nos termos gerais do artigo 80.º, n.º 1 do RGIT, assim se garantindo não só o respeito pelo artigo 25.º do RGIT, mas também pelos já referidos princípios da economia processual e da uniformidade de julgamento.

Atento o exposto, é forçoso concluir que procede a questão alegada pela recorrente, e que se impõe a anulação das decisões de aplicação de coima aqui impugnadas, com a consequente remessa à entidade administrativa para integral cumprimento do artigo 25.º do RGIT nos termos supra enunciados.

O julgado não pode manter-se na ordem jurídica.

Antes de explicitarmos porque assim o entendemos, importa realçar que, como ficou expresso no resumo que supra realizámos dos fundamentos do recurso judicial apresentado pela então arguida, que a questão da observância do artigo 25.º do RGIT não foi, contrariamente ao que ficou firmado no despacho recorrido, a única questão suscitada.

Na verdade, independentemente da relevância que os factos alegados pela arguida possam, provados que sejam, vir a assumir - designadamente quanto à prova da efectiva passagem, quanto à imputabilidade à arguida da infracção, quer por ter decorrido de uma anomalia do sistema e omissão da comunicação oportuna dessa anomalia, a ter existido e aos limites máximos a que eventualmente a coima possa estar sujeita –, certo é que, a questão eleita pelo Tribunal a quo para apreciação, não é, definitivamente, a única colocada no processo e a dirimir.

Prosseguindo agora para a apreciação daquela última questão, única posta em recurso, e para que fique claro porque afirmamos existir erro de julgamento, começamos por dizer que o Tribunal a quo andou bem quando, por referência aos factos que apurou até ao momento, julgou que a Administração Tributária devia, face ao concurso de infracções, ter organizado um procedimento único ou, pelo menos, ter determinado a apensação dos vários procedimentos contra-ordenacionais, uma vez que não foram instaurados na mesma data, aferido da coima parcelar a aplicar a cada uma das infracções praticadas e, após, decidir pela aplicação de uma coima única. Tudo, em conformidade, como a Meritíssima Juíza igualmente salientou, num escrupuloso cumprimento do que vem legalmente determinado no artigo 25.º do RGIT.

Porém, como este Supremo Tribunal não tem hesitado em esclarecer de forma recorrente, o facto de essa apensação não ter ocorrido na fase administrativa não obsta a que, em sede judicial, a pedido do arguido, do Ministério Público ou oficiosamente, e confirmado o concurso de infracções, essa apensação seja deferida ou determinada pelo Tribunal, a quem competirá, subsequentemente, sendo caso disso, a aplicação de uma coima única, em cúmulo material, nos termos determinados pelo artigo 25.º do RGIT.

Em abono da tese prosseguida, a Meritíssima Juíza chamou à colação o acórdão deste Supremo Tribunal Administrativo de 30-3-2011, proferido no processo n.º 757/10, de cuja leitura extraiu, bem, o ensinamento de que perante este tipo de situação como a ora analisada, ao Tribunal nada mais restava que não a remessa dos autos à Entidade Administrativa para organização de um só procedimento relativamente a todas as infracções e a realização do cúmulo com a consequente aplicação de uma coima única.

Todavia essa jurisprudência assentava num quadro legal que hoje já não existe.

Efectivamente, distintamente do que ocorria na vigência do artigo 25.º do RGIT, na redacção atribuída pela Lei n.º 64-A/2008, de 31-12, que se manteve em vigor até à entrada em vigor da Lei n.º 55-A/2010, de 31-12, que impunha o cúmulo jurídico e a observância de regras ordenadoras do cúmulo a realizar, hoje (e desde 1 de Janeiro de 2011), o cúmulo das coimas é exclusivamente material. Ou seja, embora o concurso de infracções do ponto de vista procedimental ou administrativo deva ser submetido, por razões de economia processual e de uniformidade de julgamento, a um procedimento uno, dá sempre origem, ultrapassada a fase de aplicação das coimas parcelares, à aplicação de uma coima única que mais não é do que a soma aritmética dos valores das coimas parcelares.

Sobre esta distinção entre cúmulo material ou jurídico e os efeitos ou consequências da consagração de um ou outro dos regime e os impactos nos processos judiciais que têm por objecto essas coimas, pronunciou-se de forma clara este Supremo Tribunal «Como se sabe, o RGIT prevê no artigo 25° que "as sanções aplicadas às contra-ordenações em concurso são sempre objecto de cúmulo material", regime este contrário ao consagrado no Regime Geral das Contra-Ordenações (RGCO), aprovado pelo Dec.-Lei n° 433/82, de 27 de Outubro (com diversas alterações introduzidas nomeadamente pelo Dec.-Lei n° 244/95, de 14 de Setembro), que no artigo 19° opta pelo regime de cúmulo jurídico (e que no período de 1 de Janeiro de 2009 a 31/12/2010 também foi aplicado às contra-ordenações tributárias - por força das alterações introduzidas pelas Lei n° 64-A/2008, de 31 de Dezembro, e Lei nº 55-A/2010, de 31 de Dezembro).

(…)

A figura do concurso de contra-ordenações pressupõe a existência de uma pluralidade de infracções cometidas pelo mesmo agente. Em processo penal, cujas normas são aplicáveis subsidiariamente ao processo contra-ordenacional - art. 41°, n° 1, do Regime Geral das Contra-Ordenações -, há lugar à organização de um único processo ou à apensação de processos, caso tenham sido instaurados processos distintos, nos casos de conexão objectiva ou subjectiva, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 24°, 25°, 28° e 29° do Código de Processo Penal. Atento que a sentença recorrida não contém quaisquer elementos que permitam concluir pela verificação de conexão objectiva, apenas há que atender à conexão subjectiva. E esta ocorre quando o mesmo agente tiver cometido várias infracções cujo conhecimento seja da competência da mesma entidade administrativa (art. 25° do CPP). As razões subjacentes a esta conexão prevista no CPP, transpostas para o âmbito do regime sancionatório de mera ordenação social, para além da economia processual e da uniformidade de decisões, prendem-se com a necessidade de avaliação da actividade delituosa e da culpa do agente e da aplicação de uma sanção única. E nesse caso impondo-se à entidade administrativa que faça uma avaliação conjunta das diversas contra-ordenações em concurso, deve a mesma proceder à sua instrução num único processo ou proceder à apensação dos distintos processos que tenham sido instaurados (cfr. e este propósito o acórdão do STA de 30/03/2011, proc. 0757/10).

Sucede que no caso da punição ser feita segundo o regime de cúmulo material, em que há lugar apenas a uma acumulação de sanções, como actualmente está previsto no artigo 25° do Regime Geral das Infracções Tributárias, a imposição da realização do cúmulo só faz sentido para aferir que o montante da coima única a aplicar não ultrapasse o máximo previsto no artigo 26° do Regime Geral das Infracções Tributárias (no sentido de que este máximo não é aplicável no caso de concurso de contra-ordenações tributárias, vide Jorge Lopes de Sousa e Manuel Simas Santos, in "RGIT Anotado", 4ª edição, 2010, pág. 291 [(1) "Por isso, o limite máximo do cúmulo das penas previsto no n.° 2 do artigo 19.° do RGCO, que é o de a coima única não exceder o dobro do limite máximo mais elevado das contra -ordenações em concurso, não é aplicável relativamente às contra -ordenações tributárias, não sendo também aplicáveis os limites máximos previstos no artigo 26.° para a categoria de infractor e natureza da infracção, pois, como se inferia do texto deste artigo 25.°, na redacção inicial, ao referir que «as sanções aplicadas às contra -ordenações em concurso são sempre cumuladas materialmente» e se conclui do texto introduzido pela Lei do Orçamento para 2011, ao estabelecer que «as sanções aplicadas às contra-ordenações em concurso são sempre objecto de cúmulo material» não se admitiam quaisquer excepções a esta regra"].

Não sendo esse o caso não há fundamento legal para impor a apensação dos processos, a não ser que por motivos de economia processual a entidade administrativa assim o entenda. E muito menos que tal falta de apensação de processos configure uma nulidade insuprível da decisão de aplicação de coima ao abrigo do disposto no artigo 63°, n° 1, alínea d) do RGIT.

Na verdade, enquanto no regime de punição de cúmulo jurídico do concurso das contra-ordenações há lugar a uma avaliação global da actividade delituosa do arguido e da sua culpa, no regime de cúmulo material isso não ocorre, já que essa avaliação deve ser feita apenas na aplicação de cada uma das coimas parcelares.

Como se deixou exarado no acórdão do Tribunal Constitucional n° 336/2008, de 19/06/2008 (processo n° 84/2008), «é uma evidência que os princípios constitucionais da culpa e da proporcionalidade não são postos em causa pelo RGIT a propósito da avaliação e julgamento de cada uma das contra-ordenações em presença. E é nesta avaliação e julgamento de cada uma das infracções contra-ordenacionais em concurso que se esgota a projecção plena dos referidos princípios. Traduzindo-se a culpa contra-ordenacional apenas na imputação de um facto à responsabilidade social do seu autor, o desvaler global dos factos que integram as contra-ordenações em concurso e a personalidade daquele evidenciada pela sua prática não são elementos que exijam necessariamente a sua ponderação para a determinação de uma coima unitária».

São estas as razões pelas quais, no quadro vigente, recorde-se, desde 1-1-2011, este Supremo Tribunal tem vindo a decidir reiteradamente que, estando organizados procedimentos contra-ordenacionais autónomos, estando nestes aplicadas coimas parcelares, nada obsta, estando todos apensados ao recurso único que a elas foi dirigido, que o próprio Tribunal, já em fase judicial, se a tal nada mais obstar, designadamente a falta de prova dos pressupostos objectivos do tipo de ilícito em causa, aplique ele mesmo a coima única, realizando, para tanto, o cúmulo material imposto pelo artigo 25.º do RGIT. Isto é, proceda à soma aritmética aí determinada. Sublinhando, outrossim, que, no caso do cúmulo material, não há qualquer norma legal a impor a devolução dos procedimentos para apensação e aplicação da coima única, não existe fundamento para que se entenda que estamos perante uma nulidade insuprível, nem, por fim, que dessa decisão resulte algum efeito útil. Pelo contrário, a remessa dos procedimentos ao Serviço de Finanças com o exclusivo fundamente em apreço, apenas conduz a atrasos na apreciação das demais questões que no recurso judicial tenham sido suscitadas e obsta à desejável celeridade no desfecho do litígio (neste sentido, os acórdãos deste Supremo Tribunal de 22-4-2015, processo 73/15 e de 17-6-2015, processo 369/15, ambos integralmente disponíveis em www.dgsi.pt, tal como os demais que infra sejam citados).

Em suma, tendo os autos sido apresentados em juízo pelo Ministério Público ao abrigo do preceituado no artigo 62.º do R.G.C.O., e substanciando estes um único recurso de contra-ordenação interposto pela mesma arguida relativamente a vários processos de contra-ordenação (como se vê do presente processo), há que aplicar os artigos 25.º e 29.º do C.P.P., nos termos dos artigos. 62.º do R.G.C.O. e 3.º, b), do R.G.I.T. (vide, neste sentido, os múltiplos acórdãos proferidos por este Supremo Tribunal, destacando-se, pela sua recente prolação, os acórdãos de 6-2-2019, processo n.º 26/18.8BEPRT, de 27-11-2019, proc. n.º 933/15.0BELRA e de 20-4-2020, processo n.º 01895/17.4BEBRG), o que significa que, deve o Juiz, antes de proferir despacho decisório ou sentença sobre o objecto, o Tribunal determinar formalmente essa apensação (artigos 64.º do RGIMO e 82.º RGIT).

São, pois, de julgar integralmente procedentes as conclusões do recurso jurisdicional interposto pelo Exmo. Magistrado do Ministério Público, impondo-se, consequentemente, revogar o despacho recorrido e ordenar a baixa dos autos para, após cumprimento do que ficou definido, serem apreciadas as demais questões suscitadas pela arguida em conformidade com a prova realizada.

4. Decisão:

Face a todo o exposto, acordam os Juízes que integram a Secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo, julgando procedente o recurso, em revogar o despacho recorrido e ordenar a baixa dos autos baixa dos autos Tribunal Administrativo e Fiscal de Leiria para cumprimento do que ficou explicitado no ponto 3.2. deste acórdão e subsequentemente proferida nova decisão.

Sem custas - artigos 66.° do RGIT. e 94.°, n.° 4, do RGCO.

Registe e notifique.

Lisboa, 14 de Outubro de 2020. - Anabela Ferreira Alves e Russo (relatora) – José Gomes Correia – Aníbal Augusto Ruivo Ferraz.