Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0405/21.3BESNT
Data do Acordão:02/29/2024
Tribunal:1 SECÇÃO
Relator:ANA CELESTE CARVALHO
Descritores:SECTOR PÚBLICO EMPRESARIAL
EMPRESA PÚBLICA
EMPRESA PARTICIPADA
TAP
PENSÃO DE APOSENTAÇÃO
NULIDADE DECISÓRIA
NULIDADE PROCESSUAL
PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO
PROCESSO EQUITATIVO
PODERES DE COGNIÇÃO
PODER DE SUBSTITUIÇÃO
CPTA
QUESTÃO DE FACTO
QUESTÃO DE DIREITO
RESOLUÇÃO DO CONSELHO DE MINISTROS
VENCIMENTOS PÚBLICOS
Sumário:I - O princípio da tutela jurisdicional efetiva e o direito constitucional a um processo equitativo, emanado do n.º 4, do artigo 20.º da Constituição e do artigo 6.º da Convenção Europeia dos Direitos Humanos, que encontra consagração legal expressa no n.º 3, do artigo 3.º do CPC e no n.º 1, do artigo 2.º do CPTA, impõem que as normas processuais assegurem aos sujeitos processuais meios efetivos de defesa dos seus direitos e paridade entre as partes na dialética que protagonizam no processo.
II - O princípio do contraditório deve assegurar às partes o poder de expor perante o Tribunal as suas razões de facto e de direito antes que ele tome a decisão, pronunciando-se sobre as questões que lhes digam respeito, pelo que, constitui uma decorrência do direito de acesso aos tribunais e à justiça e a um processo equitativo, no sentido de que cada uma das partes deve poder exercer uma influência efetiva no começo e no desenvolvimento do processo.
III - A nulidade decorrente da preterição do contraditório diz respeito a atividade anterior à prolação da decisão, assumindo-se como processual, enquanto desvio entre o formalismo prescrito na lei e o formalismo efetivamente seguido no processo, revestindo a natureza de nulidade secundária, pelo que o seu conhecimento depende de arguição.
IV - O disposto no artigo 149.º do CPTA permite ao TCA, como tribunal de recurso, conhecer de questões que a decisão recorrida deixou de conhecer, não porque sejam questões novas, que não são, mas porque, tendo sido invocadas pelas partes nos articulados, não foram objeto de apreciação.
V - A tal não obsta a eliminação de um grau de jurisdição, pois é a própria lei a conferir tais poderes de pronúncia substitutivos ao tribunal de recurso.
VI - Está em causa um regime processual que tem por finalidade a realização da justiça material e privilegiar a emissão de pronúncias de mérito, sob o princípio pro actione, que melhor tutelam os direitos e interesses legalmente protegidos das partes, assim como, a eficiência e eficácia da justiça, visando a resolução global e definitiva do litígio, no menor tempo possível, sob preocupações de economia processual e de celeridade.
VII - Por isso, se constituir fundamento do recurso alguma nulidade decisória, prevista no artigo 615.º do CPC ou alguma nulidade processual a que se subjaza um juízo de não comprometimento ou influência negativa para a decisão da causa, o juiz reconhece o vício da decisão recorrida, mas não manda baixar o processo, passando a conhecer, em substituição, do mérito do pedido.
VIII - Decidindo o tribunal de recurso revogar a decisão de procedência da exceção dilatória de caso julgado proferida pela 1.ª instância, enquanto questão que não poderia ter sido decidida sem a prévia audição das partes, fica sanada a respetiva nulidade processual, além de se poder formular o juízo de que essa omissão do ato processual devido não influi no exame e na decisão sobre o fundo da causa.
IX - Neste sentido, não tem razão de ser defender uma interpretação restritiva do disposto no n.º 1, do artigo 149.º do CPTA, como propugnam os Recorrentes, de forma que esta norma legal apenas contemple as nulidades decisórias, sem ter aplicação às nulidades secundárias respeitantes à omissão de um ato ou de uma formalidade prescrita na lei, designadamente, quanto esteja em causa uma nulidade secundária cuja irregularidade não influi no exame ou na decisão da causa, como no presente caso.
X - Não há necessidade de este Supremo Tribunal mandar baixar os autos para ampliação da matéria de facto, pois as Resoluções do Conselho de Ministros embora sejam atos que não são legislativos, para efeitos da Constituição (artigo 112.º da Constituição a contrario sensu), foram publicados no jornal oficial, nos termos do disposto na al. p), do n.º 2, do artigo 3.º da Lei n.º 74/98, de 11/11, sendo públicos e de eficácia externa, além de previstos na Constituição, na al. c), do n.º 1 do artigo 200.º da Constituição, podendo ser conhecidos nesta última instância.
XI - Toda a evolução da participação societária do Estado, através da B..., na A..., SA, entre 2015 e 2020, nos termos das várias Resoluções de Conselho de Ministros, determina que: (i) com a reprivatização, o Estado satisfez compromissos internacionais e viabilizou o saneamento financeiro da A... SGPS, tendo uma participação minoritária no capital social (34%), com perda de controlo estratégico e sobre a atividade operacional da empresa, existindo correspondência entre participação no capital social (34%) e os direitos económicos detidos;(ii) com a recompra, o Estado recuperou controlo estratégico, mas perdeu direitos económicos, além de assumir maiores responsabilidades na capitalização e no financiamento da empresa, existindo recuperação de controlo estratégico com a posição de maior acionista (50%), considerada indispensável pelo papel determinante da empresa na projeção internacional de Portugal, mas a perda de direitos económicos (para 5%) face ao ganho na participação no capital (para 50%).
XII - Ao contrário do que se verificou no período anterior a 12/11/2015, em que o Estado detinha a maioria do capital, sendo a A... uma empresa pública sob a forma de sociedade anónima, ou seja, uma empresa de capitais maioritariamente públicos, diferentemente no período em que releva na presente ação, a partir de 12/11/2015 a A... tem capital maioritariamente privado ou nunca ultrapassa 50% da participação societária, sendo uma empresa participada, por ter no seu capital social, uma parte minoritária ou igualitária de capitais públicos, mas com reduzidos direitos económicos.
XIII - O n.º 1, do artigo 78.º do EA, no respetivo elenco de entidades abrangidas, não contempla as empresas participadas, pois referindo-se a um vasto conjunto de entidades, a saber, “quaisquer serviços da administração central, regional e autárquica”, “empresas públicas”, “entidades públicas empresariais”, “entidades que integram o setor empresarial regional e municipal” e “demais pessoas coletivas públicas”, não consta do referido elenco as empresas participadas.
XIV - Nem pode haver dúvidas de que o regime legal das empresas participadas é distinto de qualquer um dos tipos de entidades referidos no n.º 1, do artigo 78.º do EA.
XV - É o legislador que embora integrando as empresas participadas no setor empresarial do Estado, autonomiza e distingue no artigo 5.º do RJSPE, diversos tipos de “empresas públicas”, onde inclui as “empresas públicas”, que podemos designar como stricto sensu e as “entidades públicas empresariais”, distinguindo-se claramente das empresas participadas, como consta do disposto no n.º 2, do artigo 2.º do RJSPE.
XVI - A relação de trabalho estabelecida entre os Autores e a A..., SA, rege-se pelo direito privado e não pelo direito público, não apenas para efeitos do regime aprovado pelo RJSPE, como para efeitos do regime do n.º 1, do artigo 78.º do EA.
XVII - As empresas participadas colaboram com a Administração, mas não fazem parte, nem integram a Administração Pública.
a. Sendo a empresa A.... SA, no período temporal ora em causa, entre novembro de 2015 e outubro de 2020, enquanto empresa participada, uma empresa privada, regida pelo direito privado, incluindo em matéria laboral, rege-se exclusivamente pelo direito privado, estando as remunerações auferidas pelos respetivos trabalhadores excluídas do conceito de vencimentos públicos, nos termos e para os efeitos da aplicação do disposto nos artigos 78.º e 79.º do Estatuto da Aposentação.
XVIII - A proibição do exercício de funções remuneradas no setor público a que se reporta o disposto no n.º 1, do artigo 78.º do E.A. aplica-se ao universo das entidades nele previstas, que não inclui as empresas participadas, como a A..., SA, não sendo finalidade da norma, nem seu alcance substancial consagrar uma proibição que abranja também as situações do exercício de funções remuneradas no sector privado, por aposentados, pensionistas da segurança social ou outros, que se processam no quadro de uma relação estabelecida com uma empresa participada, que tem natureza privada e se rege pelo direito privado, incluindo em matéria laboral dos seus trabalhadores e em relação aos quais não se prevê qualquer regime excecional ou transitório, como se verifica em relação às empresas públicas, por não estar em causa o exercício e funções públicas, nem o pagamento de vencimentos públicos.
Nº Convencional:JSTA00071826
Nº do Documento:SA1202402290405/21
Recorrente:AA
Recorrido 1:CAIXA GERAL DE APOSENTAÇÕES
Votação:UNANIMIDADE
Decisão:CPTA ART149 N1 N3
ESTATUTO DA APOSENTAÇAO (na redação dada pela Lei nº 75-A/2014, de 30/9) ART78 ART79
RJSPE (aprovado pelo DL 133/2013, de 3/10) ART2 ART7 ART9
Aditamento:
Texto Integral: Acordam em conferência na Secção de Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo:

I – RELATÓRIO

1. BB, CC, DD, EE, FF e AA, todos devidamente identificados nos autos, vieram interpor recurso de revista para este Supremo Tribunal Administrativo (STA), nos termos do artigo 150.º do CPTA, do acórdão proferido em 19/05/2022, pelo Tribunal Central Administrativo Sul (TCAS), que concedeu provimento ao recurso, revogou a decisão recorrida e, em substituição do tribunal recorrido, julgou improcedente a ação administrativa intentada contra a CAIXA GERAL DE APOSENTAÇÕES, IP (CGA).

2. Na ação administrativa, os Autores peticionaram: (i) o reconhecimento do direito a cumular a pensão de aposentação e o vencimento, durante o período de novembro de 2015 a outubro de 2020 (quanto aos 1.º, 4.º, 5.º e 6.º Autores) e durante o período de novembro de 2015 a junho/julho de 2020 (quanto aos 2.º e 3.º Autores), (ii) a condenação da Entidade Demandada no cumprimento do dever de prestar, traduzido no pagamento da pensão de aposentação nos mencionados períodos, (iii) a anulação do ato administrativo que indeferiu o pedido de reposição das quantias não pagas a título de pensão de aposentação nos referidos períodos, por violação dos artigos 78.º e 79.º do EA, 3.º, 7.º e 8.º do CPA e 18.º da CRP e (iv) a condenação da Entidade Demandada na prática do ato legalmente devido, repondo as quantias não pagas a título de pensão de aposentação nos citados períodos, acrescidas dos juros de mora devidos, desde a data da citação, até efetivo e integral pagamento, com todas as consequências legais.

3. Por saneador-sentença, de 06/12/2021, o Tribunal Administrativo e Fiscal (TAF) de Sintra julgou verificada a exceção de caso julgado, por considerar existir identidade das partes, do objeto, do pedido e da causa de pedir relativamente à ação especial interposta pelos mesmos Autores e que correu termos, naquele Tribunal, sob o Processo n.º 557/15.1BESNT, e absolveu a CGA do pedido contra ela formulado pelos Autores. Incidentalmente, aquela sentença julgou também que, ainda que não ocorresse a exceção do caso julgado, sempre a ação teria de improceder, por os Autores não serem titulares do direito peticionado.

4. Inconformados, os Autores recorreram para o Tribunal Central Administrativo Sul (TCAS), o qual, por acórdão de 19/05/2022, julgou violado o princípio do contraditório em relação ao conhecimento oficioso e decisão proferida, sem prévia audição das partes, sobre a procedência da exceção de caso julgado, depois formulou o juízo de irrelevância da irregularidade processual daí decorrente e, conhecendo do erro de julgamento invocado, revogou a sentença recorrida na parte relativa à exceção de caso julgado e, conhecendo do mérito, em substituição, do tribunal recorrido, julgou improcedente a ação instaurada contra a CGA.

5. É deste acórdão do TCAS que vem interposto o presente recurso de revista, cujas alegações os Recorrentes concluem da seguinte forma:

“(i) Antes de mais, cumpre esclarecer que, e no que quanto ao dissidio presente (mérito) não existe jurisprudência deste digno tribunal, atendendo que, aqui, se discute a aplicabilidade ou inaplicabilidade do regime de incompatibilidade decorrente dos artigos 78º e 79º do Estatuto de Aposentação, quanto aos pilotos da A..., S.A., enquanto empresa participada, qualificação que perdurou entre novembro de 2015 a outubro de 2020. Pois que, os doutos acórdãos proferidos reportam-se ao período que antecedeu a privatização da A... (2014) e enquanto a mesma era empresa pública;

(ii) Feito este breve parêntesis, importa salientar que o que motiva em primeiro lugar o presente recurso de revista consiste no facto de embora o Tribunal Central Administrativo Sul ter considerado verificar-se uma nulidade processual nos termos do disposto no artigo 195º, nº 1, do CPC, por violação do direito ao contraditório/prolação de decisão surpresa, a mesma não foi devidamente declarada por ter considerado que a situação era revertida com a prolação de acórdão, face ao erro de julgamento suscitado pelos recorrentes em sede de recurso de apelação;

(iii) Face a isto, e no entendimento dos Recorrentes, erradamente o tribunal a quo, conheceu da exceção dilatória de caso julgado e consequentemente, em substituição ao tribunal de primeira instância, conheceu do mérito;

(iv) O que revela ser violador do disposto no artigo 195º, nº 1, do CPC e do artigo 149º, nº 1, do CPTA;

(v) A acrescer a isto o tribunal a quo conheceu do mérito sem que para o efeito se encontrasse devidamente assente a matéria de facto ou a considerar-se que o tribunal de primeira instância fixou e, ainda que o tribunal a quo tenha aditado factos, a matéria assente revela-se insuficiente face à prova documental junta, o que revela ser violador do disposto no artigo 149º, nº 3, do CPTA;

(vi) Porquanto a situação presente encerra em si uma questão suscetível de se repetir no futuro;

(vii) Situação, esta, que não pode ser caracterizada como sendo singular, pelo contrário, atendendo à temática, detém uma relevância jurídica, pois que o entendimento sufragado pelo Tribunal Central Administrativo Sul quanto à interpretação do disposto no artigo 195º, nº 1, do CPC, face à violação do direito ao contraditório e sua atuação ao abrigo do disposto no artigo 149º, nº 1 e 149º, nº 3, do CPTA poderá repetir-se no futuro;

(viii) Ao que acresce, e no que diz respeito ao mérito, a situação detém relevância jurídica uma vez que abrange o universo de diversos pilotos de linha Aérea, da A..., S.A., aposentados, e que exorbita a do caso em concreto. Até porque atualmente existem processos judiciais a correr termos – cfr. a título de exemplo o processo nº 2652/21.9BEPRT, 880/21.6BELSB e 1131/21.9BELRA;

(ix) Pelo que a apreciação do presente litígio em sede de recurso de revista terá, sem margem para dúvidas, utilidade para outros casos;

(x) A isto acresce o facto de o tribunal a quo ter feito uma incorreta interpretação do disposto nos artigos 87º-A e 87º-B do CPTA e no artigo 195º, nº 1, do CPC e artigo 149º, nºs 1 e 3, do CPTA e nos artigos 78º e 79º do E.A., conjugado com o disposto nos artigos 2º, 7º e 9º do Decreto-Lei nº 133/2013, de 3 de outubro. E que tal interpretação, no que diz respeito aos artigos 195º, nº 1 do CPC e 149º, nº 1 e 3 do CPTA, não é consentânea com o entendimento jurisprudencial (cfr. acórdãos citados infra) e espírito do legislador (i) e assim que quando se verifique uma nulidade processual, para que se considere sanada, deverá determinar-se a anulação do processado desde a prática da nulidade e praticar-se o ato ilegalmente omitido, (ii) a interpretação levada a cabo pelo tribunal a quo é ainda violadora do disposto no artigo 149º, nº 1, do CPTA, pois que o mesmo apenas contempla as situações de nulidades de sentenças e decorrentes do disposto no 615º do CPC e não a nulidade processual (iii) ao que acresce que ao abrigo do disposto no artigo 149º, nº 3, do CPTA o tribunal a quo também se encontrava impedido de se substituir ao tribunal da primeira instância por se tornar necessário a reformulação do despacho saneador (matéria de facto assente);

(xi) Por fim e no que diz respeito à incorreta interpretação do disposto nos artigos 78º e 79º do E.A. e artigos 2º, 7º e 9º do Decreto-Lei nº 133/2013, de 3 de outubro, o tribunal a quo erradamente considera a verificação de vencimentos públicos e assim a impossibilidade de cumulação dos vencimentos e pensão pelos Recorrentes, pelo facto de se estar na presença do setor empresarial do estado, não fazendo a devida destrinça entre as empresas em que há influência dominante do estado daquelas em que embora integrando o setor empresarial do estado não detêm uma influência dominante do estado;

(xii) Nesta decorrência, o Tribunal Central Administrativo Sul incorreu em erro ostensivo na interpretação das normas legais, como melhor se demonstrará infra;

(xiii) Antes demais, cumpre-nos desde já evidenciar que do ponto 8 do douto acórdão “II. Objecto do processo – questões a decidir” é referido que “(…) as questões a apreciar no presente recurso consistem em (...) se ocorreu também erro de julgamento o tocante à apreciação que aquele despacho fez do mérito da pretensão dos autores, não lhe concedendo provimento.” Por sua vez, do ponto 13 decorre o entendimento que “(…) de acordo com o disposto nos artigos 87º-A, 87º-B e 89º, nº 4, alínea l), todos do CPTA, resulta que constituída a excepção de caso julgado uma excepção dilatória, não havia lugar à realização da audiência prévia, na medida em que o processo iria findar no despacho saneador pela procedência de excepção dilatória (cfr. artigo 87º-B, nº 1 do CPTA). Ora, digno tribunal a quo entra desde logo em contradição pois, ou bem que o Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra julgou improcedente a ação em razão do mérito ou bem que julgou procedente a exceção dilatória (cfr. dispositivo do despacho saneador sentença);

(xiv) Pelo que, entendendo-se que conheceu do mérito, impunha-se a realização da audiência prévia;

(xv) Mesmo que assim não se venha a entender, o que não se aceita, considerando-se que a situação vertente permitiria a prolação de despacho em vista da dispensa da realização da audiência prévia, sempre deveria o tribunal a quo ter proferido o competente despacho, o que também não fez. Pelo que a situação descrita configura numa omissão de um ato processual expressamente prescrito na lei, o que determinada a nulidade do saneador sentença (cfr. douto acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, de 21.01.2021, proferido no processo nº 77/19.5BEBJA) e, consequentemente, a nulidade do douto acórdão nos termos do disposto no artigo 615º, nº 1, alínea c), do CPC e artigo 195º, nº 1, do CPC;

(xvi) Prosseguindo, considerou o tribunal a quo que o TAF de Sintra incorreu numa nulidade secundária, prevista no artigo 195º, nº 1, do CPC e uma vez que os ora Recorrentes, subsidiariamente alegaram erro de julgamento quanto à verificação da exceção de caso julgado, o tribunal a quo considerou, nesse decurso, se bem se percebeu, que a nulidade (omissão do direito ao contraditório) não era suscetível de influir na decisão da causa, uma vez que o Tribunal Central Administrativo Sul podia reverter o julgamento levado a cabo pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra;

(xvii) Pelo que tendo o digno tribunal a quo considerado e bem que a omissão do direito ao contraditório constitui numa nulidade nos termos do disposto no artigo 195º, nº 1, do CPC, estava o digno tribunal a quo impedido de considerar a referida omissão como uma nulidade, mas sem influência no exame ou decisão da questão – cfr. douto acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte, de 25.02.2022, proferido no âmbito do processo nº 01451/17.7BEBRG e douto acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 02.12.2019, proferido no âmbito do processo nº 14227/19.8T8PRT.P1;

(xviii) Pois que de acordo com o referido preceito há nulidade quando a lei o declare ou quando a irregularidade cometida possa influir no exame ou na decisão da causa – cfr. artigo 195º, nº 1, do CPC;

(xix) O que demonstra que o douto acórdão recorrido é contraditório, face aos fundamentos e decisão respeitante à verificação de nulidade nos termos do disposto no artigo 195º, nº 1, do CPC, o que determina a sua nulidade nos termos do disposto no artigo 615º, alínea c), ex vi artigo 666º do CPC;

(xx) Por outro lado, e não se entendendo assim, o que não se aceita, padecendo o saneador-sentença de nulidade processual, não se encontrando a mesma sanada, por não se ter determinado a baixa do processo e a anulação de todos os atos subsequentes praticados, a sobredita nulidade processual inquina consequentemente o douto acórdão, pois que continua a subsistir, o que determina a sua nulidade;

(xxi) Que a não se entender assim, o que não se aceita, e considerando-se que o tribunal a quo não declarou a nulidade da sentença por omissão do direito ao contraditório, o mesmo incorreu em erro de julgamento, face ao entendimento unânime jurisprudencial quanto à configuração da referida omissão como nulidade nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 195º, nº 1, do CPC;

(xxii) Pelo que a influência na decisão da causa deverá ser aferida quanto à decisão que foi proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra, pois foi aqui que se omitiu o direito ao contraditório e não em sede de recurso de apelação. Não se entendendo deste modo, e que as nulidades processuais podem ser sanadas pelo tribunal superior, desde que as partes invoquem erro de julgamento, será permitir eliminar um grau de recurso que normalmente deveria estar sempre garantido às partes;

(xxiii) Posto isto deverá o douto acórdão ser revogado, por ter incorrido em erro de julgamento quanto ao disposto no artigo 195º do CPC e consequentemente determinar-se a baixa dos autos ao tribunal de primeira instância;

(xxiv) Por conseguinte, o tribunal o quo apreciou, em substituição do tribunal recorrido, nos termos previstos no artigo 149º, nº 3 do CPTA, o mérito da pretensão formulada pelos recorrentes;

(xxv) Antes demais, torna-se necessário evidenciar o seguinte, de acordo com o artigo 149º, nº 1, do CPTA [a]inda que declare nula a sentença, o tribunal de recurso não deixa de decidir o objeto da causa, conhecendo do facto e do direito;

(xxvi) As nulidades contempladas no referido preceito reconduzem-se às nulidades da sentença e previstas no artigo 615º do CPC, dela se afastando a nulidade processual decorrente do artigo 195º, nº 1, do CPC.

Que por esse motivo, afasta desde logo a possibilidade de o tribunal em sede de recurso de apelação conhecer quanto ao demais – cfr. Mário Aroso de Almeida, Carlos Alberto Fernandes Cadilha, Comentário ao Código de Processos nos Tribunais Administrativos, 2017, 4ª edição, Almedina, Coimbra, páginas 1134 e 1135;

(xxvii) Por outro lado, dispõe o artigo 149º, nº 3 do CPTA que [s]e, por qualquer motivo, o tribunal recorrido não tiver conhecido do pedido, o tribunal de recurso, se julgar que o motivo não procede e que nenhum outro obsta a que se conheça do mérito da causa, conhece deste no mesmo acórdão em que revoga a decisão recorrida (sublinhado nosso).

(xxviii) No caso dos autos, foi proferido despacho saneador-sentença que conheceu e julgou procedente a exceção de caso julgado, não tendo, por isso, procedido à fixação da matéria assente.

(xxix) Pois que a referência feita a factos provados, nada mais se trata do que nos factos provados no âmbito da sentença proferida no processo nº 557/15.1BESNT e que foi transcrita na integralidade no referido douto despacho saneador para decisão da exceção de caso julgado;

(xxx) Face a isto, ao ter o tribunal a quo conhecido quer da exceção dilatória de caso julgado quer do mérito, a mesma incorreu em erro de julgamento por errada interpretação do disposto no artigo 149º, nº1, do CPTA – em causa não estar uma nulidade de sentença, mas processual que não foi sanada – ou caso assim não se entenda, do disposto no artigo 149º, nº 3, do CPTA – por não existir base instrutória (factos provados e não provados) e se tornar necessário a reformulação do despacho saneador;

(xxxi) Caso ainda assim não se venha a entender e que o Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra procedeu à fixação da matéria de facto por adesão aos factos assentes na sentença proferida no processo nº 557/15.1BESNT, relativamente ao qual o tribunal a quo, para apreciação das questões suscitadas no recurso (o que inclui o mérito) procedeu ao aditamento dos factos h. e i., refere-se que a matéria de facto dada como assente resulta ser deficiente;

(xxxii) Para o efeito impunha-se, atento ao alegado e prova documental junta com a petição inicial, ter ainda aditado os seguintes factos:

1. A A... SGPS SA foi privatizada a 12.11.2015, através da alienação da maioria do capital que estava na posse da B..., passando a sociedade C... SGPS, Lda a controlar 61% do capital e a B... a controlar 39% - cfr. doc. 9 junto através de requerimento de 02.06.2021;

2. Em fevereiro de 2016 a sociedade C... celebrou com a República Portuguesa uma Memorando de Entendimento sobre a reconfiguração da participação do Estado Português na A... – cfr. doc. 9 junto através de requerimento de 02.06.2021

3. Em maio de 2016 o Estado Português e a C... celebraram acordo definindo a compra de ações da A... SGPS pelo Estado Português – cfr. doc. 9 junto através de requerimento de 02.06.2021

4. A 30 de junho de 2017 foi celebrado entre a B... (SGPS), S.A. e a C..., SGPS, Lda, o acordo parassocial e de compromissos estratégicos (cfr. doc. 9 junto através de requerimento de 02.06.2021). Transcrevendo-se as suas cláusulas.

5. A 26.11.2020 foi apresentado pelos Autores requerimento junto da Ré, a pedir o pagamento das pensões suspensas entre novembro de 2015 a outubro de 2020, quanto aos 1º, 5º, 6º e 7º Autor, entre novembro de 2015 a junho/julho de 2020 quanto ao 2º e 3º Autor e entre novembro de 2015 e julho de 2019 quanto ao 4º Autor – cfr. doc. 5.

6. Por ofício datado de 22.02.2021 a Ré proferiu o seguinte ato:

Reportando-me ao assunto referenciado em epígrafe, informo V. Exa de que é entendimento da Caixa Geral de Aposentações que o exercício de funções na A... a partir de 12 de Novembro de 2015 se encontra abrangido pelo regime jurídico previsto nos artigos 78º e 79º do Estatuto da Aposentação.

Não obstante a operação de reprivatização, ocorrida em 12 de Novembro de 2015, com a venda de 61% do capital social ao Agrupamento C..., certo é que a A... continuou a ser financiada diretamente por dinheiros públicos.

Sendo inegável que o legislador pretendeu estender a aplicação do regime de incompatibilidades previsto nos artigos 78º e 79º do EA, não só ao exercício de funções na administração pública stricto sensu, mas também em recursos patrimoniais públicos (independentemente da sua prevalência), dever-se-á considerar que o exercício de funções por aposentados na A..., mesmo depois de 12 de Novembro de 2015, está abrangido pelo regime de incompatibilidades previstos nos artigos 78º e 79º do Estatuto da Aposentação (…)” – cfr. doc 1.

7. A 23.04.2021 os Autores efetuaram pedido de informação junto à B... SGPS, S.A., com o seguinte teor:

“(…)

4. Pelo que, sendo o pedido de informação e passagem de certidão essencial para uso dos meios contenciosos, requerer-se o pedido de informação nos seguintes termos:

i) Se a partir de novembro de 2015 a A..., S.A. continuou a ser qualificada como empresa pública ou se passou a ser qualificada como empresa participada;

ii) Passando a ser qualificada como empresa participada, até quando se manteve essa qualidade;

iii) Se a partir de novembro de 2015 a A..., S.A., obteve financiamento através de dinheiros públicos e quais;

iv) Qual o capital detido pela B... SGPS, S.A. a partir de novembro de 2015 até à presente data;

v) Se a partir de novembro de 2015 a gestão corrente da A..., S.A. era detida pela B... SGPS, S.A., que em caso negativo seja identificado quem a detinha e até quando se manteve;

5. Assim como se requer a passagem de certidão dos documentos que comprovem a venda da participação social detida pela B... SGPS, S.A., em novembro de 2015, nomeadamente:

i) Livro de registo de ações;
ii) O acordo parassocial e de compromissos estratégicos;
iii) O relatório de gestão e contas do exercício do ano de 2015 até ao ano de 2020;
iv) Ou que perante a sua inexistência, seja passada certidão negativa, com

menção dos seus fundamentos (…)” – cfr. doc. 6.

8. A 10 de maio de 2021 a B... (SGPS), S.A., prestou a seguinte informação:

i. A A... SGPS S.A. e a sua subsidiária A... S.A. eram, no momento anterior à conclusão da privatização (12 de novembro de 2015), empresas públicas. Desde aquela data, com a alienação, pela B..., da maioria do capital da A... SGPS S.A. estas sociedades deixaram de ser qualificadas como empresas públicas e passaram a ser empresas participadas, nos termos e para os efeitos do disposto no Decreto-Lei nº 133/2013, de 3 de outubro.

ii. Tal qualificação como empresa participada manteve-se até 2 de outubro de 2020, data na qual, no seguimento da publicação do Decreto-Lei nº 39-B/2020, de 16 de julho, foi concretizada a aquisição, pela República Portuguesa, das participações sociais objecto desse diploma legal, voltando tais empresas a qualificar-se dessa data em diante como empresas públicas.

iii. Tanto quanto é o nosso conhecimento, a partir de 2015 e até à data do primeiro auxílio do Estado concedido em 2020 no contexto da pandemia COVID-19, o único financiamento da A... com dinheiros públicos consistiu na subscrição pela B..., de 25% de uma emissão obrigacionista concluídas pela A... SGPS, S.A. em 2016 (tendo a D... subscrito, nas mesmas condições, os restantes 75%), no valor nominal de 30 milhões de euros, financiamento esse que ainda não atingiu a sua maturidade e, por esse motivo, continua a vencer juros.

iv. O montante do capital detido ela B... a partir de 12 de novembro até à presente data encontra-se inscrito no livro de registo de ações da A... SGPS S.A. (…)” – cfr. doc. 7.

(xxxiii) Ou ao invés, ter-se-ia imposto ao tribunal a quo determinar a baixa do processo em vista da ampliação da matéria de facto que se afigura como indispensável para uma correta apreciação da questão objeto de litígio;

(xxxiv) Razão pela qual, o douto acórdão recorrido padece de erro de julgamento, uma vez que se tornava necessário reformular o douto despacho saneador-sentença ou, a não se entender assim, a matéria de facto dada como assente, ainda que ampliada em sede de recurso de apelação, se revela insuficiente para o conhecimento do mérito. O que determina a revogação do douto acórdão;

(xxxv) Por fim, quanto a isto, entendeu o digno tribunal a quo que a questão material já tinha sido apreciada pelo Supremo Tribunal Administrativo, aderindo, por isso, ao douto acórdão proferido no âmbito do processo nº 2111/14.6BESNT, de 21.05.2020. Tendo, acrescentado que (…) independentemente da natureza jurídica da A..., o facto de esta integrar o sector público empresarial justifica que o exercício de funções naquela empresa por parte dos autores, ainda que no período compreendido entre Novembro de 2015 e Outubro de 2015, se encontra abrangido pelo regime de incompatibilidades previsto nos artigos 78º e 79º do Estatuto da Aposentação;

(xxxvi) Porém, e salvo o devido respeito pelo entendimento propugnado no douto acórdão, não podemos com o mesmo concordar;

(xxxvii) Antes demais, refere-se, que o Supremo Tribunal Administrativo nos doutos acórdãos citados (processo nº 2111/14.6BESNT e 243/15.2BELSB) não se pronunciou quanto à questão material em concreto subjacente aos presentes autos;

(xxxviii) O que se discute nos presentes autos, é coisa diversa, ou seja, se no período entre novembro de 2015 a outubro de 2020 e enquanto a A... foi qualificada como empresa participada em virtude da sua privatização, os Recorrentes tinham o direito de cumular o recebimento do vencimento e pensão. Visto que no douto acórdão citado e proferido pelo Supremo Tribunal Administrativo se indiciou a possibilidade de a partir de novembro de 2015 os vencimentos dos Recorrentes (pagos pela A...) deixaram de ser públicos;

(xxxix) Antes demais, referimos que à data dos factos aqui em discussão, de acordo com a redação conferida pela Lei nº 75-A/2014, de 30 de setembro, com os artigos 78º, nº 1, e o artigo 79º, nº 1, do EA, pretendeu-se, proibir a cumulação do recebimento de pensão e de vencimento por parte de quem exercesse atividade profissional remunerada para (i) os serviços da administração central, regional e autárquica, (ii) empresas públicas, (iii) entidades públicas empresariais, (iv) entidades que integram o setor empresarial regional e municipal e (v) demais pessoas coletivas públicas; (xl) Sempre e quando se estivesse na presença de vencimentos públicos (cf. preâmbulo do Decreto-Lei nº 137/2010, de 28 de dezembro);

(xli) É verdade que o artigo 2º, nº 2, do Decreto-Lei nº 133/2013, de 3 de outubro, dispõe que o setor empresarial do Estado é composto pelas empresas públicas e pelas empresas participadas. Todavia, o legislador não pretendeu abranger no regime de incompatibilidades de acumulação do vencimento e pensão (artigo 78º do E.A.) aqueles que exercessem atividade profissional remunerada nas empresas participadas, pois se assim fosse não referiria unicamente as empresas publicas e as entidades públicas empresarias, ao invés, teria remetido de forma indiscriminada para o regime do setor empresarial do Estado o que também não fez;

(xlii) Pelo que tal interpretação revela-se violadora do disposto no artigo 9º do C.C, assim como dos princípios da legalidade, da proporcionalidade e da razoabilidade, decorrentes dos artigos 3º, 7º e 8º do CPA e artigo 18º da CRP;

(xliii) Mais se diga que empresa participada não se confunde com empresa pública, pelo contrário, distingue-se pela ausência de influência dominante;

(xliv) Razão pela qual o raciocínio levado a cabo pelo digno tribunal a quo, e com o devido respeito, parte de premissas erradas, sendo elas a indiferença pela qualificação da A..., se empresa pública se empresa participada, bastando para a aplicação do artigo 78º e 79º do EA o facto de integrar o setor empresarial do estado;

(xlv) Posto isto, a 12.11.2015, foi celebrado entre a B..., SGPS, SA e o Agrupamento C... acordo de conclusão da venda direta das ações representativas de 61% do capital social da A..., SGPS, SA;

(xlvi) O que determinou que a A..., S.A. passasse a ser qualificada como empresa participada, nos termos e para os efeitos do Decreto-Lei nº 133/2013, de 3 de outubro;

(xlvii) O que se manteve até 02.10.2020, conforme informação prestada pela B..., SGPS, SA. Pelo que atualmente a A... não é uma empresa participada como evidenciado pelo digno tribunal a quo;

(xlviii) Mais se refere, a este respeito, que a reprivatização/recompra assentou no pressuposto que a A... S.A. se mantivesse como empresa privada (cfr. memorando de entendimento de 6.02.2016 consultável em https://www.portugal.gov.pt/downloadficheiros/ficheiro.aspx?v=%3D%3DBAAAAB%2BLCAAAAAAABAAzNDMyBQCoSfbyBAAAAA%3D%3D e que se justifica face ao decidido pelo tribunal a quo);

(xlix) Atendendo à qualificação da A... no período entre novembro de 2015 a outubro de 2020 (cfr. artigo 7º do Decreto-Lei nº 133/2013, de 3 de outubro), desnecessário se torna analisar o disposto no artigo 9º do referido Decreto-Lei que enumera as situações em que se verifica uma influência dominante, que a ter-se verificado (o que não se verificou) teria, necessariamente, afastado a qualificação da empresa como participada, que como se já referiu no caso vertente não se verificou, o que é expressamente reconhecido pela B...;

(l) Face ao exposto, deverá entender-se que (i) a A... se manteve como empresa participada entre novembro de 2015 a outubro de 2020, pressuposto subjacente no memorando de entendimento de 6 de fevereiro de 2016 e que permitiu a recompra pelo Estado, o que é atestado pela B... a qualificação da A..., (ii) que no período em questão o Estado Português não deteve maioria do capital social, nem influência na gestão da A..., pelo que não se poderá concluir que os vencimentos dos Recorrentes se tenham tratado de vencimentos pagos pelo erário público.”.

Pedem a procedência do recurso, com todas as legais consequências.

6. A Recorrida CGA apresentou contra-alegações, nas quais concluiu da seguinte forma:

A. O Acórdão proferido em 2022-05-19 pelo Tribunal Central Administrativo Sul (TCAS) não merece a censura que lhe é dirigida pelos Recorrentes, pois encontra-se bem fundamentado.

B. Não existe motivo para os Recorrentes se insurgirem contra o facto de o Tribunal a quo ter conhecido do mérito da ação em substituição ao tribunal de primeira instância, uma vez que, na realidade, e como melhor ilustrado supra em Alegações, ambas as instâncias apresentam a mesma orientação quanto à questão em causa nos autos, que é essencialmente de direito.

C. De resto, os próprios Recorrentes não deixam de concordar que o que está em causa é matéria de direito, sendo que, quanto à matéria de facto, a mesma não sequer foi colocada em causa no recurso que os impetrantes interpuseram para o TCAS.

D. Na perspetiva da CGA, nada obstava ao conhecimento do mérito da ação por parte do TCAS, tendo em conta que os argumentos ora apresentados pelos Recorrentes quanto à questão de direito em discussão configuram matéria sobejamente apreciada pelas instâncias.

E. A matéria aqui em causa, relativa à sujeição dos pilotos da A..., reformados da Força Aérea, ao regime de incompatibilidades estabelecido pelos art.ºs 78.º e 79.º do Estatuto da Aposentação, tem vindo a ser objeto de tratamento jurisprudencial por parte dos Tribunais Superiores – como foi o caso do Acórdão proferido pelo TCA Sul em 2020-02-27 na ação nº 557/15.1BESNT, assinalado pelo Tribunal a quo – os quais têm vindo a decidir consistentemente que os pilotos da A..., reformados da Força Aérea, estão efetivamente abrangidos por aquele regime de incompatibilidades, não lhes sendo lícito receber em simultâneo as pensões de reforma e remunerações da A....

F. Tal como melhor ilustrado supra em Alegações, esse é o mesmo entendimento que já havia sido acolhido pelo Supremo Tribunal Administrativo nos Acórdãos proferidos nos processos n.ºs 02111/14.6BESNT e 0243/15.2BELSB, de 2020-05-21 e de 2020-07-02, respetivamente, tendo sido esse, também, o entendimento seguido no Acórdão proferido pelo Tribunal Central Administrativo Sul em 2020-09-24, no proc.º 179/12.9BESNT, que alude às decisões do STA acima referidas (disponíveis na base de dados do IGFEJ em www.dgsi.pt).

G. E foi esse, também, o entendimento acolhido pela decisão recorrida, onde se explicita que “O entendimento exposto é para manter”, concluindo que “…independentemente da natureza jurídica da A..., o facto desta integrar o sector público empresarial justifica que o exercício de funções naquela empresa por parte dos autores, ainda que no período compreendido entre Novembro de 2015 e Outubro de 2015, se encontra abrangido pelo regime de incompatibilidades previsto nos artigos 78º e 79º do Estatuto da Aposentação.

40. Em suma, não assiste aos autores o direito de acumularem a remuneração que auferiam pelo desempenho de funções na A... com a pensão de reforma, aplicando-se-lhes integralmente o regime previstos nos artigos 78º e 79º do Estatuto da Aposentação…”.

H. A interpretação feita pelos Recorrentes não é, assim, admissível. E não o é fundamentalmente por duas razões. Primeiro, porque, tendo em conta a claríssima redação do artigo 78º do EA, que prevê expressamente que se consideram abrangidos pelo conceito de exercício de funções públicas remuneradas “todas as modalidades de contratos, independentemente da respetiva natureza, pública ou privada, laboral ou de aquisição de serviços”; Em segundo lugar, a interpretação esvazia de qualquer sentido útil aquela norma, uma vez que, ao contrário da vontade do legislador, perpetua a utilização dos recursos do Estado e demais pessoas coletivas públicas de forma pouco clara e pouco transparente.

I. Impõe-se, ainda, notar que o regime de incompatibilidades em causa foi concebido pelo legislador de forma a abranger todos aqueles que auferem uma pensão paga pelo Estado. Tal regime tem sido aplicado pela CGA, de forma rigorosa, mesmo naquelas situações em que estão em causa aposentados que, auferindo pensões mínimas, muitas vezes para compor um orçamento familiar de miséria, voltam a exercer funções na Administração Pública. Em tais casos, a CGA, suspende de imediato a pensão e pede a restituição das pensões que tenham sido indevidamente abonadas. Não é este o caso dos recorrentes. Em causa estão oficiais da Força Aérea, que, por estarem abrangidos por um regime específico, puderam reformar-se muito jovens (todos eles, em regra, antes de perfazerem 40 anos de idade).

J. Caso procedesse o entendimento sustentado pelos Recorrentes, os mesmos acabariam por ser colocados numa situação de privilégio que socialmente é de difícil aceitação, podendo acumular tais pensões com as remunerações auferidas pelo desempenho de funções na A..., remunerações que, como é público, têm valor elevado e são pagas ainda pelo Estado.”.

Pede que seja negado provimento ao recurso e confirmada a decisão recorrida.

7. O presente recurso de revista foi admitido, por acórdão proferido pela formação da apreciação preliminar da Secção de Contencioso Administrativo do STA, em 20/10/2022, referindo que “Vêm agora ao Autores interpor revista deste acórdão invocando essencialmente que o acórdão recorrido aplicou erradamente o regime das incompatibilidades previsto nos arts. 78º e 79º da Estatuto da Aposentação, atendendo a que à data dos factos em discussão – entre Novembro de 2015 e Outubro de 2020 –, àqueles preceitos fora dada uma nova redacção pela Lei n° 75-A/2014, de 30/9 que não permite a interpretação feito pelo acórdão recorrido (cfr. art. 7° do DL n° 133/2013). Alegam que neste quadro os Recorrentes tinham o direito de cumular o recebimento do vencimento e da pensão.”, concluindo que “a questão de saber se a jurisprudência deste STA (…) continua aplicável num quadro legal em que a A... passou a ser qualificada como uma empresa participada nos termos e para os efeitos do DL nº 133/2013, em virtude da sua privatização, não detendo o Estado a maioria do capital social, envolve complexidade jurídica superior ao normal, não sendo isenta de dúvidas. Ao que acresce que esta questão poderá voltar a colocar-se já que, como referem os Recorrentes, se encontram ainda pendentes processos em que a questão se coloca com os mesmos contornos.”.

8. O Ministério Público (MP) junto deste STA, notificado ao abrigo do n.º 1, do artigo 146.º do CPTA, pronunciou-se no sentido da procedência do recurso, concluindo que “(…) consideramos que o exercício da função de pilotos de linha aérea para a A..., qualificada como empresa participada, entre Novembro de 2015 e Outubro de 2020, por parte de oficiais da Força Aérea aposentados a quem foi atribuída pensão pela CGA, não está abrangido pelo regime das incompatibilidades definido nos arts. 78º e 79º do “EA”.”.

9. Recorrentes e Recorrida responderam à pronúncia do MP, nos termos do disposto no n.º 2, do artigo 146.º do CPTA, reiterando o sentido das posições expressas nas respetivas alegações e contra-alegações do recurso de revista.

10. O processo vai, com os vistos dos Exmos. Juízes Conselheiros Adjuntos, à Conferência para julgamento.

II. DELIMITAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO - QUESTÕES A APRECIAR

11. Constitui objeto do presente recurso de revista decidir se o acórdão do TCAS, ao conceder provimento ao recurso, revogar a decisão recorrida e, em substituição do tribunal recorrido, julgar improcedente a ação administrativa, incorreu em:

(i) Nulidade decisória, por oposição entre os fundamentos e a decisão, segundo a al. c), do n.º 1, do artigo 615.º do CPC ou nulidade processual nos termos do n.º 1, do artigo 195.º do CPC ou erro de julgamento quanto à interpretação do n.º 1, do artigo 195.º do CPC e dos artigos 87.º-A e 87.º-B do CPTA;

(ii) Nulidade decisória por ausência de fundamentação de facto, nos termos da al. b), o n.º 1, do artigo 615.º do CPC;

(iii) Erro de julgamento quanto à interpretação dos n.ºs 1 e 3, do artigo 149.º do CPTA e dos limites dos poderes de substituição;

(iv) Erro de julgamento quanto à interpretação dos artigos 78.º e 79.º do Estatuto da Aposentação (EA), na redação que lhe foi conferida pela Lei n.º 75-A/2014, de 30/09, conjugados com os artigos 2.º, 7.º e 9.º do Regime Jurídico do Setor Público Empresarial (RJSPE), aprovado pelo D.L. n.º 133/2013, de 03/10, ao julgar que não assiste aos Autores, pilotos aposentados, o direito de cumular a pensão de aposentação atribuída pela CGA com a remuneração auferida pelo desempenho de funções na empresa A..., SA, no período temporal compreendido entre novembro de 2015 e outubro de 2020 (quanto aos 1.º, 4.º, 5.º e 6.º Autores) e junho/julho de 2020 (quanto aos 2.º e 3.º Autores), sem distinguir entre as empresas em que há influência dominante do Estado e aquelas em que, embora integrando o setor empresarial do Estado, não detém a sua influência dominante.

III. FUNDAMENTOS

DE FACTO

12. O acórdão recorrido deu como provados os seguintes factos, acolhendo a factualidade provada no saneador-sentença proferido pela 1.ª instância, tendo ainda aditado outros factos:
9. O despacho saneador-sentença recorrido considerou assente a seguinte factualidade:
a. Os autores foram oficiais da Força Aérea, tendo-se entretanto aposentado – facto admitido;
b. Em consequência desta aposentação foi-lhes atribuída pela ré uma pensão – facto admitido;
c. Os autores celebraram com a (hoje) A..., SA (A..., SA) um contrato individual de trabalho, para a actividade de Piloto de Linha Aérea com a função de Oficial Piloto e mais tarde Comandante, mantendo-se ainda essa relação laboral, excepto quanto ao 5º autor, que se reformou em 27-6-2014 – facto admitido;
d. Os autores receberam da ré um ofício (de igual teor para todos), datado de 13-10-2014, dizendo o seguinte:
“Assunto: Regime de incompatibilidades de remuneração e pensão
A Caixa Geral de Aposentações, IP, tomou conhecimento de que V. Exª exerce actividade profissional remunerada na A..., situação que se encontra regulada nos artigos 78º e 79º do Estatuto da Aposentação, aprovado pelo Decreto-Lei nº 498/72, de 9 de Dezembro, os quais vedam a acumulação de pensão com remuneração.
Assim sendo, V. Exª terá de optar, com efeitos a 2011-01-01, ou pelo recebimento da pensão paga pela CGA ou pela verba paga pela A.... Na falta desta opção, no prazo de dez dias, esta Caixa não poderá deixar de suspender provisoriamente a pensão que vem pagando.” – cfr. doc. nº 1;
e. Por cartas – datadas de diferentes datas da 2ª quinzena de Outubro 2014 e de igual teor –, os autores responderam a tal ofício da forma seguinte:
“Assunto: Regime de incompatibilidades de remuneração e pensão
Acuso a recepção da carta acima referida.
É certo que exerço actividade profissional remunerada na A..., como diz, mais concretamente a de Piloto de Linha Aérea com a função de Comandante, no âmbito de um contrato individual de trabalho.
Mas isso - ao contrário do que também diz - não significa que seja uma situação que se encontra regulada nos artigos 78º e 79º do Estatuto da Aposentação, aprovado pelo Decreto-Lei nº 498/72, de 9 de Dezembro, os quais vedam a acumulação de pensão com remuneração. Desde logo porque as funções por mim exercidas não são funções públicas.
Ou seja, em meu entender, a Caixa não tem nenhum fundamento para suspender o pagamento da pensão a que tenho direito e para a qual descontei.
A persistir no propósito que a CGA comunica e ao abrigo do disposto nos artigos 61 º e seguintes do Código do Procedimento Administrativo, requer o signatário que lhe sejam indicados os fundamentos para que a CGA considere que se lhe aplicam os artigos 78º e 79º do Estatuto da Aposentação, já que na carta a que se responde nenhum fundamento é indicado para tal entendimento.
(…)”;
f. A ré não respondeu a tais cartas, excepto ao 5º autor, nos termos seguintes:

[IMAGEM]

– cfr. doc. nº 3;

g. A partir de Novembro de 2014 inclusive, não mais a ré pagou aos autores a sua pensão de aposentação – facto admitido.

10. E, por se afigurarem relevantes para a apreciação das questões suscitadas no presente recurso, aditam-se ao probatório os seguintes factos:

h. Os autores intentaram no TAF de Sintra, em 26-1-2015, contra a Caixa Geral de Aposentações, uma acção administrativa especial, a que veio a caber o nº 557/15.1BESNT, na qual deduziram o seguinte pedido:

[IMAGEM]

– cfr. p.i. do processo em causa;

i. A pretensão formulada nessa acção veio a ser julgada improcedente, por sentença do TAF de Sintra, datada de 11-5-2018, posteriormente confirmada por acórdão deste TCA Sul, de 27-2-2020 – idem.”.

DE DIREITO

13. Importa entrar na análise dos fundamentos do recurso jurisdicional, nos termos invocados pelos Recorrentes, designadamente, das conclusões da alegação do recurso, as quais delimitam o objeto do recurso, nos termos dos artigos 144.º, n.º 2 do CPTA e 608.º, n.º 2, 635.º, n.ºs 4 e 5 e 639.º, n.ºs 1 e 2, todos do CPC, aplicáveis ex vi artigo 140.º, n.º 3 do CPTA.

14. No presente recurso colocam-se diversas questões, umas de natureza processual e outra sobre o mérito do pedido, que urge agora analisar e decidir, em separado.

(i) Nulidade decisória, por oposição entre os fundamentos e a decisão, segundo a al. c), do n.º 1, do artigo 615.º do CPC ou nulidade processual nos termos do n.º 1, do artigo 195.º do CPC ou erro de julgamento quanto à interpretação do n.º 1, do artigo 195.º do CPC e dos artigos 87.º-A e 87.º-B do CPTA

15. Vêm os Recorrentes imputar a nulidade decisória contra o acórdão recorrido, por contradição entre os fundamentos e a decisão, pois a decisão proferida em 1.ª instância ou julga a ação improcedente em razão do mérito, ou julga procedente a exceção dilatória, pelo que, entendendo-se que conheceu do mérito, impunha-se a realização de audiência prévia e, mesmo que se entendesse que ela poderia ser dispensada, impunha-se a prolação do respetivo despacho, o que não se verifica, o que configura uma omissão de um ato processual e a respetiva nulidade do saneador-sentença e, consequentemente, a nulidade do acórdão, nos termos dos artigos 615.º, n.º 1, c) e 195.º, n.º 1, do CPC.

16. Além de que, tendo o TCAS entendido, no acórdão recorrido, que o despacho-saneador viola o princípio do contraditório, entendem os Recorrentes que ocorre uma nulidade processual, nos termos do n.º 1, do artigo 195.º do CPC, não podendo decidir que ela não tinha influência no exame e decisão da causa, sendo contraditório face aos fundamentos e à decisão respeitante à nulidade processual, nos termos do n.º 1, do artigo 195.º do CPC, que determina a sua nulidade decisória, nos termos da al. c), do n.º 1 do artigo 615.º e do artigo 666.º, do CPC, devendo ter sido declarada a nulidade e anulados todos os atos e ser ordenada a baixa do processo.

17. Se assim não se entender, defendem os Recorrentes que o acórdão recorrido incorre em erro de julgamento, pois a preterição do contraditório configura nulidade nos termos do n.º 1, do artigo 195.º do CPC, pois não foi dada possibilidade às partes de se pronunciar sobre a exceção de caso julgado, devendo o acórdão ser revogado e ordenada a baixa dos autos.

18. Compulsado o teor do acórdão recorrido verifica-se que nele foi decidido que o saneador-sentença recorrido violou o princípio do contraditório, previsto no n.º 3, do artigo 3.º do CPC, ao não convidar as partes a tomarem posição sobre a verificação da exceção de caso julgado que foi julgada procedente, mas no respeitante às consequências a retirar da omissão desse ato processual, decidiu-se, nos termos do n.º 1, do artigo 195.º do CPC, que a 1.ª instância incorreu numa nulidade secundária, que não se repercute na decisão da causa, por no acórdão sob recurso se poder reverter o julgamento efetuado quanto à procedência da referida exceção de caso julgado, considerando os fundamentos do recurso invocados, não apenas relativos à nulidade processual, como do erro de julgamento quanto ao decidido em matéria de exceção.

19. O que determinou que o acórdão recorrido não tivesse ordenado a baixa dos autos, antes tivesse passado a conhecer do invocado erro de julgamento de direito respeitante à procedência da exceção de caso julgado, entendendo que a mesma não se verifica, por a pretensão deduzida pelos Autores, nas duas ações instauradas, não proceder do mesmo facto jurídico, não sendo coincidentes quanto à causa de pedir.

20. Neste sentido, o acórdão recorrido após decidir que a nulidade processual decorrente da violação do princípio do contraditório, nos termos do n.º 1, do artigo 195.º do CPC, não influi na decisão da causa, decidiu julgar procedente o erro de julgamento de direito respeitante à exceção de caso julgado, por não se verificar a referida exceção, passando então depois, a conhecer do mérito do pedido, em substituição do acórdão recorrido.

21. A questão submetida a juízo prende-se com os efeitos processuais da violação do princípio do contraditório, previsto no disposto no n.º 3, do artigo 3.º do CPC, aplicável por força do artigo 1.º do CPTA, segundo o qual “O juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem.”.

22. O que convoca a aplicação do princípio da tutela jurisdicional efetiva e do princípio do processo equitativo, em concretização do n.º 4, do artigo 20.º da Constituição.

23. O princípio da tutela jurisdicional efetiva e o direito constitucional a um processo equitativo, emanado do n.º 4, do artigo 20.º da Constituição e do artigo 6.º da Convenção Europeia dos Direitos Humanos, que encontra consagração legal expressa no n.º 3, do artigo 3.º do CPC e no n.º 1, do artigo 2.º do CPTA, impõem que as normas processuais assegurem aos sujeitos processuais meios efetivos de defesa dos seus direitos e paridade entre as partes na dialética que protagonizam no processo.

24. Como decidido no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 632/99, de 17/11/99, Processo n.º 166/99, «o direito a um “processo equitativo” exige, para além disto, que a lei, na oferta de iguais meios de defesa dos direitos das partes, tenha construído um modelo que permita também, de uma forma adequada e equilibrada e sem prejuízo do respeito por outros valores igualmente determinantes na administração da justiça, uma defesa eficaz das perspectivas antagónicas que se confrontam no processo.».

25. O processo equitativo ou de justo processo assume uma dimensão mais ampla do que o princípio do contraditório, mas inclui-o no seu âmbito, segundo uma formulação que visa assegurar a resolução de litígios através de um processo que observe as corretas regras de funcionamento do tribunal, segundo as garantias de independência e imparcialidade, mas, simultaneamente, que assegure as regras do contraditório e do direito à prova.

26. O princípio do contraditório deve assegurar às partes o poder de expor perante o Tribunal as suas razões de facto e de direito antes que ele tome a decisão, pronunciando-se sobre as questões que lhes digam respeito, pelo que, constitui uma decorrência do direito de acesso aos tribunais e à justiça e a um processo equitativo, no sentido de que cada uma das partes deve poder exercer uma influência efetiva no começo e no desenvolvimento do processo.

27. Daí se configurar o princípio do contraditório como um princípio processual estruturante do sistema judicial, com relevância processual ou adjetiva, mas também material ou substantiva, considerando a instrumentalidade do processo em relação à tutela dos direitos materiais dos cidadãos, enquanto partes na instância.

28. Assume uma dimensão de participação e audição das partes ao longo do processo, previamente à apreciação e decisão da pretensão requerida ou da concreta questão a decidir por parte do Tribunal, supondo um modelo de processo em que os sujeitos processuais usem os direitos e cumpram os seus deveres processuais em vista da realização da justiça e da obtenção de uma decisão justa, mas que determina também que o juiz, que dirige o processo, não pratique atos no exercício dos seus poderes processuais de ordenação que possam criar a aparência de condições legais do exercício de direitos, com a posterior e inesperada projeção de efeitos processualmente desfavoráveis nas partes, que depositaram confiança na regularidade legal de tais atos.

29. A observância do contraditório, estando legalmente estabelecido como regra, em concretização do princípio do processo equitativo, tem por escopo um processo que conceda iguais oportunidades às partes de discutir cada questão que possa ter repercussão na decisão a proferir na sua causa e o direito a um processo justo, nos termos do qual as partes devem ser sempre ouvidas sobre as questões suscitadas ao longo do processo, incluindo a matéria de exceção, que possam ser determinantes para a decisão da causa e antes de ser decidida qualquer questão de conhecimento oficioso.

30. O princípio do contraditório, aliado à igualdade de armas, constitui, por isso, um dos postulados do processo equitativo, em ordem a assegurar a efetividade do direito de defesa no processo e de uma decisão da causa ponderada.

31. Por isso, reconhecem-se vantagens do contraditório, incluindo para o Tribunal, por lhe permitir, após o contraditório, estar mais conhecedor e seguro das posições das partes, assegurando que elas possam influenciar a decisão, Fernando Pereira Rodrigues, “O Novo Processo Civil. Os Princípios Estruturantes”, 2013, Almedina, pág. 49.

32. A jurisprudência e a doutrina assumem um conceito amplo do contraditório, que inclui a possibilidade de as partes apresentarem as razões de facto e de direito que sustentam a sua posição antes de o tribunal decidir, não apenas as questões de mérito, como as que configurem matéria de exceção, assim como de oferecer provas e contraditar as provas apresentadas pela contraparte, tomando conhecimento e posição sobre os atos processuais, elementos ou questões que influam na decisão a proferir.

33. Em respeito do princípio do contraditório impõe-se ao juiz que formule um convite expresso à parte cuja pretensão é afetada com a invocada exceção ou questão prévia, para que se pronuncie expressamente sobre tal matéria – vide Acórdão do TCAS, de 15/02/2018, Proc. n.º 07751/11.

34. Está diretamente associado aos deveres de gestão processual e de cooperação para com as partes, também cometidos ao juiz, pelo artigos 7.º-A e 8.º do CPTA, tendo como principal âmbito de aplicação os casos em que o tribunal tenha de debruçar-se sobre questões (de facto ou direito) de conhecimento oficioso que as partes não tenham considerado ou invocado, caso em que se impõe ao juiz, mesmo nesses casos, que antes de decidir dê a possibilidade de aquelas se pronunciarem, independentemente da fase em que se encontre o processo.

35. Tal é o caso da exceção de caso julgado, conhecida oficiosamente, nos termos do n.º 1, do artigo 89.º do CPTA, no saneador-sentença, mas que impõe previamente o contraditório das partes, sob pena de nulidade processual, nos termos do artigo 195.º e a apreciar nos termos gerais do artigo 201.º, ambos do CPC, pois que a decisão surpresa, salvos os casos de manifesta desnecessidade, ao não ter dado às partes a oportunidade de se pronunciarem, pode influir no exame ou na decisão a causa.

36. A nulidade com esse fundamento diz respeito a atividade anterior à prolação da decisão, assumindo-se como processual, enquanto desvio entre o formalismo prescrito na lei e o formalismo efetivamente seguido no processo, revestindo a natureza de nulidade secundária, pelo que o seu conhecimento depende de arguição.

37. Em função da sua gravidade e de estarem ou não previstas na lei, a lei distingue entre as duas modalidades de nulidades processuais, as principais ou de 1.º grau, típicas ou nominadas e as secundárias ou de 2.º grau, atípicas ou inominadas, sendo as primeiras mais fortes e graves pelas suas consequências, por isso, expressamente previstas na lei e de conhecimento oficioso do Tribunal, como previsto nos artigos 196.º e 197.º, n.º 1, do CPC [com remissão para os artigos 186.º e 187.º (ineptidão da petição inicial)], 188.º (falta de citação), 191.º (preterição de formalidades essenciais à citação), 193.º (erro na forma do processo ou no meio processual) e 194.º (falta de vista ou exame ao Ministério Público)] e as segundas, são todas as que não encontrem previsão expressa na lei, recaindo na formulação genérica do n.º 1, do artigo 195.º do CPC.

38. Como a lei prevê no n.º 1, do artigo 195.º do CPC, tais nulidades secundárias “só produzem nulidade quando a lei o declare ou quando a irregularidade cometida possa influir no exame ou na decisão da causa”.

39. Neste sentido, não há dúvidas de que o acórdão recorrido decidiu acertadamente ao julgar que o saneador-sentença recorrido, ao julgar procedente a exceção dilatória de caso julgado, conhecida oficiosamente e sem assegurar previamente o contraditório das partes, violou o princípio do contraditório, previsto no n.º 3, do artigo 3.º do CPC, que consubstancia uma nulidade secundária, nos termos do disposto no n.º 1, do artigo 195.º do CPC.

40. A divergência dos Recorrentes reside na consideração de o TCAS não ter declarado essa nulidade, revogado o saneador-sentença e ordenado a baixa dos autos, para que o contraditório das partes fosse respeitado, antes tendo entendido que essa nulidade secundária não tem influência na decisão da decisão, considerando terem os Recorrentes também invocado o erro de julgamento quanto a essa decisão de procedência da exceção de caso julgado, permitindo que o Tribunal aquilate desse invocado erro de julgamento.

41. Tal julgamento do TCAS não só não é contraditório, não traduzindo a invocada nulidade decisória, nos termos da al. c), do n.º 1, do artigo 615.º do CPC, como tem sustento na lei processual civil, ao conceder-se ao juiz o poder de decidir se a irregularidade cometida influi no exame ou na decisão da causa, segundo o n.º 1, do artigo 195.º do CPC, permitindo ao juiz que, conhecendo da nulidade secundária, em função das circunstâncias, não a declare, nem extraia quaisquer efeitos processuais.

42. A decisão judicial pode padecer de vícios de duas ordens, os quais obstam à sua eficácia ou validade:

i) pode ter errado no julgamento dos factos e do direito, sendo a consequência a da sua revogação (erro de julgamento de facto ou de direito);

ii) como ato jurisdicional, pode ter violado as regras próprias da sua elaboração ou contra o conteúdo e limites do poder à sombra da qual é emanada (tornando-se passível de nulidade, nos termos do artigo 615.º do CPC).

43. Verifica-se a referida nulidade decisória prevista na al. c), do n.º 1 do artigo 615.º do CPC, quando os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível, no sentido de que entre os fundamentos e a decisão não pode existir contradição lógica.

44. Tal acontecerá se o juiz adotar determinada linha de raciocínio e depois ao invés de a prosseguir, extraindo dela a devida consequência jurídica, assumida no segmento decisório, vir a decidir em sentido divergente ou oposto, que a fundamentação aduzida não permitiria adivinhar.

45. O que não se verifica no presente caso, não existindo a invocada contradição entre os fundamentos e a decisão proferida, pois que não é possível extrair o juízo de que o juiz tenha fundamentado a decisão num determinado sentido e haja concluído noutro sentido, oposto ou divergente.

46. Nada obsta que o tribunal tenha conhecido da invocada nulidade processual por violação do princípio do contraditório e, enquadrando-a no regime das nulidades secundárias, tenha decidido que essa nulidade não influi no exame e decisão da causa, nos termos permitidos no n.º 1, do artigo 195.º do CPC, passando a conhecer do invocado erro de julgamento da decisão proferida sobre a exceção dilatória de caso julgado.

47. Assim, nos termos expostos, não assiste razão aos Recorrentes no respeitante à nulidade decisória invocada, com fundamento em contradição entre os fundamentos e a decisão, nos termos da al. c), do n.º 1 do artigo 615.º do CPC, pois é perfeitamente consentâneo e coerente o julgamento realizado, sem que ocorra a aludida contradição.

48. Além de que tem de ser convocado o disposto no n.º 1, do artigo 149.º do CPTA, que, à semelhança do disposto no n.º 1, do artigo 665.º do CPC, concede poderes ao tribunal da apelação para, sem prejuízo da nulidade da sentença recorrida, não deixar de conhecer o objeto da causa e conhecer de facto e de direito.

49. Assim como, mesmo na situação de a decisão recorrida não ter conhecido do pedido, como no presente caso, entendendo o tribunal de recurso que o motivo não procede e que nenhum outro obsta a que se conheça do mérito da causa, poder proceder a esse conhecimento no mesmo acórdão em que revoga a decisão recorrida, nos termos previstos no n.º 3, do artigo 149.º do CPTA.

50. Está em causa um regime que permite ao TCA, como tribunal de recurso, conhecer de questões que a decisão recorrida deixou de conhecer, não porque sejam questões novas, que não são, mas porque, tendo sido invocadas pelas partes nos articulados, não foram objeto de apreciação.

51. A tal não obsta a eliminação de um grau de jurisdição, pois é a própria lei a conferir, no artigo 149.º do CPTA, tais poderes de pronúncia substitutivos ao tribunal de recurso.

52. Está em causa um regime processual que tem por finalidade a realização da justiça material e privilegiar a emissão de pronúncias de mérito, sob o princípio pro actione, que melhor tutelam os direitos e interesses legalmente protegidos das partes, assim como, a eficiência e eficácia da justiça, visando a resolução global e definitiva do litígio, no menor tempo possível, sob preocupações de economia processual e de celeridade.

53. Por isso, se constituir fundamento do recurso alguma nulidade decisória, prevista no artigo 615.º do CPC ou alguma nulidade processual a que se subjaza um juízo de não comprometimento ou influência negativa para a decisão da causa, o juiz reconhece o vício da decisão recorrida, mas não manda baixar o processo, passando a conhecer, em substituição, do mérito do pedido.

54. Neste sentido se decidiu nos Acórdãos deste STA, de 02/08/2006, Proc. n.º 571/06 e de 18/06/2015, Proc. n.º 90/15.

55. Daí que, se a decisão recorrida não tiver especificado os respetivos fundamentos de facto ou de direito, ou se estes estiverem em oposição com a decisão, ou ainda, se a decisão tiver omitido o conhecimento de alguma questão ou tiver conhecido de questão de que não podia tomar conhecimento, o tribunal de recurso atua em conformidade, proferindo a decisão que considerar adequada, quer fundamentando de facto e de direito, quer conhecendo em substituição da questão omitida ou revogando a decisão sobre questão de que não podia conhecer, não se limitando a revogar a decisão e a ordenar a baixa dos autos para que na 1.ª instância se decida em conformidade.

56. Os poderes de cognição do TCA no âmbito do recurso de apelação são de natureza substitutiva, que pressupõem o reexame das questões que constituem o objeto do litígio, não se limitando a poderes meramente cassatórios, que incidam sobre a revisão da decisão recorrida e sobre a correção das questões decididas, permitindo configurar o TCA como um verdadeiro segundo grau de jurisdição, julgando o mérito da causa, tal como referido por Mário Aroso de Almeida e Carlos Alberto Fernandes Cadilha, Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos, 2017, 4.ª ed., Almedina, pág. 1130-1131.

57. Por conseguinte, não tem razão de ser convocar a falta de realização da audiência prévia e a violação do disposto nos artigos 87.º-A e 87.º-B, do CPTA ou, no caso de entender que a audiência prévia não deveria ter lugar, a omissão do despacho da sua dispensa, na 1.ª instância, considerando a decisão que foi tomada no tribunal de recurso, no sentido da improcedência da questão prévia anteriormente julgada procedente, revogando o decidido.

58. Não se mantendo a decisão de procedência da exceção de caso julgado em relação à qual deveria previamente ter sido assegurado o contraditório das partes e sendo essa decisão revogada na instância de recurso, não faz sentido convocar a preterição da audiência prévia na 1.ª instância, tanto mais que ao tribunal de recurso se aplicam as vinculações previstas no artigo 149.º do CPTA.

59. De modo que não têm fundamento as questões invocadas contra o acórdão recorrido, pois impunha-se que decidisse como decidiu, ou seja, declarar a nulidade processual por violação do princípio do contraditório, nos termos do n.º 1, do artigo 195.º do CPC, passando a conhecer do invocado erro de julgamento da procedência da exceção de caso julgado e, tendo julgado improcedente tal exceção dilatória, por não provada, por falta de identidade da causa de pedir nas duas ações, conhecer do mérito da causa, em substituição, segundo os n.ºs 1 e 3, do artigo 149.º do CPTA.

60. Pelo que, nos termos expostos, não procedem os fundamentos do recurso.

(ii) Nulidade decisória por ausência de fundamentação de facto, nos termos da al. b), do n.º 1, do artigo 615.º do CPC

61. Sustentam os Recorrentes que incorre o acórdão recorrido em nulidade decisória, nos termos da al. b), do n.º 1, do artigo 615.º e do n.º 1, do artigo 666.º, do CPC, por omissão dos fundamentos de facto, além da ausência do exame crítico da prova, desconhecendo-se quais os factos tidos em conta, considerados provados, que sustentam a decisão recorrida.

62. Constitui jurisprudência uniforme que a nulidade ao abrigo da citada norma legal apenas se verifica quando haja falta absoluta de fundamentos e não quando a justificação seja apenas deficiente, medíocre ou errada – a título de mero exemplo, o Acórdão do STA, de 23/01/2020, Processo n.º 01193/09.7BELRA.

63. Por isso, apenas quando esteja em causa a falta de motivação da própria decisão e não a falta de justificação dos respetivos fundamentos, ocorrerá a referida nulidade decisória, ou seja, só ocorre nulidade quando ocorra falta absoluta de fundamentação.

64. Tal não é possível imputar ao acórdão recorrido, pois logrou proceder ao julgamento da matéria de facto, além de constar os respetivos meios de prova que serviram de suporte ao julgamento probatório.

65. Além de que, compulsado o teor do acórdão recorrido e realizado o respetivo confronto com o teor do saneador-sentença, verifica-se que o acórdão recorrido considerou a matéria de facto que havia sido julgada na 1.ª instância, sob a epígrafe “II – Factos Provados: Com interesse para a decisão a proferir, Julgo Provados os seguintes Factos: (…)”, que contém sete factos provados e ainda a “Motivação da decisão de facto”, da mesma constando que “A motivação da Decisão de facto fundamentou-se nos documentos dos autos e no processo administrativo em apenso, composto por oito pastas individuais, referentes a cada um dos Autores, respectivamente.”, nos termos constantes das páginas 5 a 7 do saneador-sentença e ainda aditou mais factualidade, com relevo para a decisão a proferir sobre a exceção de caso julgado, conforme teor das páginas 7 a 9 do acórdão recorrido, pelo que, não tem sustento tal invocação de nulidade decisória.

66. Neste sentido, carece de fundamento invocar a nulidade prevista na al. b), do n.º 1, do artigo 615.º do CPC, relativa à falta de especificação dos fundamentos de facto que justificam a decisão, porquanto foi tal factualidade julgada pertinente, julgada provada no acórdão recorrido, não constituindo fundamento de nulidade a pretensa insuficiência da fundamentação de facto.

67. Além de que, com relevo, decorre dos autos que os Autores, ora Recorrentes, não lograram impugnar o julgamento da matéria de facto vertido no saneador-sentença, nada tendo dito a respeito de tal omissão ou insuficiência dos motivos de facto, o que constituía um ónus no caso de pretenderem que fosse ampliada a matéria de facto assente pelo tribunal de recurso.

68. O que não tendo sido feito, determina a respetiva preclusão na atual fase processual e na presente instância de recurso de revista, considerando este Supremo Tribunal apenas conhecer de direito, segundo o disposto nos n.ºs 2 e 4, do artigo 150.º do CPTA.

69. Termos em que, em face do exposto, não procede o fundamento do recurso, respeitante à invocada nulidade decisória, por falta de fundamentação de facto do acórdão recorrido.

(iii) Erro de julgamento quanto à interpretação dos n.ºs 1 e 3, do artigo 149.º do CPTA e dos limites dos poderes de substituição

70. No entender dos Recorrentes existiu ainda um mau uso dos poderes previstos no artigo 149.º do CPTA e quanto aos poderes de substituição do tribunal de recurso, defendendo que as nulidades previstas no citado preceito são as nulidades decisórias, previstas no artigo 615.º do CPC e não as nulidades processuais, como a prevista no n.º 1, do artigo 195.º do CPC.

71. Invocam que no caso foi proferido o saneador-sentença que julgou procedente a exceção de caso julgado, sem fixar a matéria assente, alegando a mesma ter sido a transcrita do Processo n.º 557/15.1BESNT, e que o acórdão recorrido ao conhecer da exceção de caso julgado e também do mérito da causa, incorreu em erro de julgamento, quanto à interpretação do disposto no n.º 1, do artigo 149.º do CPTA, por não estar em causa uma nulidade decisória, mas uma nulidade processual, que não foi sanada.

72. No caso de assim não se entender, alegam os Recorrentes a errada interpretação do disposto no n.º 3, do artigo 149.º do CPTA, por não existir base instrutória e se tornar necessário reformular o despacho saneador, mas se assim também não se entender e se considerar que o saneador-sentença procedeu à fixação da matéria de facto, a matéria de facto assente é deficitária, por o acórdão recorrido não se ter limitado a julgar a exceção dilatória, mas também o mérito da causa, impondo-se o aditamento de outros factos, nos termos em que concretizam, listando os factos que consideram que deveriam ter sido levados ao probatório.

73. Conforme anteriormente expendido, não assiste razão nas questões invocadas pelos Recorrentes, relativamente ao mau uso no acórdão recorrido dos poderes previstos nos n.ºs 1 e 3, do artigo 149.º do CPTA.

74. Em face da decisão proferida no saneador-sentença e ao regime previsto no artigo 149.º do CPTA, recaindo sobre o TCAS o poder-dever de decidir o objeto da causa, conhecendo de facto e de direito (n.º 1), impunha-se sobre os Recorrentes, que pretendessem a efetiva correção da decisão recorrida e a respetiva fundamentação de facto, que tivessem procedido à respetiva impugnação integral da decisão, quer de facto, quer de direito.

75. Tanto mais, por no saneador-sentença o tribunal de 1.ª instância não se ter limitado a proceder ao julgamento dos factos necessários ao julgamento da exceção de caso julgado, tendo fixado factos com relevo para o mérito da causa, cabendo o ónus aos Recorrentes de indicar os concretos pontos da matéria de facto que entendiam estar em falta e que deveriam ser aditados.

76. É sabido que este Supremo Tribunal, nos termos dos n.ºs 2 e 4, do artigo 150.º do CPTA, não conhece do erro de julgamento de facto, mas apenas de direito, aquilatando da correção da fundamentação de facto proferida no caso de a mesma enfermar de algum erro de julgamento de direito, nos termos do disposto no n.º 3, do artigo 674.º do CPC.

77. Sem que seja sempre fácil a respetiva distinção entre questão de facto e questão de direito, por estarem em causa conceitos eminentemente jurídicos, vide Castanheira Neves, “A distinção entre a questão-de-facto e a questão-de-direito e a competência do Supremo Tribunal de Justiça como Tribunal de «Revista»”, Digesta, Vol. 1.º, Coimbra Editora, 195, pág. 491.

78. Como previsto no n.º 3, do artigo 674.º do CPC e no n.º 4, do artigo 150.º do CPTA, o erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa não pode ser objeto de recurso de revista, salvo de houver ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova.

79. Assim, “saber se foram ou não respeitadas as regras probatórias estabelecidas no direito substantivo é decidir de direito”, pelo que, não cabendo julgar neste Supremo Tribunal se a prova foi bem ou mal avaliada e se certo facto foi bem ou mal dado como provado, todavia é admissível julgar o modo de exercício dos poderes de reapreciação da matéria de facto que são confiados ao TCA pelo disposto no artigo 662.º do CPC, por estar em causa uma lei de processo para os efeitos do disposto no n.º 2, do artigo 150.º do CPTA e da al. b), do n.º 1, do artigo 674.º do CPC, Ana Celeste Carvalho, “O Princípio do Inquisitório na Justiça Administrativa. O Diálogo entre a Lei e a Prática Jurisprudencial”, AAFDL, Lisboa, 2021, págs. 835-836 e Acórdão do STJ, de 30/05/2019, Proc. n.º 156/16.0T8BCL.G1.S1.

80. «Não podendo o STA imiscuir-se no juízo probatório das instâncias nem controlar a sua convicção sobre a prova produzida ou a censurar, tem, porém, o poder de controlar a decisão sobre a matéria de facto na perspetiva da sua coerência ou da sua “respetiva lógica interna” (Armindo Ribeiro Mendes, “Recursos em Processo Civil – Reforma de 2007”, Coimbra Editora, 2009, pp. 158-159), por esta entrar no campo da questão de direito. Assim, perante um facto controvertido e não apreciado pelas instâncias, não constando do julgamento de facto da decisão recorrida, o STA não pode ele próprio apreciar a prova e julgar a matéria de facto, dando esse facto como provado ou não provado, por isso ser competência jurisdicional das instâncias, mas pode no controlo da coerência da decisão recorrida entender pela necessidade de ampliar a matéria de facto, caso em que lhe cumpre ordenar a baixa do processo às instâncias. (…) Do mesmo modo, o STA pode conhecer das contradições do julgamento de facto que inviabilizem a solução de direito dada ao caso. (…) No demais, o STA pode servir-se:

i. dos factos não considerados pelas instâncias, mas afirmados no processo e não controvertidos;

ii. dos factos notórios;

iii. dos factos de que tenha conhecimento no exercício das funções;

iv. das presunções judiciais e legais.», Ana Celeste Carvalho, “O Princípio do Inquisitório na Justiça Administrativa. O Diálogo entre a Lei e a Prática Jurisprudencial”, op. cit., págs. 838-839.

81. Por isso, a questão invocada pelos Recorrentes apenas poderá ter pertinência se a concreta decisão proferida no acórdão recorrido ou a que se impuser sobre o mérito da causa, não puder ter sustento no julgamento da matéria de facto fixado pelas instâncias, juízo que não pode proceder.

82. Não obstante a matéria de facto fixada pelas instâncias ser parca, apresenta-se suficiente não só para a concreta decisão que foi proferida, como para a resolução global do litígio, nos termos configurados pelas partes.

83. Tanto mais que os Recorrentes, em nenhum dos recursos interpostos invocaram a sua incorreção.

84. Acresce que a matéria que os Recorrentes sustentam como dever ter sido incluída no julgamento de facto do acórdão recorrido se traduzir, essencialmente, em matéria de direito, que pode ser conhecida por este Tribunal Supremo, por o juiz não estar sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito, segundo o disposto no n.º 3, do artigo 5.º do CPC, ao consagrar o princípio jura novit curia.

85. Ou ainda, estar em causa atos que não sendo legislativos, para efeitos da Constituição (artigo 112.º da Constituição a contrario sensu), foram publicados no jornal oficial, nos termos do disposto na al. p), do n.º 2, do artigo 3.º da Lei n.º 74/98, de 11/11, sendo públicos e de eficácia externa, além de previstos na Constituição, na al. c), do n.º 1 do artigo 200.º da Constituição, como são as Resoluções do Conselho de Ministros (sobre a sindicância dos atos normativos contidos em Resoluções, J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, “Constituição da República Portuguesa Anotada”, Vol. II, 4.ª ed. revista, 2010, pág. 496, Gomes Canotilho, “Direito Constitucional”, 7.ª ed., 2003, págs. 859-860, Jorge Miranda, “Resolução”, “Dicionário Jurídico da Administração Pública”, Vol. VII, 1996, págs. 252 a 255).

86. Sem prejuízo do disposto na al. b), do n.º 3, do artigo 138.º do CPA, que qualifica as Resoluções de Conselho de Ministros com conteúdo normativo como regulamentos governamentais, não se afigura pacífica a natureza jurídica das Resoluções do Conselho de Ministros, desde logo, atendendo à diversidade do seu respetivo conteúdo.

87. É, no entanto, seguro que traduzem um ato de múltiplo recorte político e normativo, adquirindo frequentemente dimensão normativa, habilitada na al. g), do artigo 199.º, da Constituição e, em muitos casos, conteúdos plurais que vão desde afirmações programáticas até verdadeiras normas, como afirmado por Alexandre Sousa Pinheiro, “Problemas de Constitucionalidade das normas de prevalência entre Regulamentos do Governo no Código do Procedimento Administrativo de 2015”, Julgar, n.º 26, Coimbra Editora, 2015, págs. 143-145.

88. Pelo que, a factualidade que os Recorrentes consideram que deveriam constar do julgamento de facto, em rigor, consiste em matéria de direito, respeitante à evolução do estatuto ou natureza jurídica da A... que, procede, essencialmente, da interpretação e aplicação de normativos de direito.

89. Não obstante, não se sufraga a tese restritiva defendida pelos Recorrentes, de que as nulidades a que se refere o n.º 1, do artigo 149.º do CPTA se restrinjam às nulidades decisórias e que tal preceito não se aplique no caso de proceder alguma nulidade processual que não influa no exame ou decisão da causa.

90. A questão prende-se com a natureza ou o concreto tipo de nulidade que estiver em causa, pois perante as nulidades principais não se vê como seja possível prosseguir com o processo e o conhecimento em substituição, nos termos do artigo 149.º do CPTA, em linha com o disposto na primeira parte, do n.º 1, do artigo 195.º do CPC, ao prescrever “Fora dos casos previstos nos artigos anteriores…”, mas diferentemente ocorre com as nulidades secundárias, como a que está em causa nos autos, por violação do princípio do contraditório, em relação à qual, como antes afirmado, nada obsta que o tribunal de recurso, no caso de entender que ela não influi no exame e na decisão sobre o mérito da causa, a considere sanada, tal como admitido na parte final, do n.º 1, do artigo 195.º do CPC, não extraindo as consequências típicas das nulidades processuais, como previstas no n.º 2, do artigo 195.º do CPC.

91. É o legislador que no disposto no n.º 1, do artigo 195.º do CPC subtrai da possibilidade de sanação os “casos previstos nos artigos anteriores”, admitindo, diferentemente, que no caso de prática de um ato que a lei não admita ou de omissão de um ato ou de uma formalidade que a lei prescreva, como consiste o caso dos autos, relativo à preterição do contraditório, possa ser formulado o juízo de que “só produzem nulidade quando a lei o declare ou quando a irregularidade cometida possa influir no exame ou na decisão da causa”.

92. Decidindo o tribunal de recurso revogar a decisão de procedência da exceção dilatória de caso julgado proferida pela 1.ª instância, enquanto questão que não poderia ter sido decidida sem a prévia audição das partes, fica sanada a respetiva nulidade processual, além de se poder formular o juízo de que essa omissão do ato processual devido não influi no exame e na decisão sobre o fundo da causa.

93. Neste sentido, não tem razão de ser defender uma interpretação restritiva do disposto no n.º 1, do artigo 149.º do CPTA, como propugnam os Recorrentes, de forma que esta norma legal apenas contemple as nulidades decisórias, sem ter aplicação às nulidades secundárias respeitantes à omissão de um ato ou de uma formalidade prescrita na lei, designadamente, quanto esteja em causa uma nulidade secundaria cuja irregularidade não influi no exame ou na decisão da causa, como no presente caso.

94. Termos em que, em face de todo o exposto, não procede o erro de julgamento invocado.

(iv) Erro de julgamento quanto à interpretação dos artigos 78.º e 79.º do Estatuto da Aposentação (EA), na redação que lhe foi conferida pela Lei n.º 75-A/2014, de 30/09, conjugados com os artigos 2.º, 7.º e 9.º do Regime Jurídico do Setor Público Empresarial (RJSPE), aprovado pelo D.L. n.º 133/2013, de 03/10, ao julgar que não assiste aos Autores, pilotos aposentados, o direito de cumular a pensão de aposentação atribuída pela CGA com a remuneração auferida pelo desempenho de funções na empresa A..., no período temporal compreendido entre novembro de 2015 e outubro de 2020 (quanto aos 1.º, 4.º, 5.º e 6.º Autores) e junho/julho de 2020 (quanto aos 2.º e 3.º Autores), sem distinguir entre as empresas em que há influência dominante do Estado e aquelas em que, embora integrando o setor empresarial do Estado, não detém a sua influência dominante

95. Por último, resta conhecer do erro de julgamento quanto à questão essencial de fundo, respeitante à interpretação e aplicação do disposto nos artigos 78.º e 79.º do Estatuto da Aposentação (EA), na redação que lhe foi conferida pela Lei n.º 75-A/2014, de 30/09, ao julgar o acórdão recorrido que não assiste aos Autores o direito de cumular a pensão de aposentação atribuída pela CGA com a remuneração auferida pelo desempenho de funções como pilotos na empresa A..., no período temporal compreendido entre novembro de 2015 e outubro de 2020 (quanto aos 1.º, 4.º, 5.º e 6.º Autores) e junho/julho de 2020 (quanto aos 2.º e 3.º Autores).

96. Segundo os Recorrentes está em causa o regime aplicável aos pilotos da A..., enquanto empresa participada, no período que perdurou entre novembro de 2015 a outubro de 2020, não se podendo confundir com o período anterior, sobre o qual já existe jurisprudência deste STA, quando a A... era uma empresa pública.

97. Defendem que no período relevante na presente ação, a A... era uma empresa participada em virtude da sua privatização, tendo os Recorrentes o direito a cumular o recebimento do vencimento e da pensão, pois por força da privatização, os vencimentos deixaram de ser públicos, mais invocando que a ratio do regime do Regime Jurídico do Setor Público Empresarial (RJSPE), aprovado pelo D.L. n.º 133/2013, de 03/10, é a incompatibilidade de cumulação do recebimento do vencimento e pensão, sempre e quando estejam em causa vencimentos públicos.

98. Não tendo o Estado português, no período entre novembro de 2015 a outubro de 2020, a maioria do capital social, nem influência na gestão da A..., invocam os Recorrentes que não se poderá concluir que os vencimentos dos Recorrentes tenham sido pagos pelo erário público, podendo cumular o vencimento com a pensão, defendendo a ilegalidade do ato praticado pela Entidade Demandada e o decidido no acórdão sob recurso.

99. Confrontando a matéria de facto provada no acórdão recorrido, encontra-se provado que os Autores são oficiais da Força Aérea, encontrando-se na situação de aposentados e, em consequência, foi-lhes reconhecido o direito a uma pensão pela Entidade Demandada, CGA, tendo também celebrado com a empresa A..., SA, (A...) um contrato individual de trabalho para piloto de linha área, com a função de Oficial Piloto e, mais tarde, Comandante.

100. Todos os Recorrentes receberam o ofício da Entidade Demandada, datado de 13/10/2014, para, com base no regime de incompatibilidade de remuneração e pensão, nos termos dos artigos 78.º e 79.º do Estatuto da Aposentação, virem optar ou pelo recebimento da pensão paga pela Caixa Geral de Aposentações (CGA) ou pela verba paga pela A..., SA, sendo que, na falta de manifestação de opção, a CGA suspenderá provisoriamente o pagamento da pensão.

101. Considerando que a pretensão dos Recorrentes incide especificamente sobre o direito ao recebimento da pensão em cumulação com a remuneração no período temporal entre novembro de 2015 a outubro de 2020, em função dos argumentos esgrimidos, a questão material colocada no presente recurso exige que se convoque o regime legal aplicável à empresa, A..., para a qual os Recorrentes exerceram a sua atividade de pilotos, descortinando a sua natureza jurídica e, consequentemente, o regime legal em matéria de remuneração no período em causa.

102. Como invocado pelos Recorrentes, a jurisprudência emanada por este STA não respeita à questão concretamente configurada na presente ação, pois que as anteriores decisões judiciais incidem sobre períodos temporais anteriores a este, em que a realidade acionista da A..., SA, era diferente.

103. Por a situação económico-financeira da A..., SGPS se ter degradado, desde 2008, com prejuízos consecutivos, endividamento e capital próprio negativo crescentes, num contexto de intervenção pública limitada pelas restrições impostas pelas regras comunitárias de auxílios de Estado, em 24/12/2014 foi aprovada a reprivatização de 61% do capital da A..., SGPS, que foi realizada em 12/11/2015, por venda direta a um parceiro privado, a C..., sob a invocação da necessidade de cumprir compromissos assumidos no Programa de Assistência Económica e Financeira e a urgência de viabilizar a recapitalização e o saneamento financeiro da empresa (sobre o conceito de privatização e reprivatização, vide Paulo Otero, “Privatizações, Reprivatizações e Transferências de Participações Social no interior do Sector Público”, Coimbra Editora, 1999 e João Nuno Calvão da Silva, “Mercado e Estado. Serviços de Interesse Económico Geral”, Almedina, 2008, pág. 41-44).

104. Para a referida reprivatização, importa considerar como referenciais legais a Lei-Quadro das Privatizações (LQP), aprovada pela Lei n.º 11/90, de 05/04, republicada pela Lei n.º 50/2011, de 13/09, o diploma de reprivatização da A..., SGPS, o D.L. n.º 181-A/2014, de 24/12 e os demais instrumentos jurídicos reguladores dessa reprivatização, a saber, as Resoluções do Conselho de Ministros n.ºs 4-A/2015, de 20/01 (aprova o caderno de encargos do processo de reprivatização indireta do capital social da A... mediante a reprivatização do capital social da A..., SGPS); 32-A/2015, de 21/05 (determina a realização de uma fase de negociações para os proponentes que procederam à apresentação de propostas vinculativas no âmbito do processo de reprivatização da A..., SGPS, S.A.); 38-A/2015, de 12/06 [selecionou a proposta da E... e da F... para a aquisição de ações representativas de 61% do capital social da A..., SGPS, acrescidas das ações que não viessem a ser adquiridas pelos trabalhadores na reprivatização da A..., SGPS (até 5% do seu capital social)]; 90/2015, de 23/10 (Altera o anexo 1.1.f) ao Acordo relativo à estabilidade Económico-Financeira da A... a celebrar entre a B... (SGPS), S.A., a Compradora, as entidades do Grupo A... e uma instituição financeira a contratar); 91-A/2015, de 12/11 (aprova a minuta do acordo relativo à conclusão da venda parcial do capital social da A..., SGPS, S.A.); 30/2016, de 23/05 (aprova os instrumentos jurídicos a celebrar entre a B... (SGPS), S.A. e a C..., SGPS, Lda., nomeadamente, as minutas do Acordo de Compra e Venda de Ações e do Acordo Parassocial e de Compromissos Estratégicos da A..., SGPS, S.A.); 42-A/2017, de 31/03 (aprova a Oferta Pública de Venda destinada aos trabalhadores do Grupo A..., que havia sido adiada em dezembro de 2015 e que veio a ser realizada em maio de 2017) e 95/2017, de 04/07 (aprova a minuta do acordo relativo à conclusão da reconfiguração da participação do Estado Português no capital social da A..., SGPS, S.A.).

105. Após a reprivatização, que se realizou através da operação de venda direta, a A..., SGPS passou a ser detida em 61% pela C... e em 39% pela B....

106. Assim, no período em causa, em consequência da operação de reprivatização, ocorrida em 12/11/2015, pela Resolução do Conselho de Ministros n.º 91-A/2015, de 12/01, com a venda direta de 61% do capital social do Estado ao Agrupamento C..., a A... deixou de ser uma empresa pública e passou a ser uma empresa participada, que, como tal, integra o setor empresarial do Estado.

107. Relevantemente, como resulta do Relatório de Auditoria n.º ...0/2018, 2.ª Secção, do Tribunal de Contas (TdC), relativo a “Reprivatização e Recompra da A...” (a que se refere a Entidade Demandada na pronúncia apresentada em 24/11/2022, em resposta ao parecer do Ministério Público) tal venda direta “alterou a situação da A... SGPS no perímetro das administrações públicas após assumir, em novembro de 2015, a natureza de empresa participada (tendo passado a afetar as contas da B... apenas na medida dessa participação). E deixou de figurar no Anexo II do DL 25/2017, de 3 de março, para efeitos de disciplina de execução orçamental”, nos termos do artigo 30.º do Decreto-Lei de Execução Orçamental para 2017, in file:///C:/Users/S%20T%20A/Downloads/Relat%C3%B3rio%20TC.pdf (destacados nossos).

108. Pelo que, em consequência da reprivatização, a B... passou a ter 39% de participação no capital social e igual percentagem de direitos económicos, mas sem direitos de voto especiais, sendo evidenciado que com a venda de 61% do capital social e a consequente reestruturação dos órgãos sociais da A..., SGPS [artigo 8.º e segs. do Contrato de Sociedade A..., SGPS (Estatutos)], a B... perde influência na gestão do Grupo A... para a C..., cfr. Relatório de Auditoria n.º ...0/2018, do TdC.

109. Neste âmbito, tal como decorre das Resoluções do Conselho de Ministros, também se previa a oferta pública de venda de 5% do capital social da A..., SGPS, reservada aos trabalhadores do Grupo A..., a qual veio a ser realizada em 16/05/2017, após se iniciar, em 31/03/2017, a Oferta Pública de Venda (OPV) de 5% do capital da A..., SGPS aos trabalhadores do Grupo A....

110. No entanto, ocorrendo a reprivatização da A... em 12/11/2015, pela Resolução do Conselho de Ministros n.º 91-A/2015, de 12/11, logo no mês seguinte após a alienação de 61% do capital da A... SGPS à C..., em 09/12/2015 o Governo manifestou a pretensão de negociar a reconfiguração da sua participação de 34% no capital da empresa, ao que a compradora mostrou disponibilidade para o efeito, conforme se extrai da Resolução do Conselho de Ministros n.º 30/2016, de 23/05.

111. Nesse sentido, como resulta da Resolução do Conselho de Ministros n.º 30/2016, as partes assinaram, em 06/02/2016 um Memorando de Entendimento, que estabeleceu os princípios e os termos dessa reconfiguração, designadamente, as condições para a transferência de ações representativas do capital social para o Estado, a definição das regras de governação societária e a atribuição dos direitos económicos aos acionistas da A..., SGPS, tendo a recompra ficado dependente, entre outras condições, da prévia autorização da ANAC (como exige a regulamentação comunitária aplicável) e da renegociação da dívida financeira do Grupo A... (vide Relatório de Auditoria n.º ...0/2018, do TdC).

112. Assim, em dezembro de 2015, o Governo iniciou um processo negocial para reconfigurar a participação do Estado na A..., SGPS, que culminou com a recompra, em 30/06/2017, das ações necessárias para deter 50% do respetivo capital social, visando com isso recuperar controlo estratégico da empresa.

113. Nos termos do Preâmbulo da Resolução de Conselho de Ministros n.º 30/2016, de 23/05, o Governo justificou a recompra por considerar indispensável o Estado deter a posição de maior acionista da A..., SGPS, pelo papel determinante da empresa na projeção internacional de Portugal.

114. Porém, o aumento da participação do Estado no capital social, de 34% para 50% foi acompanhado pela diminuição dos correspondentes direitos económicos, de 34% para 5%, enquanto a redução da participação da C... no capital social, de 61% para 45%, foi acompanhada pelo acréscimo dos correspondentes direitos económicos, de 61% para 90%.

115. Antes de concretizar a recompra de capital social da A... SGPS, a B... exerceu a opção de venda de 34% daquele capital e, de imediato, adquiriu os 50% que pretendia, tendo a Resolução de Conselho de Ministros n.º 30/2016, de 23/05, fixado os princípios e os termos da reconfiguração da participação do Estado no capital social, designadamente, as condições para a compra de ações, a definição das regras de governação societária e a atribuição dos respetivos direitos económicos aos acionistas, bem como, a identificação dos instrumentos jurídicos necessários à operação e à transmissão das ações.

116. Através da Resolução de Conselho de Ministros n.º 95/2017, de 29/06, foram aprovadas as alterações aos instrumentos jurídicos necessários à conclusão da transação, o que incluiu, também, a celebração de um Acordo de Adaptação e Monitorização de Passivo Financeiro relativo ao Grupo A....

117. Assim, em 30/06/2017, a B... recomprou as ações necessárias para deter 50% do capital da A... SGPS, sendo instrumentos contratuais para reconfigurar a participação do Estado no capital da A... SGPS:

a) o Memorando de Entendimento, de 06/02/2016;

b) o Acordo de Compra e Venda de Ações, de 19/05/2016, com Aditamento, de 07/06/2017;

c) o Acordo Parassocial e de Compromissos Estratégicos, de 30/06/2017;

d) o Acordo de Revogação do relativo à Estabilidade Económico-Financeira da A..., de 30/06/2017;

e) o Acordo de Adaptação e Monitorização de Passivo Financeiro para o Grupo A..., de 30/06/2017 e

f) o Acordo para a Conclusão, de 30/06/2017, cfr. Relatório de Auditoria n.º ...0/2018, do TdC.

118. Tal acarretou, como se extrai do Relatório de Auditoria n.º ...0/2018, do TdC, relativo a “Reprivatização e Recompra da A...”, que com a reprivatização, o Estado assegurou a recapitalização pelo parceiro privado, mas perdeu controlo estratégico e com a recompra, o Estado recuperou controlo estratégico, mas perdeu direitos económicos, além de assumir maiores responsabilidades na capitalização e no financiamento da empresa.

119. Após a realização da Oferta Pública de Venda destinada aos trabalhadores do Grupo A... e da reconfiguração da participação social do Estado, o capital social da A..., SGPS passou a ser detido em 50% pela B..., em 45% pela C... e em 5% pelos trabalhadores.

120. A nova repartição do capital social conduziu à revisão da composição dos órgãos sociais, tendo a posição da B... sido reforçada no seguinte:

a) Maior representatividade no Conselho de Administração [o número de membros do Conselho de Administração eleitos pela Assembleia Geral, passou de 11 a 12 membros, 6 indicados pela B... e 6 pela C..., sendo o Presidente indicado pela B... de entre os 6 membros por si designados. O vice-presidente é indicado pela C... (cláusula 7.ª do Memorando de Entendimento e 5.ª do Acordo Parassocial e de Compromissos Estratégicos da A... SGPS)];

b) Voto de qualidade do Presidente do CA nomeado pela B... (em caso de empate, a B... beneficia do voto de qualidade do Presidente do Conselho de Administração por si designado);

c) Sem a maioria do capital social da A... SGPS, a B... passa a deter votos suficientes para aprovar deliberações por maioria simples da Assembleia Geral, mas não por maioria qualificada, cujo limite mínimo é de 67%87 (dois terços) dos votos representativos do capital social (n.º 1, do art.º 24 do Contrato de Sociedade).

121. Após a recompra, a C... manteve um papel reforçado e apenas no Conselho de Administração existe equilíbrio entre o número de elementos indicados pela B... e pela C..., atendendo à sua participação social visto que, nas restantes situações, o Estado, por intermédio da B..., tem uma intervenção limitada, designadamente na Mesa da Assembleia Geral, na Comissão Executiva, no Conselho Fiscal, na Comissão de Vencimentos e nos órgãos das empresas subsidiárias do Grupo A..., cfr. Relatório de Auditoria n.º ...0/2018, do TdC.

122. Como concluiu o TdC, no Relatório de Auditoria à A..., antes citado, “Dos elementos expostos decorre que:

a) A gestão do Grupo A... é conduzida pela C....

b) A posse de 50% do capital social na A... SGPS não confere ao Estado o direito de nomear metade dos titulares dos órgãos sociais.

c) O atual modelo de governação está concebido para, nas matérias reservadas a uma maioria qualificada na AG e no CA da A... SGPS, o controlo ser exercido em conjunto pela B... e pela C..., existindo medidas para resolver eventuais situações de bloqueio.

d) A B... recupera poderes na definição dos objetivos e políticas a implementar na A... SGPS, mas não tem capacidade interventiva na gestão corrente da empresa que se manteve na C... (a B... continuou sem representação nas comissões executivas da empresa).” (destacados nossos).

123. Além de que, nos termos do n.º 4, da cláusula 3.ª, do Memorando de Entendimento de 06/02/2016 e dos n.ºs 1 e 2 da cláusula 15.ª (Participação da B... no Capital Social da Sociedade) do Acordo de Compra e Venda das Ações celebrado em 19/05/2016, extrai-se que “o Acordo de Compra e Venda das Ações estabelece como pressuposto essencial que nenhuma sociedade do Grupo A... seja qualificada como empresa pública do Sector Empresarial do Estado.”, como se mostra reconhecido no Relatório de Auditoria do TdC.

124. Acresce ainda que o Estado português se comprometeu a nunca deter, direta ou indiretamente, participação superior a 50% do capital social da A..., SGPS, sendo que a participação de 50% no capital social da A..., SGPS apenas confere à B... 5% dos direitos económicos, nos termos do Relatório de Auditoria do TdC.

125. De modo que, ainda que a operação de recompra tenha permitido aumentar de 34% para 50% a participação da B... no capital social da A..., SGPS, assistiu-se, paralelamente, à diminuição dos direitos económicos de 34% para 5%, não estando previsto que venham a atingir mais de 18,75%, vide Relatório de Auditoria do TdC.

126. Assim, em suma:

(i) com a reprivatização, o Estado satisfez compromissos internacionais e viabilizou o saneamento financeiro da A... SGPS, tendo uma participação minoritária no capital social (34%), com perda de controlo estratégico e sobre a atividade operacional da empresa, existindo correspondência entre participação no capital social (34%) e os direitos económicos detidos;

(ii) com a recompra, o Estado recuperou controlo estratégico, mas perdeu direitos económicos, além de assumir maiores responsabilidades na capitalização e no financiamento da empresa, existindo recuperação de controlo estratégico com a posição de maior acionista (50%), considerada indispensável pelo papel determinante da empresa na projeção internacional de Portugal, mas a perda de direitos económicos (para 5%) face ao ganho na participação no capital (para 50%).

127. Do mesmo modo que, em 02/10/2020, voltou a existir uma alteração da estrutura acionista do Grupo A..., em consequência do empréstimo remunerado concedido pelo Estado português a favor do Grupo A... e da aquisição por parte do Estado português de participações sociais, de direitos económicos e de uma parte das prestações acessórias da atual acionista da A..., C..., SGPS, Lda., implicando que o Estado português tivesse passado a deter o controlo efetivo sobre 72,5% do capital social da A..., sobre igual percentagem de direitos económicos na A... e sobre determinadas prestações acessórias realizadas pela C..., SGPS, Lda., o que resulta do Comunicado Público da A..., SA, junto aos autos.

128. Donde, em face de todo o exposto, é possível afirmar que, entre a data de 12/11/2015 e a de 02/10/2020, enquanto período temporal delimitado pelos Recorrentes correspondente à pretensão formulada na presente ação, em que se arrogam do direito de cumular o recebimento da remuneração como pilotos na A... e de pensionistas da CGA, por não lhes ser aplicável a limitação decorrente dos artigos 78.º e 79.º do Estatuto da Aposentação, não se manteve inalterada a estrutura societária da A..., mas por nenhum momento, durante esse período, a A... deixou de ser configurada uma empresa participada, por nunca ter tido a maioria das participações sociais.

129. É por isso, possível delimitar temporalmente uma certa configuração acionista do Estado português na A..., SA, no período que medeia entre 12/11/2015 e 02/10/2020, tal como sustentam os Autores, ora Recorrentes.

130. Assim, ao contrário do que se verificou no período anterior a 12/11/2015, em que o Estado detinha a maioria do capital, sendo a A... uma empresa pública sob a forma de sociedade anónima, ou seja, uma empresa de capitais maioritariamente públicos, diferentemente no período em que releva na presente ação, a partir de 12/11/2015 a A... tem capital maioritariamente privado ou nunca ultrapassa 50% da participação societária, sendo uma empresa participada, por ter no seu capital social, uma parte minoritária ou igualitária de capitais públicos, mas com reduzidos direitos económicos.

131. Esta realidade mostra-se acolhida na jurisprudência anterior do STA, nos Acórdãos de 21/05/2020, Proc. n.º 02111/14.6BESNT e de 02/07/2020, Proc. n.º 0243/15.2BELSB, no referente à situação da A..., SA no período anterior à reprivatização ocorrida em 12/11/2015 e ser configurada como uma empresa pública, assim como, no Acórdão do TCAS, de 24/09/2020, Proc. n.º 179/12.9BESNT, que refere ainda ter ocorrido em 12/11/2015 a alienação de 61% do capital social da A....

132. Configurada a natureza e regime legal aplicável à A..., no período de referência na presente ação, importa convocar as normas jurídicas alvo de discórdia, que se prendem com a interpretação a conferir ao disposto nos artigos 78.º e 79.º do Estatuto da Aposentação (EA), na redação que lhe foi conferida pela Lei n.º 75-A/2014, de 30/09, conjugados com os artigos 2.º, 7.º e 9.º do Regime Jurídico do Setor Público Empresarial (RJSPE), aprovado pelo D.L. n.º 133/2013, de 03/10, ao ter o acórdão recorrido julgado que não assiste aos Autores, pilotos aposentados, o direito de cumular a pensão de aposentação atribuída pela CGA, com a remuneração auferida pelo desempenho de funções na empresa A..., no período temporal referido entre novembro de 2015 e outubro de 2020 (quanto aos 1.º, 4.º, 5.º e 6.º Autores) e junho/julho de 2020 (quanto aos 2.º e 3.º Autores).

133. Com relevo, dispõem tais preceitos do Estatuto da Aposentação, na redação aplicável:

Artigo 78.º

Incompatibilidades

1 - Os aposentados, reformados, reservistas fora de efetividade e equiparados não podem exercer atividade profissional remunerada para quaisquer serviços da administração central, regional e autárquica, empresas públicas, entidades públicas empresariais, entidades que integram o setor empresarial regional e municipal e demais pessoas coletivas públicas, exceto quando haja lei especial que o permita ou quando, por razões de interesse público excecional, sejam autorizados pelos membros do Governo responsáveis pelas áreas das finanças e da Administração Pública.

2 - Não podem exercer atividade profissional remunerada nos termos do número anterior:

a) Os aposentados e reformados que se tenham aposentado ou reformado com fundamento em incapacidade;

b) Os aposentados e reformados por força de aplicação da pena disciplinar de aposentação ou reforma compulsiva.

3 - Consideram-se abrangidos pelo conceito de atividade profissional remunerada:

a) Todos os tipos de funções e de serviços, independentemente da sua duração ou regularidade;

b) Todas as formas de contrapartida, pecuniária ou em espécie, direta ou indireta, da atividade desenvolvida, nomeadamente todas as prestações que, total ou parcialmente, constituem base de incidência contributiva nos termos do Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial da Segurança Social;

c) Todas as modalidades de contratos, independentemente da respectiva natureza, pública ou privada, laboral ou de aquisição de serviços. (…)

Artigo 79.º

Cumulação de pensão e remuneração

1 - No período que durar o exercício das funções públicas autorizadas, os aposentados, reformados, reservistas fora de efetividade e equiparados auferem a remuneração que está definida para as funções ou cargo que desempenham ou para o trabalho prestado, mantendo o direito à respetiva pensão, quando esta seja superior, e no montante correspondente à diferença entre aquela e esta.

2 - As condições de cumulação de remunerações referidas no número anterior são reconhecidas no despacho de autorização previsto no n.º 1 do artigo anterior

3 - Cessado o exercício de funções públicas, o pagamento da pensão ou da remuneração de reserva ou equiparada, com valor atualizado nos termos gerais, é retomado.

4 - O início e o termo do exercício de funções públicas são obrigatoriamente comunicados à Caixa Geral de Aposentações, I. P. (CGA, I. P.), pelos serviços, entidades ou empresas a que se refere o n.º 1 do artigo anterior no prazo máximo de 10 dias a contar dos mesmos, indicando igualmente o valor da remuneração a auferir, para que a CGA, I. P., possa suspender a pensão ou efetuar o pagamento do montante correspondente à diferença entre a remuneração e a pensão.

5 - São ainda obrigatoriamente comunicadas as alterações de remuneração no âmbito do exercício das funções públicas. (…)” (sublinhados nossos).

134. Como decorre expressamente do disposto no n.º 1, do artigo 78.º do EA, o mesmo aplica-se no caso de ser exercida atividade profissional remunerada para:

(i) quaisquer serviços da administração central, regional e autárquica;

(ii) empresas públicas;

(iii) entidades públicas empresariais;

(iv) entidades que integram o setor empresarial regional e municipal e

(v) demais pessoas coletivas públicas.

135. O que exige dilucidar se a A..., SA, no período relevante na presente ação, entre novembro de 2015 e outubro de 2020, enquanto empresa participada, integrada no setor empresarial do Estado, se integra em algum dos tipos de entidades previstos no n.º 1, do artigo 78.º do EA.

136. Com relevo, estabelece o RJSPE, aprovado pelo D.L. n.º 133/2013, de 03/10, os princípios e regras aplicáveis ao setor público empresarial, incluindo as bases gerais do estatuto das empresas públicas.

137. Estabelece o disposto no n.º 1, do artigo 2.º do RJSPE, quanto ao âmbito do setor público empresarial, que ele abrange:

1. o setor empresarial do Estado, e

2. o setor empresarial local.

138. E o setor empresarial do Estado, nos termos do n.º 2, do artigo 2.º, integra:

a) as empresas públicas e

b) as empresas participadas.

139. O artigo 3.º do citado diploma, sob epígrafe “Extensão do âmbito de aplicação” prevê que “Sem prejuízo do regime jurídico especificamente aplicável, o disposto no presente decreto-lei aplica-se também a todas as organizações empresariais que sejam criadas, constituídas, ou detidas por qualquer entidade administrativa ou empresarial pública, independentemente da forma jurídica que assumam e desde que estas últimas sobre elas exerçam, direta ou indiretamente, uma influência dominante.” (sublinhado nosso).

140. No que respeita às empresas públicas, nos termos do artigo 5.º do RJSPE, são as seguintes:

i) as organizações empresariais constituídas sob a forma de sociedade de responsabilidade limitada nos termos da lei comercial, nas quais o Estado ou outras entidades públicas possam exercer, isolada ou conjuntamente, de forma direta ou indireta, influência dominante e

ii) as entidades públicas empresariais.

141. Constituem empresas participadas, nos termos do artigo 7.º do RJSPE, “todas as organizações empresariais em que o Estado ou quaisquer outras entidades públicas, de caráter administrativo ou empresarial, detenham uma participação permanente, de forma direta ou indireta, desde que o conjunto das participações públicas não origine influência dominante nos termos do artigo 9.º.” (sublinhados nossos).

142. As empresas participadas são, por isso, organizações empresariais em que o Estado ou quaisquer outras entidades públicas, de caráter administrativo ou empresarial, detenham uma participação permanente, de forma direta ou indireta, desde que o conjunto das participações públicas não origine influência dominante.

143. Por sua vez, consideram-se participações permanentes as que não possuem objetivos exclusivamente financeiros, sem qualquer intenção de influenciar a orientação ou a gestão da empresa por parte das entidades públicas participantes, desde que a respetiva titularidade seja de duração superior a um ano (artigo 7.º, n.º 2 do RJSPE).

144. Existe influência dominante em qualquer uma das situações seguintes previstas no artigo 9.º do RJSPE:

a) Detenham uma participação superior à maioria do capital;

b) Disponham da maioria dos direitos de voto;

c) Tenham a possibilidade de designar ou destituir a maioria dos membros do órgão de administração ou do órgão de fiscalização; e

d) Disponham de participações qualificadas ou direitos especiais que lhe permitam influenciar de forma determinante os processos decisórios ou as opções estratégicas adotadas pela empresa ou entidade participada.

145. Uma empresa participada é, por isso, aquela onde o Estado detenha uma participação permanente, mas:

i) onde a maioria do capital não seja público;

ii) o Estado não tenha a maioria dos direitos de voto;

iii) não tenha a capacidade de nomear ou destituir a maioria dos membros do órgão de administração ou do órgão de fiscalização; e

iv) não disponha de participações qualificadas ou direitos especiais que lhe permitam influenciar de forma determinante os processos decisórios ou as opções estratégicas adotadas pela empresa ou entidade participada (artigo 9.º do RJSPE, a contrario).

146. A qualificação como empresa participada reflete-se unicamente na participação pública (n.º 2, do artigo 8.º do RJSPE), não sujeitando a empresa per se ao regime que modela a função acionista do Estado nas empresas públicas.

147. Com relevo, importa ainda considerar o disposto no artigo 14.º do RJSPE, quanto ao regime de direito aplicável, nos termos do qual:

1 - Sem prejuízo do disposto na legislação aplicável às empresas públicas regionais e locais, as empresas públicas regem-se pelo direito privado, com as especificidades decorrentes do presente decreto-lei, dos diplomas que procedam à sua criação ou constituição e dos respetivos estatutos.

2 - Podem ser fixadas por lei normas excecionais, de caráter temporário, relativas ao regime retributivo e às valorizações remuneratórias dos titulares dos órgãos sociais e dos trabalhadores, independentemente do seu vínculo contratual ou da natureza da relação jurídica de emprego das seguintes entidades:

a) Entidades públicas empresariais;

b) Empresas públicas de capital exclusiva ou maioritariamente público;

c) Entidades dos sectores empresariais local e regional.

3 - Podem ainda ser fixadas por lei normas excecionais de caráter temporário, relativas aos contratos de aquisição de serviços celebrados pelas entidades referidas no número anterior.

4 - As empresas públicas estão sujeitas a tributação direta e indireta, nos termos gerais.

5 - As empresas participadas a que se refere o artigo 7.º estão sujeitas ao regime jurídico comercial, laboral e fiscal aplicável às empresas cujo capital e controlo é exclusivamente privado.

6 – (…)” (sublinhados nossos).

148. Em face do quadro legal descrito é possível extrair que o disposto no n.º 1, do artigo 78.º do EA, no respetivo elenco de entidades abrangidas, não contempla as empresas participadas, pois referindo-se a um vasto conjunto de entidades, a saber, “quaisquer serviços da administração central, regional e autárquica”, “empresas públicas”, “entidades públicas empresariais”, “entidades que integram o setor empresarial regional e municipal” e “demais pessoas coletivas públicas”, não consta do referido elenco as empresas participadas.

149. Nem pode haver dúvidas de que o regime legal das empresas participadas é distinto de qualquer um dos tipos de entidades referidos no disposto no n.º 1, do artigo 78.º do EA.

150. É o legislador que embora integrando as empresas participadas no setor empresarial do Estado, autonomiza e distingue no artigo 5.º do RJSPE, diversos tipos de “empresas públicas”, onde inclui as “empresas públicas”, que podemos designar como stricto sensu e as “entidades públicas empresariais”, distinguindo-se claramente das empresas participadas, como consta do disposto no n.º 2, do artigo 2.º do RJSPE.

151. O que determina que à luz do citado Regime Jurídico do Setor Público Empresarial, aprovado pelo D.L. n.º 133/2013, de 03/10, que regula o setor público empresarial, a doutrina distinga três espécies de empresas que dele fazem parte:

“a) As empresas públicas sob forma privada, que são sociedades controladas pelo Estado;

b) As empresas públicas sob forma pública, também chamadas «entidades públicas empresariais», que são pessoas coletivas públicas;

c) As empresas privadas participadas pelo Estado, que não são empresas públicas, mas integram igualmente o SEE.”, Diogo Freitas do Amaral, “Curso de Direito Administrativo”, Vol. I, 4.ª ed., 2019 reimp., Almedina, pág. 333.

152. A doutrina classifica, por isso, as empresas que integram o setor público empresarial, em três tipos diferentes, sendo os dois primeiros, empresas públicas (distinguindo consoante, sob forma privada ou sob forma pública) e o terceiro tipo, as empresas privadas participadas pelo Estado, que não são empresas públicas.

153. Neste sentido, por confronto entre o disposto nos n.ºs 2 e 5, do artigo 14.º do RJSPE, resulta ser distinto o regime jurídico aplicável a cada um desse tipo de empresas, pois enquanto às entidades previstas no n.º 2, a saber, (i) as entidades públicas empresariais, (ii) as empresas públicas de capital exclusiva ou maioritariamente público e (iii) as entidades dos sectores empresariais local e regional, pode ser-lhes aplicável um regime excecional e de carater temporário, relativo “ao regime retributivo e às valorizações remuneratórias dos titulares dos órgãos sociais e dos trabalhadores, independentemente do seu vínculo contratual ou da natureza da relação jurídica de emprego”, as entidades previstas no n.º 5, que são as empresas participadas, estão sujeitas ao “regime jurídico comercial, laboral e fiscal aplicável às empresas cujo capital e controlo é exclusivamente privado”.

154. O que implica que, embora às empresas públicas e às empresas participadas se aplique, em regra, o regime de direito privado, nos termos dos n.ºs 1 e 5, do artigo 14.º do RJSPE, com as especificidades próprias decorrentes do regime estabelecido neste diploma legal, nos diplomas constitutivos e nos respetivos estatutos das empresas, determinando que aos trabalhadores das empresas públicas se aplique o regime jurídico do contrato individual de trabalho, segundo o artigo 17.º, não deixa de se prever diferenças de regime em relação às duas figuras de empresas, por se acentuar em relação às empresas participadas a sua atuação ao abrigo do direito privado.

155. Evidenciando a diferença de regime legal aplicável às empresas públicas e às empresas participadas, aplicando-se a estas o regime jurídico comercial, laboral e fiscal aplicável às empresas cujo capital e controlo é exclusivamente privado.

156. Embora o regime aprovado pelo RJSPE contemple as empresas participadas como integrando o setor empresarial do Estado, por nelas o Estado ter intervenção, ainda que minoritária, no capital social, salvaguarda o regime aplicável a estas empresas, como sendo exclusivamente privado, designadamente, em matéria laboral, onde releva a relação jurídica adveniente da celebração de contrato individual de trabalho

157. O que permite afirmar que a relação de trabalho estabelecida entre os Autores, ora Recorrentes, e a A..., SA, se rege pelo direito privado e não pelo direito público, não apenas para efeitos do regime aprovado pelo RJSPE, como para efeitos do regime do n.º 1, do artigo 78.º do EA.

158. Acresce ainda a doutrina considerar as empresas participadas como sendo aquelas que prestam serviços públicos ou serviços de interesse geral e em que as entidades públicas não exercem uma influência dominante, estando integradas numa das espécies de sociedades de interesse coletivo, Diogo Freitas do Amaral, op. cit., pág. 595.

159. Ainda especificamente sobre a natureza jurídica destas entidades e sobre a questão de saber se fazem parte ou não da Administração Pública em sentido orgânico ou subjetivo, por regra, as pessoas coletivas privadas não fazem parte da Administração Pública.

160. No entanto, quando estas entidades exerçam funções de caráter público coincidentes com as atribuições da Administração, poderá questionar-se se efetivamente passam a integrar a Administração Pública, devendo entender-se que mesmo as entidades privadas sujeitas a regime administrativo são e continuam a ser pessoas coletivas privadas, sendo a generalidade dos seus atos, atos jurídicos de direito privado e o seu pessoal não pertence à função pública, sendo-lhe aplicável o regime do contrato individual de trabalho, Diogo Freitas do Amaral, op. cit., págs. 598-599.

161. Nesse sentido, as empresas participadas colaboram com a Administração, mas não fazem parte, nem integram a Administração Pública.

162. No mesmo sentido, “O facto de uma sociedade comercial ser constituída ou participada pelo Estado não determina, sem mais, a qualificação como empresa pública. Para isso, é necessário que a sociedade se encontre sob a influência dominante do Estado ou de uma outra entidade pública (entidade pública estadual, ou seja, o âmbito da Administração do Estado, como os institutos públicos ou outras empresas públicas).”, Pedro Costa Gonçalves, “Manual de Direito Administrativo”, Vol. 1, Almedina, 2023, reimp., pág. 784.

163. Sobre a determinação do conceito de “funções públicas”, no âmbito das aludidas disposições legais dos artigos 78.º e 79.º do Estatuto da Aposentação, decidiu também este STA, no Acórdão de 13/12/2017, Proc. n.º 01456/16, mantido em acórdãos posteriores, como no Acórdão de 21/05/2020, Proc. n.º 02111/14.6BESNT: “(…) a alusão naquele preceito, a exercício de “funções públicas” não constitui ou se mostra como um sinónimo de função pública, não se reconduzindo o seu âmbito tão-só àquilo que concetualmente se define, comummente, ou como função pública em sentido estrito, enquanto designando o conjunto de trabalhadores da Administração Pública cujas relações de emprego, de natureza estatutária, se mostram regidas por um regime específico de direito administrativo, ou ainda a um sentido mais amplo de função pública, abarcando todas as relações/vínculos de emprego estabelecidas entre uma pessoa física com uma pessoa coletiva pública e cuja disciplina jurídica, podendo ser “jus-laboralísticas” ou “jus-administrativistas”, tenha, todavia, na base e enquanto denominador comum, um regime “jus-publicista”. XXXV. O uso no plural da locução “função pública” aponta, desde logo, no sentido de que ali se visou abarcar não apenas o sentido mais amplo de função pública atrás acabado de referir, ou seja, todo o tipo de exercício de funções no quadro de relações/vínculos de emprego estabelecidos com um empregador público, mas um sentido ainda mais amplo, abrangendo também o exercício de cargos públicos, mormente, daqueles que, fora de subordinação jurídica, exercem cargos diretivos ou são titulares de órgãos administrativos. XXXVI. Mas, por outro lado, por força do previsto no n.º 3 do art.º 78.º do EA e da enorme amplitude pelo mesmo aportada, mostram-se, ainda, incluídos no conceito de exercício de funções relevantes nesta sede, fazendo operar as incompatibilidades que impendem sobre aposentados e reformados, todos os tipos de atividade e de serviços [independentemente da sua duração, regularidade e forma de remuneração], com quaisquer serviços da administração central, regional e autárquica, empresas públicas, entidades públicas empresariais, entidades que integram o setor empresarial regional e municipal e demais pessoas coletivas públicas. XXXVII. Não só os contratos de prestação de serviços, nas modalidades, mormente, de contratos de tarefa e de avença, não figuram entre o tipo de vínculos contratuais considerados excluídos do regime das incompatibilidades, como o legislador alargou, enormemente, o leque dos tipos de vínculos geradores de incompatibilidades para aposentados e reformados em termos de exercício de funções remuneradas para entidades ou pessoas coletivas públicas já que, independentemente da duração, regularidade e forma de remuneração, nelas passam a estar incluídos todos os tipos de atividade e de serviços, assim como todas as modalidades de contratos, independentemente da respetiva natureza, seja ela pública ou privada, seja ela laboral ou de aquisição de serviços. (…). LXX. Mas para além disso exigia-se, ainda, para o preenchimento da previsão da incompatibilidade de funções por parte de aposentado/reformado que as mesmas sejam remuneradas, sendo que tal remuneração de funções carece de ser feita com dinheiros públicos para que opere uma tal incompatibilidade no estatuto daquele. LXXI. No contexto do regime normativo em referência e dos fins pelo mesmo prosseguidos, ou dos interesses que com o mesmo se visam promover ou acautelar, apenas faz sentido o estabelecimento duma tal incompatibilidade quando a remuneração das funções exercidas seja feita com recurso a dinheiros públicos, já que do que falamos, ou o que está em causa, prende-se com a realização de despesa pública, com o dispêndio de dinheiros provenientes de orçamentos públicos nos pagamentos de pensões/reformas a aposentados/reformados e das funções/tarefas ou atividades pelos mesmos desenvolvidas em acumulação para sujeitos ou entidades públicas. LXXII. Foi essa, aliás e como vimos supra, a motivação alegada pelo legislador no preâmbulo do DL n.º 137/2010 justificadora da alteração do regime legal do EA nesta matéria, ou seja, a eliminação da possibilidade de acumulação de vencimentos públicos com pensões do sistema público de aposentação norteada pelas necessidades de redução da despesa pública e do reforço/aceleração da estratégia de consolidação orçamental” (sublinhados nossos).

164. Assim, sendo a empresa A.... SA, no período temporal ora em causa, entre novembro de 2015 e outubro de 2020, enquanto empresa participada, uma empresa privada, regida pelo direito privado, incluindo em matéria laboral, regendo-se exclusivamente pelo direito privado, à luz da anterior jurisprudência deste Supremo Tribunal também importa considerar que as remunerações auferidas pelos respetivos trabalhadores estão excluídas do conceito de vencimentos públicos, nos termos e para os efeitos da aplicação do disposto nos artigos 78.º e 79.º do Estatuto da Aposentação.

165. Isto é, sob o prisma da natureza das remunerações auferidas pelos Autores, enquanto trabalhadores da empresa participada, A..., SA, as suas remunerações não integram o conceito de “vencimentos públicos”.

166. Neste sentido se extrai da jurisprudência do Tribunal Constitucional sobre o conceito de “vencimentos públicos”, o qual adota uma interpretação alargada de vencimento público, como sendo correspondente a toda a perceção de remunerações decorrentes do Orçamento do Estado, independentemente da forma pública ou privada em que assente o seu pagamento, como foi sufragado no Acórdão n.º 396/2011, a propósito dos cortes salariais impostos pelos artigos 19.º, 20.º e 21.º da Lei n.º 55-A/2010, de 31/12, que decidiu que aquela medida abarcava “(…) todo o perímetro da Administração Pública (entendida no seu conceito mais lato), incluindo nomeadamente, nos termos das alíneas p), s), t) e u) do n.º 9 do artigo 19.º, da Lei do Orçamento do Estado, os gestores públicos, ou equiparados, os membros dos órgãos executivos, deliberativos, consultivos, de fiscalização ou quaisquer outros órgãos estatutários dos institutos públicos de regime geral e especial, de pessoas colectivas de direito público dotadas de independência decorrente da sua integração nas áreas de regulação, supervisão ou controlo, das empresas públicas de capital exclusiva ou maioritariamente público, das entidades públicas empresariais e das entidades que integram o sector empresarial regional e municipal, das fundações públicas e de quaisquer outras entidades públicas; os trabalhadores dos institutos públicos de regime especial e de pessoas colectivas de direito público dotadas de independência decorrente da sua integração nas áreas de regulação, supervisão ou controlo; os trabalhadores das empresas públicas de capital exclusiva ou maioritariamente público, das entidades públicas empresariais e das entidades que integram o sector empresarial regional e municipal, com as adaptações autorizadas e justificadas pela sua natureza empresarial; e, ainda, os trabalhadores e dirigentes das fundações públicas e dos estabelecimentos públicos não abrangidos pelas alíneas anteriores”.

167. E tendo o conceito de vencimento público sido novamente objeto de análise no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 353/2012, aí se concluiu que, em matéria de consolidação orçamental, “é certamente admissível alguma diferenciação entre quem recebe por verbas públicas e quem actua no sector privado da economia”.

168. A anterior jurisprudência do STA também salientou que, “O DL n.º 137/2010, de 28/12, que aprovou “um conjunto de medidas adicionais de redução de despesa com vista à consolidação orçamental prevista no Programa de Estabilidade e Crescimento (PEC) para 2010-2011”, tinha como objectivo a “redução do défice orçamental em 2010 e 2011”, eliminando a “possibilidade de acumulação de vencimentos públicos com pensões do sistema público de aposentação””, Acórdão de 21/05/202, Proc. n.º 02111/14.6BESNT.

169. Assim, como nota a jurisprudência do Tribunal Constitucional e deste Supremo Tribunal, foi intenção do legislador ao prever a incompatibilidade que fixou no n.º 1, do artigo 78.º do EA, a de reduzir a despesa pública, a remuneração com dinheiros públicos ou o “vencimento público”, aquele que é pago pelo erário público, estabelecendo que este deixava de poder ser auferido em cumulação com as pensões do sistema público de aposentação.

170. A diferença radica em as empresas participadas não serem “empresas públicas” para efeitos da lei, sendo antes empresas privadas, tendo regime legal distinto em relação às empresas públicas, o que decorre não apenas do regime aprovado pelo RJSPE, como do regime do Estatuto da Aposentação, ao prever no n.º 1, do artigo 78.º um conjunto alargado de entidades, mas não incluir as empresas participadas do Estado.

171. Tal ocorre porque existe uma grande diferença entre umas e outras empresas, pois enquanto as empresas públicas integram a Administração estadual indireta e se aplicam vinculações decorrentes de normas de direito administrativo, como consiste o Regime Jurídico do Setor Público Empresarial (RJSPE), ao regular os formatos jurídicos que podem revestir as empresas do setor público, os procedimentos de criação e as formas de relacionamento entre o Estado e as empresas, onde o Estado ou outras entidades públicas podem exercer influência dominante, as empresas participadas são consideradas pelo legislador como entidades privadas, como verdadeiramente o são, em que o Estado nem tem a maioria das participações sociais, nem exerce qualquer posição ou influência dominante, não estando submetidas ao direito administrativo.

172. As empresas participadas não integram o âmbito da categorização de “entidades administrativas privadas”, por não integrarem a Administração Pública, considerando que as entidades públicas, ainda que tenham uma participação, não têm sobre as empresas participadas uma influência dominante, Pedro Costa Gonçalves, “Manual de Direito Administrativo”, op. cit., págs. 733 e segs..

173. Por isso, “As empresas participadas, em que existe uma mera participação facultativa, por parte do Estado ou de outra entidade pública, no capital social, com objectivos exclusivamente financeiros e sem qualquer intenção de influenciar a orientação ou a gestão da empresa, apesar de integrarem o sector empresarial do Estado (artigo 2º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 558/99), são simples sociedades comerciais de direito privado. A participação minoritária de capital público corresponde a uma situação de facto que, em qualquer momento, poderá ser feita cessar, e que não tem uma interferência directa na qualificação jurídica da empresa.”, Carlos Cadilha, “Sociedade de Capitais Exclusiva ou Maioritariamente Públicos: Natureza jurídica e vinculações jurídico-públicas”, «Colóquio «Direito Administrativo Privado - ou a crise do Direito Administrativo», realizado no Porto, nos dias 19 e 20 de novembro de 2010, https://www.amjafp.pt/index.php/docum?showall=&start=4.

174. O que determina que, em face de todo o exposto, se interpretem os normativos de direito aplicáveis diferentemente do que foi decidido no acórdão recorrido, pois no período em relevo na presente ação, entre novembro de 2015 e outubro de 2020, a A..., SA, por ser uma empresa participada não comunga do regime das empresas públicas e, por não ter capital maioritariamente público, é regida por um regime de direito privado, não se aplicando aos Autores, ora Recorrentes, as normas dos artigos 78.º e 79.º do EA, em linha com o elemento literal, sistemático e teleológico de interpretação da norma jurídica, ao não prever as empresas participadas no conjunto de entidades previstas no âmbito normativo aplicável.

175. Além de que, a alteração dos artigos 78.º e 79.º do Estatuto da Aposentação pela Lei n.º 75-A/2014, de 30/09, ocorreu quando o RJSPE, aprovado pelo D.L n.º 133/2013, de 03/10, já se encontrava na ordem jurídica, não existindo quaisquer elementos interpretativos para entender que existe qualquer desconformidade entre o elemento literal da norma e o pensamento ou vontade do legislador.

176. O sentido interpretativo a dar ao n.º 1, do artigo 78.º do Estatuto da Aposentação está associado ao de vencimentos públicos, que corresponde ao conceito de “exercício de funções públicas”, o que não se verifica no presente caso, estando em causa o exercício de funções privadas, por uma empresa privada, ao abrigo do direito privado e ao qual se aplica em matéria laboral, exclusivamente o direito privado (sobre a diferença entre empresa pública, serviço público e serviço de interesse geral, assim como, sobre a diferença entre o ser empresa pública e o fazer, e o particular enfoque sobre as zonas de fronteira entre o público e o privado, no sentido de, no que diz respeito à situações de trabalho subordinado, existe uma remissão para o direito privado laboral e a aplicação de princípio do regime laboral privado, Miguel Assis Raimundo, “As Empresas Públicas nos Tribunais Administrativos”, Almedina, 2007, págs. 30-39 e 261-272).

177. A ratio legis que presidiu à regra prevista no artigo 78.º do Estatuto da Aposentação foi proibir ou restringir a duplicação de rendimentos a cargo do setor público ou do Estado em sentido lato em relação ao mesmo beneficiário, que não se verifica no caso das empresas participadas.

178. Daí afirmar a doutrina que o RJSPE não significou uma rutura com o modelo consagrado no D.L. n.º 558/99, “mantendo a distinção essencial entre duas categorias de empresas públicas. A nova lei trouxe, no entanto, um reforço dos poderes de intervenção do Governo na gestão financeira das empresas, em especial do Ministro das Finanças, com o objetivo de controlar o problema do forte endividamento das empresas públicas, que ameaçava não só a sua viabilidade económica, como também o cumprimento dos objetivos do Estado em matéria de défice orçamental e de dívida pública.”, Diogo Freitas do Amaral, op. cit., pág. 333.

179. Por conseguinte, a proibição do exercício de funções remuneradas no setor público a que se reporta o disposto no n.º 1, do artigo 78.º do E.A. aplica-se ao universo das entidades nele previstas, que não inclui as empresas participadas, como a A..., SA, não sendo finalidade da norma, nem seu alcance substancial consagrar uma proibição que abranja também as situações do exercício de funções remuneradas no sector privado, por aposentados, pensionistas da segurança social ou outros, que se processam no quadro de uma relação estabelecida com uma empresa participada, que tem natureza privada e se rege pelo direito privado, incluindo em matéria laboral dos seus trabalhadores e em relação aos quais não se prevê qualquer regime excecional ou transitório, como se verifica em relação às empresas públicas, por não estar em causa o exercício e funções públicas, nem o pagamento de vencimentos públicos.

180. No que traduz assistir razão aos Recorrentes, devendo ser concedido provimento ao presente recurso e, em consequência, ser revogada a decisão recorrida, julgando-se a ação procedente, reconhecendo-se o direito de os Autores cumularem o recebimento da pensão e o vencimento, no período entre novembro de 2015 a outubro de 2020 quanto aos 1.º, 4.º, 5.º e 6.º Autores e no período entre novembro de 2015 a junho/julho quanto aos 2.º e 3.º Autores, assim como, a condenação da Entidade Demandada ao pagamento da pensão aos Autores nos períodos em referência, acrescidas de juros de mora devidos desde a data da citação até efetivo e integral pagamento, por constituir objeto do processo a pretensão dos interessados e não o ato de indeferimento, cuja eliminação da ordem jurídica resulta diretamente da pronúncia condenatória (n.º 2, do artigo 66.º do CPTA).

DECISÃO

Pelo exposto, acordam em conferência os Juízes da Secção de Contencioso Administrativo deste Supremo Tribunal Administrativo, de harmonia com os poderes conferidos pelo disposto no artigo 202.º da Constituição da República Portuguesa, em conceder provimento ao recurso interposto pelos Autores, ora Recorrentes e, em consequência, revogar o acórdão recorrido, proferido pelo Tribunal Central Administrativo Sul e julgar a ação procedente, reconhecendo-se o direito de os Autores cumularem o recebimento da pensão e o vencimento, no período entre novembro de 2015 a outubro de 2020 quanto aos 1.º, 4.º, 5.º e 6.º Autores e no período entre novembro de 2015 a junho/julho quanto aos 2.º e 3.º Autores, assim como, a condenação da Entidade Demandada ao pagamento da pensão aos Autores nos períodos em referência, acrescidas de juros de mora, devidos desde a data da citação até efetivo e integral pagamento.

Custas pela Entidade Recorrida.

Lisboa, 29 de fevereiro de 2024. – Ana Celeste Catarrilhas da Silva Evans de Carvalho – José Augusto de Araújo Veloso – Suzana Maria Calvo Loureiro Tavares da Silva.