Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0767/10
Data do Acordão:11/10/2010
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:ANTÓNIO CALHAU
Descritores:RESPONSABILIDADE SUBSIDIÁRIA
COIMA
REVERSÃO DA EXECUÇÃO
EXECUÇÃO FISCAL
CONTRA-ORDENAÇÃO FISCAL
INCONSTITUCIONALIDADE MATERIAL
Sumário:I - O artigo 8.º do RGIT, interpretado no sentido de que ali se prevê a responsabilidade subsidiária por coimas, efectivada através do regime da reversão da execução fiscal contra as pessoas ali mencionadas, é materialmente inconstitucional, por violação dos princípios constitucionais da intransmissibilidade das penas, da presunção de inocência e da violação dos direitos de audiência e defesa, consagrados, respectivamente, no n.º 3 do artigo 30.º e nos n.ºs 2 e 10 do artigo 32.º, ambos da CRP.
II - O processo de execução fiscal não é o meio processual adequado para a cobrança de dívidas emergentes de responsabilidade civil extracontratual nem é possível a reversão da execução para cobrança de dívidas não tributárias com esse fundamento.
Nº Convencional:JSTA00066678
Nº do Documento:SA2201011100767
Data de Entrada:10/07/2010
Recorrente:MINISTÉRIO PÚBLICO
Recorrido 1:A... E FAZENDA PÚBLICA
Votação:UNANIMIDADE
Meio Processual:REC JURISDICIONAL.
Objecto:SENT TAF CASTELO BRANCO PER SALTUM.
Decisão:NEGA PROVIMENTO.
Área Temática 1:DIR PROC TRIBUT CONT - EXEC FISCAL.
Legislação Nacional:RGIT01 ART3 ART8 N1 A B.
CONST97 ART30 ART32 N2 N10.
RJIFNA90 ART7-A.
LGT98 ART22 N4.
CPPTRIB99 ART148 N1 B.
DL 427/82 DE 1982/10/27 ART41 N1.
CP07 ART11 N9.
Jurisprudência Nacional:AC TC 129/2009 DE 2009/03/12.; AC STA PROC31/08 DE 2008/05/28.; AC STA PROC1057/07 DE 2008/02/27.; AC STA PROC1053/07 DE 2008/03/12.; AC STA PROC829/08 DE 2009/02/04.; AC STA PROC150/09 DE 2009/03/25.; AC STAPROC234/09 DE 2009/05/12.; AC STA PROC64/10 DE 2010/04/14.; AC STA PROC186/10 DE 2010/09/08.; AC STA PROC193/10 DE 2010/05/05.; AC STA PROC1147/09 DE 2009/12/16.; AC STA PROC1074/09 DE 2009/12/16.; AC STA PROC193/10 DE 2010/05/05.; AC STA PROC1053/07 DE 2008/03/12.; AC TC 220/89 IN BMJ N384 PAG326.; AC TC 265/01 DE 2001/06/19.
Referência a Doutrina:GOMES CANOTILHO E OUTRO CRP ANOTADA 4ED PAG526 NOTA XVII.
Aditamento:
Texto Integral: Acordam, em conferência, na Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo:
I – O Ministério Público, não se conformando com a sentença do Mmo. Juiz do TAF de Castelo Branco que julgou procedente a oposição deduzida por A… com os sinais dos autos, à execução fiscal instaurada à sociedade B…, Lda., por dívida de coima e encargos de processos de contra-ordenação, e contra si revertida, e, em consequência, declarou extinta a referida execução fiscal, dela vem interpor recurso para este Tribunal, formulando as seguintes conclusões:
1. A decisão a quo considerou que “as dívidas de responsabilidade extracontratual não podem ser cobradas através de processo de execução fiscal e, consequentemente, não pode haver reversão” e que “o processo de execução fiscal não é o meio judicial próprio para a cobrança de dívidas de responsabilidade de gerentes revertidos por coimas aplicadas à sociedade devedora original”.
2. Assim, aplicou a jurisprudência do Ac. de 14/4/2010 do STA em detrimento do Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 129/2009.
3. Afigura-se, todavia, ser esta a tese a merecer acolhimento.
4. Pelo exposto, violou a decisão a quo o disposto no artigo 8.º do RGIT.
5. Em conformidade, revogando tal decisão e determinando a sua substituição por outra que determine a improcedência da oposição, farão Vossas Excelências Justiça.
Não foram apresentadas contra-alegações.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
II – Mostram-se provados os seguintes factos:
a) A execução fiscal 3794200701008862 e apensos instaurada no SF de Castelo Branco contra a devedora originária B…, Lda., NPC …, foi revertida contra o oponente – docs. de fls. 64 e 84/85.
b) O despacho de reversão na execução fiscal 3794200701008862 do SF de Castelo Branco fundamenta-se na (a) inexistência de bens penhoráveis da executada B…, Lda., art.º 153/2-a) do CPPT, (b) responsabilidade do revertido A…, como gerente da executada B…, Lda., quando a decisão definitiva de aplicar a coima lhe foi notificada, não tendo sido efectuado o pagamento, art.º 8/1 do RGIT, (c) responsabilidade do revertido como gerente no período de vida da empresa quando os tributos deveriam ter sido pagos, art.º 24/1-b) da LGT – docs. de fls. 64 e 84/85.
c) O revertido A… exerceu a gerência da empresa desde a sua constituição – informação de fls. 64.
d) Não foi efectuado pagamento de coimas aplicadas a infracções por factos praticados no período do exercício do seu cargo, pelo que é subsidiariamente responsável, art.º 8/1-a) do RGIT; as coimas foram originadas por autos de notícia emitidos por falta de entrega das declarações periódicas de IVA do 3.º e 4.º trimestres do ano de 2006 e do 1.º, 3.º e 4.º trimestres do ano de 2007, que deviam ter sido entregues até ao dia 15 do 2.º mês seguinte a cada trimestre – informação de fls. 64.
e) A notificação para a audição prévia foi expedida em 27/11/2008 – v. fls. 66.
f) O despacho de reversão foi proferido em 6/1/2009 – v. fls. 84.
g) A citação do revertido por carta registada foi efectuada em 6/1/2009 – v. fls. 90/92.
III – Vem o presente recurso interposto da sentença do Mmo. Juiz do TAF de Castelo Branco que julgou procedente a oposição deduzida pelo ora recorrido e, em consequência, declarou extinta a execução fiscal instaurada contra a sociedade B…, Lda., por dívidas de coimas fiscais, e mandada reverter contra aquele, com o fundamento de as dívidas de responsabilidade extracontratual não poderem ser cobradas através de processo de execução fiscal, e daí não poder haver reversão, e ainda de o processo de execução fiscal não ser o meio judicial próprio para a cobrança de dívidas de responsabilidade de gerentes revertidos por coimas aplicadas à sociedade devedora original.
Alega o Exmo. Procurador da República recorrente que na decisão recorrida se aplicou, assim, a jurisprudência do acórdão de 14/4/2010 deste STA em detrimento do acórdão do Tribunal Constitucional n.º 129/2009.
A questão que se coloca como objecto do presente recurso é, pois, a de se saber se os gerentes de uma sociedade podem ser responsabilizados subsidiariamente por dívidas de coimas aplicadas àquela por contra-ordenações tributárias.
Entendeu-se na sentença recorrida, não obstante a decisão do TC no acórdão 129/2009, de 12/3/2009, no sentido de não julgar inconstitucionais as normas das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 8.º do RGIT, aprovado pela Lei 15/2001, de 5 de Junho, sufragar a jurisprudência constante do acórdão deste STA de 14/4/2010.
Vejamos. Sob a epígrafe «Responsabilidade civil pelas multas e coimas», o artigo 8.º do RGIT define a responsabilidade subsidiária dos gerentes por coimas, nos seguintes termos:
«1 – Os administradores, gerentes e outras pessoas que exerçam, ainda que somente de facto, funções de administração em pessoas colectivas, sociedades, ainda que irregularmente constituídas, e outras entidades fiscalmente equiparadas são subsidiariamente responsáveis:
a) Pelas multas ou coimas aplicadas a infracções por factos praticados no período do exercício do seu cargo ou por factos anteriores quando tiver sido por culpa sua que o património da sociedade ou pessoa colectiva se tornou insuficiente para o seu pagamento;
b) Pelas multas ou coimas devidas por factos anteriores quando a decisão definitiva que as aplicar for notificada durante o período do exercício do seu cargo e lhes seja imputável a falta de pagamento.».
Esta norma foi objecto de apreciação no citado acórdão do Tribunal Constitucional, de 12/3/2009, proferido na sequência de recurso obrigatório interposto pelo MP do acórdão do STA, de 28/5/08, no recurso n.º 31/08, onde se concluíra pela inconstitucionalidade do artigo 8.º do RGIT, por violação do princípio da intransmissibilidade das penas, previsto no artigo 30.º da CRP, por, em síntese, não assegurar ao revertido o direito de audiência e defesa (n.º 10 do artigo 32.º da CRP) no processo de contra-ordenação e por não lhe conferir a garantia da presunção de inocência (n.º 2 do art. 32.º da CRP).
E vários outros arestos do STA haviam trilhado, aliás, este mesmo caminho e a mesma fundamentação (cfr. os acs. de 27/2/08, 12/3/08 e 4/2/09, respectivamente, nos proc.ºs n.ºs 1057/07, 1053/07 e 829/08).
O Tribunal Constitucional veio a decidir «não julgar inconstitucionais as normas das alíneas a) e b) do n.º l do artigo 8.° do RGIT (…) na parte em que se refere à responsabilidade civil subsidiária dos administradores e gerentes por coimas aplicadas a pessoas colectivas em processo de contra-ordenação», com fundamento em que aquele preceito não consagra uma qualquer forma de transmissão de responsabilidade penal ou contra-ordenacional imputável à sociedade, estabelecendo, antes, a imposição de um dever indemnizatório que deriva do facto ilícito e culposo que é praticado pelo administrador ou gerente e que constitui causa adequada do dano que resulta, para a Administração Fiscal, da não obtenção da receita em que se traduzia o pagamento da multa ou coima que eram devidas (tratar-se-ia de uma responsabilidade de natureza civil extracontratual dos gerentes e administradores, resultante do facto culposo que lhes é imputável por terem causado uma situação de insuficiência patrimonial da empresa, determinante do não pagamento da coima, ou por não terem procedido ao pagamento da coima quando a sociedade foi notificada para esse efeito ainda durante o período de exercício do seu cargo).
E entendimento idêntico veio a ser sufragado nos acs. de 25/3/09 e 12/5/09, nos procs. n.ºs 150/09 e 234/09, do mesmo Tribunal, que apreciaram a constitucionalidade da norma prevista no art. 7.º-A do RJIFNA, equivalente à do art. 8.º do RGIT.
Portanto, para o Tribunal Constitucional, a responsabilidade subsidiária prevista no artigo 8.º do RGIT assenta, não no facto típico que substancia a infracção contra-ordenacional, mas num outro facto diferente e autónomo: o comportamento pessoal causador de um dano para a Administração Fiscal, sendo que a «circunstância de o montante indemnizatório corresponder ao valor da multa ou coima não paga apenas significa que é essa, de acordo com os critérios da responsabilidade civil, a expressão pecuniária do dano que ao lesante cabe reparar, que é necessariamente coincidente com a receita que deixa de ter dado entrada nos cofres da Fazenda Nacional; e de nenhum modo permite concluir que tenha havido a própria transmissão para o administrador ou gerente da responsabilidade contra-ordenacional.».
Porém, apesar do sentido desta decisão do TC, a jurisprudência maioritária do STA, tem-se mantido no sentido que até então seguira, ou seja, no sentido da inconstitucionalidade material do artigo 8.° do RGIT, por não ser compaginável com os princípios constitucionais da intransmissibilidade das penas e da presunção de inocência enunciados, respectivamente, no n.º 3 do artigo 30.º e no n.º 2 do artigo 32.º da CRP (cfr. os acs. deste STA, de 16/12/09, 16/12/09, 24/3/10, 14/4/10, 5/5/10 e 8/9/10, nos processos n.ºs 1147/09, 1074/09, 1216/09, 64/10, 193/10 e 186/10, respectivamente).
E não vemos, por ora, razão para abandonar tal jurisprudência, sendo certo que a invocada decisão de conformidade constitucional das als. a) e b) do artigo 8.º do RGIT apenas vincula o processo onde foi proferida (em processo de fiscalização concreta de constitucionalidade).
Com efeito, atentando na letra das als. a) e b) do n.º 1 do artigo 8.º do RGIT, acima transcritas, descortina-se, no que respeita às coimas, que ali se institui um regime no qual, como se diz no recente acórdão deste STA, de 14/4/2010, recurso n.º 64/10, «a responsabilidade subsidiária, embora dita de natureza civil, é directamente uma responsabilidade por dívidas de coimas e não por dívidas próprias do responsável subsidiário, autónomas em relação à responsabilidade do devedor originário por coimas.
Na verdade, a tese defendida … na esteira do Tribunal Constitucional, de se estar perante uma responsabilidade autónoma do responsável subsidiário, assente num “facto autónomo, inteiramente diverso” do que constitui infracção, e não uma responsabilidade pela coima, para além de não ter um suporte minimamente consistente no texto legal, que se refere expressamente e por duas vezes a responsabilidade pelas coimas e não por qualquer dívida autónoma, conduziria às consequências inaceitáveis, em termos de razoabilidade, coerência e justiça, de a dívida do devedor subsidiário poder subsistir independentemente da dívida do devedor originário (por exemplo, manter-se nos casos em que dívida originária se extingue por prescrição da sanção ou amnistia, ou a anulação da decisão condenatória em processo de revisão).
Por outro lado, se se tratasse de uma responsabilidade subsidiária própria do responsável subsidiário, assente num facto próprio por que apenas ele é responsável, não se compreenderia que existisse direito do regresso do responsável subsidiário em relação ao devedor originário, como está expressamente previsto no n.º 9 do artigo 11.º do Código Penal, para a responsabilidade subsidiária aí prevista, que é de aplicação subsidiária relativamente aos processos contra-ordenações, por força do disposto nos artigos 3.º, alínea b) do RGIT e 41.º, n.º 1, do Regime Geral das Contra-ordenações.
Na verdade, só há direito de regresso nos casos em que alguém paga uma dívida de outrem, pelo que se o devedor subsidiário o tem é, necessariamente, por pagou uma dívida do devedor originário e não uma dívida própria.
Para além disso, se o responsável subsidiário que pagou não tivesse pago a coima, mas uma dívida própria completamente distinta, a dívida de coima subsistiria, pelo que o devedor originário continuaria a poder ser obrigado a pagá-la, mesmo depois de o responsável subsidiário ter pago a tal sua dívida própria, proporcionando à Fazenda Pública a possibilidade de cobrar duas vezes a mesma quantia, o que não tem justificação aceitável.
Assim, a única forma de encontrar congruência no referido regime de responsabilidade subsidiária é, de facto, entender que o responsável subsidiário paga a dívida de coima, que o pagamento extingue a dívida respectiva (impossibilitando a posterior exigência da mesma ao devedor originário), que a dívida do responsável subsidiário se extingue se se extinguir a sanção, que o responsável subsidiário que pagar tem direito de regresso.
Mas, o problema é que, sendo assim, está-se perante uma transmissão da dívida de coima para o responsável subsidiário que é materialmente inconstitucional, por ofensa do princípio da intransmissibilidade das penas, enunciado no artigo 30.º, n.º 3, da CRP, que, como corolário do princípio da necessidade (não se satisfazem os fins das sanções pecuniárias, de prevenção geral e especial, com a aplicação de sanção a pessoa diferente da que praticou a infracção), não pode deixar de ser aplicável à generalidade das sanções pecuniárias.
Só deixaria de ser assim, se se pudesse entender que a obtenção de receitas é um fim das sanções pecuniárias, mas isso, para além de não parecer aceitável (no limite, a Administração, para optimizar a prossecução desse fim, deveria incentivar o mais possível as violações da lei, para promover a obtenção de mais receitas...) é desmentido pelo regime da conversão da pena de multa em prisão que se prevê no artigo 49.º do Código Penal, por onde se vê que o condenado, mesmo que tenha possibilidade de pagar a multa, pode optar pela prisão, extinguindo com o cumprimento desta, a dívida pecuniária: satisfeitos os fins de prevenção geral e especial com o cumprimento da pena de prisão, extingue-se a dívida pecuniária, o que é uma prova de que a obtenção de receitas não é também um fim das penas, pois esse hipotético fim não ficaria satisfeito com o cumprimento da pena de prisão.
Assim, embora a epígrafe do artigo 8.º do RGIT tente camuflar esta transmissão de responsabilidade por infracções sobre a epígrafe de “Responsabilidade civil pelas multas e coimas”, o certo é que “é uma realidade insofismável que quem faz o pagamento de uma sanção pecuniária é quem a está a cumprir, e que, efectuado o cumprimento por terceiro, ele deixa de ser exigível ao autor da infracção, pelo que esta responsabilização se reconduz a uma transmissão do dever de cumprimento da sanção do responsável pela infracção para outras pessoas.” (Acórdão deste Supremo Tribunal Administrativo de 4-2-2009, processo nº 829/08)».
Concordamos com esta jurisprudência e não vemos que possa ultrapassar-se esta argumentação.
Com efeito, no caso dos autos, o Serviço de Finanças de Castelo Branco instaurou execução fiscal contra a sociedade B…, Lda., visando a cobrança coerciva de coimas, aplicadas em processos de contra-ordenação dos anos de 2006 e 2007 e por ter verificado a inexistência de bens penhoráveis da aludida sociedade para solver a dívida exequenda, o órgão de execução fiscal reverteu a execução contra o recorrido, responsável subsidiário (cfr. alíneas a) a d) do probatório).
Ou seja, o órgão de execução fiscal, ao imputar ao recorrido a responsabilidade subsidiária pelo pagamento desta dívida exequenda (coimas), à luz do artigo 8.º do RGIT, mas recorrendo ao instituto da reversão da execução instaurada contra a sociedade originariamente responsável, parece interpretar e aplicar esse preceito no sentido de que a responsabilidade subsidiária nele prevista é pela dívida constante do título executivo e não já por uma dívida distinta dessa que ali consta, designadamente de natureza civil e de cariz indemnizatório, caso em que não poderia recorrer à aplicação do regime da reversão (através do processo de execução fiscal apenas podem ser cobradas as dívidas mencionadas no artigo 148.º do CPPT, onde se incluem as coimas - na al. b) do n.º 1 deste normativo - e em legislação especial e só quanto a elas é aplicável o regime da reversão).
E se assim é, esta utilização do regime da reversão, estruturado apenas para os casos de responsabilização por dívidas de outrem, «implica, necessariamente, a transmissão da obrigação de cumprimento da sanção que constitui a dívida exequenda» e «tal interpretação do preceito, concretizada na presente execução fiscal, consubstancia, necessariamente, uma transmissão da responsabilidade pelas coimas aplicadas à sociedade infractora, proibida pela Constituição da República Portuguesa no n.º 3 do artigo 30.º» (cfr. supra referenciado ac. deste STA, de 16/12/09, rec. 1074/09).
Por outro lado, se se entendesse que estamos perante uma responsabilidade civil, como se diz no acórdão do TC, então, como acima se viu, nem a correspondente quantia poderia ser objecto de cobrança por via da presente execução fiscal, nem, consequentemente, ser objecto de reversão desse processo.
Mas mesmo que fosse instaurada execução, tratando-se de uma responsabilidade própria do gerente, sempre seria inaplicável o instituto da reversão, caracterizado, precisamente, por ser um instituto que se destina a chamar ao processo de execução fiscal os responsáveis subsidiários por dívida de outrem.
Além de que, como se salienta no acórdão deste STA de 5/5/2010, no recurso n.º 193/10, se o que está em causa nos autos é, apesar de tudo, a responsabilidade prevista no artigo 8.º do RGIT, então quer na utilização da reclamação prevista nos artigos 276.º e sgts. do CPPT, quer na utilização da oposição à execução fiscal, teriam que ser asseguradas ao revertido reclamante ou oponente condições de defesa idênticas às que são asseguradas ao arguido no processo de contra-ordenação.
Ora, não intervindo o revertido no processo de contra-ordenação, não podendo interpor recurso da decisão administrativa de aplicação de coima (só o arguido o pode fazer – n.º 2 do artigo 59.º do RGCO) nem da decisão do tribunal tributário de 1.ª instância que aprecie eventual recurso interposto pelo arguido (artigo 83.º do RGIT) e não sendo possível discutir-se a legalidade em concreto da dívida, quer na reclamação prevista no artigo 276.º do CPPT quer na oposição à execução fiscal, ficam intoleravelmente diminuídos os respectivos direitos de audiência e defesa, com violação do disposto no n.º 10 do artigo 32.º da Constituição (veja-se que, no caso da dívida de imposto, a lei permite ao responsável subsidiário a reclamação ou a impugnação da dívida, nos mesmos termos do devedor principal (n.º 4 do artigo 22.º da LGT).
Por fim, ainda, como se exarou no acórdão deste STA, de 12/3/08, recurso n.º 1053/07 (cfr., no mesmo sentido também o ac. de 16/12/09, recurso n.º 1147/09), «… a própria presunção legal de que a falta de pagamento consubstanciadora da infracção fiscal é imputável aos gerentes parece igualmente inconstitucional por inconciliável com a presunção de inocência vigente em matéria sancionatória - artigo 32.°, n.º 2, da Constituição.
Aliás, o n.º 10 deste último preceito dispõe expressamente que são assegurados ao arguido, em quaisquer processos sancionatórios, contra-ordenações incluídas, os direitos de audiência e de defesa, os quais ... não estão assegurados ao revertido pois que têm que concretizar, desde logo, a possibilidade de recurso ou impugnação judicial do acto sancionatório e a possibilidade efectiva de contraditar eficazmente os elementos trazidos pela acusação – cfr., por todos, o acórdão do Tribunal Constitucional n.º 220/89, in Boletim do Ministério da Justiça 384, p. 326.
Em comentário àquele inciso normativo, os constitucionalistas Gomes Canotilho e Vital Moreira, in CRP anotada – 4.ª edição, p. 526, nota XVII, referem tratar-se, aí, “de uma simples irradiação, para esse domínio sancionatório, de requisitos constitutivos do estado de direito democrático”, assacando a tais processos sancionatórios, “carácter para-penal”, consequentemente de natureza pública.
E o acórdão do Tribunal Constitucional n.º 265/01, de 19 de Junho, assinala que “não só se aplicam, ao ilícito contraordenacional, garantias constitucionalmente atribuídas ao direito penal (v.g. princípios da legalidade e da aplicação da lei penal mais favorável), como também existe um evidente paralelismo entre o processo penal e o processo contraordenacional que é conformado por princípios básicos daquele, tendo em atenção os interesses subjacentes”».
Concluímos, assim, que com fundamento em inconstitucionalidade no n.º 1 do artigo 8.º do RGIT, as dívidas por coimas não podem ser exigidas ao revertido, ainda que em termos de responsabilidade subsidiária.
A decisão recorrida deve, por isso, ser confirmada.
IV – Termos em que, face ao exposto, acordam os Juízes da Secção de Contencioso Tributário do STA em negar provimento ao recurso, confirmando-se, assim, a sentença recorrida.
Sem custas, por delas estar isento o recorrente MP.
Lisboa, 10 de Novembro de 2010. – António Calhau (relator) – Miranda de Pacheco – Pimenta do Vale.