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Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:01009/04
Data do Acordão:05/03/2005
Tribunal:2 SUBSECÇÃO DO CA
Relator:SÃO PEDRO
Descritores:INSTITUIÇÃO FINANCEIRA.
IDONEIDADE DOS MEMBROS DOS ÓRGÃOS SOCIAIS.
CONCEITO VAGO OU INDETERMINADO.
PODER DISCRICIONÁRIO.
ABUSO DE INFORMAÇÃO.
UTILIZAÇÃO DE INFORMAÇÃO PRIVILEGIADA.
Sumário:I - O art. 30º do Regime Geral das Instituições Financeiras aprovado pelo Dec. Lei 282/92, de 31 de Dezembro e sucessivas alterações, sobre a idoneidade dos membros dos órgãos de administração e fiscalização das instituições de crédito, estabelece:
“ 1. Dos órgãos de administração e fiscalização de uma instituição de crédito, incluindo os membros do conselho geral e os administradores não executivos, apenas poderão fazer parte pessoas cuja idoneidade dê garantias de gestão sã e prudente, tendo em vista, de modo particular, a segurança dos fundos confiados à instituição.
2. Na apreciação da idoneidade deve ter-se em conta o modo como a pessoa gere habitualmente os negócios ou exerce a profissão, em especial nos aspectos que revelem incapacidade para decidir de forma ponderada e criteriosa, ou tendência para não cumprir pontualmente as suas obrigações ou para ter comportamentos incompatíveis com a preservação da confiança do mercado.
3. Entre outras circunstâncias atendíveis, considera-se indiciador de falta de idoneidade o facto de a pessoa ter sido:
a) Declarada, por sentença nacional ou estrangeira, falida ou insolvente ou julgada responsável por falência ou insolvência de empresa por ela dominada ou de que tenha sido administradora, directora ou gerente;
b) Administradora, directora ou gerente de empresa cuja falência ou insolvência, no País ou no estrangeiro, tenha sido prevenida, suspensa ou evitada por providências de recuperação de empresa ou outros meios preventivos ou suspensivos, ou detentora de uma posição de domínio em empresa nessas condições, desde que, em qualquer dos casos, tenha sido reconhecida pelas autoridades competentes a sua responsabilidade por essa situação;
c) Condenada, no País ou no estrangeiro, por crimes de falência dolosa, falência por negligência, favorecimento de credores, falsificação, furto, roubo, burla, frustração de créditos, extorsão, abuso de confiança, infidelidade, usura, corrupção, emissão de cheques sem provisão, apropriação ilegítima de bens do sector público ou cooperativo, administração danosa em unidade económica do sector público ou cooperativo, falsas declarações, recepção não autorizada de depósitos ou outros fundos reembolsáveis, branqueamento de capitais, abuso de informação, manipulação do mercado de valores mobiliários ou crimes previstos no Código das Sociedades Comerciais;
d) Condenada, no País ou no estrangeiro, pela prática de infracções às regras legais ou regulamentares que regem a actividade das instituições de crédito, sociedades financeiras ou instituições financeiras, a actividade seguradora e o mercado de valores mobiliários, quando a gravidade ou a reiteração dessas infracções o justifique”.
II - A ocorrência de factos supervenientes susceptíveis de integrar o previsto no n.º 3 do art. 30º, referido em I, deve ser comunicada ao Banco de Portugal e se este concluir “não estarem satisfeitos os requisitos de idoneidade” cancelará o registo e comunicará a sua decisão às pessoas em causa e às instituições de crédito, a qual tomará as medidas adequadas para que aquelas cessem imediatamente funções (art. 70º do mesmo diploma legal).
III - O conceito de idoneidade para o exercício do cargo acima referido é um conceito indeterminado que deve ser preenchido através de uma valoração objectiva, atendendo aos factos indiciadores exemplificativamente (“entre outros”) enumeradas na lei (art. 30º, n.º 3) ou a situações análogas, sendo livremente apreciado pelo Tribunal.
Nº Convencional:JSTA00061814
Nº do Documento:SA12005050301009
Data de Entrada:10/11/2004
Recorrente:A...
Recorrido 1:CONSELHO DA ADMINISTRAÇÃO DO BANCO DE PORTUGAL
Votação:UNANIMIDADE
Meio Processual:REC JURISDICIONAL.
Objecto:SENT TAC DE LISBOA.
Decisão:PROVIDO.
Área Temática 1:DIR ADM GER - POLICIA ADM.
Legislação Nacional:DL 282/92 DE 1992/12/31 ART30.
Aditamento:
Texto Integral: Acordam na 1ª Secção do Supremo Tribunal Administrativo
1. Relatório
A..., recorreu para este Supremo Tribunal da sentença do Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa que julgou improcedente o recurso contencioso de anulação que interpusera da deliberação do Conselho de Administração do Banco de Portugal, de 12 de Novembro de 2002, que cancelou o seu registo como membro do Conselho de Administração de Administração da sociedade ...– Gestão de Patrimónios, S.A.
Concluiu as alegações, formulando as seguintes conclusões:
A) o presente recurso vem interposto da decisão de fls. ..., proferida nos presentes autos, em 13 de Fevereiro de 2004, nos termos da qual o Tribunal a quo decidiu negar provimento ao recurso contencioso da deliberação do Conselho de Administração do Banco de Portugal, de 12 de Novembro de 2002, que cancelou o registo de A... como administrador da sociedade ...- Gestão de Patrimónios, S.A., por considerar que tal acto administrativo não enfermava dos vícios que o aqui Recorrente lhe imputava: a nulidade por violação do princípio da presunção de inocência, conjugado com os princípios do in dubio pro reo e da proporcionalidade; a anulabilidade por violação de violação; e a anulabilidade por erro nos pressupostos de facto.
B) No entanto, a decisão recorrida não pode aceitar-se, quer no que respeita à matéria de facto seleccionada pelo Tribunal a quo, quer no que respeita à interpretação e aplicação do Direito a esses factos.
Quanto à matéria de facto
C) Para além de o Tribunal a quo, na selecção dos factos considerados assentes com relevância para o presente caso, apenas se ter baseado na versão dos factos apresentada pela Autoridade Recorrida com algumas incorrecções, tal Tribunal não apresentou uma análise crítica das provas que conduziram à referida selecção, nem invocou sequer qualquer fundamento ou meio de prova para a formação da sua convicção quanto a essa matéria.
D) Tal situação enferma a decisão recorrida de nulidade por falta de fundamentação, violando o disposto no artigo 653º n.º 2 do Código de Processo Civil, aplicável ex vi do artigo 102º da LPTA, bem como no artigo 205º nº 1 da Constituição da República Portuguesa.
D. Cautelarmente, sempre se dirá que a matéria de facto seleccionada se mostra obscura, excessiva ou deficiente nalguns pontos, pelo que, atento (i) o facto de se encontrarem nos autos os elementos suficientes para o efeito e (ii) os poderes de cognição desse Supremo Tribunal, deverá essa matéria de facto ser alterada ao abrigo do disposto nos artigos 21° do ETAF, 690.º-A, 712.°, 737.° e 759.°, todos do Código de Processo Civil, estes aplicáveis ex vi do artigo 102.° da LPTA, nos termos indicados na alegação e sumariamente referidos nas presentes conclusões.
E) o ponto 4 dos factos assentes deve ser eliminado por a não ser relevante, por si só, para os presentes autos.
F) No caso de se entender que tal matéria é relevante, deverão os pontos 4 e 5 dos autos ser alterados nos seguintes termos:
Ponto 4.: "Em estudo datado de Julho de 1999 previram-se dois cenários alternativos para reestruturação da ...: o lançamento de uma OPA pela ..., sem determinação da respectiva data da operação e a redução do capital social da empresa."
Ponto 5.: "Em estudo datado de Agosto de 1999 previram-se dois cenários alternativos para reestruturação da ...: o lançamento de uma OPA pela ..., coincidente com a efectivamente montada e a redução do capital social da empresa".
H. Isto porque, os estudos preparados pelo BPP apresentaram duas alternativas de reestruturação lançamento de uma OPA, encontrando-se esses autos (cfr. fls. 447 a 578 do processo instrutor).
I) O ponto 9 dos factos assentes também deverá ser eliminado, por irrelevante para a matéria sub judice e, fundamentalmente, por a matéria aí consignada - a alegada abertura de uma conta, em nome da ..., pelo Recorrente - não se encontrar demonstrada (não se refere a data em que foi aberta nem se menciona sequer a identificação dessa conta), devendo, em consequência, a menção à titularidade de uma conta em nome da ... ser eliminada do ponto 10 dos factos assentes.
J) No caso de se considerar que o ponto 9 deve ser mantido deverá ser acrescentado um novo ponto aos factos assentes com a seguinte matéria que, efectivamente, ficou demonstrada e mostra relevante para o caso sub judice: "Não ficou demonstrado que o Recorrente é o beneficiário económico da conta bancária aberta em nome da sociedade ...”.
K) A expressão “por instrução do Recorrente" deve ser eliminada dos pontos 11 e 12 dos factos assentes, por não ter ficado demonstrada qualquer ligação do Recorrente aos movimentos bancários referidos nas alíneas C), D) e J) da Nota da CMVM, que estariam em causa nos presentes autos.
L) O ponto 12 dos factos assentes deverá passar a ter a "Entre 6.7.1999 e 19.8.1999, a ... adquiriu em bolsa 77.993 acções ordinárias e 11. 001 Acções preferenciais sem voto da ..., ao preço médio unitário de € 4,27 e € 5,10 respectivamente, sendo a maior parte delas adquiridas entre 17 e 19.8.1999 por instruções emitidas em 17 e 18.8".
M) Consequentemente, requer-se a introdução do seguinte facto assente: "Entre 6.7.1999 e 19.8.1999, a ... adquiriu em bolsa 77.993 acções ordinárias e 11. 001 acções preferenciais sem voto da ... a um preço € 1,22 e € 1,39, respectivamente, abaixo do preço oferecido pela oferente, i.e., 20% a 27% abaixo da contrapartida da OPA"
N) Com efeito, ficou provado (cfr. fls. 73 a 119), e aceite pela Autoridade Recorrida, que o preço médio unitário de compra das acções ordinárias e das preferenciais sem voto da ... foi de € 4,27 e € 5,10, respectivamente, e que tais valores ficaram € 1,22 e € 1,30, respectivamente, abaixo da contrapartida da OPA, o que corresponde a 20% a 27% abaixo da oferta da oferente na OPA.
O) Além do mais, deverá o Tribunal ad quem alterar a matéria de facto seleccionada, introduzindo novos pontos assentes, dos quais constem factos que contrariam a alegada utilização de informação privilegiada e que, dessa forma, se mostram relevantes para demonstrar que a Autoridade Recorrida deliberou o cancelamento do registo de A..., não só sem a existência de uma condenação por sentença judicial, como sem qualquer fundamento factual que lhe permitisse sequer suscitar a dúvida razoável quanto a tal alegada utilização de informação.
P) É que o Tribunal a quo não considerou (i) que o acordo de assessoria do BPP com a ... não foi assinado pelo Recorrente (cfr. documento nº 7 da petição de recurso), (ii) a confidencialidade inerente e expressamente prevista nesse acordo (cfr. fls. 124 e seguintes), (iii) as funções do Recorrente no BPP e a organização deste Banco (cfr. fls. 124 e seguintes) com a consequente impossibilidade de o Recorrente ter recebido qualquer informação sobre o possível lançamento de uma OPA, (iv) a situação da ... no mercado e os rumores de lançamento de OPA, e (v) a actuação eficaz do Recorrente na sociedade ...- Gestão de Patrimónios, S.A. que permitem concluir que o mesmo habitualmente procede de forma sã e prudente.
Q) O Tribunal a quo igualmente não situou ou conjugou os referidos factos no tempo com aqueles que foram tomados como assentes na decisão de que ora se recorre.
R) Assim, requer a V. Exas. se dignem introduzir como factos como assentes:
"O Recorrente não assinou o acordo de assessoria celebrado entre a ... e o BPP - o qual era confidencial - nem fez parte da equipa designada para a execução desse acordo."
"A área de actividade do Recorrente no BPP centrava-se na supervisão da estruturação e monitorização dos investimentos feitos por conta dos clientes, na qual não se inclui a tomada de decisões ou análise de situações de reestruturação de empresas clientes dessa instituição bancária."
"Antes do anúncio do lançamento da OPA pela ..., havia rumores no mercado de que seria lançada uma OPA sobre a ...."
"Por via da actuação ponderada e criteriosa do Recorrente, no período em que a sociedade ...- Gestão de Patrimónios, S.A. iniciou a sua actividade, e em que a rendibilidade do Índice MSCI World registava um valor negativo de 40,5% e o do Índice PSI20 um valor negativo na ordem dos 48,57%, a rendibilidade média líquida acumulada das carteiras de gestão discricionária dos clientes daquela sociedade registava um valor positivo de 7,58%, sendo que a pior carteira num período de doze meses apresentava um valor positivo na ordem dos 2,5% de rendibilidade líquida."
"Foi graças à avaliação cuidada e ponderada dos riscos de investimento dos clientes por parte dos administradores da sociedade ..., ..., Gestão de Patrimónios, S.A. e da preocupação fundamental dos respectivos administradores em conter perdas e evitar períodos de doze meses negativos nas carteiras os clientes que a rendibilidade das carteiras destes se mantinha positiva, sem variações significativas."
Quanto à matéria de Direito:
S) A interpretação do Tribunal a quo do disposto no art. 30º do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras, conjugado com o disposto no art. 70º, n.º 4 do mesmo diploma legislador, contrariando os elementos literal e sistemático (cfr. artigo 9.º do Código Civil) e viola o principio da presunção de inocência, consagrado no artigo 32º, nº 2 da C. Portuguesa, o princípio do in dubio pro reo que é uma decorrência daquele e o princípio da proporcionalidade, previsto nos artigos 18º e 226º da Lei Fundamental e no artigo 5º do Código de Procedimento Administrativo.
T) A interpretação, em termos objectivos, do disposto no n.º 2 do artigo 30º do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras implica a consideração da alínea c) do nº 3 do mesmo artigo que não permite o cancelamento do registo do Recorrente sem ter havido uma sentença condenatória transitada em julgado pela prática de um dos crimes aí previstos, o que não sucedeu, não tendo ficado demonstrado ou sido alegado que o Recorrente foi condenado na prática de qualquer desses crimes.
U) A objectividade do preceituado no artigo 30º do aludido Regime Geral encontra-se na consideração dos tipos de situações elencadas no nº 3 dessa disposição legal e que pressupõem um grau de certeza - a condenação - que não se coaduna com meras suspeitas ou dúvidas razoáveis.
V) O princípio de prevenção de riscos ou preservação da confiança do mercado não é um princípio fundamental, enquanto que o princípio da presunção de inocência constitui uma garantia constitucional do Estado Social e Democrático de Direito, inserindo-se na categoria dos Direitos, Liberdades e Garantias.
W) A intervenção administrativa não se destina a punir erros ou sancionar culpas individuais, mas não pode substituir-se o grau de certeza conferido por uma decisão judicial de condenação por uma convicção, suspeita ou dúvida razoável de um órgão administrativo, sob pena de violação do princípio da separação de poderes, ínsito no artigo 2º da Constituição da República Portuguesa e ao respeito do qual a Administração está vinculada por estar obrigada a pautar a sua actuação pela Lei e pelo Direito, como se infere dos artigos 18º e 266º desse Texto Constitucional.
X) Qualquer acto administrativo, sendo a exteriorização de um comportamento da Administração deverá conformar-se com os ditames constitucionais.
Y) Se o n.º 3 do artigo 30º do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras se bastasse com a "dúvida razoável" acerca da prática de um crime, não teria exigido expressamente a certeza da prática do crime ou, pelo menos, não exigiria a condenação com trânsito em julgado do visado, sendo a interpretação contrária, e defendida pelo Tribunal a quo contra legem e contra a ratio do preceito.
Z) Ainda que se aproximasse o princípio da preservação da confiança do mercado do interesse público, aquele princípio não pode justificar o sacrifício e compressão de direitos dos cidadãos tão fundamentais quanto o princípio da presunção de inocência.
AA) A vinculação de carácter positivo sobre o Banco de Portugal, de recusar ou cancelar um registo e de admitir ou não admitir o detentor de participações qualificadas, implica a consideração de circunstâncias atendíveis que passem pela verificação do grau de certeza que o legislador identifica como sendo a condenação.
BB) o Conselho de Administração do Banco de Portugal pode, ainda que tenha havido efectiva condenação na prática de qualquer dos crimes indicados na alínea c) do n.º 3 do artigo 30.º do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras, concluir pela idoneidade do administrador para o exercício do seu cargo por reunir as condições necessárias para assegurar uma gestão sã e prudente e não cancelar o registo.
CC) Quer o artigo 30.° n.ºs 2 e 3, quer o artigo 103.°, ambos do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras respeitam à fase de concessão do registo e não à fase de cancelamento do mesmo, sendo que, nesta segunda fase, é sobre o Conselho de Administração do Banco de Portugal que impende o ónus da prova da verificação das circunstâncias atendíveis para tal cancelamento, o que não se verificou no presente caso.
DD) o carácter exemplificativo do nº 3 do artigo 30º do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras não permite estender as circunstâncias atendíveis a situações que não apresentem como grau de certeza a condenação na prática de determinados crimes, admitindo-se que, no caso da alínea c) dessa disposição, eventualmente, se possam admitir outros tipos de crime para além dos aí previstos.
EE) Por outro lado, o carácter exemplificativo do preceito, ora em análise, também não permite separar estaticamente o processo administrativo do criminal, na medida em que os princípios gerais de Direito, como seja o da presunção de inocência, devem ter uma função coadjuvante na interpretação da Lei administrativa.
FF) O Conselho de Administração do Banco de Portugal deveria ter aguardado por uma decisão do órgão judicial junto do qual são assegurados todos os direitos de defesa do Recorrente.
GG) A manifesta omissão de realização de diligências probatórias adicionais demonstra também o desrespeito dos direitos de defesa do Recorrente por via da deliberação do Conselho de Administração do Banco de Portugal, de 12 de Novembro de 2002.
HH) O princípio do in dubio pro reo é uma decorrência do princípio da presunção de inocência, valendo para aquele o supra exposto quanto a este e concluindo-se, assim, que também tal princípio foi violado.
II) A deliberação do Conselho de Administração do Banco de Portugal, de 12 de Novembro de 2002, violou o princípio da proporcionalidade, não se compreendendo o alcance da fundamentação em sentido contrário, constante da decisão de que ora se recorre em sentido contrário.
JJ) De qualquer forma, sempre se dirá que o Banco de Portugal não "trabalhou" a sua decisão no grau de certeza que tinha, pois, se o tivesse feito, não poderia ter decidido cancelar o registo do Recorrente por não haver condenação do mesmo pela prática de qualquer crime, tendo retirado dos indícios que considerou ter uma consequência que só a condenação permite retirar.
KK) Entre o princípio da preservação da confiança do mercado e o da presunção de inocência, o Tribunal a quo optou pelo primeiro, o que para além de violar a lei, também é inadequado e violador do princípio da proporcionalidade constante do artigo 266º da Constituição da República Portuguesa e do artigo 5º do Código de Procedimento Administrativo.
LL. Assim, deveria a decisão do Tribunal a quo de que ora se recorre ter considerado a deliberação do Conselho de Administração do Banco de Portugal, de 12 de Novembro, nula por violação do princípio da presunção da inocência, sendo que, não o tendo feito, e tendo aderido à interpretação da Autoridade Recorrida quanto ao artigo 30º do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras, o Tribunal de 1ª Instância interpretou erroneamente tal preceito e violou os referidos princípios da presunção de inocência, in dubio pro reo e proporcionalidade.
MM. Quanto à violação de lei, o Tribunal a quo concluiu que a mesma não se verificava para tanto invocando o carácter exemplificativo do disposto no artigo 30º nº 3 do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras, o que, como acima se explicou, não pode, de forma alguma proceder, na medida em que o carácter enunciativo do preceito se reportará, no limite, aos tipos de crime em causa e não aos graus de certeza que poderão ir desde a queixa até à condenação.
NN) Assim, e tomando em consideração o princípio da precedência de lei, a deliberação da Autoridade Recorrida contrariou as normas legais que se lhe aplicam, neste caso o artigo 30º nº 3 do referido Regime Geral.
OO) No que respeita ao erro sobre os pressupostos de facto, o Tribunal a quo não deveria ter considerado irrelevantes e secundários factos tão importantes como o Recorrente não conhecer o acordo de assessoria celebrado entre o BPP e a ...e o facto de o mesmo não ser o beneficiário económico da ....
PP) A CMVM suscitou dúvidas sobre estas questões que são pertinentes e que deveriam ter conduzido o Tribunal a quo a considerar tais pontos como reveladores do não envolvimento do Recorrente nas transacções sub judice e a concluir que a Autoridade Recorrida não deveria ter cancelado o registo do Recorrente como administrador atentas as dúvidas que existiam acerca dos factos que lhe estavam a ser imputados.
QQ) Sendo que a Autoridade Recorrida nem averiguou os factos suscitados pelo Recorrente, em violação do disposto no artigo 87º nº1 do Código de Procedimento Administrativo.
RR) O Tribunal a quo não esclarece o que entende por demonstração "definitiva" de circunstâncias que não ocorreram, mas o certo é que não é possível demonstrar documentalmente factos que não aconteceram, exactamente... porque não ocorreram.
Nas suas contra alegações a entidade recorrida defende a manutenção da sentença, formulando por seu turno as seguintes conclusões:
A) A deliberação da Entidade Recorrida foi tomada com base numa informação oficialmente transmitida pela Comissão do Mercado de Valores Mobiliários (CMVM) ao abrigo do n.º 4 do artigo 30.° do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras, aprovado pelo Decreto -Lei n. 298/92, de 31 de Dezembro, resultante das averiguações conduzidas pela CMVM relativamente a transacções de acções da A. ..., SGPS, S.A. (...) , ocorridas antes de se tornar público o anúncio de lançamento de uma oferta pública de aquisição pela ..., SGPS., S.A. de acções da mesma ....
B) A deliberação do Conselho de Administração do Banco de Portugal foi tomada tendo em consideração a totalidade dos factos resultantes de tal investigação, os quais se apresentam como um conjunto fortíssimo de factos indiciários de utilização privilegiada em benefício próprio, que não foram contraditados pelo Recorrente e que constituíram uma base sólida e objectiva para a intervenção preventiva do Banco, em defesa da preservação da confiança do mercado financeiro.
C) A sentença recorrida, ao dar como provados, na sua essência, os factos alegados pela Entidade Recorrida não demonstrou qualquer parcialidade no julgamento e fazendo uso da liberdade de apreciação da prova, fez um juízo assente numa globalidade de factos que, em geral, nem foram contraditados pelo Recorrente.
D) Do facto de não ter sido explicitada a motivação da decisão de facto não decorre a nulidade da decisão, mas apenas a possibilidade de o tribunal "a quo"ordenar ao tribunal de primeira instância que proceda à devida fundamentação, nos termos do art. 712.°, n.º 5, do C.P.C., se tal tivesse sido requerido pelo Recorrente.
E) o artigo 70.°, n.º 4, do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras (Regime Geral), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 298/92, de 31 de Dezembro, autoriza o Banco de Portugal a cancelar o registo dos administradores das instituições de crédito e sociedades financeiras sempre que concluir não estar demonstrada a existência de requisitos de idoneidade para o exercício do cargo.
F) A idoneidade dos membros dos órgãos de administração e fiscalização das instituições de crédito e sociedades financeiras, segundo o art. 30.°, n.º 2, do Regime Geral, deve ser apreciada à luz de certos índices ou critérios objectivos, entre os quais se inclui a compatibilidade dos comportamentos da pessoa com a necessidade de preservação da confiança do mercado, devendo o Banco considerar todas as circunstâncias que em seu prudente arbítrio sejam indiciadoras de falta de idoneidade, sem vinculação aquelas descritas nas diferentes alíneas do n.º 3 do mesmo art. 30.°.
G) o nº 3 do artigo 30.° do Regime Geral não pode ser entendido como uma norma limitadora ou restritiva dos poderes de fiscalização conferidos pelos nºs 1 e 2, mas sim como uma norma de reforço dessa fiscalização, que vincula positivamente o Banco de Portugal, obrigando-o a recusar ou cancelar o registo quando se tiverem verificado certas circunstâncias que, pela sua especial gravidade, o próprio legislador considera reveladoras de falta de idoneidade.
H) A referência feita no artigo 70. °, n.º 1, aos factos referidos no n.º 3, daquela disposição legal não pode ser entendida como uma restrição dos fundamentos do cancelamento, mas apenas como um meio destinado a corresponsabilizar as instituições de crédito no conhecimento, por parte do Banco de Portugal, de certos factos especialmente ponderosos, sem que estes no entanto deixem de ser factos a considerar "entre outras circunstâncias atendíveis".
I) Nos termos do art. 30. °, nº 1, do Regime Geral e de acordo com o regime paralelo dos detentores de participações qualificadas do art. 103°, nº1, do mesmo regime, é aos interessados que compete fazer prova da sua idoneidade e não ao Banco fazer prova da sua inadequação para o cargo, tal como sucede com o regime paralelo (artigo 103.° do Regime Geral), a demonstração positiva da idoneidade dos administradores é indispensável ao registo, pelo que cabe aos interessados fazer prova das circunstâncias que fundamentam a sua idoneidade, e não ao Banco de Portugal fazer prova das circunstâncias demonstrativas da inadequação para o cargo
J) o conhecimento público dos factos que estiveram na base da decisão recorrida e que, na sua essência, nunca foram desmentidos pelo Recorrente é susceptível de abalar a confiança do mercado e afecta a sua idoneidade para uma gestão sã e prudente das instituições por si administradas.
K) Os actos de recusa e cancelamento do registo dos administradores das instituições de crédito e sociedades financeiras são actos de natureza exclusivamente administrativa, desempenham uma função meramente preventiva, assentam em circunstâncias estritamente objectivas e não pressupõem qualquer censura ético-jurídica do comportamento das pessoas ou uma avaliação subjectiva da sua culpa relativamente aos factos apreciados nem se baseiam numa afirmação negativa da idoneidade de determinada pessoa, pelo que são independentes de qualquer juízo que sobre os mesmos factos se faça ou possa fazer no campo penal.
L) A interpretação feita pelo Recorrente que vê no art. 30º, n.º3, do Regime Geral, uma vinculação de carácter negativo que impediria o Banco de Portugal de recusar ou cancelar o registo sempre que se estivesse perante factos susceptíveis de adquirir relevância em sede criminal não só frustraria os poderes de apreciação previstos nos n.ºs 1 e 2 do artigo 30. °, como transformaria a presunção de inocência penal numa autêntica presunção de idoneidade para o exercício de cargos de administração e fiscalização das instituições financeiras.
M) Não existindo qualquer violação do princípio da presunção de inocência vigente em matéria penal, não existe violação do princípio da proporcionalidade quando o Banco de Portugal conclui ter dúvidas, objectivamente fundadas, sobre a existência das garantias que, tendo em atenção o comportamento de determinado administrador, são necessárias para que o mercado confie em que esse administrador saberá preservar a gestão sã e prudente da instituição que administra e, em particular, a segurança dos fundos a esta confiados.
Nestes termos, deve improceder a alegação de nulidades de sentença feita pelo Recorrido, já que não existe qualquer erro na apreciação da prova (não tendo sequer sido requerida a fundamentação da decisão sobre a matéria de facto, nos termos previstos no art. 712. °, n.º 5, do C.P.C.) e não existe qualquer erro na aplicação do direito aos factos dados como provados nem violação do disposto nos arts. 30. °, n.º 1 e 3 e 70.°, n.º 1 e 4 do Regime Geral, nem dos arts. 26.°, n.º 1 e 32.°, n.º 2 da Constituição da República.
Nesta Relação o Ex.mo Procurador-geral Adjunto emitiu parecer no sentido de ser negado provimento ao recurso.
Colhidos os visto legais foi o processo submetido à conferência para julgamento.
2. Fundamentação
2.1. Matéria de facto
A sentença recorrida deu como assentes os seguintes factos:
1) O recorrente foi membro do Conselho de Administração do Banco Privado Português (BPP) desde 1996, apresentando a sua demissão por carta datada de 31.8.1999.
2) Desde 1997, o BPP prestou acessoria à ... para reestruturação das empresas do grupo.
3) Em 7.7.1999, o BPP assinou um acordo com a ... com vista à reestruturação do grupo desta e eventual entrada de um parceiro estratégico.
4) Em estudo datado de Julho de 1999 previu-se o lançamento de uma OPA pela ..., sem determinação da respectiva data da operação.
5) Em estudo datado de Agosto de 1999 previu-se o lançamento de uma OPA pela ..., coincidente com a efectivamente montada.
) A decisão de lançamento da OPA foi tomada entre 20.7 e 5.8.1999.
7) O anúncio da OPA sobre a ... ocorreu em 20.8.1999.
8) Em 23.6.1999 foram dadas as primeiras ordens de compra de acções da ... pela ..., tendo por data limite de validade o dia 18.8.1999.
9) Entretanto, o recorrente abriu uma conta off-shore “... ...” no BPP Cayman Limited
10) Entre 9.8 e 12.8.1999 essa conta foi aprovisionada com transferências bancárias da conta do recorrente e seus pais.
11) Em 12.8 e 18.8.1999 por instrução do recorrente, efectuaram-se duas transferências bancárias da conta supra referida para outra conta no Banco Totta e Açores da ... ... – Sociedade Financeira de Corretagem SA, destinada a crédito em conta corrente da cliente “... Lda.”, sociedade off shore, no montante de 249.398 €.
12) Entre 6-7-1999 e 19-8-1999, a ... adquiriu em bolsa 77.993 acções ordinárias e 11.001 acções preferenciais sem voto da ..., ao preço de € 1,22 e € 1,39, sendo a maior parte delas adquiridas entre 17 e 19-8-1999 por instruções emitidas em 17 e 18/8.
13) A liquidação destas aquisições foi assegurada através de duas transferências bancárias referidas em 11.
14) Todas essas acções foram alienadas em Outubro e Novembro de 1999, com uma mais valia de 77.295 €.
15) Em 2-11-1999, o administrador da ... nomeou o recorrente representante da sociedade e conferiu-lhe poderes para movimentar contas bancárias junto do ... da Sucursal do BCP e do BCP Cayman.
16) A Comissão do Mercado de Valores Mobiliários procedeu a averiguações acerca de transacções de acções da sociedade “...a SGPS” ocorridas antes do anúncio de lançamento da OPA, tendo elaborado um dossier.
17) Com base nas averiguações da CMVM, por deliberação datada de 12-11-2002, a autoridade recorrida cancelou o registo do recorrente como membro do Concelho de Administração da sociedade financeira ..., ... e Associados, SA, nos termos e com os fundamentos constantes do processo instrutor aqui dados por reproduzidos na íntegra.
2.2. Matéria de direito
a) objecto do recurso
A sentença recorrida julgou não verificados os vícios de (i) violação de princípios constitucionais; (ii) violação do art. 30º do Regime Geral das Instituições de Crédito (Dec. Lei 232/96, de 5/12); (iii) erro sobre os pressupostos de facto.
O recorrente insurge-se contra a sentença discordando da mesma quanto à matéria de facto e de direito, defendendo no essencial a alteração da matéria de facto e a verificação dos vícios que a sentença não reconheceu.
Julgamos adequado começar por apreciar as questões sobre a matéria de facto, já que só perante os factos concretamente dados como provados (os da sentença, ou outros) se poderão equacionar devidamente as questões jurídicas.
b) questões sobre a matéria de facto
Nas suas conclusões C) a R) o recorrente levanta as seguintes questões sobre a matéria de facto: (i) falta de fundamentação da matéria de facto; (ii) alteração dos pontos 4, 5, 9, 11, 12; (iii) introdução de novos factos provados e não considerados.
Vejamos, cada um desses aspectos.
i) Falta de fundamentação da matéria de facto
O recorrente argui a nulidade da sentença por a mesma não estar fundamentada, quanto à matéria de facto dada como provada. É verdade que a sentença não tem qualquer fundamentação da matéria de facto, violando dessa forma claramente o disposto no art. 653, 2 do C.P.Civil.
Porém a sanção para tal omissão não é a nulidade. Nos termos do art. 712º, n.º 5 do C.P.Civil a falta de fundamentação dos factos só releva se o mesmo for essencial e, nesse caso, pode o tribunal de recurso, a pedido da parte “determinar que o tribunal de 1ª instância a fundamente”. No presente caso, a parte não formulou tal pedido, e constam dos autos todos os elementos probatórios que permitem a reapreciação da matéria de facto, pelo que não se justifica a remessa do processo à primeira instância para fundamentar a matéria de facto.
Assim, improcede a arguida nulidade.
(ii) alteração dos pontos 4, 5, 9, 11, 12;
Quanto ao ponto 4 e 5: o recorrente pede a sua eliminação por ser desnecessário, ou se assim não for entendido propõe uma nova redacção aos pontos 4 e 5.
O ponto 4 tem a seguinte redacção: “Em estudo datado de Julho de 1999 previu-se o lançamento de uma OPA pela ..., sem determinação da respectiva data da operação”.
A sua eliminação por não ser relevante, como defende o recorrente, não se justifica. Se o mesmo não é relevante também não lhe causará qualquer prejuízo.
As alterações propostas dos pontos 4 e 5 têm a seguinte redacção:
Ponto 4. Em estudo datado de Julho de 1999 previram-se dois cenários alternativos para reestruturação da A....: o lançamento de uma OPA pela ..., sem determinação da data da operação e a redução do capital social da empresa
Ponto 5: Em estudo datado de Agosto de 1999 previram-se dois cenários alternativos para a reestruturação da ..: o lançamento de uma OPA pela ..., coincidente com a efectivamente montante e a redução do capital social da empresa”
A alteração proposta, como se vê, pretende apenas que fique provado que nos estudos citados se previa como cenário possível, para além da OPA a redução de capital. Sendo essa a realidade, o recorrente tem razão. Se foi considerado relevante para a matéria de facto a existência do estudo, deve ser relevante a existência do estudo na sua globalidade.
Quanto aos pontos 9 e 10: O recorrente entende que não há certeza da data da abertura da conta, da identificação da conta; e que era determinante e não secundário saber se o recorrente era o beneficiário económico da mesma conta. Entendendo que não se demonstrou, nos autos, que o recorrente fosse o beneficiário económico dessa conta, pretende que seja aditado um ponto com a seguinte redacção: “Não ficou demonstrado que o recorrente é o beneficiário da conta aberta em nome da Sociedade ...”.
Nos pontos 9 e 10 deu-se como provado o seguinte:
Ponto 9: (…) o recorrente abriu uma conta bancária em nome da sociedade off-shore ... Management no BPP Caiman Limited”;
Ponto 10: Entre 9/8 e 12/8, essa conta foi provisionada com transferência da conta do Recorrente e seus pais”.
Não se indicou o número da conta, nem a data da sua abertura, pelo que não tem razão de ser a crítica feita com base na falta de conhecimento desses factos.
Quanto ao pretendido aditamento, o mesmo é desnecessário. Não se deu como provado que o recorrente fosse o beneficiário da conta, nem que o não fosse. Assim, a pretensão do recorrente, em bom rigor, não tem sentido. Ainda se pretendesse a prova de que não era o recorrente o beneficiário da conta, a sua pretensão tinha alguma utilidade. Mas não. Pretende que dê como provado que um determinado facto não ficou nem provado nem não provado, o que equivale pura e simplesmente a não inscrever esse facto no catálogo dos provados – isto é, o que está feito. As questões que o recorrente aqui levanta, sobre o ónus da prova, projectam-se noutro domínio, que é o de saber a quem aproveita a falta de prova (non liquet) desse mesmo facto. Mas, esta é outra questão também levantada nos autos e que, a seu tempo e no local sistemático adequado, será apreciada.
Improcede assim a, nesta parte a pretensão do recorrente.
Quanto ao ponto 11: O recorrente entende que deve ser retirada destes pontos a expressão “por instrução do recorrente”, uma vez que os autos não provam esse facto concreto.
O ponto 11 da matéria de facto têm a seguinte redacção:
“11) Em 12.8 e 18.8.1999 por instrução do recorrente, efectuaram-se duas transferências bancárias da conta supra referida para outra conta no Banco Totta e Açores da ... Dealer – Sociedade Financeira de Corretagem SA, destinada a crédito em conta corrente da cliente “... Lda.”, sociedade off-shore, no montante de 249.398 €.
No ponto 9 da matéria assente, deu-se como provado que o recorrente abriu uma conta, no BPP Cayman Limited sendo por isso a pessoa que podia dar instruções para a respectiva movimentação. Assim a expressão por instrução do recorrente – titular dessa conta – para duas transferências bancárias é uma inferência necessária. As contas são movimentadas pelos seus titulares, ou como disse a sentença “por instrução dos mesmos”.
Improcede, portanto, a requerida alteração do ponto 11.
Quanto ao ponto 12: entende o recorrente que neste ponto se encontra uma conclusão que não corresponde à realidade. A recorrente não adquiriu as acções por € 1,22 e 1,39. A realidade foi que as acções foram adquiridas por € 1,22 e 1,39 abaixo da contrapartida oferecida pelo oferente da OPA.
O recorrente tem razão.
O preço unitário de aquisição foi de € 4,27 para as acções ordinárias e de € 5,10 para acções preferenciais sem voto, sendo aqueles valores a diferença entre o preço que foram adquiridas as acções e a contrapartida oferecida pela oferente da OPA.
Deve, pois, ser alterado o ponto 12, que passará a ter a seguinte redacção:
Ponto 12: Entre 6-7-1999 e 19-8-1999, a ... adquiriu em bolsa 77.993 acções ordinárias e 11.001 acções preferenciais sem voto da ..., ao preço de € 1,22 e € 1,39, respectivamente abaixo do preço oferecido pela oferente, sendo a maior parte delas adquiridas entre 17 e 19-8-1999 por instruções emitidas em 17 e 18/8.”
(iii) introdução de novos factos provados e não considerados.
O recorrente pretende ainda que se dê como provado o seguinte:
O Recorrente não assinou o acordo de assessoria celebrado entre a ... e o BPP - o qual era confidencial - nem fez parte da equipa designada para a execução desse acordo."
"A área de actividade do Recorrente no BPP centrava-se na supervisão da estruturação e monitorização dos investimentos feitos por conta dos clientes, na qual não se inclui a tomada de decisões ou análise de situações de reestruturação de empresas clientes dessa instituição bancária."
"Antes do anúncio do lançamento da OPA pela ..., havia rumores no mercado de que seria lançada uma OPA sobre a ...
"Por via da actuação ponderada e criteriosa do Recorrente, no período em que a sociedade ...- Gestão de Patrimónios, S.A. iniciou a sua actividade, e em que a rendibilidade do Índice MSCI World registava um valor negativo de 40,5% e o do Índice PSI20 um valor negativo na ordem dos 48,57%, a rendibilidade média líquida acumulada das carteiras de gestão discricionária dos clientes daquela sociedade registava um valor positivo de 7,58%, sendo que a pior carteira num período de doze meses apresentava um valor positivo na ordem dos 2,5% de rendibilidade líquida."
"Foi graças à avaliação cuidada e ponderada dos riscos de investimento dos clientes por parte dos administradores da sociedade Almeida Henriques, Lopes Raimundo & Associados, Gestão de Patrimónios, S.A. e da preocupação fundamental dos respectivos administradores em conter perdas e evitar períodos de doze meses negativos nas carteiras os clientes que a rendibilidade das carteiras destes se mantinha positiva, sem variações significativas."
Os factos referidos, com excepção dos dois últimos têm interesse para apreciação da questão jurídica e mostram-se provados nos autos, não foram postos em causa pela entidade recorrida, pelo que se admite a pretensão do recorrente.
Os dois últimos têm a ver com a actividade do recorrente paralela e concomitante à actividade que foi destacada nestes autos, para fundamentar o cancelamento do registo como administrador de uma instituição financeira. Ora, para avaliar a justeza do acto administrativo importa, em primeiro, lugar saber se os factos acolhidos como pressupostos de facto existem e, depois, se os mesmos – por si só – justificam a medida tomada. Se os factos imputados ao arguido no acto recorrido estiverem provados e, só por si, justificarem a medida de cancelamento do seu registo como administrador, tal acto é válido – ainda que o recorrente tenha tido outros comportamentos meritórios. Ora, sobre esse aspecto, o que pode ser relevante é coisa diferente. É relevante, a questão de saber se a Administração não acolheu todos os factos pertinentes para poder aplicar a medida. Contudo, esse vício de procedimento – falta de instrução e de recolha de factos suficientes para uma decisão ponderada – também foi arguido pelo recorrente e será apreciado na análise jurídica da questão, caso não fique prejudicado pela solução dada a questões anteriormente julgadas e caiba no âmbito deste recurso.
Assim, e em conclusão, quanto à matéria de facto o recurso deve ser julgado parcialmente procedente, devendo, em consequência, ser modificada nos seguintes termos:
Os pontos 4, 5 e 12 passam a ter a seguinte redacção:
Ponto 4. Em estudo datado de Julho de 1999 previram-se dois cenários alternativos para reestruturação da A....: o lançamento de uma OPA pela ..., sem determinação da data da operação e a redução do capital social da empresa”;
Ponto 5: Em estudo datado de Agosto de 1999 previram-se dois cenários alternativos para a reestruturação da ...: o lançamento de uma OPA pela ..., coincidente com a efectivamente montante e a redução do capital social da empresa”
Ponto 12: Entre 6-7-1999 e 19-8-1999, a ... adquiriu em bolsa 77.993 acções ordinárias e 11.001 acções preferenciais sem voto da ..., ao preço de € 1,22 e € 1,39, respectivamente abaixo do preço oferecido pela oferente, sendo a maior parte delas adquiridas entre 17 e 19-8-1999 por instruções emitidas em 17 e 18/8.”
Serão aditados os pontos 18, 19 e 20 à matéria de facto:
Ponto 18. “O Recorrente não assinou o acordo de assessoria celebrado entre a ... e o BPP - o qual era confidencial - nem fez parte da equipa designada para a execução desse acordo."
Ponto 19. "A área de actividade do Recorrente no BPP centrava-se na supervisão da estruturação e monitorização dos investimentos feitos por conta dos clientes, na qual não se inclui a tomada de decisões ou análise de situações de reestruturação de empresas clientes dessa instituição bancária."
Ponto 20. "Antes do anúncio do lançamento da OPA pela ..., havia rumores no mercado de que seria lançada uma OPA sobre a ...
c) Questões de direito
As questões de direito serão apreciadas, tendo em conta a alteração da matéria de facto decidida no ponto anterior.
A sentença recorrida apreciou e julgou não verificados, os vícios de violação do princípio constitucional (presunção de inocência a que se refere o art. 32º, 2 da CRP); do art. 30º do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras (Dec. Lei 232/96, de 5/12); e erro sobre os pressupostos de facto. No essencial, da sua argumentação – seguindo, resto a entidade recorrida – o art. 30º, 3 do RJIC não exige a vinculação do Banco de Portugal à existência de condenações penais. E, nessa medida, a análise da violação do princípio da presunção de inocência pressupõe uma determinada interpretação do referido art. 30º, n.º 3. O mesmo se diga da análise levada a cabo quanto ao erro sobre os pressupostos de facto. A sentença, porque tinha já uma determinada interpretação do art. 30º, 3 do RJICSF, entendeu irrelevante o facto alegado pelo recorrente de não ser ele o “beneficiário económico da sociedade offshore ... Management Ltd” considerando, assim, que os factos acolhidos na fundamentação do acto recorrido, eram, só por si, bastantes para suportar a sua plena validade.
Justifica-se portanto, uma abordagem do art. 30º, n.º 3 e 70º do Regime Geral das Instituições Financeiras (aprovado pelo Dec. Lei 282/92, de 31 de Dezembro), com vista a recortar o seu âmbito de aplicação (sentido e limites), e saber em que medida os factos acolhidos na fundamentação do acto recorrido são bastantes para implicar o cancelamento do registo aí previsto – que é, bem vistas as coisas – a questão central e decisiva deste processo.
Vejamos, então as disposições legais em causa:
O art. 30º do Regime Geral das Instituições Financeiras (Decreto-Lei n.º 298/92, de 31 de Dezembro, e sucessivas alterações, com destaque para o Dec. Lei 232/96, de 5/12) tem a seguinte redacção:
Artigo 30.º
Idoneidade dos membros dos órgãos de administração e fiscalização
1 - Dos órgãos de administração e fiscalização de uma instituição de crédito, incluindo os membros do conselho geral e os administradores não executivos, apenas poderão fazer parte pessoas cuja idoneidade dê garantias de gestão sã e prudente, tendo em vista, de modo particular, a segurança dos fundos confiados à instituição.
2 - Na apreciação da idoneidade deve ter-se em conta o modo como a pessoa gere habitualmente os negócios ou exerce a profissão, em especial nos aspectos que revelem incapacidade para decidir de forma ponderada e criteriosa, ou tendência para não cumprir pontualmente as suas obrigações ou para ter comportamentos incompatíveis com a preservação da confiança do mercado.
3 - Entre outras circunstâncias atendíveis, considera-se indiciador de falta de idoneidade o facto de a pessoa ter sido:
a) Declarada, por sentença nacional ou estrangeira, falida ou insolvente ou julgada responsável por falência ou insolvência de empresa por ela dominada ou de que tenha sido administradora, directora ou gerente;
b) Administradora, directora ou gerente de empresa cuja falência ou insolvência, no País ou no estrangeiro, tenha sido prevenida, suspensa ou evitada por providências de recuperação de empresa ou outros meios preventivos ou suspensivos, ou detentora de uma posição de domínio em empresa nessas condições, desde que, em qualquer dos casos, tenha sido reconhecida pelas autoridades competentes a sua responsabilidade por essa situação;
c) Condenada, no País ou no estrangeiro, por crimes de falência dolosa, falência por negligência, favorecimento de credores, falsificação, furto, roubo, burla, frustração de créditos, extorsão, abuso de confiança, infidelidade, usura, corrupção, emissão de cheques sem provisão, apropriação ilegítima de bens do sector público ou cooperativo, administração danosa em unidade económica do sector público ou cooperativo, falsas declarações, recepção não autorizada de depósitos ou outros fundos reembolsáveis, branqueamento de capitais, abuso de informação, manipulação do mercado de valores mobiliários ou crimes previstos no Código das Sociedades Comerciais;
d) Condenada, no País ou no estrangeiro, pela prática de infracções às regras legais ou regulamentares que regem a actividade das instituições de crédito, sociedades financeiras ou instituições financeiras, a actividade seguradora e o mercado de valores mobiliários, quando a gravidade ou a reiteração dessas infracções o justifique.
4 - O Banco de Portugal, para os efeitos deste artigo, trocará informações com o Instituto de Seguros de Portugal e a Comissão do Mercado de Valores Mobiliários.”
O art. 70º do mesmo Regime tem a seguinte Redacção:
“Artigo 70.º
Factos supervenientes
1 - As instituições de crédito comunicarão ao Banco de Portugal, logo que deles tenham conhecimento, factos referidos no n.º 3 do artigo 30.º que sejam supervenientes ao registo da designação e que digam respeito a qualquer das pessoas referidas no n.º 1 do mesmo artigo.
2 - Dizem-se supervenientes tanto os factos ocorridos posteriormente ao registo como os factos anteriores de que só haja conhecimento depois de efectuado o registo.
3 - O dever estabelecido no n.º 1 considera-se suprido se a comunicação for feita pelas próprias pessoas a quem os factos respeitarem.
4 - Se o Banco de Portugal concluir não estarem satisfeitos os requisitos de idoneidade exigidos para o exercício do cargo, cancelará o respectivo registo e comunicará a sua decisão às pessoas em causa e à instituição de crédito, a qual tomará as medidas adequadas para que aquelas cessem imediatamente funções.
5 - O registo será sempre cancelado quando se verifique que foi obtido por meio de falsas declarações ou outros expedientes ilícitos, independentemente das sanções penais que ao caso couberem.
6 - É aplicável o disposto nos n.ºs 6 e 7 do artigo anterior.
7 - O disposto no presente artigo aplica-se, com as necessárias adaptações, aos gerentes de sucursais e de escritórios de representação referidos no artigo 45.º
Do regime legal descrito, concluiu a entidade recorrida, que “a idoneidade dos membros dos órgãos de administração e fiscalização das instituições de crédito e sociedades financeiras, segundo o art. 30.°, n.º 2, do Regime Geral, deve ser apreciada à luz de certos índices ou critérios objectivos, entre os quais se inclui a compatibilidade dos comportamentos da pessoa com a necessidade de preservação da confiança do mercado, devendo o Banco considerar todas as circunstâncias que em seu prudente arbítrio sejam indiciadoras de falta de idoneidade, sem vinculação aquelas descritas nas diferentes alíneas do n.º 3 do mesmo art. 30.°.
O n.º 3 do artigo 30° do Regime Geral não pode ser entendido como uma norma limitadora ou restritiva dos poderes de fiscalização conferidos pelos n.ºs 1 e 2, mas sim como uma norma de reforço dessa fiscalização, que vincula positivamente o Banco de Portugal, obrigando-o a recusar ou cancelar o registo quando se tiverem verificado certas circunstâncias que, pela sua especial gravidade, o próprio legislador considera reveladoras de falta de idoneidade.
A referência feita no artigo 70.°, n.º 1, aos factos referidos no nº 3, daquela disposição legal não pode ser entendida como uma restrição dos fundamentos do cancelamento, mas apenas como um meio destinado a co-responsabilizar as instituições de crédito no conhecimento, por parte do Banco de Portugal, de certos factos especialmente ponderosos, sem que estes no entanto deixem de ser factos a considerar "entre outras circunstâncias atendíveis".
Nos termos do art. 30.°, nº 1, do Regime Geral e de acordo com o regime paralelo dos detentores de participações qualificadas do art. 103°, nº1, do mesmo regime, é aos interessados que compete fazer prova da sua idoneidade, e não ao Banco fazer prova da sua inadequação para o cargo tal como sucede com o regime paralelo (artigo 103.° do Regime Geral), a demonstração positiva da idoneidade dos administradores é indispensável ao registo, pelo que cabe aos interessados fazer prova das circunstâncias que fundamentam a sua idoneidade, e não ao Banco de Portugal fazer prova das circunstâncias demonstrativas da inadequação para o cargo”.
A recorrente insurge-se contra este entendimento, defendendo por seu turno: “A interpretação do Tribunal a quo do disposto no art. 30º do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras, conjugado com o disposto no art. 70º, n.º 4 do mesmo diploma legislador, contrariando os elementos literal e sistemático (cfr. artigo 9º do Código Civil) e viola o principio da presunção de inocência, consagrado no artigo 32º, nº 2 da C. Portuguesa, o princípio do in dubio pro reo que é uma decorrência daquele e o princípio da proporcionalidade, previsto nos artigos 18º e 226º da Lei Fundamental e no artigo 5º do Código de Procedimento Administrativo. A interpretação, em termos objectivos, do disposto no nº 2 do artigo 30º do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras implica a consideração da alínea c) do nº 3 do mesmo artigo que não permite o cancelamento do registo do Recorrente sem ter havido uma sentença condenatória transitada em julgado pela prática de um dos crimes aí previstos, o que não sucedeu, não tendo ficado demonstrado ou sido alegado que o Recorrente foi condenado na prática de qualquer desses crimes. A objectividade do preceituado no artigo 30º do aludido Regime Geral encontra-se na consideração dos tipos de situações elencadas no nº 3 dessa disposição legal e que pressupõem um grau de certeza - a condenação - que não se coaduna com meras suspeitas ou dúvidas razoáveis. O princípio de prevenção de riscos ou preservação da confiança do mercado não é um princípio fundamental, enquanto que o princípio da presunção de inocência constitui uma garantia constitucional do Estado Social e Democrático de Direito, inserindo-se na categoria dos Direitos, Liberdades e Garantias. A intervenção administrativa não se destina a punir erros ou sancionar culpas individuais, mas não pode substituir-se o grau de certeza conferido por uma decisão judicial de condenação por uma convicção, suspeita ou dúvida razoável de um órgão administrativo, sob pena de violação do princípio da separação de poderes, ínsito no artigo 2º da Constituição da República Portuguesa e ao respeito do qual a Administração está vinculada por estar obrigada a pautar a sua actuação pela Lei e pelo Direito, como se infere dos artigos 18º e 266º desse Texto Constitucional. Qualquer acto administrativo, sendo a exteriorização de um comportamento da Administração deverá conformar-se com os ditames constitucionais. Se o n.º 3 do artigo 30º do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras se bastasse com a "dúvida razoável" acerca da prática de um crime, não teria exigido expressamente a certeza da prática do crime ou, pelo menos, não exigiria a condenação com trânsito em julgado do visado, sendo a interpretação contrária, e defendida pelo Tribunal a quo contra legem e contra a ratio do preceito. Ainda que se aproximasse o princípio da preservação da confiança do mercado do interesse público, aquele princípio não pode justificar o sacrifício e compressão de direitos dos cidadãos tão fundamentais quanto o princípio da presunção de inocência. A vinculação de carácter positivo sobre o Banco de Portugal, de recusar ou cancelar um registo e de admitir ou não admitir o detentor de participações qualificadas, implica a consideração de circunstâncias atendíveis que passem pela verificação do grau de certeza que o legislador identifica como sendo a condenação. O Conselho de Administração do Banco de Portugal pode, ainda que tenha havido efectiva condenação na prática de qualquer dos crimes indicados na alínea c) do n.º 3 do artigo 30.º do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras, concluir pela idoneidade do administrador para o exercício do seu cargo por reunir as condições necessárias para assegurar uma gestão sã e prudente e não cancelar o registo. Quer o artigo 30.° n.ºs 2 e 3, quer o artigo 103.°, ambos do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras respeitam à fase de concessão do registo e não à fase de cancelamento do mesmo, sendo que, nesta segunda fase, é sobre o Conselho de Administração do Banco de Portugal que impende o ónus da prova da verificação das circunstâncias atendíveis para tal cancelamento, o que não se verificou no presente caso.
Julgamos, antecipando desde já a conclusão, que a entidade recorrida não tem razão, quanto a alguns aspectos relevantes, na interpretação do referido preceito legal, comprometendo assim a validade do acto impugnado. Vejamos, contudo, a questão com o necessário desenvolvimento.
Em primeiro lugar, o art. 30º do Regime Geral (acima transcrito) não atribuiu um “poder discricionário” ao Banco de Portugal na verificação da idoneidade dos administradores das instituições de crédito, fora dos casos expressamente previstos.
O art. 30º enumera os requisitos denunciadores de inidoneidade, de forma não taxativa, é certo, mas daí não se retira que se atribua o poder discricionário à Administração, para escolher livremente as “outras circunstâncias” indiciadoras da falta de idoneidade. A expressão legal “…Entre outras circunstâncias atendíveis, considera-se indiciador de falta de idoneidade o facto de a pessoa ter sido…”, significa uma enumeração exemplificativa, de situações que, desde logo, indiciam a falta de idoneidade, e ao mesmo tempo a enunciação implícita de uma regra sobre a falta de idoneidade. Aquilo que há de comum entre as causas expressamente previstas, pode ser visto como o princípio geral – de que as alíneas a) a d) são mera concretização – da falta de inidoneidade. Contudo, em boa verdade, nem sequer essas circunstâncias são automáticas, como decorre claramente do art. 30, 3 al. d) – os factos aí referenciados só determinam a impossibilidade de inscrição quando a gravidade ou reiteração do comportamento o justifique.
Não podemos assim aceitar uma interpretação do preceito no sentido da vinculação do Banco de Portugal a cancelar o registo sempre que se verifique uma das circunstâncias constantes da enumeração exemplificativa, existindo total discricionariedade na escolha dos factos denunciadores da falta de idoneidade.
A nosso ver, para a interpretação do preceito, há que delimitar o conceito geral do art. 30º, ou seja, o conceito de “pessoas cuja idoneidade dê garantias de gestão sã e prudente, tendo em vista, de modo particular, a segurança dos fundos confiados à instituição”.
Para o preenchimento desse conceito indeterminado a Administração deve atender ás circunstâncias exemplificadas, nas alíneas do n.º 3, ou a “quaisquer outras”, que, dada a sua similitude com as enumeradas, possam subsumir-se no conceito geral. A situação concreta deve assim, ou estar especialmente prevista nas alíneas do n.º 3 (situações tipo), ou ser uma situação análoga ou seja, um conjunto de factos que denunciem a falta de idoneidade por razões essencialmente semelhantes às que determinaram a escolha exemplificativa do legislador.
Em segundo lugar, a nosso ver, o preenchimento de conceitos indeterminados, não se reconduz sempre a uma actividade discricionária, ou equiparada, para efeitos de sindicabilidade judicial. Como refere FREITAS DO AMARAL (Curso de Direito Administrativo, Vol II, pág. 108 e seguintes) há que distinguir diversas situações:
a) Há conceitos indeterminados cuja concretização envolve apenas operações de interpretação da lei e de subsunção (período nocturno, funcionário público, etc.). Nestes casos a lei não atribui qualquer autonomia à Administração;
b) Há conceitos indeterminados cuja concretização apela a preenchimentos valorativos, sendo de distinguir neste género duas espécies:
i) - conceitos cuja valoração não exige uma valoração pessoal, mas sim uma valoração objectiva (bons costumes, etc.). Nestes casos o órgão aplicador do Direito indagará quais as concepções objectivamente dominantes e poderá sobrepor a sua qualificação à da Administração;
ii) - conceitos em que claramente o legislador remete para a Administração a competência para fazer um juízo baseado na sua experiência e nas suas convicções. Só neste caso o tribunal não pode sobrepor o seu juízo ao da administração, salvo casos de erro manifesto ou grosseiro, onde se inclui a manifesta desproporcionalidade ou inadequação ao caso concreto.
No presente caso julgamos que o conceito indeterminado em causa deve ser apreciado objectivamente. A idoneidade de uma pessoa para garantir a segurança dos fundos que lhe são confiados, é uma referência às qualidades pessoais, que deve ser objectivável – ou seja, o que releva não é o que a Administração pensa, ou quer, mas uma subsunção de determinados factos a uma categoria jurídica. Não se trata, assim, de uma situação para a qual a vontade da Administração tenha qualquer relevo, mas sim de uma situação que, pelos seus dados objectivos, possa ser qualificada como reveladora de idoneidade ou falta dela.
Deste modo, consideramos que não há aqui qualquer poder discricionário, ou qualquer margem de discricionariedade no preenchimento do referido conceito (idoneidade para o exercício de funções de Administração em instituições financeiras). Existe, sim, um conceito indeterminado que se traduz numa qualidade objectiva, que a Administração deve integrar (subsumir) com os factos provados, e que o tribunal pode livremente qualificar de modo diverso.
Em terceiro lugar, a argumentação da entidade recorrida, ao subsumir a situação de facto do recorrente na aludida categoria (falta de idoneidade) não nos parece adequada, como vamos ver.
Relativamente a este aspecto – determinante no juízo sobre a idoneidade do recorrente - a entidade recorrida argumentou:
- “O Dr. A... (recorrente) não assinou o acordo entre o BPP e ... – SGPS SA de 7 de Julho de 1999. Mas este era apenas um acordo de assessoria, sendo que o que está em causa é o conhecimento de informações relativas ao serviço prestado pelo BPP. Mais, desde 1997 que o BPP prestava assessoria à sociedade ... – SGPS SA para reestruturação das empresas do grupo. O interessado não apresentou factos de que pudesse concluir-se não ter conhecimento da operação em causa; o estudo elaborado em Julho de 1999 pelo BPP apenas não indicava a data de lançamento da OPA, mas já indicava o valor da contrapartida, sendo esse o cenário mais provável e que acabou por se concretizar; o interessado nada demonstrou de que pudesse concluir-se não ser o beneficiário económico da ... Limited e da ... Management Limited, não sendo os documentos apresentados apenas documentos internos do BPP. Existe nomeadamente, uma deliberação do administrador da ... Limited, de 2-11-1999 a nomear o Dr. A... e seu pai representantes daquela sociedade, sendo-lhe conferidos poderes para movimentar uma ou mais contas bancárias junto do Banco Comercial Português, SA da Sucursal Financeira Exterior do Banco Comercial Português e do Banco Comercial Português (Cayman) ”.
Os factos essenciais que determinaram, o cancelamento do registo foram os seguintes:
- O recorrente abriu uma conta em nome de ... no BPP (Cayman);
- Desta conta são feitas transferências bancárias para a ... Limited;
- Nas sessões de bolsa (entre 6-7-1999 e 19-8-1999) que antecederam o anúncio público do lançamento da OPA sobre... a ... adquiriu 77.993 acções.
- Estas acções foram adquiridas por preço abaixo da contrapartida oferecida pelo oferente, permitindo auferir uma mais valia de 77.295 €.
- Em 2-11-99 o recorrente foi nomeado administrador único da ... Limited.
- O interessado não apresentou factos de que pudesse concluir-se não ter conhecimento da operação em causa.
- O interessado nada demonstrou de que pudesse concluir-se não ser o beneficiário económico da ... Limited e da ... Management Limited, não sendo os documentos apresentados apenas documentos internos do BPP.
Devemos contudo ter em conta também os seguintes factos:
Ponto 4. Em estudo datado de Julho de 1999 previram-se dois cenários alternativos para reestruturação da ...: o lançamento de uma OPA pela ..., sem determinação da data da operação e a redução do capital social da empresa” ;
Ponto 5: Em estudo datado de Agosto de 1999 previram-se dois cenários alternativos para a reestruturação da ...: o lançamento de uma OPA pela ..., coincidente com a efectivamente montada e a redução do capital social da empresa”
Ponto 12: Entre 6-7-1999 e 19-8-1999, a ... adquiriu em bolsa 77.993 acções ordinárias e 11 001 acções preferenciais sem voto da ..., ao preço de € 1,22 e € 1,39, respectivamente abaixo do preço oferecido pela oferente, sendo a maior parte delas adquiridas entre 17 e 19-8-1999 por instruções emitidas em 17 e 18/8.”
(…)
Ponto 18. “O Recorrente não assinou o acordo de assessoria celebrado entre a ... e o BPP - o qual era confidencial - nem fez parte da equipa designada para a execução desse acordo."
Ponto 19. "A área de actividade do Recorrente no BPP centrava-se na supervisão da estruturação e monitorização dos investimentos feitos por conta dos clientes, na qual não se inclui a tomada de decisões ou análise de situações de reestruturação de empresas clientes dessa instituição bancária."
Ponto 20. " Antes do anúncio do lançamento da OPA pela ..., havia rumores no mercado de que seria lançada uma OPA sobre a ....
Os factos provados, que evidenciam uma ligação do arguido ao BPP, à ... Limited e à ... Management Limited, são de facto compatíveis com o seu conhecimento do lançamento da OPA e dos preços da oferente e com proveito económico. Na verdade, a aquisição destas acções no mercado bolsista poucos dias antes do lançamento da OPA (a mesma foi decidida em 20/7 e 5/8/99 e foi anunciada em 20/8/1999, sendo a ordem de aquisição dada em 23/6/99 com limite a 18/8/1999) aliada à falta de prova de que o arguido não tinha conhecimento dos termos concretos do lançamento da OPA, é compatível com uma situação onde o recorrente aproveitou os seus conhecimentos privilegiados, para obter um benefício económico. Esta compatibilidade é reforçada pela circunstância das ordens da aquisição das acções da ... terem ocorrido em data muito próxima de 20/8/99 (anúncio da OPA), ou seja entre 17 e 19/8 (ponto 12 da matéria de facto).
Deve notar-se, contudo, que se provou também que “Antes do anúncio do lançamento da OPA pela ..., havia rumores no mercado de que seria lançada uma OPA sobre a ....” (ponto 20) e que o anúncio da OPA ocorreu em 20/8/1999, por ter sido decidida entre 20/7 e 5/8/1999 (a pontos 6 e 7 da matéria de facto), sendo as primeiras ordens de compra emitida em 23/6/1999, isto é um mês antes de ter sido decidida a OPA.
Ora, perante os contornos da apontada ligação do recorrente aos factos, julgamos que a mesma não reveste a gravidade análoga à das condições referidas no art. 30º, n.º 3 do Dec. Lei 282/92, de 31 de Dezembro.
Na verdade, como acima dissemos, as circunstâncias atendíveis para indiciar a falta de idoneidade, a que se refere o n.º 2 do art. 30º, fazem todas elas referência a condenações por sentenças judiciais (alíneas a) a d) do art. 30º, n.º 3), o que evidencia o rigor na determinação das causas de inidoneidade para exercer os cargos em causa. E, note-se, nem sempre basta este reconhecimento formal e solene através de sentença judicial. No caso dos factos respectivos integrarem infracções às regras legais ou regulamentares que regem a actividade das instituições de crédito ou a actividade seguradora ou do mercado de valores imobiliários, não basta a condenação. É ainda necessário que a “gravidade a reiteração dessas infracções o justifique” (art. 30º, 3, al. d) do mesmo diploma legal), ou seja uma condenação judicial, neste tipo de infracções, pode não ser suficiente
Com efeito, o comportamento do autor, qualificado pela entidade recorrida como “utilização de informação privilegiada na aquisição de acções” poderia ser, quando muito, equiparado ao crime de “abuso de informação” (a que se refere o art. 30º, n.º 2, al. c)) ou à prática de infracções às regras legais ou regulamentares que regem o mercado de valores mobiliários” (a que se refere o art. 30º, n.º 2 al. c)).
O crime de abuso de informação vem previsto no art. 378º, 1 do Código de Valores Mobiliários (Dec. Lei 486/99, de 13 de Novembro) e pune quem disponha de informação privilegiada devido à sua qualidade de titular de um órgão de administração ou de fiscalização de um emitente ou de titular de uma participação no respectivo capital e transmita a alguém fora do âmbito normal das suas funções. O crime é igualmente cometido por quem disponha de informação privilegiada em razão do trabalho (n.º 2). Entende-se por informação privilegiada: “toda a informação não tornada pública que, sendo precisa e dizendo respeito a qualquer emitente ou valores mobiliários ou outros instrumentos financeiros, seria idónea, se lhe fosse dada publicidade, para influenciar de maneira sensível o seu preço no mercado” (art. 378º, 4 do Código de Valores Mobiliários).
O comportamento do arguido como acima se recortou é “um comportamento compatível com o conhecimento do lançamento futuro de uma OPA e com aproveitamento dessa situação”.
Julgamos que esta situação não cabe na previsão do art. 378º do CVM. A lei exige a demonstração da posse de informação privilegiada e o seu uso abusivo, e, nos autos, apenas se pode concluir que o comportamento do recorrente é compatível com o abuso de informação. Há aqui uma grande diferença: um cenário possível, não é um cenário necessariamente real. E só comportamentos reais podem ser crimes, como é óbvio: não se podem presumir factos em direito penal, por força do art. 32º, 2 da CRP).
Quando o art. 30º do Dec. Lei 282/92, de 31/12 considera indiciador de falta de idoneidade o facto da pessoa ter sido condenada por crime de abuso de informação, não podemos considerar que, para esse efeito, também é relevante um comportamento que não preenche o respectivo tipo de ilícito, precisamente, por faltar o mínimo de certeza quanto à prática dos factos que o integram. Caso contrário, também seria facto indiciador de falta idoneidade, por exemplo, a absolvição por crime de abuso de informação, por falta de prova dos factos constitutivos do crime – o que é manifestamente contrário à expressa intenção do legislador em erigir como facto revelador da falta de idoneidade a “condenação” e não qualquer outro.
Poderia, contudo, pretender-se que, em todo o caso, sempre o comportamento do recorrente infringiu regras legais ou regulamentares que regem o mercado de valores mobiliários, pondo dessa forma em causa a confiança, isto é, um “comportamento incompatível com a preservação da confiança do mercado” (cfr. art. 30º, 2 e 3ª, al. d) do Dec. Lei 282/92).
Contudo, neste caso, também a lei exige não só a condenação pela prática das infracções às regras que regem o mercado, como exige ainda que tais infracções sejam graves e reiteradas.
Portanto, também por esta via, o comportamento do recorrente não pode subsumir-se no art. 30º do Dec-Lei 282/92, de 31/12, uma vez que se trata de um comportamento isolado e não uma prática reiterada.
Não podendo subsumir-se os factos imputados ao recorrente no art. 30º, n.º 2 e 3 do Dec. Lei 282/92, de 31 de Dezembro, e tendo o acto contenciosamente recorrido feito tal subsunção, está o mesmo ferido de violação de lei
A procedência deste vício prejudica o conhecimento das demais questões levantadas no recurso.
3. Decisão
Face ao exposto, os juízes da 1ª Secção do Supremo Tribunal Administrativo acordam em conceder provimento ao recurso e anular o acto recorrido.
Sem custas, em ambas as instâncias.

Lisboa, 3 de Maio de 2005. – António São Pedro (relator) João Belchior – Fernanda Xavier.