Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0938/06
Data do Acordão:11/08/2006
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:BRANDÃO DE PINHO
Descritores:RECLAMAÇÃO DE DECISÃO DO ÓRGÃO DA EXECUÇÃO FISCAL.
RECURSO JURISDICIONAL.
EFEITO SUSPENSIVO.
INCONSTITUCIONALIDADE.
DEVER FUNDAMENTAL DE PAGAR IMPOSTOS.
DIREITO DE RESISTÊNCIA.
OPOSIÇÃO À EXECUÇÃO.
Sumário:I – Nos termos do artigo 286.º, n.º 2, do Código de Procedimento e de Processo Tributário, os recursos têm efeito suspensivo se o devolutivo afectar o seu efeito útil.
II – O efeito devolutivo afecta o efeito útil do recurso nos casos em que o contribuinte recorre de decisão que mantém a penhora de um terço do seu vencimento, a título de garantia.
III – Os impostos fiscais configuram-se como limites imanentes, que não como restrições, dos direitos, liberdades e garantias que entrem em conflito com o dever fundamental de pagar impostos.
IV – Nos termos do artigo 21.º da Constituição da República Portuguesa, o direito de resistência só é admissível quando “não seja possível recorrer à autoridade pública”. Não dispondo a Administração, no que concerne a actos de liquidação de tributos, do chamado privilégio de execução prévia, de que dispõe noutros domínios, a respectiva cobrança coerciva só se pode concretizar através de um processo de natureza jurisdicional, pelo que o meio formal adequado para concretização do direito de resistência defensiva é a oposição à execução.
Nº Convencional:JSTA00063702
Nº do Documento:SA2200611060938
Data de Entrada:09/25/2006
Recorrente:A...
Recorrido 1:MINISTÉRIO PÚBLICO E FAZENDA PÚBLICA
Votação:UNANIMIDADE
Meio Processual:REC JURISDICIONAL.
Objecto:SENT TAF SINTRA PER SALTUM.
Decisão:NEGA PROVIMENTO.
Área Temática 1:DIR PROC TRIBUT CONT - EXEC FISCAL.
Legislação Nacional:CPPTRIB99 ART97 ART109 ART169 ART227 ART277 ART278 ART286.
CPC96 ART734 ART737 ART740.
Jurisprudência Nacional:AC TC N11/83.; AC TC N141/85.; AC TC N236/86.; AC STA PROC1123/02 DE 2002/10/16.; AC STA PROC1108/03 DE 2005/04/07.; AC STA PROC895/02 DE 2002/11/16.
Referência a Doutrina:JORGE DE SOUSA CÓDIGO DE PROCEDIMENTO E DE PROCESSO TRIBUTÁRIO ANOTADO 4ED PAG1051.
Aditamento:
Texto Integral: Acordam na Secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo:
A… vem recorrer da sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra que negou provimento à reclamação que o mesmo interpusera do despacho do Chefe do Serviço de Finanças da mesma cidade, que lhe não dispensou a prestação de garantia na parte correspondente a um terço do salário mensal do ora recorrente, na execução fiscal ali pendente com o n.º 3549-2004/01005979.
Fundamentou-se a decisão, no que ora importa, em que, ocupando o responsável subsidiário, na execução fiscal, a posição do primitivo executado, beneficiando de todos os meios de defesa legalmente previstos para este, nomeadamente o de deduzir oposição, como fez, está igualmente obrigado a prestar garantia nos mesmos termos daquele – artigos 169.º, n.º 1, e 227.º, n.º 1, do Código de Procedimento e de Processo Tributário -, pelo que não padecem estes de qualquer inconstitucionalidade, nomeadamente por ofensa aos princípios da propriedade privada e da proporcionalidade ou do direito de resistência constitucionalmente previsto.
O recorrente formulou as seguintes conclusões:
1. No presente recurso jurisdicional apenas se discute matéria de direito, designadamente a constitucionalidade, ou não, dos artigos 169.°, n.º 1, e 227.°, n.º 1, do Código de Procedimento e de Processo Tributário, no caso concreto do processo de execução fiscal em que o presente processo se insere, razão pela qual é competente para a sua apreciação o Supremo Tribunal Administrativo, nos termos do artigo 280.°, n.° 1, do mesmo Código.
2. Ao presente recurso jurisdicional deve ser atribuído efeito suspensivo, na medida em que a atribuição de efeito meramente devolutivo não salvaguarda o efeito útil do mesmo, uma vez que não impede a prática de actos de execução limitativos do direito de propriedade do recorrente e ofensivos dos princípios de natureza constitucional que se pretendem ver salvaguardados.
3. Os artigos 169.°, n.° 1, e 227.°, n.° 1, do Código de Procedimento e de Processo Tributário, interpretados no sentido de permitir a exigência de prestação de garantia enquanto condição de suspensão de um processo de execução fiscal instaurado contra o recorrente, numa altura em que se discute a legalidade da exigência a este último do pagamento, a título subsidiário, da dívida exequenda, viola os invocados princípios da propriedade privada, proporcionalidade, autonomia privada e do próprio direito de resistência fiscal, enquanto limite ao privilégio de execução prévia dos actos tributários, decorrentes dos artigos 2.°, 18.°, 61.°, 62.°, 103.°, n.° 2, e 266.°, n.° 2, da Constituição da República.
A Fazenda Pública não contra-alegou, fazendo-o todavia o Ministério Público, concluindo por sua vez:
1 - O art. 169°, n°1 e 227°, n°1, ambos do CPPT são aplicáveis de igual forma para os responsáveis originários como para os devedores subsidiários, não distinguindo a lei nesse âmbito. Onde a lei não distingue não é permitido assinalar diferenças.
Assim, a exigência de prestação de garantia como condição de suspensão de execução fiscal revertida contra o responsável subsidiário, mesmo que tenha sido deduzida Oposição à execução, ainda não decidida, onde é discutida a reversão ou sua legalidade não ofende qualquer princípio constitucional, designadamente, o da propriedade privada, da proporcionalidade e do direito de resistência fiscal (arts. 2, 18°, 61°, 103° e 266, n°2 d CRP)
2 - Tal conclusão fundamenta-se no facto de os responsáveis subsidiários ocuparem na execução a posição de devedor originário, beneficiando de todos os mecanismos de defesa para se insurgiram contra a execução, designadamente o de deduzirem oposição à mesma, que pode ter todos os fundamentos fixados na lei tributária, designadamente, a ilegitimidade da reversão, resultante da não integração da situação nas previsões legais enquadradas no art. 24°, nº1 a) e b) da LGT e art. 204°, n°1 b) do CPPT, sendo irrelevante se a oposição ainda não tenha sido decidida.
3 - Razão pela qual a sentença recorrida fez adequada aplicação de tais normas tributárias, não violando algum princípio constitucional quando a aplicou ao devedor subsidiário independentemente do mesmo se ter insurgido contra a execução por oposição à mesma, atacando a legalidade da reversão, como direito que lhe assiste.
4 - Pelo exposto a sentença recorrida deve ser confirmada, negando-se provimento ao recurso.
O Exmo. Magistrado do Ministério Público neste Supremo Tribunal Administrativo emitiu parecer no sentido de ser atribuído, ao recurso, efeito suspensivo, nos termos do acórdão do mesmo Tribunal, de 16 de Agosto de 2006, recurso n.º 0689/06, devendo, todavia, negar-se-lhe provimento pois que se não mostram violados os aludidos princípios constitucionais, por estar em causa o dever fundamental de pagar impostos que se configuram como limites imanentes – e não restrições – de tais direitos, sendo que o direito de resistência fiscal, em tal domínio, se concretiza na oposição à execução.
E, colhidos os vistos legais, nada obsta à decisão.
Em sede factual, vem apurado que:
A. Em 19 de Março de 2004, por despacho do Chefe do Serviço de Finanças de Sintra 2, foi ordenada a reversão contra o ora Reclamante, na qualidade de responsável subsidiário, da execução instaurada contra Dobros, Informática Comercialização de Componentes, Lda, com o n° 3549-2004/01005979, para cobrança coerciva de dívida de IVA no montante de € 47 843 935,31 - fls. 24 do processo de execução;
B. Em 30-04-2004 o ora Reclamante deduziu Oposição à execução fiscal referida em A, em que questiona a legalidade do despacho de reversão - fls. 52;
C. Tal Oposição ainda não foi decidida - fls. 37 do p. e.;
D. Em 30 de Abril de 2004, por ter deduzido Oposição à execução, o Reclamante requereu a suspensão do respectivo processo até ser proferida decisão com trânsito em julgado nos autos de Oposição - fls. 30 do p. e.;
E. Por ofício datado de 24-02-2006, foi o ora Reclamante notificado para, com vista à suspensão da execução, apresentar garantia no valor de € 93 936 122,06 - fls. 40 do p.e.;
F. Em 4 de Abril de 2006 o Reclamante apresentou o requerimento de fls. 53 do p. e., em que pede a dispensa de prestação de garantia, ao abrigo do disposto no artº 52°, n° 4, da LGT, com fundamento na manifesta falta de meios económicos que lhe permitam prestá-la, alegando que o valor da mesma excede em quatro/cinco vezes o seu rendimento bruto do ano de 2004.
G. Por despacho do Director de Finanças Adjunto da Direcção de Finanças de Lisboa, de 24-04-2006, foi decidido dispensar a prestação de garantia na parte excedente à que resultar da penhora de 1/3 do salário mensal do executado - fls. 79 do p. e.;
H. Pelo despacho de fls. 84 do p. e., o Chefe do Serviço de Finanças de Sintra 2, ordenou a suspensão do processo de execução e a penhora de 1/3 do salário do Reclamante.
Vejamos, pois:
I. Quanto ao efeito do recurso:
Nos termos do artigo 286.º, n.º 2, do Código de Procedimento e de Processo Tributário, “os recursos têm efeito meramente devolutivo, salvo se for prestada garantia nos termos do presente Código ou o efeito devolutivo afectar o efeito útil dos recursos”.
Ou seja: por regra, a interposição do recurso não obsta à execução imediata da decisão recorrida, dele resultando apenas a atribuição, ao tribunal superior, da possibilidade de a alterar ou anular; contudo, se for prestada garantia ou este efeito devolutivo afectar o efeito útil do recurso, a sua interposição terá efeito suspensivo e, além daquele efeito, terá, ainda, o de impedir que se dê imediata execução à decisão recorrida.
Nos autos, o recorrente sustenta que a decisão do tribunal a quo, que julgou aplicável o regime de prestação de garantia, nos mesmos termos que o devedor originário, estando pendente a oposição, se baseou numa interpretação inconstitucional dos artigos 169.º, n.º 1, e 227.º, n.º 1, do CPPT.
Ora, se o recurso que interpôs desta decisão tiver efeito devolutivo, o recorrente terá que prestar a garantia devida e, consequentemente, verá o seu salário penhorado em um terço.
Sendo que o efeito visado com o presente recurso é, precisamente, o de evitar tal penhora, por inconstitucional, que retira da sua disponibilidade um terço da sua retribuição mensal.
E, assim sendo, conclui-se que o efeito devolutivo afecta o efeito útil do recurso, uma vez que tem como consequência a penhora do vencimento do recorrente, que é o que este vem questionar no presente recurso.
Pelo que, nos termos do artigo 286.º, n.º 2, in fine, do CPPT, o presente recurso jurisdicional tem efeito suspensivo.
Na verdade, o recurso deve subir na execução já que a reclamação nela própria é processada - artigos 97.°, n.° 1, alínea n) e 278.°, n.° 1, do CPPT.
Por tal, sobe imediatamente - artigo 734.°, n.° 2, do CPC.
E com efeito suspensivo - artigos 740.º, n.° 1, do CPC e 286°, n.° 2, in fine, do CPPT.
Nos autos, todavia, o recurso já está a ser processado com efeito suspensivo pois que, como se disse, teve subida imediata e nos próprios autos (que não em separado - artigo 737.º do CPC), estando, pois, já concretizado o efeito suspensivo pretendido pela recorrente.
Aliás, nos processos urgentes, como é o caso - artigo 278.°, n.° 5, do CPPT - a tramitação urgente da reclamação consequencia igual urgência na do recurso jurisdicional (cfr. Jorge de Sousa, Código de Procedimento e de Processo Tributário Anotado, 4.ª ed., pág. 1051, nota 8 in fine) – pelo que o efeito deste só pode ser o suspensivo, sob pena de se frustar completamente o fim pretendido pela lei: manutenção da penhora com a consequente venda ou da garantia indevida ou superior à devida e prejuízos irreparáveis derivado do prosseguimento da execução.
Cfr. o acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 16 de Agosto de 2006, recurso n.º 0689/06.
II. Quanto à violação, pelos artigos 169.°, n.° 1, e 227.° do C.P.P.T., dos “invocados princípios da propriedade privada, proporcionalidade, autonomia privada e do próprio direito de resistência fiscal, enquanto limite ao privilégio de execução prévia dos actos tributários, decorrentes dos artigos 2.°, 18.°, 61.°, 62.°, 103.°, n.° 2, e 266.°, n.° 2, da Constituição da República”:
Dispõem os referidos normativos:
Artigo 169.º
(Suspensão da execução. Garantias)
1 – A execução ficará suspensa até à decisão do pleito em caso de reclamação graciosa, a impugnação judicial ou recurso judicial que tenham por objecto a legalidade da dívida exequenda desde que tenha sido constituída garantia nos termos do artigo 195.º ou prestada nos termos do artigo 199.º ou a penhora garanta a totalidade da quantia exequenda e do acrescido, o que será informado no processo pelo funcionáio competente.
Artigo 227.º
(Formalidades da penhora de quaisquer abonos ou vencimentos)
Se a penhora tiver de recair em quaisquer abonos ou vencimentos de funcionários públicos ou empregados de pessoa colectiva de direito público ou em salário de empregados de empresas privadas ou de pessoas particulares, obedecerá às seguintes regras:
a) Liquidada a dívida exequenda e o acrescido, solicitar-se-ão os descontos à entidade encarregada de processar as folhas, por carta registada, com aviso de recepção, ainda que aquela tenha a sede fora da área do órgão da execução fiscal, sendo os juros de mora contados até à data da liquidação;
b) Os descontos, à medida que forem feitos, serão depositados em operações de tesouraria à ordem do órgão de execução fiscal;
c) A entidade que efectua o depósito enviará um duplicado da respectiva guia para ser junto ao processo.
Ora, como se refere na sentença, os responsáveis subsidiários ocupam, na execução fiscal, a posição do devedor originário, beneficiando dos respectivos direitos, nomeadamente o de oposição, reclamação ou impugnação.
Por outro lado, a sua responsabilidade é originária, nascendo com a dívida, ainda que operada coercivamente, através da reversão.
Pelo que não há, no ponto, que efectuar qualquer distinção entre um e outro.
E como refere o acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 16 de Outubro de 2002, recurso n.º 1123/02 – para cujo desenvolvimento se remete -, “o dever de pagar impostos é um dever geral fundamental dos cidadãos cuja consagração se extrai com nitidez do recorte dos artigos 12.º, n.º 1, 103.º e 104.º da Constituição da República Portuguesa. E como dever fundamental, ele constitui uma limitação estabelecida pela própria lei fundamental ao direito que entra em confronto negativo com ele, qual seja o direito de propriedade. Aonde chegar o dever fundamental de pagar os impostos que tenham sido criados nos termos da Constituição não existe o direito de salvaguarda do património amputado ao contribuinte”.
De resto, como assinala Casalta Nabais e salienta o Ministério Público – cfr. fls. 184 -, no respeitante aos direitos, liberdades e garantias, “toda a teoria respeitante às restrições é inservível no que concerne aos impostos fiscais (isto é, impostos que tenham por objectivo predominante a obtenção de receitas): é que estes configuram-se como limites imanentes de tais direitos, mormente dos direitos que são a matriz e o pressuposto do próprio estado fiscal – o direito de propriedade e a liberdade profissional ou empresarial lato sensu – e não como restrições desses mesmos direitos. O que significa que o teste material de tais impostos passa pelo princípio da capacidade contributiva e não, designadamente, pelo princípio da proporcionalidade por que se regem as restrições dos direitos, liberdades e garantias”.
Aliás, o Tribunal Constitucional vem considerando reiteradamente que os impostos se integram como limites imanentes e não como restrição ao direito de propriedade – cfr. os acórdãos n.os 11/83, 141/85 e 236/86.
Não se vê, pois, como, em tal matéria, se possa falar de ofensa aos indicados princípios que, aliás, não configuram direitos absolutos.
Finalmente, sobre o direito de resistência fiscal pronunciou-se o acórdão do Plenário deste Supremo Tribunal Administrativo, de 7 de Abril de 2005, recurso n.º 1108/03 – para cujo desenvolvimento igualmente se remete -, assentando-se em que ele “assume relevo também na fase de cobrança coerciva, como resistência defensiva, traduzindo-se no direito de impedir a cobrança coerciva de um imposto ilegal. (…) No entanto, num Estado de Direito o reconhecimento e afirmação dos direitos individuais faz-se através do recurso aos Tribunais, só sendo permitida a auto tutela de direitos ‘quando não seja possível recorrer à autoridade pública’, como refere aquele artigo 21.º da Constituição, isto é, em situações de impossibilidade de recurso aos Tribunais em tempo útil para evitar a lesão de direitos. Não dispondo a Administração, no que concerne a actos de liquidação de tributos, do chamado privilégio de execução prévia, de que dispõe noutros domínios, por a cobrança coerciva de tributos só se poder concretizar através de um processo de natureza jurisdicional (…)”, concretiza-se, assim, que o meio formal adequado para concretização do direito de resistência defensiva é a oposição à execução – que o recorrente deduziu.
Cfr., ainda, o acórdão do mesmo Tribunal, de 16 de Outubro de 2002, recurso n.º 895/02, no sentido de que, não sendo a garantia um imposto nem revestindo a mesma natureza, a sua existência não viola o artigo 103.º, n.º 3, da Constituição.
Termos em que se acorda negar provimento ao recurso, atribuindo-se-lhe, todavia, efeito suspensivo.
Custas pelo recorrente, com procuradoria de 1/6.
Lisboa, 8 de Novembro de 2006. – Brandão de Pinho (relator) - Pimenta do Vale - Lúcio Barbosa.