Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0556/22.7BESNT-S1
Data do Acordão:05/11/2023
Tribunal:1 SECÇÃO
Relator:CLÁUDIO RAMOS MONTEIRO
Descritores:NULIDADE DE SENTENÇA
EXCESSO DE PRONÚNCIA
CONHECIMENTO OFICIOSO
DECRETAMENTO PROVISÓRIO
PROVIDÊNCIA CAUTELAR
Sumário:I – As decisões relativas ao decretamento provisório de providências cautelares não são recorríveis, nos termos do n.º 4 do artigo 131.º do CPTA.
II – Incorre em nulidade por excesso de pronúncia o acórdão que conhece de um recurso de uma decisão irrecorrível.
III – As nulidades tipificadas no artigo 615.º do CPC não são de conhecimento oficioso, pelo que não podem ser conhecidas pelo tribunal de revista se não forem arguidas pelas partes.
IV - Não recai sobre o requerente um ónus de alegação especificada de factos que integrem a especial urgência exigida pelo número 1 do artigo 131.º do CPTA para o decretamento provisório da providência cautelar requerida.
Nº Convencional:JSTA000P30996
Nº do Documento:SA1202305110556/22
Data de Entrada:03/14/2023
Recorrente:MINISTÉRIO DA JUSTIÇA
Recorrido 1:AA
Votação:MAIORIA COM 1 VOT VENC
Aditamento:
Texto Integral:
ACORDAM NA SECÇÃO DO CONTENCIOSO ADMINISTRATIVO DO SUPREMO TRIBUNAL ADMINISTRATIVO


I. Relatório

1. MINISTÉRIO DA JUSTIÇA - identificado nos autos – recorreu para este Supremo Tribunal Administrativo, nos termos do artigo 150.º do CPTA, do Acórdão do Tribunal Central Administrativo do Sul (TCAS), de 15 de setembro de 2022, que concedeu provimento ao recurso interposto por AA do despacho do Tribunal Administrativo e Fiscal (TAF) de Sintra, de 30 de junho de 2022, que havia indeferido o pedido de decretamento provisório da providência de suspensão da eficácia de despacho do Secretário de Estado da Justiça, de 14 de junho de 2022, que aplicou `Recorrida a pena disciplinar de suspensão de funções por 365 dias.

2. Nas suas alegações, o Recorrente formulou, quanto ao mérito, as seguintes conclusões:

«(...)

21. O Acórdão do TCAS, de 15-12-2022, ao decidir com base nas alegações da Requerente, que esta não demonstrou nem provou, sem ter em conta o ónus da prova que cabia à Requerente, incorreu em erro de julgamento e decidiu ao contrário daquilo que é a jurisprudência uniforme em situação semelhante, (designadamente, a prova do periculum in mora na providência cautelar).

22. Sendo certo que, se quanto ao periculum in mora (n.º 1 do artigo 120.º CPTA) para se decretar a providência cautelar se exige que os Requerentes demonstrem o fundado receio da constituição de uma situação de facto consumado ou da produção de prejuízos de difícil reparação para os interesses que o requerente visa assegurar no processo principal.

23. Também é certo que, para o decretamento provisório da providência, ao abrigo do n.º 1 do artigo 131.º CPTA, o legislador é mais exigente, ao prever que este só será concedido quando se reconheça a existência de uma situação de especial urgência, passível de dar causa a uma situação de facto consumado na pendência do processo.

24. Ora, esta maior exigência nos pressupostos da concessão do decretamento provisório da providência não é compatível com a interpretação do Acórdão recorrido que decidiu com base nas simples alegações da Requerente, sem ter curado de apreciar que esta nada provou das invocadas dificuldades financeiras.

25. Tendo em conta que a Requerente alegou, mas não provou as dificuldades financeiras, deve ser revogada a decisão do decretamento provisório da providência cautelar requerida pela Requerente nos presentes autos.»

3. A Recorrida não contra-alegou.

4. O recurso de revista foi admitido por Acórdão da Secção de Contencioso Administrativo deste Supremo Tribunal Administrativo, em formação de apreciação preliminar, de 23 de fevereiro de 2023, considerando que é «patente que ocorre dúvida até confusão - e disso é sinal eloquente a divergente decisão dos tribunais de instância - na aferição dos pressupostos integradores da hipótese legal legitimadora do uso da faculdade concedida ao juiz cautelar pelo artigo 131º n°1 do CPTA, a qual, por se mostrar transversal ao quadro da atuação dos tribunais nesse preciso âmbito, justifica ser dissipada pelo tribunal de revista».

5. Notificado para o efeito, o Ministério Público deu parecer no sentido da improcedência do recurso, por entender que «a posição sustentada pela Entidade Requerida/Recorrente na minuta da alegação do recurso ora em apreciação, não nos parece ser de acolher porque, para além do referido, afronta grosseiramente alguns dos princípios estruturantes do contencioso administrativo, desde logo o princípio da proporcionalidade, convocado no aresto recorrido precisamente para fundamentar a decisão do decretamento provisório da providência, e seja ainda o princípio da tutela jurisdicional efectiva, neste caso porque a exigência da produção de prova neste incidente pré-cautelar, em duplicado da fase instrutória da acção cautelar, importaria numa consequente morosidade na prolação da decisão do incidente» – artigo 146.º/1 do CPTA.

6. Tendo-se suscitado, durante a audiência de discussão e julgamento, a questão da inadmissibilidade do recurso de decisões relativas ao decretamento provisório de medidas cautelares, nos termos do número 4 do artigo 131.º do CPTA, as partes foram notificadas para sobre ela se pronunciarem, o que ambas fizeram.

7. O Recorrente defendeu que «não sendo o despacho do TAF de Sintra, de 24-08-2022, que indeferiu o decretamento provisório da providência cautelar, passível de recurso, não devia o TCAS admitir e deferir o referido recurso, sob pena de invalidade da decisão».

8. A Recorrida, em contrapartida, sustentou que «a única interpretação possível do artigo 131.º do CPTA, n.º 4 e 5, é a de que, uma vez decretada, provisoriamente a providência cautelar, a mesma não pode ser impugnada. Mas não diz a lei a decisão que não decrete provisoriamente a providencia não pode ser impugnada. Nem permite ao intérprete retirar da lei o que a lei não diz».

9. Sem vistos, dada a natureza urgente do processo - artigo 36.º/1/f e 2 do CPTA.


II. Matéria de facto

10. As instâncias deram como indiciariamente provados os seguintes factos:

«A) Em 2021, pelo Conselho do Notariado (CN), foram instaurados dois processos disciplinares [n.ºs ... e ...] à Requerente _ cfr. documento n.º ... junto com o requerimento inicial;

B) Em 14/03/2022, no âmbito do processo disciplinar n.º ... e apenso [n.º ...], foi exarado Relatório Final no qual foram dadas como provadas as seguintes 19 infrações:

(…) - Primeira infração: Inexistência do livro de registo de testamentos públicos e escrituras de revogação de testamentos – infração qualificada como grave;
- Segunda Infração: Existência de várias irregularidades na escrituração dos livros do cartório, como sejam, entre outros devidamente discriminados no relatório final: o livro de inventário sem legalização e escrituração completas; o livro de registo de outros instrumentos avulsos e de documentos que os interessados pretendam arquivar, sem legalização e escrituração; a não encadernação, não legalização ou legalização incorreta dos livros 1 AT a 3 AT; a não encadernação dos livros IE a 63E; a não legalização ou legalização incorreta dos livros 2E a 61E; a não atribuição de número de ordem aos documentos e numeração das folhas, dos maços dos documentos apresentados para integrar ou instruir os atos lavrados nos livros de notas; a omissão da menção em cada maço dos documentos apresentados para integrar ou instruir os atos lavrados nos livros de notas e do número de documentos e de folhas que os compõem; omissão de menção em cada maço dos documentos que baseiam averbamentos, do número de documentos e de folhas que o compõem (anos 2019 e 2020); não atribuição de número de ordem aos documentos e não numeração das folhas dos maços dos documentos que baseiam averbamentos (anos de 2019 e 2020); não atribuição de número de ordem anual aos documentos que integram os maços de documentos relativos a instrumentos lavrados nos termos do n.º 2 do artigo 116.º do Código do Notariado (anos de 2019 e 2020) - infração qualificada como grave;
- Terceira infração: Alteração do conteúdo dos maços de documentos que baseiam averbamentos, como sejam entre outros e devidamente elencados no relatório final, a substituição do documento de encerramento do maço de documentos que baseia os averbamentos de 2017; a substituição de cópias simples por públicas-formas nos maços de documentos que baseiam averbamentos dos anos de 2019, 2020 e 2021; a inserção de documentos nos maços de documentos que baseiam averbamentos dos anos de 2019 e 2020 e a substituição de cópias de jornais pelos originais nos maços de documentos que baseiam averbamentos dos anos de 2018 e 2019 - infração qualificada como grave;
- Quarta infração: Comunicações obrigatórias à Conservatória dos Registos Centrais, de entre outros factos se destacam, os atrasos reiterados nas comunicações de cópia do registo de escrituras diversas; a falta de comunicação do óbito dos testadores e a omissão de envio das fichas relativas a escrituras de renúncia ou repúdio de herança ou legado - infração qualificada como grave;
- Quinta infração: Não comunicação a outro cartório notarial da revogação de testamento nele depositado — infração qualificada como grave;
- Sexta infração: Atraso nas comunicações mensais à Autoridade Tributária ("Modelo 11") infração qualificada como leve;
- Sétima infração: Não correção de um erro na menção dos DUC relativos a IMT e Selo no título - infração qualificada como leve;
- Oitava infração: Averbamentos feitos sem título que comprove os factos averbados ou baseados em simples cópias de documentos, ulteriormente substituídas por públicas-formas - infração qualificada como grave;
- Nona infração: Não retificação de três escrituras de habilitação de herdeiros lavradas sem arquivamento dos documentos necessários à sua outorga - infração qualificada como grave;
- Décima infração: Não arquivamento de procuração que instruiu escritura infração qualificada como leve;
- Décima primeira infração: Escrituras instruídas com procurações que não conferem poderes para o ato e/ou sem forma legal - infração qualificada como grave;
- Décima segunda infração: Omissão de menções obrigatórias em escrituras e procurações —infração qualificada como leve (…);
- Décima quarta infração: Omissão de menções obrigatórias em atos e documentos assinados por trabalhadores ao serviço da arguida - infração qualificada como leve (…);
- Décima quinta infração: Outorga de escritura de habilitação de herdeiros com intervenção de cabeça de casal representado por procurador - infração qualificada como grave (…);
- Décima sexta infração: Outorga de escritura de habilitação de herdeiros instruída com documentos em língua estrangeira sem tradução - infração qualificada como grave (…);
- Décima sétima infração: Outorga de escritura de habilitação de herdeiros instruída com cópia simples de testamento outorgado noutro cartório notarial e sem arquivamento de documento justificativo da habilitação feita — infração qualificada como grave (…);
- Décima oitava infração: Outorga de escritura de habilitação de herdeiros em que interveio como outorgante, na qualidade de cabeça de casal, pessoa que não tinha essa qualidade nem a de herdeiro da autora da sucessão - infração qualificada como grave (…);
- Décima nona infração: Outorga de diversas escrituras de habilitação de herdeiros com elementos de conexão a mais de um ordenamento jurídico, sem menção da lei aplicável em cada caso e sem que tivesse sido arquivada prova da lei estrangeira aplicável, ou com aplicação da lei errada — infração qualificada como grave (…);
- Vigésima infração: Outorga de testamento em que o testamenteiro nomeado, a quem é concedida autorização para cobrar do património da testadora as taxas e os honorários que sejam devidos pelo exercício do cargo, intervém no ato como intérprete – infração qualificada como grave
(cf. fls. 2217 a 2218 do processo administrativo a fls. 4184 a 4319 [64 a 66]dos autos);

C) No referido relatório final referido na alínea anterior foi proposta a aplicação de sanção única de suspensão do exercício profissional graduada em trezentos e cinquenta e oito dias (cf. fls. 2217 a 2218 do processo administrativo a fls. 4184 a 4319 [64 a 66]dos autos);

D) Em 14/06/2022, no âmbito do processo disciplinar n.º ... e apenso, o Secretário de Estado da Justiça exarou o seguinte despacho:
(cf. documento n.º ... junto com o requerimento inicial);

E) Com data de 20/06/2022, sob o assunto ―Processo disciplinar n.º ...‖, o Conselho do Notariado remeteu ao Ilustre Mandatário da Requerente, por carta registada com aviso de receção, o despacho do Secretário de Estado da Justiça de 14/06/2022 (cf. documento n.º ... junto com o requerimento inicial);

F) Em 23/06/2022, a Requerente apresentou o requerimento inicial de adoção de providência cautelar e decretamento provisório que deu origem aos presentes autos (cf. fls. 1 a 3 dos autos);

G) Em 29/06/2022, foi proferida decisão de indeferimento do decretamento provisório da providência cautelar (cf. fls. 235 a 249 dos autos);

H) Com data de 30/06/2022, foi dirigido à Entidade Requerida o ofício com a referência ...85, pelo qual se dá conhecimento do prazo de 10 dias para responder à providência cautelar requerida pela Requerente (cf. fls. 254 e 255 dos autos);

I) Em 05/07/2022, a Entidade Demandada recebeu o ofício referido na alínea anterior (cf. aviso de receção assinado e datado a fls. 4554 dos autos);

J) Em 05/07/2022, o Secretário de Estado da Justiça exarou resolução fundamentada, de cujo teor se extrai, nomeadamente, o seguinte:

“(…)

2. Sem prejuízo das considerações deduzidas pelo Ministério da Justiça em sede de Oposição em torno dos efeitos cautelares pretendidos, a peticionada suspensão de eficácia do meu despacho, de 14-062022, que, no âmbito do processo disciplinar que foi instaurado pelo Conselho do notariado (PD n.º ... e apenso PD n.º ...), aplicou a sanção disciplinar de suspensão do exercício de funções pelo período de 358 dias, acarreta graves prejuízos para o interesse público e a dignidade e prestígio da função notarial, e com repercussões muito negativas a nível da instrução do processo disciplinar em curso e da imagem pública do Sistema de Justiça e da Segurança do Tráfego Jurídico.

3. Assim, o Ministério da Justiça vem, nos termos do disposto no n.º 1, do artigo 128.º do CPTA, manifestar a intenção de continuar a executar a Deliberação impugnada, pelos motivos que infra se expõem.

4. O Processo Disciplinar foi instaurado na sequência de uma queixa-crime comunicada pelo Ministério Público à Ordem dos Notários, tendo por objeto uma escritura pública de habilitação de herdeiros lavrada pela notária AA, e ainda, as conclusões firmadas no relatório elaborado pelo Conselho Supervisor da Ordem dos Notários, em visita inspetiva realizada ao seu cartório.

5. No âmbito do processo disciplinar foi provada a prática de 19 infrações disciplinares graves, das quais 9 puníveis com sanção de suspensão, com aplicação da sanção única de suspensão do exercício profissional, prevista e caraterizada no artigo 70.º, n.º 1, al. d), e n.º 8 do EN, graduada em 358 dias.

6. Tal factualidade demonstra um grave e reiterado desinteresse e negligência da Requerente no cumprimento dos deveres funcionais a que se encontra adstrita enquanto notária, suscetível de pôr em causa, de forma muito séria, valores basilares da função, tais como, a integridade do arquivo notarial à sua guarda, a fiabilidade da informação no mesmo contida, e o cumprimento das leis e das normas deontológicas que regem o exercício da atividade.

7. Particularmente impressiva, pela gravidade de que se reveste, é a realização de inúmeros atos (averbamentos) sem título bastante, ou a celebração de várias escrituras públicas feridas de manifesta nulidade, de que a escritura que motivou a sobredita queixa-crime é apenas um exemplo, atos reveladores de uma indiscutível impreparação técnica da arguida para o desempenho da função e, o que não é menos grave, de uma negligência grosseira.

8. A ora requerente, enquanto Notária e elemento integrante do Sistema da Justiça, tem obrigatoriedade de conhecer os seus deveres, in casu, o dever de cumprir e fazer cumprir as leis e regulamentos que conformam a atividade notarial, de modo a garantir e dar suporte à relevante função pública que exerce, algo que a requerente pela sua conduta demonstrou não cumprir.

9. Da prática das infrações disciplinares, ancoradas em sólida prova documental, resulta, objetivamente, um sério risco de, a continuar em funções, a Requerente vir a praticar novas e graves infrações disciplinares, pressuposto da adoção da sanção disciplinar de suspensão do exercício de funções por um período de tempo.

10. Aliás, cfr. se comprova pelo relatório final do processo disciplinar, a aplicação da sanção disciplinar à Requerente, foi devidamente ponderada, ― tendo em consideração o grau de ilicitude lato sensu da infração praticada (o grau de ilicitude stricto sensu da atuação do agente da infração e o grau de culpa com que atuou), e os fins das sanções, isto é, as exigências de prevenção geral positiva (manter ou recuperar a confiança da comunidade no notariado e, bem assim, alertar e consciencializar os demais notários para a importância e as necessidades sociais dos cartórios funcionarem adequadamente) e negativa (dissuadir os demais notários de incorrerem em ilícitos semelhantes) e de prevenção especial positiva (consciencializar a arguida da relevância social da sua ação pública e, por esta via, motivá-la a não reincidir) e negativa (dissuadir a arguida de reincidir , fazendo-a suportar o mal em que a sanção consiste)…‖

11. Nestes termos, a suspensão da eficácia do ato administrativo suspendendo poderia produzir efeitos nefastos muito diversos ao nível do interesse público relevante, designadamente nos fins pretendidos e na utilidade do processo disciplinar e da aplicação da sanção disciplinar, bem como na função notarial traduzida na dação de fé pública aos atos jurídicos extrajudiciais que a referida notária realiza.

12. A suspensão de eficácia do ato suspendendo lesa gravemente o interesse público, pois causaria anormal e grave perturbação no funcionamento da instituição, podendo ser visto como falta de reação perante aqueles comportamentos graves, com repercussões, no funcionamento da Instituição Notarial e pondo em causa a imagem e prestígio do Sistema da Justiça.

13. E, concomitantemente teria reflexos potencialmente negativos para o funcionamento da economia de mercado, da segurança e certeza das relações jurídicas e, consequentemente, do desenvolvimento social e económico.

Por tudo isto, nos termos e para os efeitos do n.º 1 do artigo 128.º do CPTA, reconhece-se que o diferimento da eficácia do ato administrativo suspendendo acarretaria grave prejuízo para o interesse público.» (cf. fls. 285 a 288 dos autos)”».



III. Matéria de direito

11. Antes de entrar na apreciação do mérito do recurso, este Supremo Tribunal Administrativo confrontou-se com a questão da recorribilidade das decisões relativas ao decretamento provisório de providências cautelares, sobre a qual, aliás, ouviu as partes, na medida em que lhe parece evidente que o tribunal a quo não deveria ter conhecido do recurso interposto do despacho do TAF de Sintra, nos termos dos números 4 do artigo 131.º, e 5 do artigo 142.º, ambos do CPTA.

12. Com efeito, dispõe o número 4 do artigo 131.º do CPTA que «o decretamento provisório não é passível de impugnação».
A recorrida entende que a referida disposição apenas impede o recurso imediato de decisões que decretem provisoriamente providência cautelares, mas não de decisões que recusem aquele decretamento, como é o caso do despacho proferido nos autos pelo juiz da causa, no TAF de Sintra. E para tanto alega que, «estando em causa direitos, liberdades e garantias, tal decisão é, como qualquer outra, passível de ser impugnada. Por a lei 2 claramente não o impedir, em obediência ao princípio da tutela jurisdicional efetiva».
Mas não tem razão.
Desde logo, porque o argumento literal prova muito pouco, dado que a previsão normativa da disposição legal em questão se refere às decisões positivas, de decretamento provisório, não porque queira excluir as decisões negativas, de recusa de decretamento provisório, mas apenas porque ela está construída por referência aos números anteriores do mesmo artigo, que estão, eles próprios, estruturados em torno dos poderes de decretamento provisório.
Por outro lado, porque não é verdade que a lei não impeça o recurso imediato das decisões de recusa de decretamento provisório da providência cautelar.
O despacho liminar, no âmbito do qual o juiz da causa se pronuncia sobre o pedido de decretamento provisório da providência cautelar requerida, nos termos do número do artigo 131.º do CPTA, é um despacho interlocutório, sujeito, por isso, ao regime de recurso daqueles despachos.
Ora, nos termos do número 5 do artigo 142.º do mesmo código, «as decisões proferidas em despacho interlocutório podem ser impugnadas no recurso que venha a ser interposto da decisão final, exceto nos casos em que é admitida apelação autónoma nos termos da lei processual civil.».
Os casos em que é admita a apelação autónoma de despachos interlocutórios são os previstos no artigo 644.º do Código do Processo Civil (CPC), nele não cabendo, em nenhum dos números e alíneas, o recurso do despacho em questão – neste sentido, v. Mário Aroso de Almeida e Carlos Alberto Fernandes Cadilha, Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos, 5ª edição, 2021, p. 1095.
Daí que seja irrelevante que o número 4 do artigo 131.º do CPTA apenas se refira aos despachos de decretamento, mas não aos de recusa de decretamento, dado que apenas uma previsão normativa que afastasse expressamente o regime do número 5 do artigo 142.º poderia permitir a apelação autónoma daqueles despachos.
É isso que faz, nomeadamente, o número 7 do mesmo artigo, relativamente às decisões que procedam ao levantamento ou à alteração da providência cautelar provisoriamente decretada, que afasta expressamente aquele regime.
Note-se, por outro lado, que ao excecionar o regime regra de recursos de atos interlocutórios, este número 7, conjugado com os números 2 e 6 do mesmo artigo, só se aplica aos casos de levantamento ou alteração de uma providência provisoriamente decretada, mas não aos casos de reiteração da recusa de decretamento, como acontece no caso dos autos, pelo que, também por aqui, o recurso interposto do despacho do TAF de Sintra não era admissível.

13. Do exposto, resulta, pois, que o acórdão recorrido conheceu de uma questão de que não podia ter conhecido, incorrendo assim, nos termos da alínea d) do número 1 do artigo 615.º do Código de Processo Civil (CPC), em nulidade por excesso de pronúncia.
Sucede, porém, que, como resulta do número 4 da disposição legal citada, e do entendimento unânime da doutrina e da jurisprudência, as nulidades da sentença não são de conhecimento oficioso, pelo que, na falta da sua arguição, o referido vício sanou-se – v., entre outros, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 16 de março de 2023, proferido no Processo n.º 19315/160T8LSB.I.2.S1.
Assim, não obstante o entendimento que tem sobre a questão da recorribilidade do despacho do TAF de Sintra, que recusou o decretamento provisório da providência cautelar de suspensão da eficácia do despacho punitivo da Recorrida, este Supremo Tribunal Administrativo não pode deixar de conhecer do mérito do presente recurso, por estarem reunidos os pressupostos estabelecidos no artigo 150.º do CPTA e o mesmo ter sido admitido por Acórdão preliminar de 23 de fevereiro de 2023.
Vejamos então.

14. Como se afirmou no citado Acórdão preliminar de 23 de fevereiro de 2023, a questão controvertida «incide sobre os pressupostos dos critérios da decisão de conceder, ou não, o decretamento provisório de uma providência cautelar, concretamente sobre o ónus da prova dos factos que são alegados pelo respetivo requerente relativamente à situação de especial urgência, passível de dar causa a situação de facto consumado durante a pendência do próprio processo cautelar artigo 131°, n°1, do CPTA».
O Recorrente alega, em síntese, que, «para o decretamento provisório da providência, ao abrigo do n.º 1 do artigo 131.º CPTA, o legislador é mais exigente, ao prever que este só será concedido quando se reconheça a existência de uma situação de especial urgência, passível de dar causa a uma situação de facto consumado na pendência do processo», maior exigência que, em sua opinião, «não é compatível com a interpretação do Acórdão recorrido que decidiu com base nas simples alegações da Requerente, sem ter curado de apreciar que esta nada provou das invocadas dificuldades financeiras».
Mas não tem razão.

15. Dispõe o número 1 do artigo 131.º do CPTA que, «quando reconheça a existência de uma situação de especial urgência, passível de dar causa a uma situação de facto consumado na pendência do processo, o juiz, no despacho liminar, pode, a pedido do requerente ou a título oficioso, decretar provisoriamente a providência requerida ou aquela que julgue mais adequada, sem mais considerações, no prazo de 48 horas, seguindo o processo cautelar os subsequentes termos dos artigos 117.º e seguintes».
Daqui não resulta que o legislador seja mais exigente no decretamento provisório da providência cautelar do que no seu decretamento ‹definitivo›, sendo, pelo contrário, menos exigente, na medida em que o mesmo pode ser decidido «sem mais considerações», ou seja, sem necessidade de verificação dos demais requisitos estabelecidos no artigo 120.º do CPTA – nesse sentido, v. Mário Aroso de Almeida e Carlos Alberto Fernandes Cadilha, Comentários ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos, 4ª edição, 2017, pp. 1036 ss.
É certo que o juiz da causa tem de reconhecer a existência de uma «situação de especial urgência, passível de dar causa a uma situação de facto consumado na pendência do processo», mas, exceto quanto à intensidade da urgência, que justifica a antecipação da sua concessão, esse requisito não é substancialmente distinto do requisito do periculum in mora estabelecido no citado artigo 120.º, e a sua integração não depende de factos distintos daqueles que o requerente alega para fundamentar o decretamento ‹definitivo› da providência.

16. Do exposto resulta que não recai sobre o requerente um ónus de alegação especificada de factos que integrem a especial urgência exigida pelo número 1 do artigo 131.º do CPTA para o decretamento provisório da providência cautelar requerida.
Nem faria sentido que se impusesse ao requerente um semelhante ónus, tanto mais que, nos termos da disposição legal citada, e do antecedente número 5 do artigo 116.º, o decretamento provisório pode ser concedido, não apenas, a pedido deduzido no requerimento cautelar, mas também oficiosamente.
O que importa, pois, é que o juiz da causa reconheça nos factos alegados para a concessão ‹definitiva› da providência a especial urgência exigida por aquele preceito legal para que se conceda a tutela cautelar do próprio processo cautelar.
Significa isto, naturalmente, que os factos integradores daquela especial urgência tem de ser alegados pelo requerente, o que não têm é de ser especificamente alegados para efeito do decretamento provisório da providência.

17. Nas suas conclusões, o Recorrente parece estabelecer alguma confusão entre a exigência legal de um ónus de alegação especificada de factos integradores da especial urgência e a – também alegada – deficiente fundamentação do acórdão recorrido quanto à concreta prova produzida nos autos para demonstração daquela urgência.
Não nos parece, no entanto, que o acórdão recorrido não fundamente adequadamente a decisão que tomou de suspender provisoriamente o despacho que aplicou à Recorrida uma pena de suspensão de funções por 358 dias, nomeadamente quando considera que «a perda integral de rendimentos no decurso do período de suspensão de funções, a necessidade de prover ao sustento de dois filhos, a par da necessidade de suportar as despesas com encargos familiares, mostra-se delineada, à partida, um quadro de irreparabilidade que justifica a concessão provisória da tutela cautelar».
A privação de rendimentos do trabalho, que constitui um efeito jurídico necessário do ato suspendendo, afigura-se como uma razão bastante para o decretamento provisório da suspensão da pena aplicada à Recorrida, tendo em conta as «responsabilidades financeiras a seu cargo, nomeadamente pagamento de casa, de automóveis, encargos com dois filhos a estudar, despesas com alojamento e alimentação, a que se somam as despesas normais de subsistência de uma família», que foram alegadas no requerimento inicial.
Como decisão duplamente provisória que é, o decretamento provisório assenta necessariamente em juízos perfunctórios, sendo, também nesse sentido, concedido «sem mais considerações», as quais ficam reservadas para o momento da eventual concessão ‹definitiva› da providência cautelar requerida.
Pode até dizer-se que o acórdão recorrido foi mais longe do que lhe era exigido, nomeadamente quando introduziu o requisito da ponderação de interesses, nos termos estabelecidos no número 2 do artigo 120.º, invocando razões de proporcionalidade para a concessão do decretamento provisório.

18. Assim, e sem necessidade de mais considerações, conclui-se que, não obstante ter conhecido de um recurso que não devia ter conhecido, o acórdão recorrido sanou-se e, quanto ao mérito, não merece qualquer censura, devendo em consequência ser mantido.



IV. Decisão

Em face do exposto, acordam os juízes da Secção do Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo, reunidos em conferência, em negar provimento ao recurso, e em confirmar o acórdão recorrido.

Custas pelo Recorrente. Notifique-se


Lisboa, 11 de maio de 2023. - Cláudio Ramos Monteiro (relator) - José Francisco Fonseca da Paz - Suzana Maria Calvo Loureiro Tavares da Silva.

Vencida.

Discordo da solução que fez vencimento ao considerar que se sanou o vício decorrente de o TCA ter conhecido de um recurso de uma decisão que a lei qualifica como irrecorrível. Não tendo ainda transitado em julgado, essa decisão é sempre ilegal por afrontar directamente o teor do artigo 131.°, n.° 4 do CPTA, e uma tal ilegalidade não pode deixar de ser de conhecimento oficioso e determinar a revogação do acórdão recorrido.

Mas mesmo que se entendesse que aquela ilegalidade não podia ser conhecida oficiosamente, sempre seria de revogar o acórdão do TCA. É que, como bem se diz no acórdão que fez vencimento, o decretamento provisório de uma providência é hoje uma medida adoptada com base num juízo perfunctório do tribunal competente para decidir a providência cautelar, e é, intencionalmente, um juízo que o legislador atribui exclusivamente a essa entidade judiciária, pelo que, também por essa razão, estará vedado às instâncias de recurso sobrepor-se materialmente àquela decisão, formulando outro juízo sobre a questão. Assim, igualmente com base neste fundamento, imporia revogar o acórdão recorrido e manter a decisão do TAF de Sintra.

(Suzana Tavares da Silva)