Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0294/18
Data do Acordão:07/12/2018
Tribunal:1 SECÇÃO
Relator:MARIA DO CÉU NEVES
Descritores:ACTO
LICENCIAMENTO DE CONSTRUÇÃO
REGULAMENTO DO PLANO DIRECTOR MUNICIPAL
PRINCÍPIO TEMPUS REGIT ACTUM
Sumário:Tendo ocorrido consolidação do loteamento – que não previa limitações resultantes da imposição de afastamentos aos lotes vizinhos - em data anterior à entrada em vigor do PDM, integrando-se os actos conducentes ao licenciamento e de utilização de moradia na excepção prevista na al. b) do nº 2 do artº 69º do PDM, não são exigidos os afastamentos ali previstos.
Nº Convencional:JSTA00070791
Nº do Documento:SA1201807120294
Data de Entrada:05/04/2018
Recorrente:MUNICÍPIO DE SETÚBAL
Recorrido 1:MINISTÉRIO PÚBLICO E OUTRA
Votação:MAIORIA COM 1 VOT VENC
Meio Processual:RECURSO DE REVISTA
Objecto:ACÓRDÃO DO TRIBUNAL CENTRAL ADMINISTRATIVO SUL
Decisão:CONCEDE PROVIMENTO
Área Temática 1:PROCEDIMENTO ADMINISTRATIVO
Área Temática 2:LICENCIAMENTO URBANISTICO
Legislação Nacional:ARTIGOS 69º, N.º 2, AL. B) DO REGULAMENTO DO PLANO DIRECTOR MUNICIPAL DE SETÚBAL E 9º DO CÓDIGO CIVIL
Aditamento:
Texto Integral: Acordam na Secção do Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo
1. RELATÓRIO

O MINISTÉRIO PÚBLICO intentou em 17.5.2012 no TAF de Almada, a presente acção administrativa especial contra o MUNICÍPIO DE SETÚBAL, indicando como Contra-interessada, a sociedade A……….., Ldª.

Formulou pedido de declaração de nulidade dos despachos do Vereador da área do urbanismo da Câmara Municipal de Setúbal datados de 3.12.2009, 14.6.2010 e 24.1.2012 e, exarados no âmbito do processo administrativo nº 152/09, relativo ao licenciamento da construção de uma moradia bifamiliar no lote nº 130, localizado em ……….., Freguesia de S. Lourenço, concelho de Setúbal.

Para tanto, invocou, em síntese:

«a) O lote 130 foi constituído ao abrigo do alvará de loteamento nº 21/79, o qual, por ter sido emitido no domínio da legislação então em vigor, apenas definia a área do lote e o uso a que se destinava, não contendo a menção de outros parâmetros urbanísticos;

b) No entanto, à data da prolação das decisões administrativas que ora se impugnam, já se encontrava em vigor o Plano Director Municipal de Setúbal, devendo obedecer-lhe todas as operações urbanísticas licenciadas desde a data da sua entrada em vigor;

e) De acordo com o artigo 69.°/2/b) do Regulamento do Plano Director Municipal de Setúbal, situando-se a construção em área de edifícios isolados, estaria o município em causa obrigado a acatar a regra de que «os afastamentos laterais aos limites dos lotes, salvo nas situações existentes, não podem ser inferiores a 3 m(... )»;

d) As situações existentes são aquelas, como a que ocorre com o edificado do lote 129, que já se encontravam erigidas aquando da entrada em vigor do Regulamento do Plano Director Municipal de Setúbal;

e) Sendo patente que o edifício construído no lote 130 não obedeceu, face ao lote existente a Sul, à exigência de afastamento de 3 metros, tanto mais que não regista qualquer afastamento, uma vez que encosta ao limite do lote 129, torna-se evidente que o acto de licenciamento da obra violou o teor do artigo 69°/2/b) do Regulamento do Plano Director Municipal de Setúbal;

f) A consequência da violação desta norma regulamentar é, de acordo com o disposto no 68°/a) do Decreto-Lei n° 555/99, de 16 de Dezembro (regime jurídico da urbanização e edificação), quer na redacção dada pela Lei n° 60/2007, de 4 de Setembro, quer na dada pelo Decreto-Lei n° 26/2010, de 30 de Março, a nulidade;

g) Também o Decreto-Lei n° 380/99, de 22 de Setembro, que estabelece o Regime Jurídico dos Instrumentos de Gestão Territorial, na redacção dada pelo Decreto-Lei n° 46/2009, de 20 de Fevereiro, determina no seu artigo 103° que «nulos os actos praticados em violação de qualquer instrumento de gestão territorial aplicável, confinando, também ele, com a nulidade os actos, como o de licenciamento em causa nestes autos, que violem um plano director municipal.»


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O TAF de Almada, por acórdão datado de 28.01.2013 decidiu:

«a) Declarar a nulidade dos despachos do Vereador da área do urbanismo da Câmara Municipal de Setúbal datados de 3.12.2009, 14.6.2010 e 24.1.2012 e exarados no âmbito do processo administrativo n° 152/09, relativo ao licenciamento da construção de uma moradia bifamiliar no lote n° 130 localizado em ……….., Freguesia de S. Lourenço, concelho de Setúbal.

b) Condenar a Entidade Demandada e a Contra-Interessada no pagamento das custas, em partes iguais.»


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O MUNICÍPIO DE SETÚBAL e a Contra-interessada A……….., LDA., não se conformando, interpuseram recurso para o Tribunal Central Administrativo Sul, que por acórdão de 23.11.2017, decidiu negar provimento a ambos os recursos e confirmar a decisão de 1ª instância.

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E é desta decisão que vem interposto o presente recurso de revista, por parte do Réu MUNICÍPIO DE SETÚBAL/ora recorrente, que alegou apresentando para o efeito as seguintes conclusões:

«a) O que está em causa, nos presentes autos, é a imposição à construção licenciada pelo ato impugnado, da exigência do afastamento de três metros, prevista na alínea b), do nº 2 do artº 69º do Regulamento do P.D.M. de Setúbal.

b) Tal disposição regulamentar ressalva, expressamente, a sua aplicação “às situações existentes”, pelo que haverá, para aplicação do direito, de determinar se o caso dos autos se integra ou não nas referidas “situações existentes”, que a disposição regulamentar salvaguarda da sua aplicação.

c) Atendendo a que o intérprete tem de presumir que o legislador não cria comandos ou injunções ou prevê soluções absolutamente desnecessárias e redundantes, ter-se-á de entender que a referência à ressalva das “situações existentes”, expressa na disposição regulamentar, abrange algo diferente e mais amplo do que as situações que já se encontrassem edificadas antes da entrada em vigor do P.D.M., que, no entendimento do Digníssimo Magistrado A., acolhido no douto acórdão recorrido, seriam, com exclusividade, aquelas que estariam cobertas por aquela ressalva, pois estas situações já estavam ressalvadas por força do princípio geral da não retroatividade da lei, do princípio do “tempus regist actum” e do princípio da “garantia do edificado”.

d) A imposição, por um regulamento urbanístico, de afastamentos mínimos de uma construção em relação a um lote vizinho, tem a natureza da imposição de um ónus num lote a favor do outro, sendo, no entanto, tal ónus e benefício recíprocos, já que igual imposição impende sobre o lote vizinho.

e) Tendo necessariamente de entender-se que a existência de tal reciprocidade está sempre presente e é pressuposto da imposição, numa dada urbanização, de afastamentos mínimos das construções ao lote ou lotes confinantes.

f) No presente caso, no lote vizinho ao lote onde foi licenciada a construção pela decisão administrativa impugnada, encontrava-se já construída uma moradia que, naturalmente por não lhe serem exigíveis aquando do seu licenciamento, não cumpriu os afastamentos previstos no nº 2 do artº 69º do Regulamento do P.D.M..

g) Desse modo, na situação em causa nos autos, é já impossível garantir a reciprocidade que é pressuposto, por exigências de justiça, proporcionalidade e equidade, da imposição de afastamentos do tipo dos fixados na norma regulamentar aqui em causa.

h) Assim, estando já constituída uma situação em que não é possível garantir a referida reciprocidade, ter-se-á de considerar tal situação consolidada como uma “situação existente”, abrangida pela ressalva da sua aplicação, expressa na disposição regulamentar aqui em causa.

i) Por outro lado, a definição de afastamentos mínimos – tal como de alinhamentos das fachadas e de perímetros de implantação – tem sempre como finalidade a obtenção de uma coerência arquitetónica e equilíbrio urbanístico, indispensáveis à qualidade e harmonia das urbanizações.

j) No presente caso, tratando-se de um alvará de loteamento de 1979, grande parte, se não mesmo a maioria, das construções, já estavam efetuadas à data da entrada em vigor do P.D.M. (15 anos depois) e, obviamente, nenhum afastamento, idêntico àquele que está definido na disposição regulamentar em causa, lhes foi exigido.

k) Assim, a “situação existente” não possibilita já a prossecução da “ratio” da disposição nova de garantir uma coerência arquitetónica e equilíbrio urbanístico que está na base da imposição de afastamentos mínimos uniformes e até da aplicação dos novos critérios urbanísticos em matéria de afastamentos sem respeito pela reserva aqui em causa, provavelmente resultará, com prejuízo do interesse público, a destruição ou ofensa do equilíbrio arquitetónico anteriormente constituído com base no direito anterior e já consolidado.

l) Pelo que se terá de considerar que a consolidação do loteamento em data anterior à entrada em vigor do P.D.M., integra já uma “situação existente” em que, de acordo com a “ratio” da lei, já não se justifica ou exige a imposição do afastamento previsto naquela disposição legal, pelo que se deverá considerar uma situação desse tipo abrangida pela ressalva que a lei expressa.

m) Por outro lado, no âmbito de um loteamento, na definição das áreas dos lotes, ter-se-á, forçosamente, de ter em conta não só a área de construção prevista/visada, mas também, necessariamente, os afastamentos às extremas e/ou polígono de implantação previstos/visados.

n) Os lotes em causa nos presentes autos foram constituídos, com determinadas áreas e para determinadas áreas de construção, sem quaisquer limitações resultantes da imposição de afastamentos aos lotes vizinhos.

o) Pelo que a imposição de limites mínimos de afastamento, mantendo os lotes, obviamente, às áreas anteriormente previstas, para além de frustrar, necessariamente as expetativas e possibilidades de construção que para eles estavam definidas, destruiria o equilíbrio e harmonia urbanísticos, consolidados com base no loteamento licenciado.

p) Devendo, assim, considerar-se a existência anterior de um loteamento, sem que estivessem fixados quaisquer afastamentos mínimos das construções aos lotes vizinhos, como uma “situação existente” que justifica a aplicação da salvaguarda prevista na disposição Regulamentar em causa.

q) Interpretação que, assim, é também imposta, por elementares exigências de certeza do direito.

r) Desse modo, a situação em causa nos autos dever-se-á considerar abrangida pela ressalva das “situações existentes”, não lhe sendo, consequentemente, aplicável a exigência de afastamento da construção ao lote vizinho, fixada na referida alínea b) do nº 2 do artº 69º do Regulamento do P.D.M..

s) Em consequência, a decisão impugnada, que aprovou a construção em causa, é plenamente legal, não merecendo qualquer censura, respeitando, nomeadamente, a alínea b) do nº 2 do artº 69º do P.D.M., não padecendo, assim, da nulidade que lhe é assacada pelo A..

t) Ao assim não terem decidido, as instâncias fizeram uma errada interpretação de tal disposição do P.D.M. e, em consequência, uma errada aplicação do disposto no artº 68º, alínea a) do R.J.U.E., devendo, por tal, ser dado provimento ao presente recurso.


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O Ministério Público, ora recorrido, apresentou contra alegações que concluiu da seguinte forma:

«1 Não é de se entender que se impõe a intervenção do STA, por não se mostrarem preenchidos os pressupostos que condicionam a admissão do recurso de revista, não se tratando de um caso em que seja necessária a clarificação a efectuar por esse Tribunal e suscetível de gerar controvérsia.

2. Dado ser clara a interpretação a dar às normas invocadas, devendo o recurso ser rejeitado por não obedecer aos requisitos previstos no art. 150º, nº 1 do CPTA.

3. O lote 130, no qual foi edificada a construção em causa nos autos, foi construído ao abrigo de um alvará de loteamento de 1979, o qual no âmbito do exigido pela legislação então vigente, tão-somente, definia a área do lote e o uso a dar-lhe, não contendo outros parâmetros urbanísticos e não criando quaisquer outras expectativas ou possibilidades de construção, nele não previstos.

4. À data da prolação dos atos impugnados, já se encontrava em vigor o Regulamento do Plano Diretor Municipal de Setúbal, ratificado pela Resolução do Conselho de Ministros nº 65/94, de 10/08.

5. Pelo que, nos termos do seu art. 69º, nº 2, al. b), do Regulamento do PDM de Setúbal, por força do princípio tempus regit actum, consagrado no art. 62º do RJUE, normativo que determina que a validade das licenças ou autorizações depende da sua conformidade com as normas legais e regulamentares aplicáveis e em vigor à data da sua prática, todos os licenciamentos e edificações posteriores à vigência daquela norma devem respeitar as distâncias mínimas constantes da mesma.

6. A construção em causa, assim como o respetivo projecto, não respeitando a distância prevista, não podiam ser aprovados.

7. A interpretação defendida pelo Recorrente não tem na letra da lei uma expressão mínima, não estando de acordo com o art. 9º, nº 1 do C. Civil, não podendo considerar-se “situação existente” e beneficiar da alegada “reciprocidade” (que não faz sentido) uma construção contígua, licenciada anteriormente à vigência do PDM aplicável e que não se encontra à distância mínima atualmente exigida.

8. E o mesmo sucede e se deve entender relativamente à interpretação realizada pelo Recorrente do art. 60º nº 1 do RJUE.

9 É claro que a intenção do legislador nestas normas foi, apenas e tão só, salvaguardar situações já consolidadas, cuja aplicação não se pode estender aos lotes vizinhos a licenciar ao abrigo do referido PDM.

10. Isto é, as situações existentes são aquelas, como a que acorre com o edificado no lote 129, única que ficou provada, e que já se encontravam erigidas aquando da entrada em vigor do Regulamento do Plano Director Municipal de Setúbal.

11. A entender-se de outro modo, derrogar-se-ia o Regulamento em apreço, com motivos que não foram seguramente os pretendidos pelo legislador.

12. A mesma solução seria aplicável se o ora Recorrente tivesse demonstrado, o que não sucedeu, que os licenciamentos concedidos garantem a coerência arquitectónica e equilíbrio urbanístico já existentes em matéria de afastamentos dos prédios vizinhos.

13. Atendendo ao exposto, a interpretação efectuada pelo Tribunal é a única que mantém a harmonia do sistema jurídico no que concerne ao regime jurídico aplicável, não é redundante e respeita o interesse público subjacente à disposição interpretada.

14. Pelo exposto, os atos impugnados são nulos, por violarem o art. 69º, nº 2, al. b) do Regulamento do PDM de Setúbal, nos termos do art. 137º, nº 1 do CPA, na sua versão então aplicável, e do art. 103º do DL nº 380/99, de 22/09, na redacção dada pelo DL nº 46/2009, de 20/02, não produzindo quaisquer efeitos.

15. Deste modo, não se verifica erro do julgamento relativamente à interpretação dos preceitos legais invocados pelo Recorrente, que não se mostram ofendidos, devendo ser negado provimento ao recurso e ser mantido o douto Acórdão recorrido».


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O «recurso de revista» foi admitido por acórdão deste STA [formação a que alude o nº 6 do artigo 150º do CPTA], proferido a 12 de Abril de 2018, nele se tendo consignado:

«(…)

As instâncias consideraram nulos os actos camarários licenciadores de uma moradia, já que esta foi implantada até à estrema do seu lote - junto à linha divisória com o lote n° 129 - quando o art. 69°, n° 2, al. b), do PDM então vigente obrigava a um afastamento não inferior a três metros.

Na verdade, esse preceito regulamentar dispunha que, nas obras de construção a fazer em áreas do género, «os afastamentos laterais aos limites dos lotes, salvo nas situações existentes, não podem ser inferiores a 3 m».

Ora, o recorrente diz que tal norma não constrangia os actos declarados nulos - porque ocorria uma das «situações existentes», obstativas da aplicação do artigo. E, segundo o município, isso advinha do facto de, tanto na construção já edificada no lote n° 129, como nas anteriormente erigidas noutras parcelas do mesmo loteamento, não se haver observado - por não ser, então, exigível - afastamentos desse tipo.

Tal conceito de «situações existentes», previsto na referida norma, está longe de ser claro - e as instâncias, apesar dos seus esforços, não elucidaram por completo a respectiva compreensão. Por outro lado, o dissídio posto nesta revista é manifestamente relevante, pois a subsistência das declarações de nulidade tende, «recte», à demolição da moradia edificada. Ora, esta formação costuma assinalar que as «quaestiones juris» conexas com a demolição compulsiva de habitações assumem - até pelo flagrante melindre desse género de assuntos - um relevo credor da sua reapreciação pelo Supremo.

Assim, esses motivos jurídicos e práticos concorrem para que se deva submeter o aresto «sub specie» a reapreciação».


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Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

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2. FUNDAMENTAÇÃO

2.1. MATÉRIA DE FACTO

A matéria de facto fixada na 1ª instância, que não se mostra controvertida, é a seguinte:

«A) Em 17.9.2009 a Sociedade de B…………, S.A., então proprietária do lote nº 130, localizado em ………., freguesia de S. Lourenço, concelho de Setúbal, constituído nos termos titulados pelo alvará de loteamento nº 21/79, requereu o licenciamento da obra de construção de uma moradia bifamiliar a realizar no referido lote, o qual deu origem ao processo administrativo e obras nº 152/09 - documento nº 10 do processo administrativo apenso (vol. I);

B) O alvará de loteamento nº 21/79 não continha a menção de quaisquer parâmetros urbanísticos a observar, sendo apenas definida a área do lote e o uso de habitação - informação correspondente ao documento nº 124 do processo administrativo apenso (vol. IV);

C) O projecto da obra de construção referida em A) previa o seu encosto ao limite lateral sul do lote (nº 130), confinante com o lote nº 129 - documento nº 1 do processo administrativo apenso (vol. I);

D) No lote nº 129 existe uma moradia de um piso com empena cega a distância inferior a 1 metro do limite lateral sul do lote nº 130 - informação técnica correspondente ao documento nº 16 do processo administrativo a penso (vol. 1);

E) Em 3.12.2009 o Vereador da área do urbanismo da Câmara Municipal de Setúbal aprovou o respectivo projecto de arquitectura, com os fundamentos da informação técnica de 17.11.2009, cujo teor se dá por integralmente reproduzido e da qual consta, nomeadamente, o seguinte - documento nº 16 do processo administrativo apenso (vol. I):

«(...)

Face ao PDM em vigor, o lote em causa encontra-se localizado em Espaço Urbano Consolidado, ao qual é aplicável o disposto no art. 67° e seguintes do respectivo regulamento.

O troço em causa é caracterizado por moradias de dois pisos isoladas e geminadas, pelo que se entende correcta a implantação e alinhamentos propostos. No lote confinante a Sul existe moradia de um piso com empena cega a distância inferior a 1m do limite de propriedade, pelo que não se vê inconveniente no "encosto" proposto ao nível do piso térreo. Ao nível do primeiro andar é garantido o afastamento lateral de 3m. É igualmente respeitado logradouro lateral com 3m no lado Norte. A garagem proposta ao fundo do lote é coincidente com anexo existente na parcela confinante.

Assim, entende-se respeitado o disposto no art. 69º do Regulamento do PDM. O estacionamento regulamentar é assegurado em garagem e a descoberto no interior do lote (21pa/fogo).

Face ao acima exposto, propõe-se o deferimento da presente pretensão.

(...)»;

F) Em 27.4.2010 a Contra-interessada requereu ao Presidente da Câmara Municipal de Setúbal o averbamento em seu nome do processo administrativo nº 152/09 - documento nº 79 do processo administrativo apenso (vol. III);

G) O qual foi deferido por despacho de 17.5.2010 - documento nº 80 do processo administrativo apenso (vol. III);

H) Em 14.6.2010 o Vereador da área do urbanismo da Câmara Municipal de Setúbal aprovou os respectivos projectos de engenharia das especialidades – documento nº 99 do processo administrativo apenso (vol. III);

I) A obra de construção referida em A) foi titulada pelo alvará nº 37/10, emitido em 29.6.2010, o qual consagrou a solução constante do projecto apresentado - documento nº 110 do processo administrativo apenso (vol. IV);

J) Em 13.12.2011 a Contra-interessada requereu a respectiva autorização de utilização - documento nº 161 do processo administrativo apenso (vol. V);

K) A qual foi concedida por despacho de 24.1.2012 do Vereador da área do urbanismo da Câmara Municipal de Setúbal - documento nº 183 do processo administrativo apenso (vol. V);

L) A autorização de utilização foi titulada pelo alvará nº 18/12, emitido em 1.2.2012 - documento nº 189 do processo administrativo apenso (vol. V).


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2.2. O DIREITO

Em causa nos presentes autos, está a questão de saber se o acórdão recorrido [que manteve a decisão do TAF de Almada] padece de erro de julgamento, ao considerar procedente a acção intentada pelo Autor/Ministério Público, por errada interpretação e aplicação de norma legal, ao determinar que os actos impugnados [despachos do Vereador da área do urbanismo da Câmara Municipal de Setúbal datados de 3.12.2009, 14.6.2010 e 24.1.2012 e exarados no âmbito do processo administrativo nº 152/09, relativo ao licenciamento da construção de uma moradia bifamiliar no lote nº130 localizado em …………., Freguesia de São Lourenço, concelho de Setúbal] violam o disposto no artigo 69º/2/b) do Regulamento do Plano Director Municipal de Setúbal.

Ou seja, o nó górdio está em determinar se, sendo a norma prevista no nº 2, alínea b) do artº 69º do Regulamento do P.D.M. de Setúbal a aplicável, a construção da moradia, ao ser projectada de modo a encostar ao limite lateral sul do respectivo lote com o lote confinante, violou a disposição que impõe o afastamento de 3 metros previstos neste preceito do Regulamento do PDM de Setúbal, sendo que o alvará de loteamento, como resulta factualidade constante da alínea B) do probatório, foi aprovado em data anterior à entrada em vigor do PDM de Setúbal, nele se definindo unicamente a área do lote e o uso de habitação, sem que se faça a menção de quaisquer outros parâmetros urbanísticos a observar.

E como já se referiu, ambas as instâncias consideraram nulos os actos camarários licenciadores da referida moradia, considerando que esta foi implantada até à estrema do seu lote – junto à linha divisória com o lote nº 129 – quando o artº 69º, nº 2, al. b) do PDM, então vigente, obrigava a um afastamento não inferior a três metros.

Resulta ainda da factualidade provada que o projecto da referida obra de construção da moradia previa o encosto da parede lateral da moradia - sem qualquer distância de afastamento - ao limite lateral sul do lote (nº 130), confinante com o lote nº 129 (alínea C).

Por isso, não foi observada a distância mínima de 3 metros prevista no artigo 69°/2/b) do Regulamento do Plano Director Municipal de Setúbal, sendo incontestável que no citado lote nº 129 existe uma moradia de um piso, com empena cega, a distância inferior a 1 metro do limite lateral sul do lote nº 130 (alínea D).

Porém, como supra se referiu, este lote nº 130 foi constituído a coberto do alvará de loteamento nº 21/79, emitido no domínio da legislação em vigor ao tempo, não contendo a menção de outros parâmetros urbanísticos, com excepção da área do lote e o uso a que se destinava.

É igualmente inquestionável que à data em que as decisões administrativas impugnadas foram tomadas, já vigorava o Plano Director Municipal de Setúbal ratificado pela Resolução do Conselho de Ministros nº 65/94, ficando todas as operações urbanísticas licenciadas desde a data dessa entrada em vigor, sujeitas a esse regime.

Em concreto, em 3 de Dezembro de 2009 - data do despacho que licenciou o projecto de obras de construção - em 14 de Junho de 2010 - data do despacho que aprovou o projecto de especialidades - e em 4 de Janeiro de 2012 - data do despacho que autorizou o uso da habitação -já se encontrava em vigor a al. b) do nº 2 do artigo 69.º do Regulamento do Plano Director Municipal de Setúbal ratificado pela Resolução do Conselho de Ministros nº 65/94, publicada no D.R. I Série-B de 10 de Agosto de 1994.

Nos termos do artigo 69º citado, situando-se a construção em área de edifícios isolados, estaria obrigada a acatar a regra de que «os afastamentos laterais aos limites dos lotes, salvo nas situações existentes, não podem ser inferiores a 3 metros.»

Considerou a entidade demandada/ora recorrente que o referido "apoio" ao limite do lote não constituía nenhuma violação desse normativo, na medida em que a expressão «salvo nas situações existentes» no mencionado preceito, impede a sua aplicação às situações em que as edificações confinantes, realizadas anteriormente ao Plano Director Municipal, não salvaguardaram aquele afastamento.

E mais refere que pelo facto do afastamento mínimo regulamentar já não pode ser observado pelo prédio vizinho, então, já não poderá existir reciprocidade, o que deve determinar, em função da justiça e do pressuposto da equidade, que a nova construção também não deve ficar sujeita àquele afastamento.

Ou seja, defende a entidade camarária que, confinando o lote em que foi edificada a construção objecto dos autos (o lote 130) com um outro lote (o 129), no qual foi erigido um edifício em data anterior à da entrada em vigor do Plano Director Municipal de Setúbal, não regista qualquer distanciamento da estrema do lote - uma vez que se encosta ao seu limite - também a “nova” construção poderá incumprir a distância de 3 metros imposta de afastamento aos limites laterais do lote, pois a definição de afastamentos mínimos tem sempre como finalidade a obtenção de uma coerência arquitectónica e equilíbrio urbanístico, indispensável à qualidade e harmonia das urbanizações.

Chegados aqui, já se percebeu, que tudo conflui na interpretação que façamos da redacção do disposto na al. b) do nº 2 do artº 69º do PDM de Setúbal, ratificado pela Resolução do Conselho de Ministros nº 65/94, publicada no DR, I Série B de 10 de Agosto de 1994:

Dispõe este normativo:

«Artigo 69º

Construções

1 - Nestas malhas e na ausência de planos ou regulamentos municipais aprovados, as obras de construção e ampliação em lotes ou parcelas ficam sujeitas às regras constantes dos números seguintes.

2 - Nas áreas de edifícios isolados:

a) Devem ser garantidos os afastamentos na frente do lote e que definam um alinhamento predominante das edificações existentes;

b) Os afastamentos laterais aos limites dos lotes, salvo nas situações existentes, não podem ser inferiores a 3 m e a altura máxima dos edifícios não pode ultrapassar um plano de 45º definido a partir dos edifícios envolventes;

c) A cércea é estabelecida de acordo com a cércea dominante que se verifique nessa área. Quando for justificado por razões de ordem topográfica ou quando a cércea dominante nessa área for superior a dois pisos ou quando o edifício for confinante com uma área de edifícios agrupados, pode-se admitir uma cércea máxima de três pisos;

d) Deve ser sempre garantido, no interior do lote, o número de lugares de estacionamento definidos no título IV.

3 - Nas áreas de edifícios agrupados:

a) Devem ser mantidos os alinhamentos existentes marginais aos arruamentos;

b) A cércea máxima não pode exceder os 25 m nem a cércea do edifício mais elevado que se situar na mesma frente, troço ou conjunto homogéneo edificado compreendido entre duas transversais onde se integra o novo edifício;

c) Nos edifícios com três ou mais pisos acima do solo, a altura contada a partir do ponto de cota média do terreno marginal até à face inferior da laje do 2.º piso, acima da cota de soleira, não pode ser inferior a 3,5 m. Nos restantes pisos, a altura mínima é a fixada no RGEU ou em legislação aplicável. Nos casos de ruas com inclinação igual ou superior a 10%, admite-se a eventual construção de pisos intermédios desde que o pé-direito livre nessa zona não seja inferior aos mínimos regulamentares;

d) No interior do lote deve ser garantido o número de lugares de estacionamento definidos no título IV. Nos casos em que a parcela ou lote a edificar confine imediatamente em ambos os lados com edifícios cuja cércea corresponda à cércea máxima definida na alínea b) deste número e a sua dimensão não o permitir, não é aplicável o disposto no título IV». – negritos nossos.

Resulta da simples leitura desta norma, que o legislador, estabeleceu uma diferença decisória significativa entre a alínea a) e a alínea b) do nº 2, pois na alínea a) refere expressamente “edificações existentes” enquanto que, na alínea b) já refere “situações existentes”; ou seja, nas áreas de edifícios isolados, como é o caso dos autos, garante em relação aos afastamentos na frente do lote e que definam um alinhamento predominante as “edificações existentes”; por seu turno, em relação aos afastamentos laterais aos limites dos lotes, que não podem ser inferiores a 3m e a altura máxima dos edifícios não pode ultrapassar um plano de 45º definidos a partir dos edifícios envolventes, com salvaguarda das situações existentes.

Ora, por algum motivo, o legislador entendeu numa situação, salvaguardar as edificações existentes e, noutra, as situações existentes, sendo certo que poderia ter utilizado a mesma expressão, se tivesse em vista a mesma realidade, o que de certo não sucedeu.

E partindo do princípio de que o legislador se exprimiu e consagrou a solução mais adequada – cfr. artº 9º do CC – é-nos lícito entender que os actos impugnados não padecem da nulidade que lhe foi assacada.

Com efeito, corresponde à realidade que o alvará de loteamento foi emitido em 1979 e por isso, a sua aprovação estava sujeita à legislação em vigor à data, atento o princípio tempus regit actum.

Por outro lado, é sabido que, no âmbito de um loteamento, na definição das áreas dos lotes, ter-se-à, forçosamente, de ter em conta não só a área de construção prevista/visada, mas igualmente os necessários afastamentos às estremas se os houver e/ou polígono de implantação previstos.

E mesmo que tais elementos apenas tivessem vindo a ficar definidos nos actos cuja ilegalidade se peticiona, tal não destrói o entendimento, segundo o qual a norma prevista na al. b) do nº 2 do artº 69º do PDM de Setúbal não se mostra violada pelo facto da construção da moradia levada a cabo no lote 130 não cumprir o afastamento de 3 metros ali previsto em relação ao lote contíguo.

Se outra fosse a intenção do legislador, teria nesta alínea b) salvaguardado as “edificações existentes à data” e nesse caso, conjugado com os princípios tempus regit actum, da não retroactividade da lei e da garantia do edificado, não restariam dúvidas que os actos relativos ao licenciamento da construção da moradia, sem cumprimento dos afastamentos, seriam nulos.

Mas não; o legislador, sabendo que os lotes até aí aprovados não previam determinadas exigências que só surgiriam com os actos de licenciamento das respectivas obras, entendeu bem salvaguardar as “situações existentes”.

E esta situação era já existente, desde a aprovação do loteamento em causa, logo não lhe era aplicável a regra geral prevista, mas sim a excepção ali consagrada.

Deste modo, é de concluir pela consolidação do loteamento – que não previa limitações resultantes da imposição de afastamentos aos lotes vizinhos - em data anterior à entrada em vigor do PDM, integrando-se os actos conducentes ao licenciamento e de utilização, na excepção prevista na al. b) do nº 2 do artº 69º do PDM, não sendo exigidos os afastamentos ali previstos.

Impõe-se, pois, face à inexistência da nulidade dos actos impugnados, a revogação do acórdão recorrido.


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DECISÃO:

Atento o exposto, acordam os juízes que compõem este Tribunal em:

· Conceder provimento ao recurso e revogar a decisão recorrida.

· Julgar improcedente a acção administrativa especial intentada pelo Ministério Público.

Sem custas dada a isenção do recorrido.

Lisboa, 12 de Julho de 2018. – Maria do Céu Dias Rosa das Neves (relatora) – António Bento São Pedro – José Augusto Araújo Veloso (voto vencido. Entendo que estando já em vigor a norma regulamentar de distanciamento, ao tempo da construção, tinha de ser cumprida. As “situações existentes” serão as relativas a construções feitas antes da sua entrada em vigor. Só.).