Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:049/10
Data do Acordão:03/02/2011
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:DULCE NETO
Descritores:IRC
LIQUIDAÇÃO DE SOCIEDADE COMERCIAL
PATRIMÓNIO DA EMPRESA
ADJUDICAÇÃO DE BENS
Sumário:I - Embora os artigos 86.º n.º 5 da LGT e 177.º, n.º 1 do CPPT exijam a prévia apresentação de pedido de revisão da matéria colectável como condição da impugnabilidade judicial de actos tributários com base em erro na quantificação ou nos pressupostos da determinação indirecta da matéria tributável, essa condição de impugnabilidade não funciona se na impugnação forem invocados outros vícios, designadamente o vício de inexistência de facto tributário ou o vício de errada qualificação do acto jurídico que conduziu a Administração a concluir pela existência de rendimentos tributáveis.
II - Ocorre erro na qualificação jurídica da operação realizada no processo de liquidação do património social se o acto de adjudicação ao único sócio do imóvel que integrava o activo imobilizado é qualificado pela Administração Tributária como acto de alienação onerosa do bem, erro que inquina todo o seu raciocínio sobre a sonegação da contraprestação que teria sido recebida pela sociedade e que, na realidade, o não foi.
III - Essa qualificação do acto jurídico não é irrelevante, uma vez que a determinação do lucro tributável em sede de IRC é distinto nos dois casos.
IV - No contencioso de mera legalidade, como é o caso do processo de impugnação judicial, o tribunal tem de quedar-se pela formulação do juízo sobre a legalidade do acto sindicado tal como ele ocorreu, apreciando a respectiva legalidade em face da fundamentação contextual integrante do próprio acto, estando impedido de valorar razões de facto e de direito que não constam dessa fundamentação.
Nº Convencional:JSTA00066836
Nº do Documento:SA220110302049
Data de Entrada:01/25/2010
Recorrente:FAZENDA PÚBLICA
Recorrido 1:A...
Votação:UNANIMIDADE
Meio Processual:REC JURISDICIONAL.
Objecto:SENT TAF MIRANDELA PER SALTUM.
Decisão:NEGA PROVIMENTO.
Área Temática 1:DIR FISC - IRC. / DIR PROC TRIBUT CONT - IMPUGN JUDICIAL.
Legislação Nacional:LGT98 ART86 N5.
CPPTRIB99 ART177 N1.
CONST97 ART104 N2.
CIRC01 ART46 N3 F ART73 ART74 ART75.
Aditamento:
Texto Integral: Acordam na Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo:
1. A FAZENDA PÚBLICA recorre da sentença proferida pelo proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Mirandela que julgou procedente a impugnação judicial deduzida pela sociedade “A…, LDA - em liquidação”, contra o acto de liquidação adicional de IRC relativo ao exercício de 2000, no valor global de € 218.668,20.
Rematou as suas alegações de recurso formulando as seguintes conclusões:
1. O princípio da capacidade contributiva encontra o seu campo de eleição, no momento da produção legislativa, oportunidade para o legislador consagrar as soluções que o promovam, ao nível da determinação da base tributável, das deduções e abatimentos e das taxas aplicáveis;
2. No plano da aplicação concreta das normas tributárias, o princípio da capacidade contributiva só será violado na justa medida da violação das normas que o densificam;
3. A liquidação efectuada com base nos factos da vida real a que a lei atribui relevância tributária, enquadrada pela estrita observância das regras de apuramento do lucro prescritas na lei, só violará o princípio da capacidade contributiva se for possível afirmar que o nível da tributação exigida em concreto é exagerado, por vício da quantificação;
4. Verificar a legalidade de uma concreta liquidação de imposto à luz do princípio da capacidade contributiva é tarefa que se situa no âmbito da quantificação;
5. Isto é tanto mais verdade, quando se assenta previamente que a qualificação dos factos efectuada pela Administração Tributária não é passível de qualquer censura;
6. A impugnação judicial com fundamento no erro da quantificação não pode ser deduzida por quem não tenha, previamente, usado o procedimento de revisão da matéria colectável;
7. No caso dos presentes autos, como se verifica dos factos provados, não houve recurso ao procedimento de revisão pelo que, qualquer fundamento atinente à quantificação não poderia ser objecto de pronúncia do Tribunal, mesmo que a coberto da sindicância da violação do princípio da capacidade contributiva;
8. Mesmo que assim não se possa entender, no caso concreto não se violou o referido princípio;
9. O lucro tributável das sociedades em liquidação é determinado com referência a todo o período de liquidação;
10. Na determinação do resultado de liquidação, havendo partilha dos bens pelos sócios, considera-se como valor de realização daqueles o respectivo valor de mercado;
11. A falta de pagamento efectivo de qualquer quantia, ao contrário do decidido na douta sentença recorrida, não invalida o apuramento de resultados, com base no valor de mercado dos bens transmitidos, deduzido se os houver, dos custos suportados durante o período de liquidação;
12. A matéria colectável assim apurada é a base da liquidação do IRC devido e traduz a capacidade contributiva do sujeito passivo de IRC, determinada nos termos da lei;
13. A capacidade contributiva manifestada no apuramento do resultado da liquidação das sociedades é objecto de tributação na esfera jurídica da sociedade e dos respectivos sócios, sendo que no caso destes últimos, é mitigada pela via da eliminação da dupla tributação dos lucros prevista no código do IRS.
14. A douta sentença recorrida violou o disposto nos artigos 73° a 75° do CIRC.
Nestes termos e nos mais que serão doutamente supridos por Vossas Excelências, deverá ser dado provimento ao presente recurso e reafirmada a legalidade da liquidação de IRC impugnada.
4.2 A Recorrida não apresentou contra-alegações.
1.3. Neste Supremo Tribunal, o Exm.º Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido de que devia ser concedido provimento ao recurso, aduzindo a seguinte argumentação:
«Fundamentação: afigura-se-nos que a recorrente terá razão quanto à não violação do princípio da capacidade contributiva, mas não quanto à impossibilidade de impugnação por invocação de erro na quantificação.
É que, como se pode ver de fls. 127, a decisão recorrida não conheceu dos fundamentos integradores da errónea quantificação, limitando-se a conhecer do vício de violação de lei por erro na qualificação do facto tributário.
Deverá improceder, nesta parte, a argumentação da recorrente.
Mas já não será assim no que tange à violação do princípio da capacidade contributiva, ínsito no art. 104º, nº 2 da Constituição da República Portuguesa.
O referido normativo expressa a opção de o legislador constitucional pelo princípio da tributação do rendimento real em matéria de tributação das empresas.
Assim o rendimento real das empresas, a que se refere aquele preceito constitucional, é o rendimento efectivo de harmonia com o princípio da capacidade contributiva determinada por declaração do contribuinte (Cf. Nuno Sá Gomes, Manual de Direito Fiscal, vol. 1, pag. 131).
Mas tal princípio não é absoluto e admite excepções.
Como refere o Prof. José Casalta Nabais, Direito Fiscal, 2 edição, pág., 462, a Constituição “permite, excepcionalmente, que a tributação das empresas se possa fazer pelo seu rendimento normal, seja este o rendimento médio de uma série de anos, que uma empresa poderia obter operando em condições normais (isto é, nas condições mais frequentes nessa época e lugar e com a diligência, técnica e preços geralmente praticados), seja o rendimento de determinado ano, que uma empresa poderia obter operando em condições normais”.
Também Rui Duarte Morais refere nos seus Apontamentos ao IRC, pág. 60, que o princípio da tributação do rendimento real não tem um valor absoluto (como resulta claro do cuidado que o legislador constitucional teve ao fazer constar o advérbio fundamentalmente do texto do art. 104, nº 2 da Constituição da República), podendo ter que ceder perante outros interesses igualmente merecedores de tutela constitucional, como sejam o de uma mais justa repartição dos encargos tributários (lograda, pelo combate á evasão praticada por alguns).
Daí que, tendo em conta tais situações, o preceito constitucional apenas exija que a tributação incida «fundamentalmente» sobre o rendimento real das empresas. (Vide também sobre a questão J.J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República, anotada, 2ª edição, pág. 467.)
E é precisamente a hipótese prevista no art. 74º do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas, que estabelece que na determinação do resultado da liquidação, havendo partilha dos bens patrimoniais dos bens pelos sócios, considera-se como valor de realização daqueles o respectivo valor de marcado.
A norma tem como objectivo obviar a evasão fiscal, nomeadamente evitar a subvalorização dos bens patrimoniais partilhados aos sócios no decurso da liquidação da sociedade, estabelecendo-se como valor de realização o valor de mercado (Comentário do CIRC anotado, ed. DGCI, ao artº 68º do CIRC (actual 73º).
Daí que se entenda que a aplicação do preceito não viola o princípio da capacidade contributiva, ínsito no art. 104º, nº 2 da Constituição da República Portuguesa.
Nestes termos somos de parecer que o presente recurso deve ser julgado procedente, revogando-se o julgado recorrido.»
1.5. Colhidos os vistos dos Exmºs Juízes Conselheiros Adjuntos, cumpre decidir as questões colocadas.
2. Na sentença recorrida deu-se como assente a seguinte matéria de facto:
1. A impugnante foi dissolvida por sentença de 25/01/1996 proferida no Processo n.º 249/1994 que correu termos no Tribunal Judicial de Peso da Régua, na sequência do que se procedeu à liquidação do respectivo património nos termos constantes do doc. 3 junto com a petição inicial, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido do qual consta o seguinte:
«(…)
E PELO PRIMEIRO OUTORGANTE FOI DITO:
Que o seu representado é o único sócio e gerente da sociedade comercial por quotas com a firma “A…”...
(...)
Que dissolvida a sociedade, possui no seu activo o seguinte bem imóvel:
Prédio urbano - ... (…)
Que atribui ao referido prédio o valor de CEM MILHÕES DE ESCUDOS.
Que não há lugar à partilha em virtude de à data da dissolução da extinta sociedade o seu representado ser o único sócio da mesma, motivo pelo qual se procede unicamente à liquidação do referido património.
Que nos termos expostos dá por concluída a liquidação do património da referida sociedade, considerando a mesma extinta a partir desta data.
(...)».
2. Na sequência de uma acção de fiscalização a que procederam os Serviços de Inspecção Tributária da Direcção Distrital de Finanças de Vila Real, foram efectuadas correcções à impugnante, em sede de IRC, relativamente ao ano de 2000 - cfr. doc. de fls. 32 do processo administrativo apenso, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido.
3. Do relatório de inspecção tributária subjacente à liquidação impugnada, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido, consta o seguinte (cfr. doc. de fls. 27 do processo administrativo apenso):
«(...)
4. MOTIVOS E EXPOSIÇÃO DO FACTOS QUE IMPLICAM O RECURSO A MÉTODOS INDIRECTOS
4.1. Comportamento perante a Administração Fiscal, elementos declarativos e contabilísticos.
O S.P. tem revelado um comportamento marginal na sua relação com a Administração fiscal.
1. Não entregou a declaração de Rendimentos Modelo 22 do exercício do 2000.
2. Não apresentou a declaração anual do exercício de 2000.
3. Verifica-se também que não remeteu ao SIVA as declarações periódicas de IVA, referentes aos meses de Janeiro a Maio do ano de 2000.
4. Não tendo sido possível contactar com a sociedade ou quem a representasse, notificamos por carta registada com aviso de recepção, para o domicílio fiscal do sócio gerente, quer a sociedade, quer o sócio gerente... para no dia 23 de Março do ano corrente... ter presente nos Serviços de Finanças de Peso da Régua os elementos de escrita. Na data, hora e local designados não compareceu qualquer pessoa...
5. Perante o facto, notificámos por carta registada com aviso de recepção para o domicílio fiscal do sócio gerente... para no prazo de 10 dias proceder à regularização da escrita... No mesmo acto notificamos igualmente para no dia 13 de Abril do mesmo ano... ter presente nos Serviços de Finanças de Peso da Régua os elementos de escrita. Na data, hora e local designados... não nos foram exibidos quaisquer documentos, nem fomos contactados.
(...)
4.2 Venda de imóvel
1. O único sócio e gerente procedeu à liquidação da sociedade e à afectação a si próprio de um imóvel possuído pela sociedade... por a sociedade ter sido dissolvida judicialmente nos autos de acção sumária número 249/94 ...
2. Verificou-se que no acto da escritura de liquidação de património, foi atribuído ao seu único sócio o património da empresa, a que foi dado o valor de 100.000.000$00 (498.797,90 Euros).
4.3 Não regularização/Recusa de exibição da contabilidade
(...)
3. Apesar de notificado para proceder à regularização/reconstituição dos seus elementos de escrita... facto que nunca ocorreu, pois nem sequer compareceu.
4. Face à não regularização da recusa de exibição da contabilidade, estamos perante a impossibilidade de comprovação e quantificação directa e exacta dos elementos indispensáveis à correcta determinação da matéria tributária, pelo que estão assim reunidos os pressupostos para a aplicação de métodos indirectos previstos no artigo 87° e seguintes da Lei Geral Tributária...
(...)
5. CRITÉRIOS E CÁLCULOS DOS VALORES CORRIGIDOS COM RECURSO A MÉTODOS INDIRECTOS
5.1 Proveitos
(...)
2. Vamos aceitar que os proveitos resultam apenas da venda do imóvel referido, ou seja 498.797,90 Euros.
5.2 Cálculo das correcções em IRC/IVA
1. Para efeitos de IRC, o lucro tributável resulta do valor da venda do imóvel diminuído do valor de aquisição, abatido das amortizações praticadas.
Da última declaração mod. 22 de IRC apresentada, referente ao ano de 1993... verifica-se junto do mapa de reintegrações e amortizações que a aquisição do imóvel remonta ao ano de 1928, com o valor de 3.491,16 € (700.000$00), não constando que tenha sido praticada qualquer amortização. Na ausência de reintegrações, a alínea. B) do n.° 2 do art. 3° do Dec. Regulamentar 2/90 de 12 de Janeiro considera período máximo de vida útil, aquele que corresponde a metade da taxa máxima. No caso presente; a taxa de reintegração é de 5% (código 2025) que corresponde a um período de mínimo de vida útil de 20 anos e máximo de 40 anos. Entre 1928 e 2000 decorreram 72 anos, pelo que o bem se considera totalmente amortizado.
Assim, para efeitos de IRC o valor a considerar para efeitos de lucro tributável é o valor de 498.797,90 €, cujo valor seria também considerado para efeitos de IVA, se o acto dele não se encontrasse isento, por se tratar de operação sujeita a sisa (n° 31 do art. 9° do CIVA).
(...)».
4. No seguimento da referida fiscalização, a Administração Tributária procedeu à fixação do rendimento colectável da impugnante para o ano de 2000, nos termos constantes dos docs. 34 do processo administrativo apenso, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido.
5. O acto de fixação do lucro tributável do ano de 2000 foi notificado à impugnante (cfr. doc. de fls. 37 do processo administrativo apenso).
6. A impugnante não pediu a revisão da matéria tributável.
3. A questão a decidir no presente recurso jurisdicional, considerando o teor das conclusões da alegação da Recorrente, consiste em saber se a sentença recorrida incorreu em erro ao julgar procedente a impugnação judicial por ofensa do princípio da capacidade contributiva, na medida em que:
tal vício se situa no âmbito da quantificação da matéria colectável determinada por métodos indirectos, traduzindo um erro de quantificação, que não podia ter sido conhecido pelo tribunal por falta de prévia revisão da matéria colectável, em conformidade com o disposto nos artigos 86.°, n.º 5, da LGT e 117.° do Código de Procedimento e de Processo Tributário - (conclusões 1ª a 7ª);
não houve violação do referido princípio, porquanto na determinação do resultado da liquidação do património societário, havendo partilha de bens pelos sócios, há que considerar todo o período de liquidação e ponderar que o valor de realização corresponde ao valor de mercado do bem partilhado, pelo que a falta de pagamento de qualquer quantia à sociedade não invalida o apuramento de resultados com base no valor de mercado do imóvel adjudicado, o qual representa, assim, a matéria colectável e a capacidade contributiva do sujeito passivo em sede de IRC, em conformidade com o disposto nos artigos 73° a 75° do CIRC - (conclusões 8ª e segs.).
Vejamos.
Relativamente à primeira questão, cumpre recordar que a Impugnante invocara neste autos, além do mais, que ao qualificar como venda o simples acto de adjudicação do único bem que integrava o activo imobilizado da sociedade ao sócio para efeitos de liquidação do património societário, a Administração Fiscal teria incorrido numa errada qualificação do facto tributário, conducente à liquidação de imposto sobre um rendimento que a sociedade não auferiu, pois que a adjudicação não envolveu qualquer contrapartida ou proveito para a sociedade (ao contrário do que sucederia se tivesse ocorrido uma venda), com o que se teria violado o princípio constitucional da capacidade contributiva.
A decisão recorrida conheceu da questão - na decorrência do acórdão proferido pelo Supremo Tribunal Administrativo, a fls. 138/144, que lhe impôs esse conhecimento - e julgou procedente o invocado vício, com o argumento de ter inexistido qualquer transmissão onerosa do imóvel, mas a sua mera adjudicação ao único sócio, que não envolveu o pagamento de quantias ou a obtenção de contrapartidas para a sociedade, pelo que não se verificaria o pressuposto económico denunciador de uma capacidade contributiva geradora de imposto.
Ora, se é certo que os artigo 86.º n.º 5 da LGT e 177.º, n.º 1 do CPPT exigem a prévia apresentação de pedido de revisão da matéria colectável como condição da impugnabilidade judicial de actos tributários com base em erro na quantificação ou nos pressupostos da determinação indirecta da matéria tributável, não é menos certo que essa condição de impugnabilidade já não funciona se na impugnação forem invocados outros vícios para além daqueles, designadamente o vício de inexistência de facto tributário ou o vício de errada qualificação do acto jurídico que conduziu a Administração a concluir pela existência de rendimentos tributáveis.
No caso vertente, a decisão sob recurso não conheceu de um fundamento integrador de errónea quantificação da matéria colectável, mas de questão relativa à qualificação jurídica da operação que incidiu sobre o imóvel no decurso do processo de liquidação do património societário, considerando-a como uma mera adjudicação ao sócio, sem contrapartidas económicas para a sociedade. O que não consubstancia vício cujo conhecimento contencioso esteja sujeito a prévia apresentação de pedido de revisão da matéria colectável.
Termos em que não pode proceder esta questão.
Relativamente à segunda questão, importa salientar que a liquidação impugnada resultou do facto de a Administração Tributária ter considerado que haviam sido sonegados proveitos ao lucro tributável da sociedade, provenientes da venda ao sócio do prédio urbano que integrava o activo imobilizado desta sociedade e que constituía todo o seu património social, pelo preço declarado de € 498.797,90.
Nesse pressuposto, a Administração procedeu à determinação, para efeitos de IRC, do lucro tributável resultante «do valor da venda do imóvel diminuído do valor de aquisição, abatido das amortizações praticadas», chegando à conclusão, perante o período máximo de vida útil do imóvel, da taxa de reintegração (de 5%) e da sua total amortização, que o valor a considerar «para efeitos de lucro tributável é o valor de 498.797,90 €, cujo valor seria também considerado para efeitos de IVA, se o acto dele não se encontrasse isento, por se tratar de operação sujeita a sisa (n° 31 do art. 9° do CIVA».
Ora, tal como decorre à evidência da materialidade fáctica apurada, não houve, efectivamente, nenhum acto de venda ou alienação onerosa do prédio, gerador dos rendimentos que foram determinados pela Administração nos moldes acima expostos, tendo ocorrido um evidente erro na qualificação jurídica da operação realizada no processo de liquidação do património social, assim ficando inquinado todo o seu raciocínio sobre a sonegação da contraprestação que teria sido recebida pela sociedade e que, na realidade, o não foi. O que justifica a decisão sobre a violação do princípio constitucional da capacidade contributiva enunciado no artigo 104.º, n.º 2 da CRP.
E não se diga que é irrelevante a qualificação do acto jurídico como acto de alienação onerosa ou como adjudicação ou partilha dos bens pelos sócios, uma vez que a determinação do lucro tributável em sede de IRC é distinto nos dois casos. Enquanto na transmissão onerosa de elementos do activo imobilizado o valor a considerar para efeitos de lucro tributável em sede de IRC é determinado em função dos ganhos obtidos face ao valor da contraprestação recebida (valor de realização) em conformidade com o disposto no artigo 46.º, n.º 3, alínea f) do CIRC, já no acto de partilha o rendimento-acréscimo é determinado em função do valor de mercado do bem partilhado (valor de realização) em conformidade com o disposto no artigo 74.º do CIRC. Razão por que, no caso vertente, foi considerado para efeitos de determinação do lucro tributável o valor da contraprestação recebida (498.797,90 €), ignorando-se por completo o valor de mercado do imóvel.
A Fazenda Pública vem agora invocar que a falta de pagamento efectivo de qualquer quantia não impede a tributação, na medida em que, perante o disposto nos artigos 73.º a 75.º do CIRC (Que correspondiam aos artigos 65.º a 67.º antes das alterações introduzidas ao CIRC pelo Dec. Lei n.º 198/2001, de 3 de Julho.), o lucro tributável das sociedades em liquidação é determinado com referência a todo o período de liquidação e que havendo partilha dos bens patrimoniais pelos sócios se deve considerar como valor de realização o valor de mercado desses bens (deduzido dos custos suportados durante o período de liquidação) e que a matéria colectável assim apurada constitui a base da liquidação do IRC devido e traduz a capacidade contributiva do sujeito passivo de IRC.
Esquece-se, porém, que o acto de liquidação de IRC impugnado não teve por suporte fundamentador as normas contidas nos artigos 73.º a 75.º do CIRC, pois conforme decorre do teor do relatório da acção inspectiva, as correcções efectuadas tiveram por pressuposto e fundamento a existência de rendimentos provenientes da alienação onerosa do imóvel, e não a existência de partilha ou adjudicação do património societário pelos sócios, razão por que não foi ponderado, na determinação do lucro tributável, todo o período de liquidação, como estipula o artigo 73.º (a acção inspectiva só incidiu sobre o exercício do ano 2000, quando o período de liquidação decorreu desde 1996 até 2000), nem foi considerado como valor de realização o valor de mercado do imóvel deduzido dos custos suportados durante o período de liquidação, como determina o artigo 74º do CIRC, mas, antes, o valor declarado na escritura pública de venda como valor da contraprestação (498.797,90 €) tal como acontece na determinação do lucro tributável decorrente de acto de alienação onerosa do património da sociedade.
Ora, no contencioso de mera legalidade, como é o caso do processo de impugnação judicial, o tribunal tem de quedar-se pela formulação do juízo sobre a legalidade do acto sindicado tal como ele ocorreu, apreciando a respectiva legalidade em face da fundamentação contextual integrante do próprio acto. Porque o contribuinte tem de defender-se apenas dos pressupostos enunciados na fundamentação contextual do acto tributário e dos quais se distraíram os efeitos lesivo, o tribunal está impedido de valorar valoração de razões de facto e de direito que não constam dessa fundamentação, isto é, que não foram invocados para conduzir ao acto tributário impugnado, pois se assim não fosse o particular ver-se-ia surpreendido em juízo com a invocação de uma outra realidade e isso representaria uma contracção do seu direito de recurso contencioso face à impossibilidade de utilizar os meios conferidos por lei para sindicar os actos tributários e que são mais favoráveis que os meios conferidos por lei para impugnar decisões judiciais.
Pelo que não pode relevar a argumentação ora expendida pela Recorrente, assim improcedendo todas as conclusões do recurso.
4. Face ao exposto, acordam os juízes da Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo em negar provimento ao recurso.
Custas pela Recorrente, fixando-se a procuradoria em 1/8.
Lisboa, 2 de Março de 2011. – Dulce Neto (relatora) – António CalhauValente Torrão.