Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0829/08
Data do Acordão:02/04/2009
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:JORGE DE SOUSA
Descritores:RESPONSABILIDADE SUBSIDIÁRIA
COIMA
LEI GERAL TRIBUTÁRIA
APLICAÇÃO DA LEI NO TEMPO
Sumário: I - O art. 112.º da LGT estabelecia a responsabilidade subsidiária de gerentes de sociedades comerciais «pelas multas ou coimas vencidas no período do seu mandato, salvo quando provarem que a falta de pagamento lhes não foi imputável».
II - Este regime não era aplicável a situações em que a omissão de pagamento ocorreu depois da revogação desta norma, operada pelo art. 2.º, alínea g), da Lei n.º 15/2001, de 5 de Junho.
III - No regime do RGIT, a responsabilidade subsidiária por dívidas de coimas originadas por factos ocorridos no período de exercício do cargo de gerente apenas existe «quando tiver sido por culpa sua que o património da sociedade ou pessoa colectiva se tornou insuficiente para o seu pagamento».
IV - A responsabilidade subsidiária por coimas ofende os princípios constitucionais da necessidade e da intransmissibilidade das penas, enunciados nos arts. 18.º, n.º 2, e 30.º, n.º 3, da CRP.
Nº Convencional:JSTA00065519
Nº do Documento:SA2200902040829
Data de Entrada:09/29/2008
Recorrente:FAZENDA PÚBLICA
Recorrido 1:A...
Votação:UNANIMIDADE
Meio Processual:REC JURISDICIONAL.
Objecto:SENT TAF PER SALTUM.
Decisão:NEGA PROVIMENTO.
Área Temática 1:DIR PROC TRIBUT CONT - CONTRA ORDENAÇÃO.
Área Temática 2:DIR CONST - DIR FUND.
Legislação Nacional:LGT98 ART112.
RGIT01 ART8.
CCIV66 ART342 N1.
CONST76 ART18.
Aditamento:
Texto Integral: Acordam na Secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo:
1 – A… deduziu oposição a uma execução fiscal que contra ele reverteu, na qualidade de responsável subsidiário da empresa B….
A oposição foi julgada improcedente quanto às dívidas de IRC e IVA e procedente quanto às dívidas de coimas.
Inconformada, a Fazenda Pública interpôs o presente recurso jurisdicional para este Supremo Tribunal Administrativo, apresentando alegações com as seguintes conclusões:
1) A douta sentença, ora recorrida, decidiu julgar parcialmente procedente a presente oposição e, em consequência, ordenou a extinção da execução fiscal contra o oponente quanto às dívidas de coimas e de encargos.
2) A ora questionada decisão, considera, por um lado, que o caso em apreço seria regulado pelo art. 7º-A do RJIFNA, vigente à data da prática das infracções, norma que fazia recair sobre a Fazenda Pública o ónus da prova da culpa do gerente pela insuficiência patrimonial da primária devedora.
3) Por outro lado, apesar de reconhecer que o oponente foi efectivamente gerente da devedora originária, entende que não existe normativo legal que lhe impute essa responsabilidade subsidiária pelo pagamento de coimas e encargos devidos.
4) No entanto, à data das infracções em causa, reportadas a 1999 e 2000, vigorava a redacção originária da Lei Geral Tributária aprovada pelo Decreto-Lei n.º 298/98 de 17 de Dezembro que estabelecia no seu art. 112º, n.º 1 al. b) que os gerentes são responsáveis subsidiários pelas multas e coimas vencidas no período do seu mandato salvo quando provarem que a falta de pagamento lhes não foi imputável.
5) Ou seja, existia efectivamente norma reguladora da situação vertente, impondo ao oponente o ónus da prova da inexistência de culpa pelo não pagamento das questionados dívidas.
6) Decorre do supra-referido que a decisão recorrida fez uma incorrecta interpretação e uma inadequada aplicação do quadro legal vigente, nomeadamente do art. 112º da LGT, violando claramente a predita norma, devendo por isso ser revogada.
Termos em que, e nos demais de Direito, se REQUER que seja concedido provimento ao presente recurso e, em consequência, seja revogada a douta decisão ora recorrida, com as legais consequências, assim se fazendo JUSTIÇA.
Não foram apresentadas contra-alegações.
O Excelentíssimo Magistrado do Ministério Público emitiu douto parecer nos seguintes termos:
Objecto do recurso: responsabilidade subsidiária dos administradores, gerentes e outras pessoas que exercessem, ainda que somente de facto, funções de administração em pessoas colectivas por multas ou coimas vencidas no período do seu mandato, no caso, reportadas a 1999 e 2000.
Alega a recorrente que à data das infracções em causa, vigorava a redacção originária da Lei Geral Tributária aprovada pelo Decreto-Lei n.º 298/98 de 17 de Dezembro que estabelecia no seu art. 112º, n.º 1 al. b) que os gerentes são responsáveis subsidiários pelas multas e coimas vencidas no período do seu mandato salvo quando provarem que a falta de pagamento lhes não foi imputável.
Ou seja, existia norma reguladora da situação vertente, impondo ao oponente o ónus da prova da inexistência de culpa pelo não pagamento das questionadas dívidas.
Afigura-se-nos que ao recurso não merece provimento.
É certo que, ao invés do que se sustenta na decisão recorrida (fls. 67), existia efectivamente normativo legal que previa a responsabilidade subsidiária dos administradores, gerentes e outras pessoas que exercessem, ainda que somente de facto, funções de administração em pessoas colectivas por multas ou coimas vencidas no período do seu mandato.
Esse normativo era, como refere a Fazenda Pública, o art. 112, n.º 1, al. b) da Lei Geral Tributária.
Porém entendemos, em consonância com Jorge Sousa e Simas Santos, in RGIT anotado, pág. 91, e ainda com aquele primeiro autor no seu Código de Procedimento e Processo Tributário, anotado, 5.ª edição, vol. II, pag. 354, que tal normativo padece de inconstitucionalidade material, nomeadamente por violar os princípios da intransmissibilidade das penas e da presunção de inocência, consagrados nos arts. 30.º, n 3 e 32º, n.º 2 da Constituição da República.
Daí que se entenda que o mesmo não pode ser aplicado no caso sub judice.
Nesse sentido aliás, e relativamente ao art. 8 do Regime Geral das Infracções Tributárias, que tem como antecedentes o aludido art. 112.º da Lei Geral Tributária, e os arts. 7.º-A do RJIFNA, e 8.º do RJIFA, se pronunciou já a mais recente jurisprudência deste Supremo Tribunal Administrativo, – cf. Acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo de 28.05.2008, recurso 31/08, e de 27.02.2008, recurso 1057/07, ambos in www.dgsi.pt.
Nestes termos somos de parecer que o presente recurso deve ser julgado improcedente.
As partes foram notificadas deste douto parecer, apenas se pronunciando a Fazenda Pública dizendo o seguinte:
a) O recurso foi interposto, pela FP, de sentença que considerou que, quanto às dívidas de coimas, recaía sobre a FP o ónus da prova de que foi por culpa do gerente que o património da sociedade se tornou insuficiente para cumprir obrigações tributárias a que estava obrigado;
b) A oposição do executado fundamentara-se no não exercício de gerência de facto (haveria um único gerente) e falta de conduta culposa na diminuição do património;
c) A sentença deu como provado que a gerência pertencia a todos os sócios e que a sociedade se obrigava pela assinatura de dois;
d) Ou seja, resulta que todos os sócios tiveram intervenção na gestão da sociedade, ficando sujeitos aos efeitos previstos na lei, designadamente como responsáveis subsidiários, no caso de incumprimento das respectivas obrigações pela entidade devedora originária, incluindo dívidas resultantes de prática de infracções fiscais;
e) Em nota (6) ao artigo 112º da LGT, pronunciou-se António Lima Guerreiro (Lei Geral Tributária Anotada, Editora Rei dos Livros, 2000, pág. 442), comentando jurisprudência do STA que defendia que, atendendo ao princípio da intransmissibilidade da responsabilidade penal (art. 30º, n.º 3 da CRP) a responsabilidade penal se extinguia aquando da extinção da pessoa colectiva, devido ao carácter pessoal e intransmissível da sanção: "Dado, no entanto, que o fundamento da responsabilidade previsto no presente artigo não é a sucessão na posição da sociedade, mas o incumprimento culposo de uma obrigação resultante de crédito, entendemos que essa doutrina é inaplicável às circunstâncias reguladas pelo presente artigo. Os meios próprios de discussão dos pressupostos da responsabilidade prevista no número 1 do presente artigo são os referidos a respeito do artigo 24º da presente lei. A legalidade da coima aplicável só é, no entanto, passível de ser discutida na oposição à execução (artigo 204º, n.º 1, alínea h) do CPPT)";
f) E, noutra nota (3, pág. 441, realces da nossa responsabilidade): "O presente tipo de responsabilidade não consagra qualquer regra de transmissibilidade das coimas, caso em que ele, aliás, seria inconstitucional. A transmissão recai sobre uma obrigação pecuniária, uma relação de crédito, e tem por fundamento, não a prática de qualquer infracção, o que em parte caracterizava o regime do artigo 7º-A do RJIFNA, quando limitava a responsabilidade subsidiária às infracções praticadas no mandato da administração ou gerência, mas o abuso da responsabilidade limitada, o que, desde logo, resulta da identidade da redacção entre o presente artigo e o 24º, n.º 1, da presente lei".
Corridos os vistos legais, cumpre decidir.
2 – Na sentença recorrida deu-se como assente a seguinte matéria de facto:
1. A presente oposição 3905-09/900006.2 do Serviço de Torres Vedras 2, corre por apenso ao processo de execução n.º 3905200101013521, e apensos (cf. capa dos autos e capa do apenso.)
2. O processo de execução 3905200101013521 tem apensos os processos, 3905200201015311, 3905200201015567, 3905200201029002, 3905200201032356, 3905200201032755, 3905200201033654, ou seja, em causa, dívidas de IRC, IVA e coimas fiscais conforme certidões de dívidas nos referidos processo que aqui se dão por reproduzidas;
3. O oponente foi citado da reversão em 06/03/03, por carta registada com aviso de recepção (cf. conjugação de fls. 5 e 6 do apenso);
4. Em 07/04/03, foi deduzida a presente oposição, (cf. carimbo no canto superior direito a fl. 2);
5. No dia 6/12/1996 no Primeiro Cartório Notarial de Torres Vedras foi outorgado o contrato da sociedade "B… constando como primeiro sócio o oponente e segundo sócio C…, ficando a gerência a cargo do sócios, (cf. cópia de escritura a f 1.10 a 15 do apenso);
6. A gerência da executada principal competia ao todos os sócios e a forma de obrigar requeria a assinatura em conjunto de dois gerentes, (conforme certidão da Conservatória do Registo Comercial de Sintra, folhas 79)
7. A fls. 10 dos autos consta cópia de acta n.º 1 datada de 22/05/97 onde foi deliberado não atribuir "remuneração o sócio gerente A… em virtude de ser pensionista" (fls.10)
Como factos não provados e com interesse para a decisão da causa, não se provou que oponente sendo gerente de direito não foi gerente de facto e, não se provou que não foi por culpa sua que o património da mesma se tornou insuficiente para satisfazer os créditos fiscais.
3 – A questão que é objecto do presente recurso jurisdicional é a de saber se o gerente de uma sociedade comercial pode ser responsabilizado subsidiariamente por dívidas de coimas aplicadas por contra-ordenações tributárias.
Pelo processo executivo apenso, constata-se que as dívidas de coimas que são objecto de execução se reportam a contra-ordenações constituídas por falta de apresentação de declarações periódicas de IVA que deveriam ter sido apresentadas em 15-2-2000 (fls. 18 do processo executivo) e declaração periódica apresentada fora do prazo legal sem meio de pagamento, em 15-5-2000, 16-8-2000, cujo trânsito em julgado ocorreu em 9-11-2001 e 18-12-2001 (fls. 21 e 23 do processo executivo, respectivamente).
A Fazenda Pública defende que a responsabilidade do Oponente deriva do art. 112.º, n.º 1, alínea b), da LGT, que esteve em vigor desde 1-1-1999 (data da entrada em vigor a LGT, indicada no art. 6.º do DL n.º 398/98, de 17 de Dezembro) e 5-7-2001 [data em que foi revogado pelo art. 2.º, alínea g), da Lei n.º 15/2001, de 5 de Junho].
Este art. 112.º, n.º 1, estabelecia o seguinte:
Artigo 112.º
Responsabilidade solidária e subsidiária
1 – Os administradores, directores, gerentes e outras pessoas que exerçam, ainda que somente de facto, funções de administração em pessoas colectivas e entes fiscalmente equiparados são responsáveis subsidiários:
a) Pelas multas ou coimas cujo facto constitutivo tenha ocorrido no período do exercício do seu cargo ou vencidas antes do início deste quando tiver sido por culpa sua que o património da sociedade ou pessoa colectiva se tornou insuficiente para o seu pagamento;
b) Pelas multas ou coimas vencidas no período do seu mandato, salvo quando provarem que a falta de pagamento lhes não foi imputável.
Na tese da Fazenda Pública, a situação enquadra-se nesta alínea b), decorrendo a responsabilidade subsidiária, por isso, de uma conduta do gerente ocorrida depois do vencimento da coima, no período de pagamento: se este lhe fosse imputável, haveria responsabilidade subsidiária, se o não fosse, a responsabilidade subsidiária estaria excluída.
No entanto, como se constata pelas datas do trânsito em julgado das decisões que aplicaram as coimas, quando esse trânsito ocorreu, em Novembro e Dezembro de 2001, já estava revogado o referido art. 112.º, estando em vigor, em matéria de responsabilidade subsidiária de gerentes de pessoas colectivas por coimas, o art. 8.º do RGIT.
Por isso, não estando em vigor o referido art. 112.º no momento em que teriam ocorrido os factos geradores da responsabilidade subsidiária (falta de pagamento das coimas vencidas), é de excluir, desde logo, a possibilidade da sua aplicação.
Por outro lado, o regime do art. 8.º do RGIT é, neste ponto manifestamente diferente.
Na verdade, este art. 8.º definiu a responsabilidade subsidiária dos gerentes por coimas, nos seguintes termos, no que aqui interessa:
Artigo 8.º
Responsabilidade civil pelas multas e coimas
1 – Os administradores, gerentes e outras pessoas que exerçam, ainda que somente de facto, funções de administração em pessoas colectivas, sociedades, ainda que irregularmente constituídas, e outras entidades fiscalmente equiparadas são subsidiariamente responsáveis:
a) Pelas multas ou coimas aplicadas a infracções por factos praticados no período do exercício do seu cargo ou por factos anteriores quando tiver sido por culpa sua que o património da sociedade ou pessoa colectiva se tornou insuficiente para o seu pagamento;
b) Pelas multas ou coimas devidas por factos anteriores quando a decisão definitiva que as aplicar for notificada durante o período do exercício do seu cargo e lhes seja imputável a falta de pagamento.
Como se vê, já não se estabelece nesta matéria qualquer presunção de culpa, como sucedia com a alínea b) do n.º 1 do art. 112.º da LGT, sendo necessário, em qualquer caso, que se prove que a culpa pela insuficiência do património da sociedade para pagamento das coimas ou a imputabilidade da falta de pagamento ao gerente.
Por outro lado, neste novo regime, a responsabilidade subsidiária por dívidas de coimas originadas por factos ocorridos no período de exercício do cargo de gerente, como é o caso dos autos, apenas existe «quando tiver sido por culpa sua que o património da sociedade ou pessoa colectiva se tornou insuficiente para o seu pagamento» [a situação prevista na alínea b) reporta-se a coimas devidas por factos anteriores ao exercício do cargo].
Ora, no caso dos autos, não se provou que tenha sido por culpa do Oponente que o património da sociedade se tornou insuficiente para pagamento das coimas, como expressamente se refere na sentença recorrida.
Não havendo uma presunção legal, caberia à Fazenda Pública o ónus da prova dos pressupostos da responsabilidade subsidiária que invoca (art. 342.º, n.º 1, do CC), pelo que a dúvida sobre tal ponto sempre teria de ser valorada contra aquela.
4 – Para além disso, como bem refere o Excelentíssimo Procurador-Geral Adjunto no seu douto parecer, a responsabilidade subsidiária em matéria de coimas é materialmente inconstitucional, por ser incompaginável com o princípio constitucional da intransmissibilidade das penas, enunciado no art. 30.º, n.º 3, da CRP.
Na verdade, embora este princípio apenas esteja enunciado explicitamente quanto que a penas e não a coimas, ele é corolário do princípio da necessidade em matéria de restrição de direitos, enunciado no art. 18.º da Constituição, pois a primacial razão de ser da intransmissibilidade é a não satisfação de qualquer dos fins das penas quando as sanções são aplicadas a quem não é imputável a infracção.
É que, de facto, embora a epígrafe do art. 8.º do RGIT tente camuflar esta transmissão de responsabilidade por infracções sobre a epígrafe de «Responsabilidade civil pelas multas e coimas», o certo é que, independentemente dos sofismas que se procurem imaginar numa busca obsessiva de formas de ampliar as receitas da Fazenda Pública à custa dos cidadãos, é uma realidade insofismável que quem faz o pagamento de uma sanção pecuniária é quem a está a cumprir, e que, efectuado o cumprimento por terceiro, ele deixa de ser exigível ao autor da infracção, pelo que esta responsabilização se reconduz a uma transmissão do dever de cumprimento da sanção do responsável pela infracção para outras pessoas.
Assim, também por esta razão de inconstitucionalidade, é de afastar a possibilidade de responsabilizar o Oponente pelo pagamento das coimas referidas.
Termos em que acordam em negar provimento ao recurso jurisdicional e em confirmar a sentença recorrida.
Sem custas, por a Fazenda Pública estar isenta no presente processo.
Lisboa, 4 de Fevereiro de 2009. - Jorge de Sousa (relator) - Pimenta do Vale – Miranda de Pacheco.