Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:02871/18.5BEPRT
Data do Acordão:07/02/2020
Tribunal:1 SECÇÃO
Relator:SUZANA TAVARES DA SILVA
Descritores:TRANSFERÊNCIA
ESTABELECIMENTO DE ENSINO
Sumário:I - A norma do n.º 2 do artigo 3.º da Lei n.º 90/2001 (onde se consagram direitos das grávidas, das mães e dos pais estudantes) caracteriza-se por diversas incompletudes, que abrangem não apenas o respectivo recorte subjectivo de aplicação (ao não contemplar, mesmo após a alteração legislativa introduzida pela Lei n.º 60/2017, qualquer limite expresso de idade das crianças), mas também a densificação de aspectos do seu conteúdo.
II - Compulsados os diversos elementos da interpretação jurídica é, porém, possível concluir que, ao regular de modo expresso situações especialmente ligadas à pré- e recém-parentalidade, a norma em causa tem apenas como destinatários aqueles cujos filhos tenham até 5 anos de idade.
Nº Convencional:JSTA000P26186
Nº do Documento:SA12020070202871/18
Data de Entrada:07/09/2019
Recorrente:A...........
Recorrido 1:UNIVERSIDADE DO PORTO
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: Acordam na secção do Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo:

I – Relatório

1 – A…………….. interpôs recurso per saltum para este Supremo Tribunal Administrativo da sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto de 29 de Março de 2019 que julgou improcedente a acção administrativa em que havia pedido a condenação da Universidade do Porto a deferir o pedido de transferência de estabelecimento de ensino.

2 – Por despacho do Relator, de 11 de Julho de 2019, foi o recurso admitido por este Supremo Tribunal Administrativo nos termos do disposto no n.º 5 do artigo 151.º do CPTA.

3 – O Autor, e aqui Recorrente, apresentou alegações que concluiu da seguinte forma:
a. A sentença recorrida assenta numa errada interpretação e aplicação do direito, com arrimo numa leitura e entendimento equívocos das disposições legais constantes da Lei n.º 90/2001, em particular, da norma do n.º 2 do artigo 3.º quanto ao reconhecimento do direito à transferência de estabelecimento de ensino.

b. A única questão de mérito que se coloca nestes autos tem que ver com o âmbito de aplicação da norma do n.º 2 do artigo 3.º e com a resposta à seguinte questão: estará a titularidade dos direitos aí consagrados condicionada pela idade dos filhos, à semelhança do que sucede com os direitos contemplados no n.º 1 do mesmo preceito?

c. O tribunal a quo considerou que o direito à transferência de estabelecimento de ensino previsto na alínea b) do n.º 2 do artigo 3.º apenas seria concedido a pais com filhos até aos 5 anos de idade, ao contrário do que decorre da lei e do confronto das várias soluções insertas na Lei n.º 90/2001, operando uma restrição intolerável à aplicação dessa norma.

d. O entendimento sufragado pelo tribunal a quo assenta num acórdão anterior proferido pelo Tribunal Central Administrativo Norte que não pode ser transposto para o presente caso, atentas as alterações entretanto introduzidas pela Lei n.º 60/2017 e por aquele não contempladas e os distintos contornos das situações materiais em apreço, exigindo uma apreciação própria e distanciada do mesmo.

e. As normas dos números 1 a 3 do artigo 3.º são autónomas e independentes, devendo ser objeto de análise individualizada, como resulta da letra da lei e emerge de forma inequívoca das alterações introduzidas pelo legislador na revisão de 2017 da Lei n.º 90/2001, através de intervenções individualizadas e diferenciadas.

f. O n.º 2 do artigo 3.º não estabelece qualquer limitação em razão da idade dos filhos ou de outra circunstância ou particularidade a esta associada, nem tal foi a intenção do legislador, pelo que não caberá ao intérprete e aplicador a sua restrição contra legem.

g. O n.º 2 do artigo 3.º foi objeto de alteração na revisão de 2017 apenas com vista ao alargamento do âmbito subjetivo de aplicação aos pais, tendo o legislador optado por não restringir o leque de beneficiários dos direitos concedidos mediante a previsão de um limite de idade dos filhos a considerar, ao contrário do que sucede com os casos do n.º 1 e do n.º 3 do mesmo artigo.

h. Mediante a previsão de um conjunto de medidas de apoio social e escolar, a Lei n.º 90/2001 materializa um instrumento de combate ao abandono e insucesso escolares e, ainda, de promoção da conciliação das responsabilidades parentais com a importância da escolarização e formação, visando a otimização da proteção da família, em linha com as soluções fundamentais consagradas na Constituição.

i. Ao definir o âmbito pessoal de aplicação do diploma em termos amplos e não excludentes, o legislador não estabeleceu qualquer limite-regra ou condição associada à idade dos filhos que obstaculizasse à máxima proteção conferida pela lei ou que determinasse a interpretação dos preceitos legais considerando tal regra.

j. O legislador estabeleceu, sempre que o considerou necessário, limites concretos e específicos à aplicação de determinadas normas e à atribuição dos direitos nelas previstos tendo por referência a idade dos filhos, solução adotada expressamente nos números 1 e 3 do artigo 3.º.

k. A não consagração de um limite à concessão do direito à transferência de estabelecimento de ensino, tal como previsto na alínea d) do n.º 2 do artigo 3.º, consubstancia uma opção deliberada e consciente do legislador de não associar a esse direito as mesmas restrições impostas a outros direitos, firmada ou reiterada pelas alterações introduzidas pela Lei n.º 60/2017 e também pelas alterações a que se absteve.

l. As alterações introduzidas no n.º 2 do artigo 3.º revelam o intuito de maximização da proteção por ele conferida, quer em razão do alargamento do seu âmbito pessoal de aplicação quer na extensão do leque de direitos concedidos, ressaltando, do mesmo modo, da não imposição de um limite relacionado com a idade dos filhos, ao contrário das alterações aos números 1 e 3 do artigo 3.º.

m. O conceito de filhos pequenos construído pelo tribunal a quo, na aceção de filhos até aos 5 anos de idade, não se trata de um conceito jurídico, com respaldo na lei, nem resulta de forma alguma indiciado pelas disposições da Lei n.º 90/2001, pelo que a pretensão de restringir o âmbito de aplicação desta lei a mães e pais estudantes com filhos menores de 5 anos é de todo inaceitável.

n. A Lei n.º 90/2001 não consagra qualquer limite-regra em função da idade dos filhos quanto ao seu âmbito de aplicação, tendo o legislador optado por prever, caso a caso, as hipóteses em que a concessão de determinados direitos devesse ficar condicionada pela idade dos filhos, independentemente dessa idade ser os 5 anos ou outra e sem qualquer alusão a um conceito de filhos pequenos.

o. O legislador foi alertado e interpelado para a alegada discrepância das normas previstas na Lei n.º 90/2001 e para as dúvidas quanto à sua aplicação, atendendo, em especial, aos termos do reconhecimento do direito à transferência de estabelecimento de ensino, sem que tivesse acolhido as sugestões propostas no sentido da fixação de uma idade limite para o exercício desses direitos.

p. As alterações introduzidas em 2017 na lei em análise não incluíram a previsão de qualquer idade limite, aplicável em termos gerais para a Lei n.º 90/2001 ou em termos concretos com vista à delimitação do âmbito de aplicação da norma do n.º 2 do artigo 3.º, por referência aos 5 anos de idade ou a qualquer outra ou a um conceito inexistente de filhos pequenos.

q. Sem conceder, por hipótese de raciocínio, a existir uma restrição de aplicação da norma do n.º 2 do artigo 3.º em razão da idade dos filhos, numa leitura conforme ao espírito da lei, em linha com a evolução do diploma legal e com as disposições fundamentais da Constituição, sempre conduziria à consideração da solução mais protetora ou garantística dos pais e mães estudantes por referência aos 12 anos de idade dos filhos a que se refere no n.º 3 daquele artigo, otimizando a proteção que lhes é conferida pela Lei n.º 90/2001.

r. O conceito de filhos pequenos densificado pelo tribunal a quo não pode deixar de ser conformado, em termos empíricos, pela realidade presente e atender às múltiplas e frequentes mutações na sociedade e nas famílias, o que leva a conclusão pela sua desadequação e inaplicabilidade: filhos pequenos não serão apenas os filhos até aos 5 anos de idade, já que os cuidados, acompanhamento e apoio necessário prestado por quem assume responsabilidades parentais quanto a menores de idade superior a 5 anos poderão exigir as mesmas disponibilidade e flexibilidade subjacentes às medidas de apoio reservadas às mães e pais estudantes.

s. De harmonia com o espírito e desígnio da lei e com a evolução deste diploma legal no sentido da intensificação da proteção conferida pelo mesmo, o direito à transferência de estabelecimento de ensino deverá ser reconhecido a grávidas e mães e pais estudantes com filhos a cargo que se encontrem a frequentar os ensinos básico e secundário, o ensino profissional ou o ensino superior, em conformidade e em consonância com o disposto na alínea b) do n.º 2 do artigo 3.º e no artigo 2.º da Lei n.º 90/2001.

t. A decisão recorrida, à semelhança da decisão objeto de impugnação, assenta numa leitura inadmissível das normas em apreço, que representa a compressão de um direito que é reconhecido pelo legislador em termos amplos, sem qualquer limitação que não a qualidade de estudantes dos pais beneficiários ou titulares do mesmo, pelo que deverá ser revogada nos termos supra deduzidos.

Nestes termos e nos mais de direito aplicáveis, deverá o presente recurso ser admitido e julgado totalmente procedente, com todas as consequências legais».




4 – A Universidade do Porto contra-alegou, apresentando as seguintes conclusões:
a) Não assiste qualquer razão ao Recorrente tendo a sentença recorrida aplicado corretamente o direito quanto ao reconhecimento do direito à transferência de estabelecimento de ensino previsto na Lei nº 90/2001, de 20 de agosto, na redação introduzida pela Lei n.º 60/2017, de 1 de agosto.

b) A Lei nº 90/2001, de 20 de agosto, conforme expresso no seu artigo 1º, determina formas de apoio social e escolar às mães e pais estudantes, tendo como objetivo prioritário o combate ao abandono e insucesso escolares, bem como a promoção da formação dos jovens, sendo que o nº 2 do artigo 3º atribui um conjunto de direitos que visavam, na sua versão original, e visam na redação atual, concretizar a especial proteção às jovens grávidas, puérperas e lactantes.

c) Não faz qualquer sentido, sendo contrário ao espírito da lei, que o direito à justificação de faltas, ou mesmo o direito ao adiamento da apresentação de trabalhos, estejam limitados no seu âmbito de aplicação aos pais e mães com filhos até 5 anos e, direitos como o de transferência de estabelecimento de ensino, ou o direito à realização de exames em época especial sejam atribuídos às mães e pais independentemente da idade dos filhos.

d) Sendo a única questão de mérito, colocada nos presentes autos, a de saber se os direitos consagrados no nº 2 do artigo 3.º estão condicionados pela idade dos filhos, à semelhança do que sucede com os direitos contemplados no n.º 1 do mesmo preceito, tem toda a pertinência o recurso às conclusões do Acórdão proferido pelo Tribunal Central Administrativo Norte de 18/12/2015 (Proc. n.º 00517/15.2BECBR-A).

e) Da transposição desse entendimento constante do supracitado Acórdão do TCAN resulta que o nº 2 do artigo 3º da Lei nº 90/2001, de 20 de agosto, na redação dada pela Lei n.º 60/2017, de 1 de agosto, apenas se aplica às grávidas, mães e pais com filhos até cinco anos.

f) A interpretação do Recorrente, levada ao extremo, não faz qualquer sentido pois, a vingar a sua tese, uma mãe ou pai que estivesse matriculado num qualquer grau de ensino e que tivesse um filho com 20 ou 30 anos podia solicitar a transferência de estabelecimento de ensino ao abrigo do dispositivo legal em apreciação.

g) Da leitura das exposições dos motivos constantes dos projetos de lei de alteração à Lei nº 90/2001, de 20 de agosto, apresentados pelos grupos parlamentares do BE, do PCP e do PAN, conclui-se que o que se pretendeu foi o reforço do apoio a jovens pais e mães, especialmente às jovens grávidas, puérperas e lactantes, designadamente durante a gravidez e durante os primeiros anos de vida dos filhos.

h) O legislador, quer ao redigir inicialmente a Lei em causa quer ao proceder à sua alteração, não dá sinais do ponto de vista sistemático, lógico e teleológico de que a importância de acompanhamento dos filhos justifique a consagração dos direitos previstos no n.º 2 do artigo 3.º independentemente da idade dos mesmos.

i) Não faz qualquer sentido a consagração dos direitos previstos no n.º 2 do artigo 3.º independentemente da idade dos filhos, nem faz igualmente qualquer sentido a aplicação do limite de 12 anos, estabelecido no nº 3 do mesmo artigo, dado que a referência a essa idade nem sequer existia na redação inicial do preceito em causa.

j) Consequentemente, forçoso é concluir que a decisão recorrida se encontra devidamente fundamentada, tendo efetuado uma leitura correta das normas em apreço, pelo que será de manter nos seus exatos termos.

Nestes termos e nos mais de direito aplicáveis, deverá o presente recurso ser julgado totalmente improcedente, com todas as consequências legais».



5 - O Excelentíssimo Senhor Procurador-Geral Adjunto junto deste Tribunal, notificado nos termos e para os efeitos do artigo 146.º, n.º 1, do CPTA, não se pronunciou.


6 - Colhidos os vistos legais, cabe decidir.


II – Fundamentação


1. De facto
Remete-se para a matéria de facto dada como provada na sentença recorrida, a qual aqui se dá por integralmente reproduzida, nos termos do artigo 663.º, n.º 6, do CPC.


2. Questão a decidir
Saber se a sentença do TAF do Porto incorreu em erro de julgamento ao considerar que apenas podem ser titulares dos direitos previstos no n.º 2 do artigo 3.º da Lei n.º 90/2011 aqueles que tenham filhos até aos cinco anos de idade.


3. De direito
3.1. Com relevância para as questões a decidir no âmbito do presente recurso resulta da matéria de facto assente o seguinte: i) que o autor se candidatou, foi seleccionado e se matriculou e inscreveu no Mestrado Integrado em Medicina para titulares do grau de licenciado da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Nova de Lisboa, no ano lectivo de 2018/2019 (data da 1.ª inscrição); ii) que naquela data era pai de dois menores com 10 e 11 anos de idade; iii) que o Autor não se candidatou aos concursos especiais para acesso aos Mestrados Integrados em Medicina, quer da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto, quer do Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade do Porto; e iv) que em Junho de 2018 (antes mesmo de iniciado o primeiro ano lectivo) requereu à Faculdade de Medicina da Universidade do Porto a transferência para aquele estabelecimento de ensino ao abrigo do disposto na alínea b), do n.º 2 do artigo 3.º da Lei n.º 90/2001, de 20 de Agosto, na redacção resultante da alteração legislativa aprovada pela Lei n.º 60/2017, de 1 de Agosto.


3.2. A Universidade do Porto, Ré na presente acção, indeferiu a pretensão do Autor e aqui Recorrente com o fundamento de que inexistia base legal para a referida transferência, uma vez que o dispositivo legal em questão abrangia apenas os pais estudantes com filhos até 5 anos de idade.

3.3. Inconformado, o Recorrente apresentou a acção administrativa que está na base do presente recurso, alegando, em síntese, que a Universidade do Porto se baseara numa errada interpretação e aplicação do direito, porquanto o n.º 2 do artigo 3.º da referida Lei n.º 90/2001, mesmo após a alteração legislativa introduzida pela Lei n.º 60/2017, não contempla qualquer limite expresso de idade das crianças, contrariamente ao que sucede no n.º 1 do referido artigo 3.º, onde se estipula o referido limite de 5 anos de idade.
O Tribunal a quo, apoiando-se no acórdão do TCA Norte, de 18 de Dezembro de 2015 (proc. 00517/15.2BECBR-A), reiterou a interpretação da Universidade do Porto, considerando que das regras da interpretação jurídica resulta que a norma que consagra o direito à transferência de estabelecimento de ensino apenas abrange os pais com filhos até 5 anos de idade.
Não se conformando com esta decisão, veio o Autor e aqui Recorrente dela interpor recurso per saltum para este Supremo Tribunal Administrativo para que este se pronuncie sobre a correcta interpretação jurídica da norma da al. d) do n.º 2 do artigo 3.º da Lei n.º 90/2001.

3.4. Ora, pelas razões que veremos detalhadamente, não se afigura razoável uma interpretação da referida norma divergente daquela que foi sufragada pela decisão recorrida e, também, pelo mencionado aresto do TCA Norte em que a mesma se apoia. O artigo 3.º da Lei n.º 90/2001, na redacção aqui em apreço, dispõe o seguinte:
Artigo 3.º (Direitos de ensino)
1 - As mães e pais estudantes abrangidos pela presente lei cujos filhos tenham até 5 anos de idade gozam dos seguintes direitos:
a) Um regime especial de faltas, consideradas justificadas, sempre que devidamente comprovadas, para consultas pré-natais, para período de parto, amamentação, doença e assistência a filhos;
b) Adiamento da apresentação ou da entrega de trabalhos e da realização em data posterior de testes sempre que, por algum dos factos indicados na alínea anterior, seja impossível o cumprimento dos prazos estabelecidos ou a comparência aos testes;
c) Isenção de cumprimento de mecanismos legais que façam depender o aproveitamento escolar da frequência de um número mínimo de aulas;
d) Dispensa da obrigatoriedade de inscrição num número mínimo de disciplinas no ensino superior.
2 - As grávidas, as mães e os pais têm direito:
a) A realizar exames em época especial, a determinar com os serviços escolares, designadamente no caso de o parto coincidir com a época de exames;
b) À transferência de estabelecimento de ensino;
c) A inscreverem-se em estabelecimentos de ensino fora da área da sua residência.
d) A um regime especial de faltas, consideradas justificadas, sempre que devidamente comprovadas, para consultas pré-natais.
3 - As mães e pais estudantes gozam de um regime especial de faltas, consideradas justificadas, para prestar assistência, em caso de doença ou acidente, a filho menor de 12 anos ou, independentemente da idade, a filho com deficiência ou doença crónica, bem como durante todo o período de eventual hospitalização.
4 - A relevação de faltas às aulas, a leccionação de aulas de compensação e a realização de exames em época especial dependem da apresentação de documento demonstrativo da coincidência com horário lectivo do facto que, à luz da presente lei, impossibilite a sua presença.


3.4.1. Tem razão o Recorrente quando alega que o legislador deixou a norma em questão imersa de alguma incompletude no que respeita ao seu âmbito subjectivo de aplicação, cabendo ao respectivo aplicador que, em última instância, é o Tribunal, no âmbito da interpretação normativa necessária para o controle das decisões administrativas determinar aquele âmbito com recurso às regras tradicionais da hermenêutica jurídica, assim como aos princípios que informam o direito administrativo.
Acrescente-se, porém, que a referida incompletude não abrange apenas o recorte subjectivo da norma que confere os direitos, antes se estendendo também à densificação do conteúdo dos mesmos, seja na determinação dos exames a realizar pela parturiente (quais?, quando?) [nos termos da al. a)], seja na densificação das transferências entre (ou das inscrições em) estabelecimentos de ensino (necessidade de comprovar a relação com a proximidade/cuidado dos filhos?) [nos termos das als. b) e c)], seja ainda na determinação do regime especial de faltas (quantas? com que fundamentos?) [nos termos da al. b) e c)], para referir alguns exemplos. Quer isto dizer que a aplicação da norma exige, sempre, o referido esforço interpretativo para determinação do respectivo conteúdo.

3.4.1.1. Comecemos por compulsar os elementos da interpretação jurídica. O elemento literal ou gramatical não é de grande auxílio, pois, como vimos, ele caracteriza-se pela incompletude e imprecisão, particularidades das quais não podem deixar de decorrer espaços de valoração próprios da Administração onde o mero esforço interpretativo não permita definir o respectivo sentido. Isto sem comprometer, claro, a regra de excluir qualquer sentido que se afigure contra o texto.
Já o elemento histórico afigura-se aqui especialmente relevante, sobretudo porque a redacção do n.º 2, que nos cumpre analisar ― aquela em que se fundamenta o direito do Autor ―, foi introduzida pela Lei n.º 60/2017. Ora, compulsados os dados sobre esta alteração legislativa verificamos que a mesma constitui o fruto de três projectos de lei [projecto n.º 424/XIII (do PAN), projecto n.º 326/XIII (BE) e projecto n.º 423/XIII (PCP)] (V. www.parlamento.pt. ), que foram discutidos em conjunto. Estes diplomas (a Lei n.º 90/2001 e a sua modificação em 2017), conforme se pode ler no registo do debate na generalidade (V. Diário da Assembleia da República de 3 de Março de 2017, pp. 38 a 43.), tinham como “especiais destinatários” os “casos de gravidez, de maternidade e de paternidade precoce, com impacto na vida dos jovens e das suas famílias” e a “formação de jovens pais”. Já as alterações propostas em 2017 visavam, segundo os seus proponentes: i) “alargar a protecção às grávidas”; ii) “ampliar as protecções já existentes aos pais e mães estudantes com filhos até 5 anos (e não três como figurava na redacção original do n.º 1 do artigo 3.º da Lei n.º 90/2001), por ser essa a idade de entrada no pré-escolar, período até ao qual as crianças precisam de especial acompanhamento”; iii) “harmonizar o regime de faltas justificadas para assistência aos filhos menores com o disposto na lei laboral, ou seja, até aos 12 anos de idade”; e iv) “estender, em geral, os direitos previstos na lei, também, aos pais”, assim atribuindo, igualmente, “idêntica dignidade legal à homoparentalidade e à heteroparentalidade”. Acrescente-se, ainda, que em geral o objectivo fundamental do diploma legal em apreço é combater o abandono escolar precoce e o insucesso escolar por parte de pais e mães jovens que têm de cuidar dos filhos, na medida em que os mesmos não estariam abrangidos pela legislação laboral, onde estes direitos já estavam salvaguardados.
Assim, o elemento histórico mostra que o sentido da modificação legislativa introduzida em 2017 não pretendeu, intencionalmente, abranger situações como a que temos aqui em apreço, pois embora o n.º 2 do artigo 3.º não estipule qualquer limite de idade para os pais ou para as crianças, a verdade é que o universo de destinatários (in casu, de pais) que o legislador pretendeu abranger com o alargamento da norma não tinha em mente situações como a dos autos.
Importa, por isso, convocar também os elementos sistemático e teleológico. O elemento sistemático, assente na inserção normativa do preceito interpretando, permite-nos reforçar a ideia de que a norma em causa não pode ter um sentido dissonante daquele que perpassa as restantes normas daquele regime jurídico e que, como vimos, radica no combate ao abandono escolar precoce de jovens pais, o que indica que, não obstante o n.º 2 não estipular qualquer limite de idade, se mostra totalmente desajustado que qualquer disposição do mesmo possa ser aplicada a situações de parentalidade que não exijam especial atenção e cuidado aos filhos, ou seja, fica desde logo excluída a sua aplicação a pais com crianças de idade superior a 12 anos, por ser esse o limite de idade que o legislador (incluindo o legislador da lei laboral), configura como carecendo de assistência parental em situações de doença.
Mas podemos até avançar mais neste exercício interpretativo e dizer que, conjugando a redacção original do preceito (especialmente centrada nas grávidas e mães), com a explicação do “legislador” para a modificação da sua redacção, cujo intuito foi o de o alargar os direitos especiais aí previstos também aos “pais” para neutralizar discriminações na parentalidade decorrentes da actual extensão do conceito de família e de casamento, pode concluir-se que a intencionalidade desses direitos é acautelar as “necessidades” da maternidade (quer pela referência a “grávidas”, quer a “parto”, quer ainda a “consultas pré-natais”) ou da recém-parentalidade (no âmbito da extensão daquele conceito), pelo que as situações aí subjacentes apontam, de acordo com o critério sistemático, para um limite de idade dos filhos (a existir) até inferior ao do n.º 1 do artigo 3.º (lembre-se, de cinco anos) e nunca superior a ele.
Já do elemento teleológico retira-se que, sendo a finalidade da norma ― repita-se ― a de combater o abandono precoce e o incesso escolar de jovens pais, o universo abrangido pelo n.º 2 do artigo 3.º há-de estar em sintonia com esta finalidade, o que não abrange pais que não sejam jovens e (mesmo jovens) que tenham filhos que já não estejam em idade de precisar de assistência especial, entendendo-se, normativamente, como tal, as crianças com idade superior a 5 anos, ou seja, aquelas com idade superior à da admissão no ensino pré-escolar.
Assim, da conjugação do disposto no n.º 1 (onde estão previstos direitos especiais dos estudantes relativamente ao normal funcionamento das actividades lectivas) e no n.º 3 (onde passa a admitir-se a justificação de faltas para assistência a filhos menores até aos 12 anos por equiparação ao regime jurídico dos trabalhadores) não pode deixar de resultar, interpretativamente, que o n.º 2, que de modo expresso regula situações especialmente ligadas à pré- e recém-parentalidade, se destina a situações em que os filhos têm uma idade, se não inferior, pelos menos igual a 5 anos.

3.4.1.2. Cabe ainda verificar se a aplicação deste juízo interpretativo ao caso em apreço está em conformidade com os princípios jurídicos que informam a actividade administrativa, assim como com a garantia dos direitos fundamentais dos administrados. E não encontramos qualquer objecção ao resultado que se alcança no sentido de excluir a pretensão do Requerente do âmbito de aplicação da norma em apreço. Parece-nos até óbvio que a referida disposição legal, por tudo quanto antes expendemos, estará longe de visar situações factuais como a que está em discussão nos autos, em que um profissional (um trabalhador-estudante), licenciado e doutorado, procura, ao abrigo deste regime jurídico, obter uma transferência de par curso/estabelecimento de ensino para poder frequentar uma nova licenciatura, pelo facto de ter dois filhos menores (com 10 e 11 anos) à data em que concorreu e foi admitido à frequentar esse novo grau de ensino superior.
É claro que, como bem sugeriu a aqui Recorrida (e Ré nos presentes autos) por ocasião da consulta pública no âmbito da alteração legislativa à Lei n.º 90/2001 e com base na sua experiência pretérita, teria sido preferível que o legislador tivesse “quantificado” na letra da lei, quer o conceito de “jovens pais”, quer o limite de idade dos filhos, para que as instituições de ensino superior pudessem fazer uma aplicação mais parametrizada do regime jurídico e com maior segurança jurídica para todos (interessados requerentes e estabelecimentos de ensino superior), evitando acalentar falsas expectativas ou mesmo esquemas para obviar às contrariedades decorrentes dos numerus clausus no acesso ao ensino superior.
Porém, o legislador de 2017, talvez “sossegado” aquando da discussão da iniciativa legislativa na especialidade pela “resposta do gabinete do Ministro da ciência, tecnologia e ensino superior” que não encontrou dificuldades na sua implementação e até sublinhou que a mesma se apresentava como medida “importante de combate ao abando precoce da frequência do ensino superior e como estímulo à aprendizagem ao longo da vida” acabou por não densificar a norma com aquelas quantificações, mantendo a incompletude de sentido que desde o início lhe apontámos e que assim dá azo a litígios como aquele que aqui solucionamos e o que foi decidido pelo acórdão do TCA Norte, mobilizado como fundamentação pela decisão do Tribunal a quo.
Seja como for, perante a redacção actual do preceito, o resultado interpretativo que se alcança é o de que a situação dos autos não está abrangida pela norma que consagra o direito à transferência de estabelecimento de ensino.

3.5. Uma última nota para sublinhar que o resultado interpretativo alcançado não se afigura desproporcionado, na medida em que nada na factualidade indica, sequer, que o Requerente, que é já um profissional, careça daquele regime jurídico, designadamente da transferência de estabelecimento de ensino, para assegurar a assistência aos filhos (decai o critério da adequação). Mas, mais do que isso, não se percebe sequer de que forma se poderia considerar preenchido, in casu, o critério da necessidade, quando uma solução menos gravosa poderia ter sido alcançada através da candidatura do Requerente a um dos estabelecimentos de ensino do Porto, o que, segundo resulta da factualidade, nem sequer foi intentado por ele, que concorreu à Faculdade de Medicina da Universidade Nova de Lisboa para, acto imediato, vir requerer a transferência para a Faculdade de Medicina da Universidade do Porto ao abrigo deste regime especial de protecção ao abandono escolar precoce por parte de jovens pais.
Pelas mesmas razões, também se afigura desprovida de sustentação jurídica a argumentação do Requerente, quer no que respeita à violação do seu direito de aprender e ensinar, quer do direito à protecção da família.
Concluímos, em suma, que a interpretação normativa sufragada na sentença recorrida não merece censura.

III – Decisão

Nos termos e com os fundamentos expostos, acordam os Juízes da Secção de Contencioso Administrativo em negar provimento ao recurso.

Custas pelo Recorrente.


*

Lisboa, 2 de Julho de 2020. - Suzana Maria Calvo Loureiro Tavares da Silva (relatora) – José Francisco Fonseca da Paz – Maria do Céu Dias Rosa das Neves.