Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0613/11
Data do Acordão:01/12/2012
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:LINO RIBEIRO
Descritores:IVA
DEDUÇÃO DE IMPOSTO
TURISMO RURAL E TURISMO DE HABITAÇÃO
DESPESAS DE INVESTIMENTO
Sumário:I - Nos termos em que D.L. 256/86 de 27 de Agosto caracteriza a actividade de turismo de habitação, não pode fazer-se a destrinça entre parte do imóvel destinado à residência do proprietário e parte do imóvel destinado a essa modalidade de turismo.
II - Não podendo separar-se o local da residência habitual do conceito de actividade de turismo de habitação, que consiste na prestação de serviços de hospedagem turística naquele local, também não é possível distinguir, nas despesas de investimento feitas na remodelação do imóvel para o exercício daquela actividade, entre despesas que conferem direito à dedução, as afectadas exclusivamente ao alojamento turístico, e despesas que não conferem direito à dedução, as realizadas exclusivamente na residência habitual do dono do imóvel.
III - Assim sendo, não há que fazer uso dos critérios do artigo 23º do CIVA para determinar a parcela de imposto dedutível, designadamente a regra do prorata ou percentagem de dedução, uma vez que toda a despesa é usada para a realização da actividade de turismo de habitação, o que conduz à dedução integral do imposto.
IV - O que determina a dedutibilidade ou não dedutibilidade do IVA é o uso efectivo que é feito ou se tenciona fazer do bem ou serviço adquirido, a determinar em cada transacção, e não através de qualquer tipificação administrativa que “forfetarize” o que é ou não dedutível.
Nº Convencional:JSTA00067326
Nº do Documento:SA2201201120613
Data de Entrada:06/17/2011
Recorrente:FAZENDA PÚBLICA
Recorrido 1:A........., LDA
Votação:UNANIMIDADE
Meio Processual:REC JURISDICIONAL
Objecto:SENT TAF MIRANDELA DE 2010/12/28 PER SALTUM
Decisão:NEGA PROVIMENTO
Área Temática 1:DIR FISC - IVA
Legislação Nacional:CIVA08 ART20 N1 A
DL 256/86 DE 1986/08/27 ART1 ART9 ART13 ART14 ART15 ART16 ART19 ART23
Jurisprudência Nacional:AC STA PROC1785/03 DE 2004/06/23; AC STA PROC1784/03 DE 2004/07/07
Aditamento:
Texto Integral: Acordam na Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo
1.1. A Fazenda Pública interpõe recurso jurisdicional da sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal de Mirandela, datada de 28/12/2010, que julgou procedente a acção de impugnação que A………, Lda, melhor identificada nos autos, deduziu contra a liquidação adicional do IVA com referência aos períodos 0709T e 0712T no valor global de 2.208,42€.
Para tal, nas alegações conclui o seguinte:
a) O que aqui está em discussão é a dedutibilidade do IVA, das obras efectuadas na parte do imóvel cujo espaço é destinado exclusivamente ao uso do impugnante, e não do exercício da sua actividade económica.
b) A douta sentença, aqui recorrida, decidiu mal, quanto ao critério que “aplicou” da dualidade considerada pela Administração Fiscal, ao fixar a percentagem do imóvel afecto à residência do impugnante, não permitindo nesta parte, a dedução do respectivo IVA, considerando, no caso em apreço, que a “visão” de unidade contemplada no D.L. 256/86 de 27/08, quanto a este tipo de actividade turística, que é por si só, indissociável, tinha sido violado.
c) Fundamentou a sua decisão nos D.L. 256/86 de 27 de Agosto e D.L. 169/97 de 4 de Julho e ainda no Ac. do STA rec. nº 01785/03 de 23/06/2004.
d) A Douta sentença dissociou-se completamente das normas legais previstas sobre o direito à dedutibilidade do IVA, no que respeita à matéria em causa, nomeadamente os artigos 20º e 23º do CIVA.
e) Não considerou, nem os princípios gerais do direito à dedução, plenamente consagrados nos artigos 19º e 20º do CIVA.
f) Muito menos, considerou o que legalmente está previsto para a determinação do imposto dedutível relativo aos bens e/ou serviços de utilização mista, ou seja, aos bens e/ou serviços utilizados conjuntamente em actividades que conferem o direito a dedução e em actividades que não conferem esse direito, como era aqui o caso da impugnante.
g) Consequentemente, a sentença recorrida, que julgou procedente a presente impugnação judicial, decidiu contra “lege”, violando o artigo 203º da CRP, uma vez que os tribunais estão sujeitos à lei.
1.2. Não houve contra-alegações
1.3 O Ministério Público não emitiu parecer.
2. A sentença considerou o seguinte:
a) A impugnante insurge-se contra as liquidações adicionais de IVA relativas aos períodos 0709T e 0712T no valor global de € 2.208,42 que lhe foram efectuadas pela Administração Tributária na sequência de pedido de reembolso daquele imposto.
b) Administração Tributária, no cômputo de acção de fiscalização efectuada ao sujeito passivo (aqui impugnante), considera ter a ora impugnante procedido a uma indevida dedução do IVA no que respeita às obras de recuperação de imóvel propriedade da impugnante, e afecto a turismo de habitação, pois que na parte de 13,62% se destina, apenas, a residência do seu proprietário.
3. Não tendo sido feita qualquer censura relativamente à imperfeição na fixação dos factos relevantes para a decisão, a questão jurídica em apreciação resume-se no seguinte: face ao disposto na alínea a) do art. 20º do CIVA, pode o sujeito passivo deduzir a totalidade do imposto suportado nas obras de remodelação e reconstrução do edifício destinado à actividade de turismo de habitação?
Na sequência de um pedido de reembolso de IVA, a administração tributária levou a efeito uma acção inspectiva à recorrida, no âmbito da qual efectuou uma correcção à matéria tributável em sede de IVA, com a consequente liquidação adicional ora impugnada, por considerar indevida a dedução de tal imposto, no que respeita às obras de recuperação do imóvel destinado simultaneamente a turismo de habitação e a residência do seu proprietário.
A administração tributária considerou que o IVA relativo a tais obras foi indevidamente deduzido, porque: (i) as obras de recuperação do imóvel foram realizadas na parte destinada à exploração turística, mas também na parte afecta exclusivamente à residência do seu proprietário; (ii) da alínea a) do nº 1 do artigo 20º do CIVA e do Ofício Circulado nº 33130 de 2/4/93 da DSIVA, só há direito à dedução do IVA suportado nas aquisições de bens e serviços destinados exclusivamente ao exercício da actividade económica; (iii) por isso, o IVA suportado nas despesas efectuadas na parte destinada a residência do proprietário, correspondente a 13,62% do imóvel, não confere direito à dedução.
Vejamos em que se traduz cada um destes argumentos.
A alínea a) do nº 1 do artigo 20º do CIVA preceitua que «só pode deduzir-se o imposto que tenha incidido sobre bens ou serviços adquiridos, importados ou utilizados pelo sujeito passivo para a realização de … transmissões de bens e prestações de serviços sujeitas a imposto e dele não isentas». A decisão recorrida baseou-se na jurisprudência deste Tribunal, que reproduziu textualmente, constante dos acórdãos proferidos nos recursos nº 01785/03 de 23/6/2004 e nº 01784/03 de 7/7/2004 (in www.dgsi.pt), segundo a qual, e nos termos do sumário do primeiro acórdão, «não obsta ao disposto no art. 20º, n.º 1, al. a) do CIVA, a dedutibilidade do IVA suportado na parte referente à habitação do sujeito passivo, carecendo, em absoluto, de suporte legal a fixação de uma percentagem correspondente à área dos imóveis destinados àquele fim para efeitos da respectiva tributação».
Não há dúvida que o artigo 20º acima transcrito permite fazer a distinção entre operações que conferem e operações que não conferem direito à dedução. Com efeito, quando a norma estabelece que «só» pode ser deduzido o imposto suportado na aquisição de bens e serviços adquiridos para a «realização» das transmissões sujeitas a imposto e dele não isentas, evidentemente que a contrário exclui o direito à dedução se os bens ou serviços adquiridos se destinarem a operações não sujeitas a imposto. A norma condiciona pois a dedução do IVA suportado à utilização efectiva dos bens e serviços em que se suportou o imposto em operações tributáveis e exclui essa dedução quando os bens e serviços são utilizados em operações não sujeitas a imposto ou sujeitas mas declaradas isentas.
Partindo desta separação, a administração tributária considerou que a aquisição de obras e serviços de remodelação de prédio destinado à actividade de turismo de habitação não se destina integralmente a essa actividade, uma vez que uma parte não especificada do imóvel é destinada ao uso exclusivo do proprietário. Deste modo, pela regra geral do artigo 20º do CIVA, o imposto suportado com as despesas relativas à fracção do imóvel destinada a habitação exclusiva do proprietário, que é uma operação não sujeita a imposto, não é susceptível de ser deduzido no conjunto dos serviços de hospedagem prestados no exercício daquela actividade económica.
Todavia, nos termos em que a lei caracteriza a actividade de turismo de habitação, não parece que se possa fazer a destrinça entre parte do imóvel destinado à residência do proprietário e parte do imóvel destinado a essa modalidade de turismo. É que, o investimento em obras e melhoramentos que é necessário fazer para que a casa antiga, solar ou casa apalaçada se apresente com interesse turístico e satisfaça os requisitos legalmente exigidos para a sua inscrição nos registos de turismo de habitação da Direcção-Geral de Turismo, abrange a totalidade do imóvel, independentemente de haver áreas de acesso reservado aos proprietários. A inscrição do prédio no registo de turismo, sem a qual não é possível iniciar a respectiva actividade, está condicionada à realização de obras e melhoramentos que permitam qualificar o imóvel como de «interesse turístico», com aptidões para o exercício da actividade turística.
Para se iniciar a actividade de turismo de habitação é necessário satisfazer os requisitos e os procedimentos prescritos nas normas do DL nº 256/86 de 27 de Agosto, regulador dessa actividade. Da leitura dos artigos deste diploma constata-se facilmente que os custos suportados com as obras e melhoramentos do prédio a inscrever nos registos do turismo de habitação destinam-se integralmente à actividade económica que nele é ou será desenvolvida.
O artigo 1º daquele decreto-lei define essa actividade como sendo «a actividade de interesse para o turismo, com natureza familiar, que consiste na prestação de hospedagem em casas que sirvam simultaneamente de residência aos seus donos e preencham as condições requeridas no presente diploma», actividade esta que pode revestir a forma de «turismo de habitação», «turismo rural» ou «agro-turismo».
A «natureza familiar» da actividade e a utilização do imóvel em «simultâneo» pelos donos e pelos hóspedes turistas está bem patente no art. 16º ao dispor que “o dono da casa é responsável pelo rigoroso exercício, por si e pelos familiares e demais pessoal, das normas de acolhimento, conforto e bem-estar que caracteriza a tradicional hospitalidade portuguesa” e no nº 2 do artigo 15º quando faz depender da aceitação da Direcção-Geral do Turismo a residência dono da casa «em edificação contígua ou muito próxima, desde que permita assegurar a hospitalidade devida». Portanto, para exercer a actividade de turismo de habitação o empresário tem que habitar no próprio prédio destinado a esse fim ou, excepcionalmente, em prédio contíguo ou muito próximo, sem o que se perderia a natureza familiar do alojamento turístico.
De onde se pode concluir, como se diz no acórdão de 23/6/2004, no rec. nº 01785/03, acima citado, que «a lei tem, de tais estabelecimentos, uma visão unitária sendo igualmente essencial à prestação de tal actividade turística, tanto a residência do proprietário como a prestação de hospedagem. No critério legal, tal dualidade é indissociável». E certamente que não é por mero acaso que o DL nº 256/86 usa o termo «unidade» sempre que se quer referir ao prédio afecto ao exercício da actividade turística (cfr. arts. 9º, 13º, 14º, 19º e 23º): «unidade pois, que não dualidade».
Se, no conceito legal de actividade de turismo de habitação é necessário que o empresário tenha a sua residência habitual no empreendimento turístico, para se assegurar a pretendida hospitalidade, então não se pode dizer que a fixação do seu domicílio nesse sítio exorbite daquele conceito. Por força do artigo 1º do DL nº 256/86, o imóvel só será licenciado para turismo de habitação se o seu proprietário estabelecer o centro da sua vida pessoal nesse local. Assim sendo, há uma relação directa e imediata entre os custos das obras de melhoramento do imóvel e o exercício dessa actividade de turismo de habitação, independentemente de no prédio poder haver ou não áreas reservadas a uso exclusivo dos donos.
Não podendo separar-se o local da residência habitual do conceito de actividade de turismo de habitação, que consiste na prestação de serviços de hospedagem turística naquele local, também não é possível distinguir, nas despesas de investimento feitas na remodelação do imóvel para o exercício daquela actividade, entre despesas que conferem direito à dedução, as afectadas exclusivamente ao alojamento turístico, e despesas que não conferem direito à dedução, as realizadas exclusivamente na residência habitual do dono do imóvel.
A fazer-se essa separação, como pretende a recorrente, comprometer-se-ia o objectivo fundamental do direito à dedução do IVA, que é a desoneração do empresário do imposto devido ou pago no âmbito da sua actividade económica, de modo a garantir a não cumulatividade da tributação e a neutralidade quanto à carga fiscal. Esse objectivo estaria comprometido por uma razão óbvia: se o licenciamento da unidade afecta ao exercício da actividade turística implica a realização das obras de melhoramento aceites ou impostas pela Direcção-Geral de Turismo, o empresário não se libertaria inteiramente do ónus do IVA devido e pago no exercício dessa actividade, caso sobre ele recaísse parte do imposto pago na recuperação do imóvel. É que, os investimentos necessários às obras e melhoramentos do prédio antigo não podem deixar de atingir o prédio no seu todo, pois, como se refere no preâmbulo do DL nº 256/86, o fomento do turismo de habitação visa também «a protecção e valorização do património cultural, de que a arquitectura regional é expressão de grande interesse turístico». Certamente que o prédio não estaria apto ao exercício dessa actividade, pelo menos do ponto de vista arquitectónico, se a parte destinada a habitação dono não fosse também recuperada.
Não faz sentido, pois, invocar o artigo 23º do CIVA ou as directivas do Ofício Circulado nº 33130 de 2/4/93.
Não é aplicável o artigo 23º, quer porque as despesas de investimentos – os inputs – são aplicadas totalmente na actividade económica de turismo de habitação, quer porque a prestação de hospedagem turística – os outputs – é integralmente sujeita a imposto, com a consequência indissociável da concessão do direito à dedução do imposto suportado com aquelas despesas. Assim, não há que fazer uso dos critérios daquele artigo para determinar a parcela de imposto dedutível, designadamente a regra do prorata ou percentagem de dedução, uma vez que toda a despesa foi efectivamente usada para a realização da actividade de turismo de habitação, o que conduz à dedução integral do imposto.
E não pode ser aplicável a directiva do ofício-circulado n.º 33130, de 02/04/1993, porque, além de não ter qualquer apoio legal a diferenciação que nela se faz entre actividade turística, que confere direito à dedução e residência do proprietário do imóvel, que não confere direito à dedução, assim como o método que introduz para quantificar a parte dedutível, o princípio da legalidade fiscal, em matéria integrante da incidência do imposto, retira-lhe qualquer força vinculativa externa. A natureza de meras instruções internas apenas pode vincular os serviços hierarquicamente dependentes do SIVA e não os contribuintes, pois a alínea a) do nº 1 do art. 20º do CIVA não contém qualquer abertura normativa, designadamente através de conceitos jurídicos indeterminados, para que a administração tributária possa fixar princípios e métodos orientadores do direito à dedução. Por força dessa norma, ou a aquisição de bens e serviços é para ser utilizada integralmente nas operações activas do sujeito passivo que conferem direito a dedução, caso em que o IVA suportado é deduzido na totalidade, ou para ser utilizado em operações que não conferem direito a dedução, caso em que não é deduzido. Se é utilizado indistintamente, então funcionam as regras do artigo 23º. Mas o que determina a dedutibilidade ou não dedutibilidade do IVA é o uso efectivo que é feito ou se tenciona fazer do bem ou serviço adquirido, a determinar em cada transacção, e não através de qualquer tipificação administrativa que “forfetarize” o que é ou não dedutível.
4. Pelo exposto, acordam os juízes da Secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo em negar provimento ao recurso.
Custas pela recorrente.
Lisboa, 12 de Janeiro de 2012. – Lino Ribeiro (relator) - Valente Torrão - Dulce Neto.