Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0462/10
Data do Acordão:10/27/2010
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:DULCE NETO
Descritores:CONVENÇÃO PARA EVITAR A DUPLA TRIBUTAÇÃO
HIERARQUIA DAS NORMAS
IRS
RENDIMENTOS DO TRABALHO AUFERIDOS NO ESTRANGEIRO
RESIDÊNCIA NO ESTRANGEIRO
Sumário:I - Embora a Convenção para evitar a dupla tributação celebrada entre Portugal e a República da Alemanha remeta a definição do conceito convencional de residência para a legislação interna dos Estados contratantes, essa remissão pressupõe que a análise da questão da residência seja feita individualmente, pessoa a pessoa, abstraindo da situação familiar do sujeito em causa, pois a qualidade de residente para efeitos convencionais tem de ser aferida por critérios que exprimam uma ligação efectiva ao território do Estado, não sendo atendível um mero critério de «residência por dependência» como o constante do artigo 16.º n.º 2 do CIRS.
II - Assim, o conceito de «residência por dependência», acolhido no artigo 16.° n.º 2 do CIRS, não pode sobrepor-se ao conceito convencional de residência constante do artigo 4.º da Convenção para evitar a dupla tributação celebrada entre Portugal e a República da Alemanha, dada a supremacia do direito internacional sobre o direito interno ordinário consagrada no artigo 8.º da CRP.
III - Estando demonstrado que durante todo o ano de 1998 o Impugnante residiu e trabalhou na Alemanha, onde foi tributado pelos únicos rendimentos auferidos nesse ano e por aí ter residência habitual, torna-se irrelevante, para efeitos de determinação da residência convencional, o facto de em Portugal manter domicílio fiscal e aí conservar casa destinada à sua habitação, do seu cônjuge e restante agregado familiar.
Nº Convencional:JSTA00066656
Nº do Documento:SA2201010270462
Data de Entrada:05/31/2010
Recorrente:FAZENDA PÚBLICA
Recorrido 1:A... E OUTRA
Votação:UNANIMIDADE COM 1 DEC VOT
Meio Processual:REC JURISDICIONAL.
Objecto:SENT TAF COIMBRA PER SALTUM.
Decisão:NEGA PROVIMENTO.
Área Temática 1:DIR FISC - IRS.
Área Temática 2:DIR INT PUBL - DIR TRAT.
Legislação Nacional:CIRS88 ART14 ART15 ART16 N2.
Referências Internacionais:CONVENÇÃO ENTRE A REPÚBLICA PORTUGUESA E A RFA PARA EVITAR A DUPLA TRIBUTAÇÃO EM MATERIA DE IMPOSTOS SOBRE O RENDIMENTO E SOBRE O CAPITAL APROVADA PELA L 12/82 DE 1982/06/03 ART4 N1 N2 ART15 N1.
Jurisprudência Nacional:AC STA PROC68/09 DE 2009/03/25.; AC STA PROC382/09 DE 2009/07/08.; AC STA PROC461/2010 DE 2010/09/08.; AC STA PROC25985 DE 2001/06/06.; AC STA PROC1211/05 DE 2006/03/15.
Referência a Doutrina:CASALTA NABAIS DIREITO FISCAL 5ED PAG104.
ALBERTO XAVIER DIREITO TRIBUTÁRIO INTERNACIONAL 2ED PAG291.
RUI DUARTE MORAIS DUPLA TRIBUTAÇÃO INTERNACIONAL EM IRS NOTAS DE UMA LEITURA EM JURISPRUDÊNCIA IN REVISTA DE FINANÇAS PÚBLICAS E DIREITO FISCAL ANO1 N1 PAG116 PAG117.
MARIA MARGARIDA CORDEIRO MESQUITA AS CONVENÇÕES SOBRE DUPLA TRIBUTAÇÃO PAG85.
MANUEL PIRES ARTIGO16 N2 DO CIRS E AS CONVENÇÕES DESTINADAS A EVITAR DUPLA TRIBUTAÇÃO IN ESTUDOS EM MEMÓRIA DO PROF DOUTOR ANTÓNIO MARQUES DOS SANTOS VII PAG595.
GUSTAVO LOPES COURINHA AINDA A PROPÓSITO DA TRIBUTAÇÃO DOS TRABALHADORES PORTUGUESES NA ALEMANHA - ALGUMAS NOTAS IN REVISTA DE FINANÇAS PÚBLICAS E DIREITO FISCAL ANO1 N1 PAG292 PAG293.
Aditamento:
Texto Integral: Acordam na Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo:
1. A FAZENDA PÚBLICA recorre para este Supremo Tribunal da sentença proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Coimbra que julgou procedente a impugnação judicial deduzida por A…e esposa B… contra o acto de liquidação do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (IRS) do ano de 1998 e dos respectivos juros compensatórios. Terminou a sua alegação enunciando as seguintes conclusões:
1. Discute-se nos autos a liquidação do IRS do ano de 1998, na parte em que se encontra afectada pelos rendimentos (da categoria A) obtidos pelo impugnante como trabalhador emigrante na Alemanha.
2. Nesse período, o impugnante esteve ausente de Portugal durante mais de 183 dias, mas manteve em território português a habitação sua, do seu cônjuge e agregado familiar em condições de a habitar;
3. Os rendimentos obtidos na Alemanha não foram espontaneamente declarados na 1ª declaração familiar;
4. O art. 4.º da Convenção para evitar a dupla tributação internacional entre Portugal e a Alemanha remete a definição de “residente” para a lei interna dos Estados contratantes;
5. A lei portuguesa, nomeadamente o art. 84.° CC e os artigos 14.°, 15.° e 16.° CIRS, com a redacção então em vigor, consideravam que os contribuintes, mesmo os emigrantes, eram “residentes em território português” se aqui mantivessem habitação em condições que fizessem supor a intenção de a habitar ou aqui mantivesse a residência do outro cônjuge;
6. Ao optar por não comunicar a sua ausência do território português, a impugnante manteve o seu domicílio electivo e fiscal em Portugal, que é o primeiro dos critérios referidos no n° 1 do art. 4.° da Convenção;
7. Além disso, o n° 2 do mesmo art. 4.° da CDT configura diversas conexões decisivas em caso de competência cumulativa de ambos os Estados contratantes, entre as quais a localização de habitações permanentes à disposição do trabalhador, a localização do centro de interesses pessoais e económicos, a nacionalidade, todos favoráveis à competência tributária de Portugal;
8. Muito respeitosamente, parece que esta norma nega apoio à interpretação que serve de base à recente jurisprudência que, por sua vez, fundamenta a decisão recorrida;
9. Por tudo isso, a AT, através do seu ofício-circulado n.º 20.032, de 31/1/2001, a jurisprudência, nomeadamente, no Ac. STA 01211/05, de 15-3-2006, e a doutrina têm entendido que “basta a residência em Portugal, de um dos chefes do agregado familiar, aferido aos critérios do art. 16° do CIRS, para que esta arraste, por um principio da atracção da unidade familiar, a residência dos demais (residência por dependência). Assim, por exemplo, o emigrante português que reside efectivamente na Alemanha, mas cuja mulher permanece em Portugal, é aqui sujeito a tributação numa base universal, incluindo portanto os rendimentos obtidos na Alemanha" - Alberto Xavier, Direito Tributário Internacional, Tributação das Operações Internacionais, p. 245 e ss;
10. A conexão ao direito português, resultante do impugnante fazer parte do agregado familiar que tem residência em Portugal, é perfeitamente legítima e compreensível já que, de acordo com o CIRS, o verdadeiro sujeito passivo do imposto é o agregado familiar, representado, em comum e sem distinção de quotas, pelas pessoas a quem incumbe a sua direcção e, objectivamente, pelo conjunto dos seus rendimentos.
11. Na normalidade das situações de emigração, os rendimentos obtidos no estrangeiro justificam-se, como é presumível no presente caso, pelas necessidades do agregado familiar sedeado no território português, a que o impugnante os destina maioritariamente.
12. Isto é, o sacrifício da deslocação para o estrangeiro, mais ou menos prolongada, visa obter lá os meios que permitam ter uma vida melhor cá. Só não seria exactamente assim se todo o agregado, ou pelo menos as pessoas a quem incumbe a sua direcção, tivesse emigrado.
13. Donde resulta a respeitosa discordância com o doutamente decidido na sentença recorrida, nomeadamente no que se refere à interpretação a fazer do artigo 15.° da CDT e à decisão de anulação das liquidações, mesmo na parte impugnada.
Nestes termos e com o douto suprimento de V.ªs. Exas., deve a sentença recorrida ser revogada e substituída por douto acórdão que julgue improcedente a presente impugnação, assim se fazendo a habitual JUSTIÇA.
1.2. Não foram apresentadas contra-alegações.
1.3. O Exmo. Procurador-Geral-Adjunto junto deste Tribunal emitiu douto parecer no sentido de que devia ser negado provimento ao recurso, enunciando, para o efeito, a seguinte motivação:
«O impugnante A… é residente na Alemanha (probatório n°2);
É igualmente residente em Portugal, face à legislação portuguesa, porque o seu agregado familiar tem residência em Portugal (probatório n° 6; art.1671° n° 2 C.Civil; arts.15° n°1 e 16° n° 2 CIRS; art.4° n°1 Convenção sobre Dupla Tributação entre a República Portuguesa e República Federal da Alemanha (CDT) aprovada pela Lei n° 12/82, 3 Junho).
Em termos convencionais deve ser considerado residente na Alemanha em 1998, onde teve habitação permanente e exerceu a sua única actividade profissional, com excepção de um período de férias de três semanas, em que residiu em Portugal (art.4° n°2 al. a) CDT).
A remuneração do trabalho dependente auferida na Alemanha apenas aí pode ser tributada (art. 15° n°1 CDT).
As citadas normas da CDT prevalecem sobre as normas de direito interno nacional abstractamente aplicáveis na determinação da categoria de residente, dos rendimentos tributáveis e do Estado com competência para a tributação, de onde resulta a recusa de adopção do critério de residência por dependência (art. 8° n°2 CRP; arts. 15° n°1 e 16° n°2 CIRS).
A fundamentação enunciada alinha com jurisprudência do STA SCT que merece a nossa adesão (acórdãos 25.03.2009 processo n° 68/09 e de 8.07.2009 processo n° 382/09).».
1.5. Colhidos os vistos dos Exmºs Juízes Conselheiros Adjuntos, cumpre decidir em conferência.
2. A sentença recorrida considerou provada a seguinte matéria de facto:
1. O impugnante trabalhou durante 365 dias do ano de 1998 (com excepção do período de férias anual de 3 semanas) para a empresa C…, Ldª, com escritórios em … , n.º …, em Frankfurt, Alemanha e em Fr. Armbruster, Stuttgart.
2. No período em que prestou trabalho para a empresa, id. em 1. o impugnante residiu na Alemanha, provavelmente em … , Leonberg.
3. Ao abrigo do contrato de trabalho celebrado com a empresa, id. em 1., o impugnante auferiu, na qualidade de trabalhador por conta de outrem, em 1998, a importância de 46.650,59 marcos alemães, a que correspondem Esc. 4.776.881$00.
4. Tendo-lhe sido retido na fonte, o valor global de 3.586,31 marcos, a que correspondem Esc. 367.227$00, que pagou ao Estado Alemão como imposto sobre o rendimento por si auferido.
5. Na declaração Modelo 3, referente ao ano de 1998, apresentada em Portugal pelo casal, constituído pelos ora impugnantes, foram declarados como únicos rendimentos de ambos os rendimentos auferidos na Alemanha, pelo ora impugnante (tendo sido igualmente declaradas as retenções na fonte por este efectuadas, de acordo com o descrito no ponto 4.).
6. Os ora impugnantes possuem uma residência em Portugal.
7. Na sequência da apresentação da declaração, id. em 4., vieram os impugnantes a ser notificados para proceder ao pagamento voluntário do imposto sobre o IRS, relativo ao ano de 1998, no montante de € 3.790,07 ou Esc. 759.841$00, cujo prazo legal de pagamento terminava em 02/08/1999.
8. Na liquidação, mencionada em 7., não foi deduzido o imposto retido na fonte ao ora impugnante na Alemanha, no valor de Esc. 367.227$00.
9. Não se conformando com tal liquidação, os ora impugnantes deduziram tempestivamente reclamação graciosa, que foi indeferida e, na sequência desse indeferimento, a presente impugnação, que deu entrada em tribunal em 20/11/2001.
3. A questão colocada no presente recurso é a de saber se os rendimentos de trabalho que o Impugnante marido auferiu na Alemanha durante o ano de 1998 (único elemento do agregado familiar a auferir rendimentos nesse ano) devem ou não ser tributados em Portugal, tendo em conta que as autoridades fiscais alemãs já o tributaram como residente em território alemão face à sua residência nesse país durante o ano de 1998 (com excepção do período de férias de 3 semanas em Portugal), enquanto as autoridades fiscais portuguesas o tributam igualmente como residente em Portugal face à permanência, em território português, de uma habitação para sua residência e do seu cônjuge e restante agregado familiar.
Pelo que a questão em discussão se centra em saber se o Impugnante deve ser considerado residente em território português ou em território alemão para efeitos de aplicação da Convenção para evitar a dupla tributação celebrada entre Portugal e a República da Alemanha em matéria de Impostos sobre o Rendimento e sobre o Capital (doravante CDT Portugal/Alemanha), aprovada para ratificação pela Lei n.º 12/82, de 3 de Junho.
A decisão recorrida julgou procedente a impugnação, louvando-se, essencialmente, na doutrina que emana dos acórdãos desta Secção do STA de 25/03/2009 e de 8/07/2009, proferidos nos processos nºs 68/09 e 382/09, respectivamente. Considerou, em síntese, que tendo o Impugnante marido sido sujeito a imposto sobre o rendimento de trabalho dependente na Alemanha, por aí ter residido e trabalhado durante o ano de 1998, onde auferiu esse único rendimento, deve considerar-se residente nesse país para efeitos de aplicação da Convenção, independentemente de manter casa de habitação em Portugal e de o seu cônjuge e demais membros do agregado familiar se encontrarem nela a residir, por força da aplicação do artigo 4.º, n.º 1 da CDT Portugal/Alemanha, assim ficando afastada a regra contida no artigo 16.º, n.º 2, do CIRS em relação a este cidadão português.
Recorre dessa decisão a Fazenda Pública, insistindo na tese de que o artigo 4.º da CDT Portugal/Alemanha remete a definição de “residente” para a lei interna dos Estados contratantes, havendo, assim, que aplicar a disciplina constante dos artigos 14.°, 15.° e 16.° do CIRS, em face da qual os contribuintes, mesmo os emigrantes, são “residentes em território português” se aqui mantiverem habitação em condições que façam supor a intenção de a habitar ou aqui mantiverem a residência do seu cônjuge. Pelo que o Recorrido teria de ser considerado residente em Portugal, por ter casa de habitação neste país e o seu cônjuge aqui residir. Por outro lado, o n° 2 do art. 4.° da CDT configuraria diversas conexões decisivas em caso de competência cumulativa de ambos os Estados contratantes, entre as quais a localização de habitações permanentes à disposição do trabalhador, a localização do centro de interesses pessoais e económicos, a nacionalidade, todos favoráveis à competência tributária de Portugal, pelo que esta norma nunca poderia suportar a tese sufragada na decisão recorrida.
Vejamos.
Apesar de a jurisprudência dos tribunais superiores se ter vindo a dividir no tratamento jurídico da questão em análise No sentido defendido na decisão recorrida, para além dos acórdãos nela referidos, veja-se, por mais recente, o acórdão do STA de 8/09/2010, no processo n.º 461/2010; em sentido contrário, isto é, no sentido defendido pela Recorrente, e a título exemplificativo, os acórdãos do STA de 6/06/2001 e 15/03/2006, nos processos nsº 25985 e 1211/05, respectivamente, afigura-se-nos que a melhor interpretação da lei é a que vem exposta da decisão recorrida e que sufraga, como vimos, a mais recente orientação jurisprudencial deste Supremo Tribunal, erigida com o acórdão de 25/03/2009 e prosseguida nos acórdãos de 8/07/2009 e de 8/09/2010, prolatados nos processos nºs 68/09, 382/09 e 461/10, respectivamente.
Com efeito, a convincência da motivação jurídica daquele aresto, particularmente no que toca à supremacia das normas constantes de convenções internacionais por força da norma contida no artigo 8.º da Constituição da República Portuguesa, convence-nos da bondade e consistência da tese nele sufragada, no sentido de que deve ser dada prioridade ao artigo 4.º, n.º 1 da CDT Portugal/Alemanha na determinação do conceito de residência (fiscal) para efeitos de aplicação dessa Convenção, e que a remissão para a legislação fiscal interna dos Estados contratantes constante desse artigo 4.º, n.º 1 não deve ser vista como uma remissão incondicional, antes obrigando a que a análise da questão da residência seja feita individualmente, abstraindo da situação familiar do sujeito em causa, estabelecendo limites à natureza das conexões adoptadas pelas leis dos estados contratantes.
O que nos leva a rever e reponderar toda a argumentação que alicerçava a posição jurisprudencial anteriormente dominante e a aderir à posição sufragada nesse acórdão, adoptando-se, aqui, a sua proficiente fundamentação, que se transcreve:
«6.1 Residência do impugnante A… à luz do artigo 4.º, n.º 1 da Convenção entre a República Portuguesa e a República Federal da Alemanha para evitar a Dupla Tributação em matéria de Impostos sobre o Rendimento e sobre o Capital (CDT Portugal/Alemanha).
Importa interpretar o conceito de residência (fiscal) para efeitos de aplicação da Convenção, conceito que não se confunde necessariamente com o conceito de residência (fiscal) para efeitos de direito interno. O conceito de residência (fiscal) para efeitos de direito interno será plenamente aplicável nas situações que apenas apresentem conexão com a ordem jurídica nacional ou nas situações em que, havendo embora conexão com outra ordem jurídica, não há vinculação por via convencional do Estado Português com o Estado com o qual essa conexão se verifica.
Não é esse o caso da Alemanha, como se sabe, que celebrou com Portugal Convenção contra a Dupla Tributação (cfr. o ponto 2 do probatório). Assim, nas relações entre Portugal e a Alemanha em matéria de impostos sobre o rendimento e sobre o capital é o conceito convencional de residência que deve prevalecer, por via da supremacia do direito internacional sobre o direito interno ordinário (art. 8.º da Constituição da República Portuguesa; Cfr. JOSÉ CASALTA NABAIS, Direito Fiscal, 5.ª ed., Coimbra, Almedina, 2009, p. 104).
Dispõe a primeira parte do artigo 4.º, n.º 1 da CDT Portugal/Alemanha, sob a epígrafe “Residente” que: “Para efeitos desta Convenção, a expressão «residente de um Estado contratante» significa qualquer pessoa que, por virtude da legislação desse Estado, está aí sujeita a imposto devido ao seu domicílio, à sua residência, ao local de direcção ou a qualquer outro critério de natureza similar”.
Embora os conceitos de residência (fiscal) para efeitos convencionais e para efeitos fiscais internos não se confundam, a CDT Portugal/Alemanha, seguindo o Modelo de Convenção da OCDE (art. 4.º, n.º 1 do MCOCDE), remete a definição do conceito convencional de residência para a legislação interna dos Estados contratantes.
Esta remissão, não significa contudo, como esclarece a melhor doutrina (cfr. ALBERTO XAVIER, Direito Tributário Internacional, 2.ª ed., Coimbra, Almedina, 2007, p. 291), uma remissão incondicional.
Desde logo, pressupõe que a análise da questão da residência seja feita individualmente, pessoa a pessoa, abstraindo da situação familiar do sujeito em causa. Escreve a propósito ALBERTO XAVIER, op. cit., nota 61 a pp. 291, que «A análise da residência deve ser feita pessoa por pessoa, ainda que casadas, pelo que é frequente a existência de «casais mistos», sendo um dos membros considerado residente num país e o outro, noutro. (…). As Convenções sobrepõem-se portanto aos regimes internos que eventualmente consagrem, por ficção, a «residência» por «dependência» de uma pessoa no país de residência de qualquer dos outros membros do agregado familiar». Expressamente no mesmo sentido, na doutrina portuguesa, RUI DUARTE MORAIS, «Dupla tributação internacional em IRS: Notas de uma leitura em jurisprudência», Revista de Finanças Públicas e Direito Fiscal, ano I, n.º 1 (Primavera), 2008, pp. 116/117 e MARIA MARGARIDA CORDEIRO MESQUITA, As Convenções sobre Dupla Tributação, Lisboa, 1998, p. 85, onde se lê: «Relativamente às pessoas singulares, o teste da residência é efectuado contribuinte a contribuinte, independentemente da sua situação conjugal. O conceito convencional de residência sobrepõe-se aos regimes internos que, como o português, consagram a “residência por dependência” de uma pessoa no país da residência de outro membro do seu agregado familiar – cfr. Código do IRS, artigo 16.º, n.º 2».
Estabelece, por outro lado, limites quanto à natureza da conexão adoptada pela lei interna dos Estados contratantes, que deve ser, nos termos do n.º 1 do artigo 4.º da CDT Portugal/Alemanha «o domicílio, a residência, o local da direcção, ou qualquer outro critério de natureza similar» [cfr. ALBERTO XAVIER, op. cit., p. 291; MANUEL PIRES, «Artigo 16.º, n.º 2 do CIRS e as Convenções destinadas a Evitar a Dupla Tributação», in Estudos em Memória do Professor Doutor António Marques do Santos, vol. II, Coimbra, Almedina, 2005, p. 595; GUSTAVO LOPES COURINHA, «Ainda a propósito da tributação dos trabalhadores portugueses na Alemanha - Algumas notas», Revista de Finanças Públicas e Direito Fiscal, ano I, n.º 1 (Primavera), 2008, pp. 292/293 e doutrina estrangeira citada a nota 6 da p. 292).
Ora, ficou demonstrado que o impugnante A... (...)], sendo a qualidade de residente em Portugal que a Administração fiscal portuguesa lhe imputa (...) fruto da residência da impugnante esposa em território nacional no decurso do ano de (...).
Considerando-se, porém, que a análise da qualidade de residente tem de ser feita individualmente, a residência em Portugal da esposa é indiferente para efeitos de determinação da residência fiscal convencional de A... .
Acresce que também os critérios atendíveis para efeitos da CDT Portugal–Alemanha para determinar a qualidade de residente convencional do Impugnante A… têm de ser similares aos elencados no n.º 1 do artigo 4.º da CDT Portugal–Alemanha (domicílio, residência, local de direcção), ou seja, têm de ser critérios que exprimam uma ligação efectiva ao território do Estado, não sendo atendível para efeitos convencionais um mero critério de “residência por dependência” como o constante do artigo 16.º, n.º 2 do CIRS, por não exprimir por si mesmo qualquer conexão efectiva e real da maior parte das suas actividades económicas ao território português.
Resulta dos autos, que o impugnante é tributado na Alemanha pelos seus rendimentos do trabalho, únicos de que dispõe, não apenas porque na Alemanha obtém rendimentos do trabalho dependente (competência do Estado da fonte), mas porque aí tem residência habitual (competência do Estado da residência), (...) sendo tributado pelo seu rendimento universal (world-wide income)» (...).
Pode, pois, concluir-se com segurança que as autoridades fiscais alemãs tributam o impugnante como residente em território alemão, atendendo à residência “real e efectiva” de A… naquele território, enquanto as autoridades fiscais portuguesas fundam a sua pretensão de o tributar como residente atendendo à residência da família em Portugal no ano a que respeitam os rendimentos.
Deve, pois, concluir-se que, para efeitos de aplicação da CDT Portugal–Alemanha, o impugnante A… deve considerar-se residente apenas na Alemanha, sendo ilegal, por violação do artigo 4.º, n.º 1 da CDT Portugal–Alemanha, a sua qualificação como residente (fiscal) em Portugal que a Administração fiscal portuguesa lhe atribui.
6.2 Desnecessidade de recurso aos critérios de “desempate” constantes do artigo 4.º, n.º 2 da Convenção entre a República Portuguesa e a República Federal da Alemanha para evitar a Dupla Tributação em matéria de Impostos sobre o Rendimento e sobre o Capital (CDT Portugal/Alemanha).
Resolvida a questão da residência do Impugnante A… por aplicação do n.º 1 do artigo 4.º da CDT Portugal–Alemanha, concluindo-se no sentido da prevalência da sua qualificação como residente na Alemanha, desnecessário se torna recorrer aos “critérios de desempate” previstos no n.º 2 do artigo 4.º da mencionada Convenção, aplicáveis apenas nos casos em que se esteja perante uma situação de “dupla residência fiscal” lícita em face ao direito convencional que importará então “desempatar”, pois para efeitos convencionais o sujeito passivo apenas pode ser considerado residente num dos Estados contratantes, razão pela qual apenas uma das residências fiscais pode acabar por prevalecer - princípio da unicidade da residência (cfr. ALBERTO XAVIER, op. cit., pp. 292-293).
Nestes termos, fica prejudicado o conhecimento da questão da interpretação do critério do “centro de interesses vitais”, adoptado pelo artigo 4.º, n.º 2 da CDT Portugal–Alemanha, cujo conhecimento se impunha apenas no caso de se ter concluído no sentido da “dupla residência” convencional do impugnante.».
Nos presentes autos ficou demonstrado que no ano de 1998 o Impugnante marido trabalhou e residiu na Alemanha no decurso de quase todo o ano civil, em virtude de aí exercer diariamente a sua actividade como trabalhador por conta de outrem (cfr. pontos 1 e 2 do probatório). E a qualidade de residente em Portugal que a Fazenda Pública lhe imputa assenta, exclusivamente, no facto de conservar em Portugal o seu domicílio fiscal, mantendo aí casa de habitação para si, seu cônjuge e restante agregado familiar (sendo certo que não se apurou se estes residiam com ele na Alemanha ou se permaneceram em Portugal).
Ora, tendo em conta que as citadas normas da CDT Portugal/Alemanha prevalecem sobre as normas de direito interno nacional abstractamente aplicáveis na determinação da categoria de residente, e que delas resulta a recusa de adopção do critério de «residência por dependência» estabelecidas no Código do IRS, tendo a qualidade de residente de ser feita individualmente, não podemos deixar de concluir que é irrelevante, para efeitos de determinação da residência convencional do Impugnante (único a auferir rendimentos sujeitos a tributação no ano em questão), a manutenção do seu domicílio fiscal em Portugal e o facto de aí conservar casa destinada à habitação ou de nesta residir, eventualmente, o seu cônjuge e elementos do seu agregado familiar.
Deste modo, e em suma, o Impugnante marido é, para efeitos de aplicação da mencionada Convenção, residente na Alemanha e não em Portugal, pelo que não têm de aplicar-se os critérios de “desempate” constantes do artigo 4.°, n.° 2 da Convenção, nem de aplicar-se as regras de competência cumulativas previstas no artigo 15.°, n.°1, parte final da Convenção, conforme pretende a Fazenda Pública, porquanto essas disposições só são aplicáveis nos casos em que se esteja perante uma situação de “dupla residência fiscal” que importe solucionar.
A sentença recorrida não merece, pois, qualquer censura, improcedendo todas as conclusões do recurso.
4. Face ao exposto, acordam os juízes da Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo em negar provimento ao recurso.
Sem custas (por delas estar isenta a Fazenda Pública).
Lisboa, 27 de Outubro de 2010. - Dulce Manuel Neto (relatora) - Brandão de Pinho (com declaração infra) – António Calhau. (Votei a decisão com o fundamento de que, sendo o contribuinte (cônjuge marido) residente simultaneamente em Portugal e na Alemanha, todavia nesta se radicou o seu centro de interesses vitais – cfr. nºs 1 e 2 do probatório -, nos termos do artº 4 nº 2 da referida Convenção para evitar a dupla tributação).