Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0637/15
Data do Acordão:07/02/2015
Tribunal:1 SECÇÃO
Relator:MARIA BENEDITA URBANO
Descritores:ACTO LEGISLATIVO
INCOMPETÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL ADMINISTRATIVO
TAP
Sumário:I - Os dispositivos impugnados não contêm actos materialmente administrativos sob a forma de lei.
II - O STA é incompetente em razão da matéria para conhecer de acção em que se impugnam actos de natureza legislativa.
Nº Convencional:JSTA00069279
Nº do Documento:SA1201507020637
Data de Entrada:05/21/2015
Recorrente:ASSOC A... E OUTROS
Recorrido 1:PRESIDÊNCIA DO CM E OUTROS
Votação:UNANIMIDADE
Meio Processual:SUSPEFIC
Objecto:DL CM
Decisão:DECL INCOMPETÊNCIA
Área Temática 1:DIR ADM CONT - SUSPEFIC
DIR ADM ECON
Legislação Nacional:CONST05 ART268 N4
ETAF02 ART4 N2 A ART24 N1 C.
CPTA02 ART52 N1 ART120.
CPC13 ART278 N1 A.
L 11/90 DE 1990/04/05.
L 102/03 DE 2003/11/15.
L 50/11 DE 2011/09/13.
DL 181-A/2014 DE 2014/12/24.
Jurisprudência Nacional:AC STAPLENO PROC01257/05 DE 2006/06/07.; AC STAPLENO PROC0469/13 DE 2013/07/04.; AC STAPLENO PROC01031/13 DE 2014/06/05.; AC STAPLENO PROC0949/14 DE 2015/03/19.; AC STA PROC0399/13 DE 2013/04/04.; AC STA PROC01026/13 DE 2014/07/05.; AC STA PROC0623/14 DE 2014/09/10.; AC STA PROC0949/14 DE 2014/11/20.
Referência a Doutrina:AROSO DE ALMEIDA E CARLOS CADILHA - COMENTÁRIO AO CÓDIGO DE PROCESSO NOS TRIBUNAIS ADMINISTRATIVOS 2ED 2007 PAG434.
REBELO DE SOUSA E SALGADO DE MATOS - DIREITO ADMINISTRATIVO GERAL TI 2006 PAG36-38.
Aditamento:
Texto Integral: Acordam em conferência na Secção de Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo:


I – Relatório

1. A “Associação A…………….”, B…………………., C………….., D……………. e E………………., devidamente identificados nos autos, instauraram neste Supremo Tribunal a presente providência cautelar contra a Presidência do Conselho de Ministros (PCM), o Conselho de Ministros (CM) e as contra-interessadas F………….., SGPS, SA (F…………….) e G……………, SGPS SA.

Ao abrigo do artigo 120.º do CPTA, cujos requisitos (positivos e negativos) relativos à concessão da providência cautelar entenderam estar preenchidos (se não pela via da al. a), pelo menos pela via da al. b) e do n.º 2), peticionaram a adopção de providência cautelar de “suspensão da eficácia do Decreto-lei 181-A/2014 de 24 de Dezembro, publicado no Diário da República, 1.ª série – N.º 248 – 24 de dezembro de 2014, que aprovou o processo de reprivatização indirecta do Capital Social da G…………….., S.A. (G…………, S.A.)” (cfr. fl. 32).

O pedido inicialmente formulado foi objecto de rectificação, passando o mesmo a dirigir-se à decretação da “suspensão da eficácia dos actos administrativos supra referidos, contidos no Decreto-lei 181-A/2014 de 24 de Dezembro, publicado no Diário da República, 1.ª série – N.º 248 – 24 de dezembro de 2014, que aprovou o processo de reprivatização indirecta do Capital Social da G…………, S.A. (G…………, S.A.)” (cfr. fl. 77).

2. O CM, nos termos e para os efeitos do n.º 1 do artigo 128.º do CPTA, proferiu resolução fundamentada (cfr. fls. 162-172), na qual sustenta, em síntese, que a suspensão da eficácia de comandos constantes do Decreto-Lei n.º 181-A/2014, de 24 de Dezembro, acarretará graves prejuízos para o interesse público.

3. O Requerido deduziu oposição (cfr. fls. 195-247), na qual se defende por excepção (incompetência da jurisdição administrativa, caducidade do direito de ação e ineptidão da petição inicial por incompatibilidade entre o pedido e a causa de pedir), e, caso esta defesa por excepção seja considerada improcedente, por impugnação, sustentado a improcedência do pedido por não se verificarem os requisitos da providência cautelar constantes do artigo 120.º do CPTA, dado que ficaram por demonstrar razões susceptíveis de justificar o seu preenchimento.

4. Dos restantes, apenas se pronunciou a contra-interessada F……………, deduzindo oposição (fls. 372 e ss), defendendo igualmente matéria exceptiva. Desde logo, a incompetência material deste Tribunal, argumentando, em síntese apertada, que nenhum dos alegados actos administrativos suspendendos “produz efeitos sobre uma situação individual e concreta – antes prevêem, como qualquer norma, que determinados atos venham a produzir efeitos sobre essa situação individual e concreta”. Subsidiariamente é invocada a caducidade do direito de acção dos Requerentes. Defende-se também por impugnação, sustentando a manifesta falta de verificação dos pressupostos de decretamento da providência requerida.

5. Notificados da resolução fundamentada referida em 2., os Requerentes vieram sobre ela pronunciar-se, solicitando a improcedência das “razões em que a Resolução Fundamentada do Requerido se fundamenta, pelo vício de falta de fundamentação nos termos previstos no artigo 152º 153º, nº 1 e 2º do CPA e 268º, nº 3 da Lei Fundamental”, sustentando que “o diferimento da execução do acto suspendendo não é gravemente prejudicial para o interesse público, assim se” devendo manter “a suspensão da execução do acto suspendendo”, mais requerendo a declaração de ineficácia dos actos de execução indevida entretanto praticados pelo CM, nomeadamente a Resolução do Conselho de Ministros (RCM) n.º 38-A/2015, de 12.06, que: “a. Selecciona o Agrupamento H……….., como proponente vencedor do processo de reprivatização da G………….. b. Aprova os instrumentos jurídicos a celebrar entre a F………….., SGPS e o proponente seleccionado. c. Que determina que a F…………… envie para o proponente seleccionado as minutas dos instrumentos jurídicos aprovados. d. Que autoriza a F…………… a celebrar os instrumentos jurídicos a que se refere a alínea b). e. Que determina que após a conclusão do processo de reprivatização, o Governo coloque à disposição do Tribunal de Contas, todos os elementos respeitantes ao mesmo. f. Que determina que a dita Resolução produz efeitos a partir da data da sua aprovação” (fls. 343-4).

5.1. Na sua resposta ao incidente declaração de ineficácia dos actos de execução indevida, o Requerido invoca o bem fundada que está a resolução fundamentada, em particular, que são “irrelevantes”, “fracos” ou mesmo incorrectos os argumentos utilizados pelos Requerentes para sustentar que os preceitos em crise contêm actos materialmente administrativos, designadamente, o de que o requerimento cautelar não foi liminarmente rejeitado; o de que “o programa de privatizações constante do Memorando de Entendimento se limitava a ter como objetivo a simples arrecadação de verbas” (29.º) – informa o Requerido que aquele tem um propósito mais amplo, de “reestruturação, reforma (…) da nossa Economia” (30.º); as divagações sobre temas vários (39.º); o de “que o Estado poderia apoiar financeiramente a G……………… mediante empréstimo, ou ainda através da exceção admitida por uma comissária europeia em entrevista à imprensa (!) ou através do princípio “one time, last time” (40.º); o de que “a Resolução Fundamentada carece «de suporte probatório no que tange aos factos alegados», «ausência só justificável em virtude dos factos alegados não serem verdadeiros»” (44.º); o de que é “falso o que se afirma no ponto 10.º da Resolução Fundamentada, de que a Comissão Europeia, como contrapartida da injeção de capital operada em 1994, impôs restrições como reduções de custos, redução de frotas e, em particular, despedimentos” (45.º); o de que “a situação de instabilidade na empresa se deve ao Requerido, sendo que foi a sua insistência em avançar com a privatização da empresa que deu lugar a «uma greve totalmente forçada»” (49.º); o de que “a redução da capacidade de financiamento da G……….. decorre da tentativa de reprivatização da empresa” (52.º); o de que a suspensão do processo até à decisão da providência cautelar não coloca em causa o procedimento de privatização em curso (55.º); o de que existe um “zigue zague discursivo” relativamente à real situação económica e financeira da G……….. (88.º). “Em suma, o exposto permite concluir com toda a certeza que os Requerentes não logram desenvolver uma argumentação capaz de satisfazer o controlo de evidência que a nossa jurisprudência exige em matéria de declaração de ineficácia de atos de execução indevida” (96.º), confundindo “a discordância quanto aos fundamentos da resolução com a insuficiência dos mesmos” (98.). Deste modo, concluem no sentido de que “deve ser indeferido o requerimento por não se verificarem quaisquer vícios que pudessem assacar-se à resolução fundamentada, designadamente o de deficiente fundamentação” (fl. 506).

5.2. Também a contra-interessada F…………. apresentou pronúncia em resposta ao incidente suscitado pelos Requerentes, evidenciando, igualmente, que “os Requerentes não lograram pôr em causa a Resolução Fundamentada emitida pelo Conselho de Ministros neste processo” (6.). Invocam, em síntese, que “Da leitura do requerimento dos Requerentes resulta claro que estes procuram, de forma exaustiva, apresentar os motivos pelos quais discordam das razões de interesse público que o Conselho de Ministros apresentou para fundamentar a necessidade de execução do Decreto-Lei suspendendo” (12.), o que “não é minimamente aceitável nem idóneo para fundar um pedido de declaração de ineficácia de atos de execução indevida” (13.), pois que tal representa um claro desvio à finalidade própria do incidente em apreço. Para o efeito, convocam o recentíssimo acórdão deste Supremo Tribunal, em que foi julgada uma outra providência cautelar apresentada pelos mesmos Requerentes e relativa ao mesmo processo de reprivatização da G………… Concluem, deste modo, no sentido de “que nenhuma razão – material ou processual – assiste aos Requerentes” (21.), pelo que “deve o incidente de declaração de ineficácia de atos de execução indevida ser julgado integralmente improcedente, por não provado” (fl. 520).

6. Ainda antes da pronúncia do Requerido e da F……………… sobre tal incidente de declaração de ineficácia dos actos de execução indevida – dele notificados na mesma data em que deu entrada neste Supremo Tribunal o pedido adiante mencionado –, e em face de notícias vindas a público nos meios de comunicação social segundo as quais a celebração do contrato de venda da G…… entre o Governo e o consórcio vencedor ocorrerá muito em breve, mais concretamente no dia 24.06, os Requerentes formularam e apresentaram pedido de decretamento provisório da requerida providência cautelar ao abrigo dos artigos 112.º, n.º 1, e 131.º do CPTA (cfr. fls. 410 e ss), sendo um tal pedido justificado pelo motivo de que “nada faria prever que o Requerido iria celebrar o contrato em tão curto espaço de tempo – a saber, já no próximo dia 24 de Junho. Como tal, caso houvessem os Requerentes peticionado o decretamento provisório, certamente tal expediente processual não seria decretado – e justamente diga-se – por não se verificar preenchido o requisito da especial urgência. Porém, na presente data, entendem os Requerentes que o requisito da especial urgência se encontra preenchido, não só porque decorreu já mais de um mês sobre a entrada em juízo do procedimento cautelar, como assim e ainda pelo facto de não terem ainda – Requerido e contra interessados – deduzido competente oposição da providência cujo prazo, pese embora com multa terminou ontem, mas que ainda vai em tempo, se esta tiver sido expedida em correio até à data de ontem” (9., 10. e 11.).

6.1. Notificado do pedido de decretamento provisório da providência cautelar – que entende “nesta fase do processo, não pode[r] deixar de ser encarada com surpresa” –, veio o Requerido responder, pronunciando-se, em suma, no sentido da sua improcedência, sustentando a sua posição, desde logo, na circunstância de: (i) se encontrarem “notoriamente ausentes desta lide cautelar” quaisquer direitos, liberdades e garantias, não se vislumbrando no requerimento inicial da providência cautelar a alegação de lesão de qualquer direito, liberdade e garantia, quer na parte relativa à demonstração do alegado fumus boni iuris, quer na parte relativa à demonstração do periculum in mora; de igual modo, no requerimento relativo ao decretamento provisório da providência cautelar, os requerentes não chegam a explicar qual ou quais os direitos, liberdades e garantias que estão em causa; (ii) não se encontrar preenchido o requisito da especial urgência; com efeito, os “interesses (desprovidos de proteção jusfundamental) dos requerentes”, nem são “insuscetíveis de exercício em tempo útil caso esse Supremo Tribunal recuse o decretamento”, “nem sequer revelam particular urgência”; na realidade, não só “Nada, absolutamente nada, seja nas declarações públicas do requerente, seja no disposto no Decreto-Lei n.º 181-A/2014, de 24 de dezembro, sugere que este procedimento iria, forçosa ou sequer provavelmente, arrastar-se por um período mais longo”, como, “Conforme os próprios Requerentes reconhecem, tal formalidade” [a assinatura do contrato] “não constitui o fim do procedimento de reprivatização em curso”.
Além de alegar que não se encontram preenchidos os requisitos previstos no artigo 131.º, n.os 1 e 4, do CPTA, o Requerido, reconhecendo embora que “tais questões não constituem o objeto imediato do presente incidente”, recorda que “na ponderação relativa ao decretamento de uma medida tão gravosa, o Tribunal não poderá deixar de ter em conta que, no âmbito dos presentes autos, os prejuízos decorrentes da proibição de executar os atos suspendendos foram considerados suficientemente vultuosos para justificar a emissão de uma resolução fundamentada – justamente a resolução fundamentada cujos efeitos os requerentes anseiam inutilizar, porventura em resultado da escassa confiança na consistência dos argumentos por si aduzidos no âmbito do incidente de declaração de ineficácia de atos de execução indevida a que deram causa. O decretamento provisório da providência cautelar teria, como efeitos, os danos desenvolvidamente referidos na referida resolução fundamentada, bem como na oposição à providência cautelar e na resposta ao incidente de declaração da ineficácia de atos de execução indevida”.
Acresce ainda a “circunstância de manifestamente não estarmos perante atos materialmente administrativos, pelo que não assiste competência à jurisdição administrativa para apreciar tais comandos jurídicos – nem a título principal, nem a título cautelar, nem sequer, logicamente, a título cautelar provisório, dado que tal incompetência absoluta se projecta sobre toda e qualquer pronúncia, independentemente da qualidade em que é efetuada. Trata-se de um obstáculo intransponível ao decretamento de qualquer providência ou sequer ao conhecimento do respetivo pedido” (34.º). Segundo o Requerido, esta excepção, bem como as outras que foram suscitadas na sua oposição à providência cautelar – todas elas de conhecimento oficioso – devem ser também nesta sede consideradas por este Supremo Tribunal (36.º).
Relativamente à abertura do incidente em causa, a seu ver inusitada nesta fase processual, considera que se trata “dum claro abuso de direito e de uma fraude à lei, por envolver uma subversão dos objetivos tidos em vista pelo legislador através desta ferramenta processual” (1.º).

6.2. Também a F………………… veio responder e igualmente no sentido da improcedência do pedido de decretamento provisório da providência cautelar, em termos algo semelhantes aos do Requerido. Assim, destaca-se que “não está aqui em causa, nem remotamente, a tutela de direitos, liberdades e garantias” (1.). De forma genérica, defende-se que “deve improceder o pedido de decretamento provisório da providência porque, como resulta já das Oposições apresentadas nos autos, essa mesma providência visada pelos Requerentes é manifestamente improcedente e não tem qualquer probabilidade de sucesso” (4.). “Embora tal requisito não figure expressamente no artigo 131.º, n.º 3 do CPTA, é pacificamente entendido que a manifesta improcedência da pretensão principal ou cautelar do requerente implica também, naturalmente, a inviabilidade do pedido de decretamento provisório que seja efetuado (5.). Além disso, sustenta-se a incompetência material deste STA “para conhecer da ação principal e deste processo cautelar, o que acarreta a necessária constatação de que tais iniciativas processuais estão condenadas à improcedência” (11.), em virtude de os actos suspendendos não constituírem “atos administrativos, mas antes normas legais, contidas no Decreto-Lei n.º 181-A/2014, que definiu os termos gerais do processo de reprivatização do capital social da G…………” (10.). De idêntico modo, “ocorre caducidade do direito de ação dos Requerentes, por as ilegalidades por estes alegadas, constantes de um ato legislativo de Dezembro de 2014, nem sequer em teoria poderem corresponder a um vício de nulidade e já terem decorrido mais de três meses desde a publicação do Decreto-Lei em apreço” (12.). Acresce a isto o argumento de que “a celebração próxima do Contrato não constitui, nem em abstrato, nem em concreto, uma ameaça à posição ou aos interesses que aqui supostamente defendem, não existindo, por isso, uma «situação de especial urgência» que justifique o recurso ao excecionalíssimo e restritíssimo incidente de decretamento provisório da providência requerida” (16.), mais se afirmando que, “se urgência houvesse – que não há –, ela seria imputável, desde logo, aos próprios Requerentes, que poderiam ter intentado o presente processo cautelar muito antes do que fizeram…” (17.). O lapso de tempo que decorreu desde a publicação do DL n.º 181-A/14 serve ainda como argumento para contestar a ideia de que “quando este processo cautelar foi intentado, não [era] possível prever que o contrato viria a ser celebrado nesta altura (ainda que não se soubesse a data exata”) (20.). Ainda relativamente ao requisito da especial urgência, invoca a F………….. que ela “não existe, sequer em abstrato (…), porque a celebração do Contrato, como sucede em qualquer processo semelhante, não implica a inutilidade superveniente da lide nem a uma lesão irreversível dos direitos dos Requerentes” (25.). Um último argumento é o de que, “no caso concreto, esse decretamento provisório implicaria um grave prejuízo para os interesses públicos prosseguidos pelos ‘atos’ suspendendos, razão suficiente para obstar a que ele fosse proferido” (38.), não devendo uma providência “ser provisoriamente decretada se com ela se causarem significativos prejuízos para os interesses públicos concretamente prosseguidos, não bastando, por isso, que exista uma situação de especial urgência para que um tal pedido possa ser julgado procedente” (40.).

6.3. Em resposta à dedução da matéria exceptiva deduzida nas oposições ao pedido de decretamento provisório da providência cautelar por parte do Requerido e da contra-interessada, começam os Requerentes por argumentar, no essencial, e relativamente ao alegado pelo primeiro, que não ficou demonstrado que tenha havido qualquer subversão da finalidade do incidente em apreço (4.). Esclarecem ainda que, nos termos do n.º 1 do artigo 131.º do CPTA, o decretamento provisório de uma providência cautelar pressupõe a verificação, em alternativa, e não cumulativamente, de uma das condições aí especificadas (a tutela de direitos, liberdades e garantias ou uma situação de especial urgência). Mais ainda, afirmam que “Sobre as afirmações do Requerido e contra-interessado de que a assinatura do contrato de alienação da G………. não acarretará uma situação de facto consumado, não deixa de ser curioso verificar que quando assim é dos seus interesses, não se coíbem de dizerem que temos razão” (13.). “Ora, independentemente deste acervo inesperado de humildade, o facto é que apesar de ser esse o entendimento dos Requerentes, tanto parte da doutrina como alguma jurisprudência entendem que tal assinatura implicará a inutilidade superveniente da providência cautelar” (14.) – reconhecendo, porém, que “Esta questão não é pacífica, e existem opiniões diametralmente opostas (…)” (15.). Rejeitam também os argumentos de que não chegaram a invocar qualquer prejuízo enquanto fundamento do susposto periculum in mora e de que não se está perante actos materialmente administrativos, daí se devendo concluir pela incompetência material da jurisdição administrativa. Relativamente ao alegado pela contra-interessada, esclarecem, antes de mais, que “só se pode considerar manifestamente improcedente a pretensão cautelar quando esta seja liminarmente indeferida, no momento em que passa pelo crivo prévio efectuado pelo Tribunal, o que não aconteceu no caso concreto” (25.). “Sobre a manifesta ilegitimidade seja por parte dos Requerentes, seja por parte do Douto Tribunal, já este se pronunciou favoravelmente pela legitimidade de ambos (34.). Terminam reiterando “a sua posição pugnando que se está de facto perante uma situação de especial urgência, em virtude de que a decisão de mérito sobre a providência cautelar será sempre posterior à celebração do dito contrato, e que com a assinatura do mesmo se corre o grave risco de se gerar uma situação de facto consumado, estando assim preenchidos os pressupostos exigidos pelo artigo 131º do CPTA, para que seja decretada provisoriamente a providência (35.). Em consequência, requerem que sejam julgadas improcedentes as excepções invocadas pelo Requerido e contra-interessado e, em conformidade, que proceda o pedido de decretamento provisório da providência (fl. 538).

7. Sem vistos, dado o disposto no artigo 36.º, n.os 1, al. e), e 2, do CPTA, vêm os autos à Conferência para decidir.

II – Fundamentação

1. De facto:

Com interesse para a decisão, considera-se como assente o seguinte quadro factual:

(i) Através de ofício sob a referência 022804, de 27.11.14, sob o assunto “Reprivatização de até 66% do capital social da G……….., SGPS, S.A. – Avaliação Financeira”, remetido pela F………….. à I…………, S.A., foi comunicado por aquela a esta que “vem por este meio agradecer (…) a apresentação da Proposta de Assessoria Financeira para avaliação da G………., SGPS, SA, de 21 de novembro, e informar que, no âmbito das consultas realizadas e à subsequente análise das propostas recebidas, a «I…………, SA» foi selecionada para a prestação da referida Assessoria. (…) Assim, confirmamos a adjudicação da V/proposta, nos seguintes termos financeiros (…)” (cfr. doc. n.º 1, junto com a oposição do Requerido - fl. 248 -, cujo teor aqui se dá por reproduzido).

(ii) Através de ofício sob a referência 022805, de 27.11.14, sob o assunto “REPRIVATIZAÇÃO DE ATÉ 66% DO CAPITAL SOCIAL DA G…….., SGPS, S.A. - AVALIAÇÃO FINANCEIRA”, remetido pela F………….. à J………….., foi comunicado por aquela a esta que “vem por este meio agradecer (…) a apresentação da Proposta de Assessoria Financeira para avaliação da G…………, SGPS, SA, de 21 de novembro, e informar que, no âmbito das consultas realizadas e à subsequente análise das propostas recebidas, a «J…………..» foi selecionada para a prestação da referida Assessoria. (…) Assim, confirmamos a adjudicação da V/proposta, nos seguintes termos financeiros (…)” (cfr. doc. n.º 2, junto com a oposição do Requerido – fl. 249 - cujo teor aqui se dá por reproduzido).

(iii) No Diário da República, I.ª Série, n.º 248, de 24.12.14, foi publicado o DL n.º 181-A/2014, tendo-se procedido no mesmo à aprovação do processo de reprivatização indirecta do capital social da G………….., S.A. mediante a reprivatização do capital social da G……………, SGPS, S.A..

(iv) Por escritura outorgada em 02.04.15 em Cartório Notarial de Lisboa foi constituída associação denominada de “Associação A…………”, aqui ora Requerente, a qual se rege por Estatutos anexos e dos quais se extrai, nomeadamente, que se trata de “associação cívica, sem fins lucrativos, constituída por tempo indeterminado, de natureza altruísta, destinada à consagração e defesa de valores cívicos consagrados na Constituição da República Portuguesa e dotada de personalidade jurídica, constituída de harmonia e em conformidade com o estabelecido pelo regime jurídico das associações” (art. 1.º, n.º 2), e que contam-se, entre os seus “fins e atribuições”, os de “n) Intervir, também política e civilmente, contra a alienação total ou maioritária das Empresas estratégicas do Setor empresarial do Estado”; e (…) r) Dinamizar a realização de petições, ações populares, referendos e iniciativas legislativas de cidadãos (…)” (art. 4.º).

(v) O presente processo cautelar deu entrada em juízo em 20.05.15 (cfr. fls. 2 e ss).

(vi) No dia 04.06.15, o Conselho de Ministros deliberou aprovar resolução fundamentada (cfr. fls. 162 e ss dos autos), cujo teor aqui se dá por inteiramente reproduzido, donde se extrai, da sua parte final, a seguinte conclusão: “O interesse público que compete ao Governo defender sairia gravemente prejudicado pela suspensão neste momento do processo de reprivatização indireta da G…………… - SGPS, S.A., pelo que se adota a presente resolução. Assim, com os fundamentos acima referidos, através desta resolução reconhece-se que existe grave prejuízo para o interesse público na suspensão de eficácia de comandos constantes do Decreto-lei n.º 181-A/2014, de 24 de dezembro, nos termos e para os efeitos previstos na parte final do n.º 1 do artigo 128.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos” (fl. 172).

(vii) No Diário da República, I.ª Série, n.º 98, de 21.05.15, foi publicada a RCM n.º 32-A/2015, datada de 21.05.15, e que aqui se dá por integralmente reproduzida, donde se extrai, nomeadamente, o seguinte:

“Assim:

Nos termos do n.º 2 do artigo 14.º do caderno de encargos aprovado em anexo à Resolução do Conselho de Ministros n.º 4-A/2015 (…), do artigo 8.º do Decreto-Lei n.º 181-A/2014 (…), e das alíneas c) e g) do artigo 199.º da Constituição, o Conselho de Ministros resolve:

1 - Determinar, em conformidade com o disposto no relatório apresentado pela F………… (…), que a proposta apresentada pela L…………, SGPS, S.A., por não preencher os requisitos mínimos legalmente impostos pelo caderno de encargos do processo de reprivatização da G…………, SGPS, S.A., aprovado em anexo à Resolução do Conselho de Ministros n.º 4-A/2015 (…) não seja incluída no acervo de propostas vinculativas a ser tomado em consideração para efeitos da respetiva análise e avaliação.

2 - Determinar que a F…………., nos termos previstos no seu relatório, comunique à L………….., SGPS, S.A., a decisão de não considerar a proposta por si apresentada para efeitos de avaliação à luz do presente processo de reprivatização.

3 - Determinar que seja realizada uma fase de negociações para a qual devem ser convidados os seguintes proponentes:

a) Agrupamento M…………………., constituído pela N……….. e por O………………..;

b) Agrupamento H…………, constituído pela P…………….. e pela sociedade Q………. SGPS SA.

4 - Determinar que a F……….. proceda, nos termos previstos no seu relatório, ao envio aos proponentes referidos no número anterior da carta-convite para a fase de negociações, prevista no n.º 2 do artigo 14.º do caderno de encargos, aprovado em anexo à Resolução do Conselho de Ministros n.º 4-A/2015 (…) devendo subsequentemente dar início às negociações.

5 - Determinar que a presente resolução produz efeitos a partir da data da sua aprovação (…)”.

(viii) Os Requerentes, notificados da resolução fundamentada referida em (vi) vieram, em 15.06.15, pronunciar-se sobre a mesma, ao abrigo do n.º 4 do artigo 128.º do CPTA, deduzindo incidente de declaração de ineficácia de actos de execução indevida (cujo teor aqui se dá por reproduzido – cfr. fls. 314 e ss dos autos).

(ix) Em 17.06.15, a F……….., contra-interessada no presente processo cautelar, veio deduzir oposição ao pedido de providência cautelar apresentado pelos Requerentes (oposição cujo teor aqui se dá por reproduzido – fls. 372 e ss).

(x) Em 17.06.15 foi intentado pelos Requerentes pedido de decretamento provisório da providência cautelar (cujo teor aqui se dá por reproduzido – fls. 410 e ss).

(xi) Em 22.06.15, o Requerido apresentou pronúncia sobre o pedido de decretamento provisório da providência cautelar (cujo teor aqui se dá por reproduzido – fls. 452 e ss dos autos).

(xii) Em 22.06.15, o Requerido apresentou pronúncia sobre o incidente de declaração de ineficácia de actos de execução indevida suscitado pelos Requerentes (cujo teor aqui se dá por reproduzido – cfr. fls. 477 e ss dos autos).

(xiii) Em 23.06.15, a F………… apresentou pronúncia sobre o incidente de declaração de ineficácia de actos de execução indevida deduzido pelos Requerentes (cujo teor aqui se dá por reproduzido – cfr. fls. 517 e ss dos autos).

(xiv) Em 23.06.15, a F………… apresentou pronúncia sobre o pedido de decretamento provisório da providência cautelar (cujo teor aqui se dá por reproduzido – fls. 521 e ss dos autos).

(xv) Em 23.06.15, os Requerentes vieram responder à matéria exceptiva deduzida pelo Requerido e pela contra-interessada F………… (cujo teor aqui se dá por reproduzido – fls. 533 e ss dos autos).

2. De direito:

2.1. Conforme foi mencionado no Relatório, em 1., o pedido inicialmente formulado pelos Requerentes – a suspensão da eficácia do DL n.º 181-A/2014, de 24.12 – foi objecto de posterior rectificação, passando o mesmo a dirigir-se à decretação da suspensão da eficácia dos actos administrativos “supra referidos” alegadamente contidos no DL n.º 181-A/2014, de 24.12, (fl. 77). Ora, os comandos individualizados no requerimento inicial são três: os artigos 1.º, n.º 1, 2.º, n.º 1 e 8.º, n.os 1 e 2, do decreto-lei em apreço (cfr. fls. 11 a 13). Aí se diz, em síntese (cfr. artigos 48.º a 57.º):

“48 - Começando pelo artigo 1º, nº 1 que estabelece: «É aprovado (acto decisório) o processo de reprivatização indirecta do capital social da G………..…. e que é regulado (novo acto decisório) pelo presente diploma…».

49 - Seguidamente, no artigo 2º, nº 1:«O processo de reprivatização do capital social da G………. compreende uma venda directa de referência de acções representativas de até 61% do capital social da G……….…» – novo acto decisório. (…)

50 - Atentando ao artigo 8º cuja epígrafe se denomina “Regulamentação”, constata-se que o artigo em causa, vem-se regular os procedimentos necessários para a concretização da reprivatização da G…………..

51 - Diz o n.º 1 que as condições finais e concretas das operações a realizar são estabelecidos mediante a aprovação de uma ou mais resoluções (novo acto decisório).

52 - Estamos, sem margem para dúvidas, na presença dum acto administrativo, porquanto decide que as condições finais e concretas, no âmbito da reprivatização da G…………., só podem ser estabelecidas por meio de resoluções.

53 - E a verdade, não existe qualquer traço de um acto legislativo, não só porque lhe faltam os pressupostos de generalidade e abstracção e como assim e ainda porque se trata de um acto decisório – características já acima demonstradas que pertencem ao que se entende por um acto administrativo.

54 - Pode ainda verificar-se no nº 2 do artigo e no que toca à venda directa de referência, igual conteúdo decisório ao atribuir competências ao Conselho de Ministros para todos os actos necessários para a operação de reprivatização da G………, onde entre essas competências, se encontra a competência do Conselho de Ministros para a elaboração e aprovação do caderno de encargos, procedimento que entretanto já se efectuou.

55 - Assim, o nº 2 do dito artigo é, tal como o nº 1, um acto materialmente administrativo, pelo seu carácter decisório de atribuição de competências ao Conselho de Ministros para uma série de actos.

56 - Produzindo o Decreto-lei, através dos seus actos decisórios, efeitos na esfera jurídica de uma pessoa (colectiva), aqui em concreto a G…………., estamos perante um acto materialmente administrativo por excelência.

57 – E dúvidas houvesse que o referido artigo 8.º – tal como os demais actos mencionados a título de exemplo – embora sob a forma de acto legislativo, fossem um acto materialmente administrativo, sempre estariam tais dúvidas dissipadas”.

2.2. Esta individualização dos alegados actos materialmente administrativos a suspender faz-se no âmbito de uma parte do requerimento inicial que se intitula “III – Da sindicabilidade da acção”. Nesta sede, além de se enfatizar a natureza de actos materialmente administrativos dos actos suspendendos, aflora-se a questão da sua impugnabilidade. De facto, a certa altura diz-se: “33 – Para terminar, diz ainda o mesmo Acórdão: «São fiscalizáveis pelos tribunais administrativos todos os actos materialmente administrativos, independentemente da sua forma»”.

De forma mais explícita, o Requerido e a contra-interessada, nas suas respectivas oposições ao pedido inicial – bem assim como na oposição ao pedido de decretamento provisório da providência cautelar –, vêm suscitar a questão da incompetência da jurisdição administrativa para conhecer dos actos suspendendos, haja em vista que, contrariamente ao entendimento dos Requerentes, sustentam que se trata de actos de natureza legislativa, quer do ponto de vista formal, quer do ponto de vista material, e, por esse motivo, inimpugnáveis junto dos tribunais administrativos.
A esta excepção da incompetência da jurisdição administrativa para conhecer das pretensas ilegalidades e inconstitucionalidades dos actos suspendendos acresceram as excepções de caducidade do direito de acção dos Requerentes (arguida pelo Requerido e pela contra-interessada) e de ineptidão da petição inicial por incompatibilidade entre o pedido e a causa de pedir (arguida pelo Requerido), aduzidas nas respectivas oposições à providência cautelar, e, de igual modo, nas oposições que deduziram contra o pedido de decretamento provisório da providência cautelar.
Em face disto, resulta com clareza que, antes mesmo de passar à apreciação do mérito da providência cautelar – designadamente a apurar se os respectivos requisitos de concessão, previstos no artigo 120.º do CPTA, se encontram preenchidos –, assim como do mérito do incidente de declaração de ineficácia dos actos de execução indevida, e bem assim do mérito do pedido de decretamento provisório da providência cautelar, há que apreciar as excepções arguidas pelos requeridos. E, desde logo, deve preceder nesta análise a questão da alegada incompetência ratione materiae deste Supremo Tribunal, e da jurisdição administrativa em geral, para conhecer das ilegalidades e inconstitucionalidades dos actos suspendendos, sobre cuja natureza jurídica divergem Requerentes e Requerido e contra-interessada.

2.3. Cumpre, antes de mais, atentar no teor dos preceitos postos em crise. Vejamos:

Artigo 1.º (Objecto)


“1 – É aprovado o processo de reprivatização indireta do capital social da G……………, S.A., adiante designada abreviadamente por G………., o qual tem lugar mediante a reprivatização do capital social da G……………, SGPS, S.A., adiante designada abreviadamente por G……….., - SGPS, S.A. , e que é regulado pelo presente diploma e pelas resoluções do Conselho de Ministros e demais instrumentos jurídicos que venham a estabelecer as suas condições finais e concretas”.

Artigo 2.º (Operações e modalidades de reprivatização)

“1 – O processo de reprivatização do capital social da G………. compreende uma venda direta de referência de ações representativas de até 61% do capital social da G………. - SGPS, S.A., e a alienação, numa oferta destinada aos trabalhadores, de um lote adicional de ações representativas de até 5% do capital social da G……….. - SGPS, S.A.”.

Artigo 8.º (Regulamentação)

“1 – As condições finais e concretas das operações a realizar no âmbito da reprivatização da G………… - SGPS, S.A., e o exercício das competências atribuídas ao Conselho de Ministros no âmbito do presente diploma, são estabelecidos mediante a aprovação de uma ou mais resoluções.

2 – No que respeita à venda direta de referência, compete ao Conselho de Ministros, deignadamente:

a) Aprovar o caderno de encargos que define as condições específicas dessas operações, podendo sujeitar as ações adquiridas e subscritas ao regime de indisponibilidade;

b) Determinar o tipo e o número de fases para a seleção do investidor ou investidores e detalhar os critérios para a alienação de ações;

c) Estabelecer a exigência de uma prestação pecuniária, em montante a determinar, para a celebração de cada contrato respeitante à venda direta;

d) Identificar o investidor ou investidores selecionados para adquirir as ações;

e) Fixar o preço unitário de cada alienação de ações;

f) Condicionar, se assim o entender, a aquisição das ações à celebração ou plena eficácia de quaisquer instrumentos jurídicos destinados a assegurar a concretização da venda direta de referência e o cumprimento dos objetivos decorrentes dos critérios enunciados no n.º 3 do artigo 4.º e outros definidos mediante resolução do Conselho de Ministros;

g) Determinar as condições concretas de exercício da opção de venda designadamente o seu preço de exercício, e os termos em que pode ser contratada a opção de compra referida no n.º 3 do artigo 2.º;

h) Decidir sobre exercício da opção de venda ou sobre a alienação de ações que dela são objeto, através de qualquer uma das modalidades previstas na Lei n.º 11/90, de 5 de abril, alterada pelas Leis n.os 102/2003, de 15 de novembro, e 50/2011, de 13 de setembro”.

Os dispositivos em questão dizem respeito ao processo de reprivatização da G…………., mais concretamente, a certos aspectos relacionados com o modo como este se irá desenrolar.
Os Requerentes sustentam estarmos em presença de actos materialmente administrativos sob a forma legislativa, fundamentando a sua posição, basicamente, na circunstância de estarem em causa actos decisórios que, além disso, não possuem carácter geral e abstracto.

2.3.1. Passando à análise das várias pretensões dos Requerentes, cabe dizer, em primeiro lugar, que o carácter decisório não é atributo exclusivo dos actos administrativos. Os actos políticos, e designadamente aqueles plasmados em actos de natureza legislativa que prescrevem de forma vinculativa a adopção de determinadas condutas, também podem perfilhar esse carácter.
Além disso, a generalidade e a abstracção configuram características tradicionais ou clássicas das leis, é certo. Não são hoje, todavia, consideradas essenciais para a qualificação de um acto como lei (lato sensu). O que releva agora é o conceito de normatividade, que aponta para a sua capacidade de inovar na ordem legislativa pré-existente, suportada em valorações políticas, típicas dos órgãos dotados da função de indirizzo politico, como é o caso do Governo (veja-se o fenómeno das leis individuais). Esta capacidade de inovar poderá encontrar-se, quer em leis gerais e abstractas, quer em leis menos genéricas (v.g., leis individuais e concretas, leis concretas e gerais).
Um pouco na sequência do que foi dito, pode afirmar-se que, de certa forma, a aplicação de uma lei não tem que consistir necessariamente na sua execução mediante actos administrativos ou actos normativos de natureza regulamentar, podendo, outrossim, consistir na criação de uma lei menos genérica, portadora de uma opção política mais particularizada, mas igualmente inovadora, a qual, por seu turno, poderá vir a carecer de actos de execução a cargo da Administração para se tornar operativa – como é manifestamente o caso do DL n.º 181-A/2014, designadamente dos comandos suspendendos.
O próprio Pleno deste Supremo já teve a ocasião de afirmar que estaremos perante um acto materialmente legislativo naqueles casos em que o acto jurídico impugnado introduz na ordem jurídica uma opção primária e inovadora, que tem como único parâmetro de validade a Constituição, e isso, “independentemente de saber se essa materialidade se exprime com carácter geral e abstracto, visando destinatários determináveis ou indetermináveis ou através de uma determinação individual e concreta” (cfr. Acórdão do Pleno de 05.06.14, Proc. n.º 01031/13). Mais recentemente, reiterou esta tese no Acórdão do Pleno de 19.03.15, Proc. n.º 949/14, que, citando em parte M. Aroso de Almeida, afirma: “«a materialidade do ato legislativo não se confunde com o carácter geral e abstracto das determinações nele contidas», sendo que, se pese embora e por regra, a «intencionalidade própria da função legislativa se tenda a exprimir na emissão de regras de conduta, de carácter geral e abstracto» também «é verdade que é frequente o fenómeno da aprovação de actos legislativos, que embora exprimam uma opção política primária, inovadora, introduzem uma ou mais determinações de conteúdo concreto», pelo que «o exercício da função legislativa só tendencialmente se concretiza na emanação de normas gerais e abstractas», já que «decisiva é a intencionalidade do acto, o facto de introduzir opções políticas primárias» e «quando isso suceda, temos um acto materialmente legislativo, ainda que as opções nele contidas tenham conteúdo concreto», na certeza de que só estaremos em presença de ato administrativo quando, praticado o ato sob a forma de diploma legislativo, o comando em causa exprima o exercício de competências administrativas, situação essa que terá então enquadramento nos citados arts. 268.º, n.º 4, da CRP, e 52.º, n.º 1, do CPTA (…)”.

Já quanto aos actos administrativos, não só as características da individualidade e concretude não são seus apanágios exclusivos, como, além disso, e conforme sustentado pelo Pleno deste Supremo Tribunal, “um acto, para ser administrativo, não lhe basta ser individual e concreto”, haja em vista que “para assim ser qualificado tem ainda de proceder do exercício da função administrativa” (cfr. Acórdão do Pleno do STA de 04.07.13, Proc. n.º 0469/13).

Perante estas constatações, torna-se imperioso distinguir os actos políticos e legislativos dos actos administrativos. Embora não se afigure tarefa fácil, o melhor caminho para alcançar esta diferenciação passa por distinguir as funções política e legislativa da função administrativa. As duas primeiras são ambas funções primárias do Estado-colectividade e visam a “realização das opções sobre a definição e prossecução dos interesses essenciais da colectividade”. A função administrativa, por sua vez, possui um carácter secundário, o qual “reside na sua subordinação às funções primárias, que se traduz na não interferência na formulação das escolhas essenciais da colectividade política, na necessidade de que as suas decisões encontrem fundamento em tais escolhas e de que não as contrariem” (cfr. Marcelo Rebelo de Sousa e André Salgado de Matos, Direito Administrativo Geral, Tomo I, 2006, pp. 36-8).

2.3.2. A distinção entre actos políticos e legislativos, de um lado, e actos administrativos, de outro, é crucial para efeitos de impugnação contenciosa nos tribunais administrativos. Igualmente fundamental para o mesmo efeito se revela a caracterização rigorosa dos denominados “actos materialmente administrativos sob a forma legislativa”. Como é sobejamente sabido, está excluída do âmbito da jurisdição administrativa a impugnação e, portanto, o conhecimento de processos cautelares que tenham por objecto actos praticados no exercício da função política e legislativa (arts 4.º, n.º 2, al. a), e 24.º, n.º 1, al. c) do ETAF). Visto pela perspectiva inversa, apenas são passíveis de impugnação em sede cautelar os actos emanados do exercício da função administrativa (Acórdão do Pleno do STA de 07.06.06, Proc. n.º 01257/05, e Acórdãos do STA de 04.04.13 e 10.09.14, Procs n.os 0399/13 e 0623/14, respectivamente).

2.3.3. Num plano mais concreto, e atendendo ao teor prescritivo e inovador dos actos atacados pelos Requerentes, tais actos devem ser vistos como possuindo natureza legislativa, e isto não apenas pela circunstância de ser essa a forma exigida pela Lei-Quadro das Privatizações (LQP – Lei n.º 11/90, de 05.04, com a última redacção dada pela Lei n.º 50/2011, de 13.09), a qual, no seu artigo 13.º estipula que “O decreto-lei referido no n.º 1 do artigo 4.º aprovará o processo, as modalidades de cada operação de reprivatização, designadamente os fundamentos da adopção das modalidades de negociação previstas nos n.os 3 e 4 do artigo 6.º, as condições especiais de aquisição de acções e o período de indisponibilidade a que se referem os artigos 11.º, n.º 1, e 12.º, n.º 2 em termos de competência objetiva e subjetiva, diretamente”. Na verdade, todos eles se situam ainda num plano normativo, se bem que menos genérico, materializando uma opção política conformadora de uma nova estratégica adoptada pelo XIX Governo Constitucional no que toca ao sector empresarial do Estado, estratégia complexa que abarca, entre outros aspectos, um programa de privatizações que inclui o domínio específico das empresas públicas de transportes.
Num outro plano se situa a LQP, a qual abriu as portas, tornando possível, esta nova etapa, em que, dando corpo a nova opção política especificamente referida ao sector público empresarial no domínio dos transportes (em particular, às empresas públicas de transportes deficitárias), se determina a reprivatização de uma certa empresa e se define o quadro normativo em que esta reprivatização se vai mover. Na lei-quadro em apreço está cristalizada a opção política primária de possibilitar a abertura do capital de empresas do sector empresarial do Estado à iniciativa privada. No diploma legislativo do actual Governo, de onde se extraem os comandos suspendendos, está cristalizada a opção política primária de reprivatizar a G……….. –, sem que se possa afirmar, portanto, que apenas a LQP corporiza com total exclusividade a opção política primária.
Em suma, os actos contidos nos preceitos suspendendos não são apenas actos de natureza legislativa por ter sido essa a forma escolhida para a sua exteriorização. Efectivamente, e como se viu, os preceitos visados pela presente providência cautelar de suspensão de eficácia (e pelo posterior pedido de decretamento provisório) não foram produzidos “no exercício da competência administrativa do Governo, previamente tipificada em lei anterior, traduzindo uma escolha sobre um aspecto secundário ou instrumental das opções já contidas nessa lei”. Eles “não se reconduz[e]m a uma mera expressão ou um mero exercício da função administrativa enquanto simples realização de opções circunscritas a aspetos secundários, menores ou instrumentais quanto a opções já contidas em lei anterior que encerre e tenha assumido todas as opções políticas primárias” (Acórdãos do STA de 05.07.14 e de 19.03.15, Procs n.os 1026/13 e 949/14, respectivamente), antes contêm previsões jurídicas com um conteúdo inovador, que exprimem uma opção política primária definida em função do que se assume ser o interesse geral da comunidade nacional. Por não estarmos perante o exercício da função administrativa, pode de igual modo concluir-se que não estamos perante ‘normas administrativas’.

2.3.4. Adquirida a natureza legislativa dos actos suspendendos, ou, visto de uma perspectiva diferente, não se vislumbrando neles quaisquer actos administrativos, afigura-se-nos óbvio concluir pela incompetência da jurisdição administrativa para conhecer do objecto dos vários meios processuais utilizados pelos Requerentes cautelares, nos termos da al. a) do n.º 2 do artigo 4.º do ETAF, na medida em que este dispositivo afasta do âmbito da jurisdição administrativa a apreciação de litígios que visem a impugnação de actos praticados no exercício da função política e legislativa. Assim sendo, fica prejudicado o conhecimento do mérito da providência cautelar e, pelos mesmos motivos, do mérito do incidente de declaração de ineficácia dos actos de execução indevida e do mérito do pedido de decretamento provisório da providência cautelar.

III – Decisão

Nos termos e com os fundamentos expostos, acordam em conferência os Juízes da Secção de Contencioso Administrativo em declarar a incompetência absoluta em razão da matéria deste STA, o que obsta ao conhecimento do mérito da causa, absolvendo-se os requeridos da instância, nos termos do artigo 278.º, n.º 1, al. a), do CPC.


Não são devidas custas dada a isenção legal dos Requerentes (art. 4.º, n.º 1, al. b), do RCP), tudo sem prejuízo do disposto nos n.os 6 e 7 do mesmo preceito.
D.N.

Lisboa, 2 de Julho de 2015. – Maria Benedita Malaquias Pires Urbano (relatora) – Vítor Manuel Gonçalves Gomes – Alberto Augusto Andrade de Oliveira.