Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0295/15
Data do Acordão:09/24/2015
Tribunal:1 SECÇÃO
Relator:MARIA DO CÉU NEVES
Descritores:JUROS MORATÓRIOS
JUROS LEGAIS
CONTRATO DE FORNECIMENTO
FORNECIMENTO DE ÁGUA
JUROS COMERCIAIS
RECOLHA DE EFLUENTES
Sumário:No âmbito de contratos de fornecimento de água (em alta) e recolha de efluentes em que foi clausulado que, em caso de mora no pagamento, as facturas “passarão a vencer juros de mora nos termos da legislação aplicável às dívidas do Estado, com a taxa prevista na mesma legislação”, é aplicável a taxa de juros comerciais por força do disposto nos artºs 4º, 6º e 10º do DL nº 195/2009 de 20 de Agosto.
Nº Convencional:JSTA00069344
Nº do Documento:SA1201509240295
Data de Entrada:04/30/2015
Recorrente:A..., SA
Recorrido 1:MUNICÍPIO DE MANTEIGAS
Votação:UNANIMIDADE
Meio Processual:REC REVISTA EXCEPC
Objecto:AC TCAS DE 2014/11/20.
Decisão:PROVIDO
Área Temática 1:DIR ADM CONT.
Legislação Nacional:CPA91 ART178 - ART189.
CCIV66 ART806 N2.
CCP - L 18/08 DE 2008/01/29.
L 3/10 DE 2010/04/27 ART1 ART2.
DL 372/93 DE 1993/10/29.
DL 379/93 DE 1993/11/05.
DL 294/94 DE 1994/11/16.
DL 319/94 DE 1994/12/24.
DL 162/96 DE 1996/09/04.
DL 73/99 DE 1999/03/16.
DL 121/00 DE 2000/06/04.
DL 185/00 DE 2000/08/10.
DL 222/03 DE 2003/09/20.
DL 223/03 DE 2003/09/20.
DL 195/09 DE 2009/08/20 ART10.
Aditamento:
Texto Integral: Acordam na Secção do Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo
1. RELATÓRIO

A……………., S.A., com sede na Rua …….., nº …………, …………, Guarda, inconformada com a decisão proferida, em 2ª instância, em 20 de Novembro de 2014, no TCAS, que concedeu provimento ao recurso interposto pelo Município de Manteigas e nesta procedência decidiu que a taxa de juros de mora aplicável às facturas dos autos, é a taxa de juros legais e não a taxa de juros comerciais, interpôs o presente recurso.

Apresentou, para o efeito, as seguintes conclusões, que aqui se reproduzem:

«1 O acórdão recorrido, de forma telegráfica e sem fundamentação jurídica relevante, limitou-se a referir que, atendendo ao ponto 7 da cláusula 3ª dos contratos, a legislação aplicável às dívidas do Estado é a Lei nº 3/2010, de 27.04, pelo que, no seu entendimento, os juros de mora a aplicar no caso dos autos são os juros legais – art. 806º, nº 2, e 559º, ambos do CC – e não os comerciais.

ORA,
II. O Decreto-Lei nº 121/2000, de 4 de Julho, criou o sistema multimunicipal de abastecimento de água e de saneamento do …………. para captação, tratamento e distribuição de água para consumo público e para recolha, tratamento e rejeição de efluentes dos municípios nele mencionados (cfr. art.º 1º), constituiu a sociedade Autora da qual é accionista o aqui Réu (cfr. arts. 3º e 5º, nº 1), aprovou os respectivos estatutos (cfr. art.º 4º, nº 1) que publicou em anexo e adjudicou-lhe o exclusivo da exploração e gestão do sistema, em regime de concessão, pelo período de trinta anos (cfr. art. 6º, nº 1).
III. A gestão de tais sistemas ficou subordinada aos princípios da prossecução do interesse público, do carácter integrado dos sistemas, da eficiência e da prevalência da gestão empresarial – artigo 2º, nº 1, do Decreto-Lei nº 379/93;

IV. A criação dos sistemas multimunicipais tem por objectivo garantir a qualidade e continuidade dos serviços públicos de captação, tratamento e distribuição de água para consumo público, de recolha, tratamento e rejeição de efluentes e de recolha e tratamento de resíduos sólidos – artigo 4º-A, nº 1, do Decreto-Lei nº 379/93;

V. As entidades gestoras de sistemas multimunicipais estão incumbidas, essencialmente, da realização das missões de interesse público de: assegurar, de forma regular, contínua e eficiente, o abastecimento de água e a recolha, tratamento e rejeição de efluentes; controlar, sob a fiscalização das entidades competentes, os parâmetros sanitários da água distribuída e dos efluentes tratados, assim como dos meios receptores em que estes são rejeitados.

VI. As actividades de abastecimento público de água às populações e de saneamento de águas residuais urbanas constituem serviços públicos de carácter estrutural, essenciais ao bem-estar geral, à saúde pública e à segurança colectiva das populações, às actividades económicas e à protecção do ambiente.
VII. As questões em discussão não consistem apenas na análise do estipulado no ponto 7 da cláusula 3 dos contratos e do diploma aplicável às “dívidas do Estado” (Lei nº 3/2010, de 27.4), como sinteticamente decidiu o acórdão recorrido, mas na análise do edifício jurídico complexo do quadro legal das concessões para a exploração e gestão dos sistemas multimunicipais de captação, tratamento e distribuição de água para consumo público, de recolha, tratamento e rejeição de efluentes, bem como na interpretação dos contratos de fornecimento e de recolha celebrados entre Autora e Réu e da legislação aplicável às “dívidas ao Estado” (Decreto-Lei nº 73/99, de 16 de Março).
VIII. Trata-se, na verdade, de questões que envolvem complexidade jurídica, pela necessidade de concatenar as especialidades do quadro legal das referidas concessões, onde pontifica, por esta ordem, o seguinte: (i) DL 379/93, alterado pelos seguintes diplomas: Lei nº 176/99, de 25 de Outubro, Decreto-Lei nº 439-A/99, de 29 de Outubro, Decreto-Lei nº 14/2002, de 26 de Janeiro, Decreto-Lei nº 103/2003, de 23 de Maio, Decreto-Lei nº 194/2009, de 20 de Agosto, Decreto-Lei nº 195/2009, de 20 de Agosto e Decreto-Lei nº 92/2010, de 26 de Julho (ii) DL 319/94, (iii) DL 162/96, (iv) DL 121/2000, (v) contrato de concessão e (vi) contratos entre as partes deste processo, questões que podem colocar-se em termos problemáticos semelhantes noutros casos, o que justifica que se considere questão de importância fundamental pela sua relevância jurídica.
DE FACTO,
IX. No caso em apreço, não está em causa, apenas, a apreciação do caso individual do Réu, mas uma questão muito mais geral e que se prende com a aplicação da taxa de juros aos utilizadores do Sistema Multimunicipal de Abastecimento de Água e de Saneamento do ……………., uma vez que, de acordo com os artigos 10º e 11º do Decreto-Lei nº 121/2000, de 4 de Julho, o exercício das actividades concedidas à Autora implica a celebração de contratos de fornecimento e recolha com os municípios utilizadores, os quais se encontram obrigados ao pagamento de tarifas pelos fornecimentos e serviços prestados pela Recorrente, sendo o valor dessas tarifas estabelecido nos termos do nº 3 do artigo 7º do Decreto-Lei nº 121/2000, de 4 de Julho.

X. Numa interpretação jurídica destituída de fundamentação, o acórdão recorrido poderá suscitar dúvidas na jurisprudência, atenta a decisão fundamentada proferida pelo TAF de Castelo Branco, sobre a possibilidade de a Autora debitar aos utilizadores do Sistema a taxa de juro comercial estabelecida, imperativamente, no Decreto-Lei nº 195/2009, de 20 de Agosto.
XI. Esta questão tem sido suscitada nas acções interpostas pela ora Autora contra os Municípios que integram o referido Sistema multimunicipal, com vista a cobrar os serviços de abastecimento de água e de saneamento que lhes presta, questão que, apesar de não ser sufragada pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Castelo Branco, continuará, face à decisão do acórdão recorrido, a ser invocada pelos Municípios, pelo que existe a possibilidade de expansão da controvérsia atenta a litigiosidade existente entre a Autora e tais Municípios, daí que seja necessária a intervenção do órgão de cúpula, uma vez que, para além de juridicamente complexa, é, como decorre da sua mera indicação, de importância fundamental pela sua relevância social.
POR OUTRO LADO,
XII. O Tribunal recorrido cometeu um erro ostensivo, palmar e manifesto na aplicação do direito ao ter julgado que o estipulado no ponto 7 da cláusula 3 dos contratos remete para a legislação aplicável às dívidas do Estado, quando no momento da celebração dos contratos de fornecimento e de recolha, em 15/09/2000, inexistia legislação aplicável às dívidas do Estado, a qual apenas surgiu com a publicação da Lei nº 3/2010, de 27.4, bem como olvidou o regime imperativo previsto no DL nº 195/2009, de 20 de Agosto.
NA VERDADE,
XIII. O acórdão do TCA que se pretende ver apreciado nesse Venerando Tribunal – a coberto de uma alegada aplicação da Lei nº 3/2010, de 27.04 – acabou por olvidar a aplicação do art. 10º do DL nº 195/2009, de 20 de Agosto, que dispõe “O disposto no presente decreto-lei prevalece sobre os contratos de concessão em vigor (…)”.

XIV. Além de que, o Tribunal recorrido nem sequer tomou em consideração os argumentos contrários à tese que adoptou, pois a autora defendeu, entre outros, que a aplicação da taxa de juro comercial deriva de imposição legal devido à específica natureza das entidades contratantes e dos contratos em si, que são de natureza administrativa e que visam fins de inquestionável interesse e utilidade pública, daí a intervenção do Governo no exercício de um poder de soberania, pelo que se justifica, deste modo, uma intervenção do STA com vista a uma melhor aplicação do Direito, quer seja para fundamentar a conclusão a que chegou o TCA Sul quer seja para concluir por decisão diversa – cfr., neste sentido, Acórdão do STA, tirado no processo 01056/15, de 20/11/2014, in www.dgsi.pt., que decidiu que deve ser admitida, com vista à melhor aplicação do direito, a revista numa situação em que “(…) a tese contrária, à do acórdão recorrido, não foi enunciada nem especificamente refutada”.
XV. Por isso, entendemos que não pode esse Venerando Tribunal deixar de receber a presente revista na medida em que as questões jurídicas que estão aqui em causa são de importância fundamental pela sua relevância jurídica e social e porque a sua intervenção é necessária para uma melhor aplicação do direito.
PROSSEGUINDO,
XVI. A boa interpretação dos textos constantes do ponto 7 da cláusula 3ª de cada contrato remete para a taxa de juros aplicável às dívidas ao Estado” e não do Estado”, já que, por um lado, essa era a taxa que o Recorrido cobrava aos seus contribuintes, sendo, portanto, legítimo que, em caso de mora no pagamento das facturas, a Recorrente lhe aplicasse igualmente a mesma taxa.
XVII. E, por outro lado, as partes, ao tempo da celebração dos contratos – 15/09/2000 -, não poderiam prever que, passados vários anos, iria ser publicada legislação que viria estipular a taxa de juros aplicável às dívidas “do Estado”, já que, até à entrada em vigor da Lei nº 3/2010, de 27 de Abril de 2010, se o Estado ficasse obrigado a pagar uma indemnização e se atrasasse nesse pagamento, não existia, até então, nada na legislação que, expressamente, determinasse o pagamento de juros sobre esse atraso.
XVIII. Assim, o sentido e alcance juridicamente relevantes dos contratos tem, pois, obrigatoriamente, que remeter-nos para o Decreto-Lei nº 73/99, de 16 de Março, referente ao regime dos juros de mora por dívidas “ao Estado”, e não para a Lei nº 3/2010, de 27 de Abril de 2010, que não se encontrava publicada ao tempo da celebração dos contratos, razão pela qual nunca poderia ser aplicado ao caso dos autos o disposto neste último diploma legal.
MAS NÃO SÓ,
XIX. Para além de, no caso concreto, não ser aplicável a Lei nº 3/2010, de 27.04, o certo é que por força das alterações introduzidas pelo DL nº 195/2009, de 20 de Agosto, que prevalece sobre os contratos em vigor, sempre seria aplicável a taxa de juros comerciais conforme foi decidido em sede de 1ª instância.
XX. Com efeito, através do art. 4º do DL nº 195/2009, de 20 de Agosto, a base XXXI das bases do contrato de concessão da exploração e gestão dos sistemas multimunicipais de captação, tratamento e abastecimento de água para consumo público, anexas ao DL nº 319/94, de 24 de Dezembro, e que dele fazem parte integrante, alterado pelo DL nº 222/2003, de 20 de Setembro, passou a ter a seguinte redacção:
“3 - Às dívidas dos utilizadores em mora é aplicável o regime dos juros comerciais (…)” – o sublinhado e negrito é nosso -

XXI. Por sua vez, através do art. 6º do DL nº 195/2009, de 20 de Agosto, a base XXIX das bases do contrato de concessão da exploração e gestão dos sistemas multimunicipais de recolha e tratamento e rejeição de efluentes anexas ao DL nº 162/96, de 4 de Setembro, e que dele fazem parte integrante, alterado pelo DL nº 223/2003, de 20 de Setembro, passou a ter a seguinte redacção:

“3 - Às dívidas dos utilizadores em mora é aplicável o regime dos juros comerciais (…)” – o sublinhado e negrito é nosso.

XXII. E o art. 10º do DL nº 195/2009, de 20 de Agosto, dispõe que “O disposto no presente decreto-lei prevalece sobre os contratos de concessão em vigor (…)”.

XXIII. Assim, a aplicação da taxa de juro comercial deriva de imposição legal devido à específica natureza das entidades contratantes e dos contratos em si, que são de natureza administrativa e que visam fins de inquestionável interesse e utilidade pública, daí a intervenção do Governo no exercício de um poder de soberania.

XXIV. Neste âmbito, não existe diferenciação entre a aprovação das tarifas e a fixação do regime de juros de mora aplicável, alterando o que esteja fixado no contrato de concessão.

XXV. De facto, não fazia qualquer sentido que o Estado fosse soberano na aprovação do preço (tarifas) e não pudesse fixar o regime aplicável à indemnização pelo atraso no cumprimento (atempado) dessa obrigação de pagar (juros moratórios).

XXVI. Com efeito, não se estando no âmbito do direito privatístico, em que há que atender à taxa definida pela vontade das partes, mas antes perante contratos administrativos, as medidas adoptadas através do DL nº 195/2009, de 20 de Agosto, visaram a intervenção directa e imperativa sobre o regime de juros e respectiva taxa que aqui é controvertida.

XXVII. Há, pois, que concluir que, por imposição legal, à divida peticionada nos presentes autos é aplicável o regime dos juros comerciais e não legais.

XXVIII. A douta sentença violou, assim, por erro de interpretação e aplicação do direito, o disposto no art. 236º do CC, no art. 3º do DL nº 73/99, de 16/03, na base XXXI das bases do contrato de concessão da exploração e gestão dos sistemas multimunicipais de captação, tratamento e abastecimento de água para consumo público, anexas ao DL nº 319/94, de 24 de Dezembro, e que dele fazem parte integrante, alterado pelo DL nº 222/2003, de 20 de Setembro, e pelo DL nº 195/2009, de 20 de Agosto, na base XXIX das bases do contrato de concessão da exploração e gestão dos sistemas multimunicipais de recolha e tratamento e rejeição de efluentes anexas ao DL nº 162/96, de 4 de Setembro, e que dele fazem parte integrante, alterado pelo DL nº 223/2003, de 20 de Setembro, e pelo DL nº 195/2009, de 20 de Agosto, e no art. 10º do DL nº 195/2009, de 20 de Agosto».


*

O recorrido, Município de Manteigas, apresentou contra alegações, que concluiu da seguinte forma:

«1. O presente recurso, atento a sua substanciação, suscita sérias dúvidas sobre a sua admissibilidade pois a decisão recorrida segue a mesma linha de continuidade jurisprudencial do TCAS sobre a matéria controvertida.

2. O preceituado nos pontos 3º e 4º da base XXXI do DL nº 195/2009 quanto à taxa de juro aplicável as dívidas dos utilizadores (taxa dos juros comerciais), não tem carácter imperativo e não se impõe à vontade das partes que muitos anos antes contratualizaram outra taxa de juro - a taxa de juros legais – na vigência do DL nº 319/94 em que os pontos 3º e 4º da base XXXI tinham a mesma redacção legal.

3. O corpo de normas jurídicas ínsito na base XXXI do DL nº 195/2009 não tem, hoje, como não tinha na legislação pretérita, carácter imperativo, mas, isso sim, carácter supletivo, podendo as partes contratantes consensualizar outra taxa de juro como, aliás, aconteceu.

4. Doutro modo, no que não se concede, estaríamos perante uma modificação unilateral e ilegal dos contratos de fornecimento e recolha de efluentes ao arrepio da vontade das partes contratantes sem que existam razões de interesse público que o determinem.

5. A ser procedente a tese do recorrente, no que só se concede para efeitos de raciocínio jurídico, existiria uma grosseira violação do princípio da boa-fé cuja concretização radica, nomeadamente, no princípio da tutela da confiança legítima, isto é, da protecção da confiança do recorrido que quando subscreveu os referidos contratos ficou cônscio da sua obrigação contratual em caso de atraso no pagamento das facturas pagar juros de mora à taxa dos juros legais e não outra taxa de juro - cfr artigo 6ºA do CPA e 2º e 266º nº 3 da CRP.

6. O douto acórdão recorrido é correto, quer na forma, quer no conteúdo, pelo que é de manter».


*

O «recurso de revista» foi admitido por acórdão deste STA [formação a que alude o nº 5 do artigo 150º do CPTA], proferido a 08.04.2015, nos termos seguintes:

«1. A…………., S.A., pede revista do acórdão do TCA Sul, de 20/11/2014, que concedeu provimento a recurso, interposto pelo Município de Manteigas, de decisão (saneador-sentença parcial) do TAF de Castelo Branco.

No âmbito de contratos de fornecimento de água (em alta) e recolha de efluentes em que foi clausulado que, em caso de mora no pagamento, as facturas “passarão a vencer juros de mora nos termos da legislação aplicável às dívidas do Estado, com a taxa prevista na mesma legislação”, o TAF decidiu não haver “que aplicar essa taxa contratualizada, antes a imperativamente definida por lei (que prevalece sobre o disposto nos contratos de concessão em vigor) na Base XX e na Base XXXI, de cada uma das concessões”, ou seja, a taxa de juros comerciais, como resulta dos artºs 4.º, 6.º e 10.º do Dec. Lei nº 195/2009, de 20 de Agosto. Diversamente, o TCA julgou que nada obsta à aplicação da cláusula contratual e que, estando estabelecido que a taxa de juros é a das “dívidas do Estado” (e não das “dívidas ao Estado”), é aplicável à mora a taxa de juros legais, como é determinado pelo art.º 1º da Lei nº 3/2010, de 27 de Abril.

(…) No caso, estamos perante uma questão decidida em sentidos opostos pelas instâncias. Questão esta que é juridicamente relevante, considerando a complexidade do bloco normativo aplicável à contratação pública no âmbito dos serviços de abastecimento público de água e de saneamento de águas residuais, que tem vindo a ser objecto de sucessivas alterações legislativas. Por outro lado, apesar de o presente litígio emergir da determinação do sentido ou da subsistência de uma cláusula contratual, não é de excluir a probabilidade de replicação da questão noutros processos, considerando a evolução legislativa que gera a divergência e que os contratos do género tendem a conter cláusulas de conteúdo substancialmente análogo».


*

O Ministério Público, notificado nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 146º, nº 1 do CPTA, não emitiu pronúncia.

*

Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

*

2. FUNDAMENTAÇÃO

2.1. MATÉRIA DE FACTO

Quanto à factualidade provada, a decisão recorrida limitou-se a dar por reproduzido o despacho proferido em 1ª instância, que igualmente aqui reproduzimos:

«(..) Juros

Opõe o réu que, conforme contrato de fornecimento e contrato de recolha celebrados com a autora (cláusula 3a do art.° 7°) os juros de mora vencem nos termos da legislação aplicável às dívidas ao Estado.

Todavia.

Não há que aplicar essa taxa contratualizada, antes a imperativamente definida por lei (que "prevalece sobre o disposto nos contratos de concessão em vigor") na Base XX e na Base XXXI, de cada uma das concessões (respectivamente, da exploração e gestão dos sistemas multimunicipais de tratamento de resíduos sólidos urbanos e da exploração e gestão dos sistemas multimunicipais de captação, tratamento e abastecimento de água para consumo público): «Às dívidas dos utilizadores em mora é aplicável o regime dos juros comerciais» - DL n° 195/2009, de 20/08.

Objecto do litígio e temas da prova

O objecto do litígio: peticionado(s) crédito(s) da autora sobre o réu, por execução de serviços de fornecimento de água e de recolha de resíduos. (..)”


*

2.2. O DIREITO

A presente revista dirige-se contra a decisão do TACS, que concedendo provimento ao recurso, decidiu que, atenta a redacção das clausulas 3ª, nº 7 de ambos os contratos celebrados [de fornecimento, recolha e concessão] entre a A……………, SA e o Município de Manteigas - onde se estabelece que, em caso de mora no pagamento das facturas, estas passarão a vencer juros de mora nos termos da legislação aplicável às dividas do Estado, com a taxa prevista na mesma legislação e não às dividas ao Estado - o regime aplicável é a Lei nº 3/2010 de 27/04 que no seu artº 1º, nº 2 prevê “Quando outra disposição legal não determinar a aplicação de taxa diversa, aplica-se a taxa de juros referida no nº 2 do artº 806º do Código Civil”, a taxa de juros a aplicar é a taxa de juros legais e não a dos juros comerciais.

Insurge-se a recorrente contra esta decisão, argumentando que devem ser considerados os juros comerciais por aplicação do disposto nas Bases XXXI e XXIX de cada um dos contratos, na redacção dada pelo DL nº 195/2009 de 20 de Agosto, que de acordo com o disposto no seu artº 10º prevalece sobre os contratos de concessão em vigor.

Mais alega que, a aplicação da taxa de juros comercial deriva de imposição legal devido à específica natureza das entidades contraentes e dos contratos em si, que são de natureza administrativa e que visam fins de inquestionável interesse e utilidade pública, não sendo correcta a decisão recorrida que, de forma simplista, se limitou a referir que sendo a legislação aplicável às dívidas do Estado a Lei nº 3/2010 de 27/04, devem ser de aplicar os juros legais e não os comerciais.

Vejamos:

Os contratos [de fornecimento de água e de recolha de efluentes] celebrados em 15/09/2000, entre a recorrente o recorrido enquadram-se, de forma inequívoca, no conceito de contratos administrativos, sujeitos ao regime de direito público – cfr DL’s nº 121/2000 de 04/06, alterado pelo 185/2000 de 10/08, 372/93 de 29/10, 379/93 de 05/11, 294/94 de 16/11, bem como dos DL’s nº 319/94 de 24/12 [alterado e aditado pelos 222/2003 de 20/09 e 195/2009 de 20/08] e DL nº 162/96 de 04/09 [alterado e aditado pelos 223/2003 de 20/09 e 195/2009 de 20/08], bem como os artºs 178º a 189º do Código do Procedimento Administrativo, os quais foram entretanto revogados pela Lei nº 18/2008 de 29/01, diploma que aprovou o Código dos Contratos Públicos.

Decorre do contrato de concessão celebrado entre o Município e a recorrente que “Em caso de mora no pagamento das facturas, estas passarão a vencer juros de mora nos termos da legislação aplicável às dívidas do Estado, com a taxa prevista na mesma legislação (…)” – cfr. cláusula 33ª, nº 6.

E os contratos de fornecimento e de recolha contém cláusulas de idêntico teor, ou seja, que “Em caso de mora no pagamento das facturas, estas passarão a vencer juros de mora nos termos da legislação aplicável às dívidas do Estado, com a taxa prevista na mesma legislação (…)” – cfr. cláusulas 3ª, nº 7 – negritos nossos.

Por seu turno, dispõe a Lei nº 3/2010 de 27 de Abril [que estabelece a obrigatoriedade de pagamento de juros de mora pelo Estado, pelo atraso no cumprimento de qualquer obrigação pecuniária]:

«Artº 1º - Juros de mora

1. O Estado e demais entidades públicas, incluindo as Regiões Autónomas e as autarquias locais, estão obrigados ao pagamento de juros moratórios pelo atraso no cumprimento de qualquer obrigação pecuniária, independentemente da sua fonte.

2. Quando outra disposição legal não determinar a aplicação de taxa diversa, aplica-se a taxa de juro referida no nº 2 do artigo 806º do Código Civil – sub. nosso.

3 (…)».

Não cremos, no entanto, que seja esta a norma a aplicar ao caso sub judice.

Com efeito, pese embora esta lei só ter entrado em vigor em 01 de Setembro de 2010 [cfr. artº 5º], tal facto não seria, por si só, impeditivo da sua aplicação, uma vez que conforme se mostra descriminado nos autos, as facturas em causa respeitam aos anos de 2011 e 2012, ou seja, datas posteriores à entrada em vigor desta lei, sendo despiciendo que a referida não ressalve a sua aplicação a situações anteriormente constituídas, como alegado pela recorrente até porque a situação concreta do não pagamento do valor das facturas só se operou/constituiu em data posterior à sua entrada em vigor, como referido.

Por outro lado, a remissão feita nas cláusulas contratuais supra mencionadas, ao não mencionar especificamente uma determinada norma, é feita de forma consciente, ou seja, opera uma remissão para a legislação que ao tempo da dívida em causa e respectiva cobrança estiver em vigor.

No entanto, a não aplicação desta norma prende-se com a existência de uma outra que expressamente prevê a aplicação do regime de juros comerciais às dívidas do Estado, como infra veremos.

Improcedem, pois, neste segmento, os argumentos aduzidos pela recorrente.


*

Porém, a inaplicação da Lei 3/2010 ao caso concreto, não significa, sem mais, que seja de aplicar aos autos o regime previsto no DL nº 73/99 de 16 de Março, pois este regula expressamente a taxa de juros de mora aplicáveis às dívidas ao Estado (e não dívidas do Estado), sendo que se tratam de duas situações fáctico-jurídicas completamente distintas.

Cremos, pois, que a solução terá se ser encontrada no DL 195/2009 de 20 de Agosto, que entrou em vigor em 01 de Janeiro de 2010 [artº 12º], diploma que veio alterar e aditar, entre outros, os DL’s nº 379/93 de 05/11 e 319/94 de 24/12.

Com efeito, por força do disposto no artº 4 deste diploma legal, a Base XXXI das bases do contrato de concessão da exploração e gestão dos sistemas multimunicipais de captação, tratamento e abastecimento de água para consumo público, anexas ao DL nº 319/94, de 24 de Dezembro, e que dele fazem parte integrante, alterado pelo DL nº 222/2003, de 20 de Setembro, passou a ter a seguinte redacção:

«3. Às dívidas dos utilizadores em mora é aplicável o regime dos juros comerciais (…)”.

Por outro lado, o artº 6º, a Base XXIX das bases do contrato de concessão da exploração e gestão dos sistemas multimunicipais de recolha e tratamento e rejeição de efluentes anexas ao DL nº 162/96, de 4 de Setembro, e que dele fazem parte integrante, alterado pelo DL nº 223/2003, de 20 de Setembro, passou a ter a seguinte redacção:

“3 - Às dívidas dos utilizadores em mora é aplicável o regime dos juros comerciais (…)”.

E mais relevante, o artº 10º do mesmo diploma legal dispõe que:

O disposto no presente decreto-lei prevalece sobre os contratos de concessão em vigor (…)”. Sub e negritos nossos.

Acresce que a noção de utilizador nos é dada no artº 2º, nº 4 do DL nº 379/93 de 05/11 que foi republicado e que faz parte integrante do DL nº 195/2009, dispondo-se:

«2. Tendo em vista a concretização dos princípios enunciados no número anterior, é obrigatória para os utilizadores a ligação aos sistemas previstos no presente diploma e, se for caso disso, a criação de condições para harmonização com os respectivos sistemas municipais.

(..)

4. São considerados utilizadores, para os efeitos do nº 2, os municípios, no caso de sistemas multimunicipais e qualquer pessoa singular ou colectiva, pública ou privada, no caso de sistemas municipais ou da distribuição directa integrada em sistemas multimunicipais».

A mesma noção nos é dada pelos DL’s nº 319/94 e 162/94 igualmente republicados, prevendo-se nos respectivos artºs 6º, Anexos, Bases III: «Para efeito das presentes bases são utilizadores os municípios servidos pelo respectivo sistema multimunicipal».

Ou seja, o legislador entendeu impor de forma taxativa a natureza dos juros neste tipo de contratos, afastando assim, por via legislativa, a aplicação de quaisquer cláusulas aceites pelos intervenientes em sentido contrário, pois só isso justifica o facto de se afirmar que o disposto no referido Decreto-Lei prevalece sobre os contratos em vigor.

Assim, tendo em consideração que os serviços prestados pela recorrente ao recorrido ocorreram em data posterior à entrada em vigor deste DL 195/2009 e o facto das normas nele contidas prevalecerem sobre contratos de concessão em vigor à data da sua entrada em vigor, cremos que a taxa de juros aplicável terá de ser necessariamente a taxa de juro comercial e não a taxa de juro legal, por imposição legalmente imperativa

Trata-se, pois, da concretização do disposto no nº 2 do artº 1º da Lei nº 3/2010 de 27 de Abril.

E esta conclusão a que chegamos não é abalada pela argumentação aduzida pelo recorrido no que respeita ao disposto nos artºs 3 e 4 da Base XXXI do DL 319/94, que dispõem:

«(…) 3. Às dívidas dos utilizadores em mora é aplicável o regime de juros comerciais bem como um prazo de prescrição de dois anos após a emissão das respectivas facturas.

4. Sem prejuízo do regime previsto na presente base, os utilizadores podem acordar com a concessionária procedimentos relacionados com a mediação e facturação».

Na verdade, o nº 4 que se mostra transcrito, não invalida a interpretação que supra se efectuou e que entendeu ser de aplicar a taxa de juros comerciais, uma vez que o ali disposto se limitava a conceder aos outorgantes do contrato, uma liberdade de clausulado apenas no que respeitava à mediação e facturação, sem interferir na fixação imperativa da natureza da taxa de juros [comerciais] prevista no nº 3.

Daí que não faça sentido a invocação da violação de princípios constitucionais como o da segurança jurídica e da protecção da confiança legítima, uma vez que os mesmos não sofreram quaisquer limitações, nem foram postergados, pois foram sempre os juros comerciais que, por imperativo legal, seriam os aplicáveis.

Face ao exposto, impõe-se conceder provimento ao recurso.


*

3. DECISÃO:

Atento o exposto, acordam os juízes que compõem este Tribunal em conceder provimento ao recurso, revogar a decisão recorrida e determinar a baixa dos autos ao TAF de Castelo Branco, para aí prosseguirem os seus termos, se nada a tal obstar.

Custas a cargo do recorrido.

Lisboa, 24 de Setembro de 2015. - Maria do Céu Dias Rosa das Neves (relatora) – Jorge Artur Madeira dos Santos – Teresa Maria Sena Ferreira de Sousa.