Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:01179/11.1BESNT
Data do Acordão:02/07/2024
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:SUZANA TAVARES DA SILVA
Descritores:IVA
TAXA REDUZIDA
IMÓVEL DESTINADO À HABITAÇÃO
Sumário:A verba 2.24 (actual 2.27) da Lista I anexa ao CIVA deve ser interpretada no sentido de que apenas beneficiam da taxa reduzida as empreitadas de beneficiação, remodelação, renovação, restauro, reparação ou conservação de imóveis ou partes autónomas destes quando os mesmos estejam efectivamente afectos a uma utilização habitacional no momento em que as referidas operações tenham lugar.
Nº Convencional:JSTA00071822
Nº do Documento:SA22024020701179/11
Recorrente:AT – AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA
Recorrido 1:A... SA
Votação:UNANIMIDADE
Meio Processual:REC JURISDICIONAL
Objecto:SENTENÇA TAF SINTRA
Decisão:CONCEDE PROVIMENTO
Área Temática 1:DIR FISCAL
Área Temática 2:IVA
Legislação Nacional:CIVA VERBA 2.24 (ACTUAL 2.27) LISTA I ANEXA AO CIVA
Legislação Estrangeira:DIRECTIVA IVA 2006/112/CE
Jurisprudência Internacional:AC TJUE 11/01/2020 PROC C-690/22
Aditamento:
Texto Integral: Acordam na secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo

I - Relatório

1 – A... S.A., com os sinais dos autos, impugnou no Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra as liquidações adicionais de IVA referentes ao ano de 2007, emitidas em 2011, alegando preterição de formalidades legais essenciais, falta de fundamentação, erro nos pressupostos de direito e errónea quantificação e qualificação da matéria colectável.

2 – Por sentença de 26.06.2020, o TAF de Sintra julgou procedente a impugnação judicial e anulou as referidas liquidações.

3 – A Fazenda Pública, inconformada com aquela decisão, interpôs recurso da mesma para este STA, rematando as suas alegações com as seguintes conclusões:

«[…]
A. Conforme resulta da douta sentença recorrida foi determinada a anulação das liquidações adicionais de IVA, relativas ao ano de 2007, em virtude do Tribunal a quo, ter considerado que as correções efetuadas pelos serviços inspetivos da AT, e as dali resultantes liquidações adicionais de IVA, violaram o disposto na verba n.º 2.24 (atual n.º 2.27) à Lista I anexa ao CIVA, e na alínea a) do n.º 1 do artigo 18.º do CIVA, porquanto os imóveis, ou prédios urbanos edificados, destinados ou afetos à habitação, a que se refere a aludida verba n.º 2.24, são todos aqueles que tenham sido licenciados para uso habitacional, e não apenas aqueles que se encontrem efetivamente habitados;

B. Não pode a Fazenda Pública conformar-se com o assim doutamente decidido, porquanto entende existir erro de julgamento de direito, uma vez que o Tribunal a quo efetuou uma errónea interpretação e aplicação do disposto na verba n.º 2.24 (atual n.º 2.27) da Lista I anexa ao CIVA;

C. A questão objeto de apreciação nos presentes autos prende-se com a interpretação do conceito de “imóveis ou partes autónomas destes afetos à habitação”, constante da referida verba n.º 2.24 (atual n.º 2.27) da Lista I anexa ao CIVA;

D. Em matéria de interpretação das normas tributárias, importa considerar o disposto no artigo 11.º da LGT e atender às regras e princípios gerais de interpretação e aplicação das leis constantes do preceituado no artigo 9.º do CC;

E. A palavra “afeto”, tem como significado, para o que ora releva, “que se destina a determinado fim“, cfr. dicionário da língua portuguesa, Porto Editora, disponível em www.infopedia.pt>dicionarios>lingua-portuguesa>afeto. Assim, considerando o elemento gramatical, resulta que o legislador quando se refere a “prédios afetos à habitação”, pretende referir-se a prédios que se destinam à habitação;

F. Impõe-se então saber se o legislador pretendeu, com a expressão em causa, considerar os prédios que se destinam formalmente à habitação, i.e todos aqueles que se encontram licenciados para o efeito, ou se pretendeu considerar apenas aqueles prédios que possuam uma concreta afetação à habitação, i.e. que se encontrem efetivamente a ser utilizados para tal fim;

G. Apesar do legislador fiscal não ter procedido à definição de “prédios afetos à habitação”, não raras vezes utiliza a palavra afetação em algumas das normas tributárias, fazendo-o com o sentido de utilização. Com efeito, do Código do CIMI resulta que, para a determinação do VPT dos prédios urbanos, é utilizada uma fórmula matemática da qual faz parte o designado “coeficiente de afetação”, sendo que tal coeficiente depende, nos termos do disposto no artigo 41.º do CIMI, do tipo de utilização dos prédios em causa. Que é este o sentido da expressão “afeto a”, confirma-se pelo artigo 3.º do mesmo compêndio legal, em que, relativamente aos prédios rústicos, se faz referência aos que “estejam afectos ou, na falta de concreta afectação, tenham como destino normal uma utilização geradora de rendimentos agrícolas”, que evidência que a afectação é concreta, efectiva. Na verdade, como se vê pela parte final deste texto, um prédio pode ter como destino uma determinada utilização e estar ou não afecto a ela, o que evidência que a afectação é, a nível da ligação de um prédio a determinada utilização, algo mais intenso que o mero destino e que pode ou não ocorrer, a jusante deste e não a montante.

Note-se ainda, as referências feitas nos artigos 46.º do EBF, artigos 9.º e 11.º, n.º 7 do CIMT e no artigo 10.º, n.º 6, alínea a) do CIRS, em que o legislador faz depender, consoante os casos, a isenção de imposto, caducidade da isenção ou exclusão de tributação, da circunstância dos imóveis serem efetivamente afetos a determinado fim, utilizando o termo afeto no sentido de destino concreto ou utilização efetiva do prédio com determinada finalidade, não obstante a verificação do destino formal.

Assim, considerando o ordenamento jurídico tributário e, em particular, as disposições normativas a que fizemos referência, o legislador quando se refere a “prédio afeto à habitação”, quer significar um prédio que possui uma concreta afetação, in casu a habitação, e não um prédio que tenha como destino formal a habitação;

H. Quanto à interpretação da expressão “imóveis ou partes autónomas destes afectos à habitação”, constante da verba 2.24 da lista I anexa ao CIVA (atual verba 2.27), a AT emitiu orientações administrativas, em particular o ofício circulado n.º ...25, de 07.08.2000, do qual se extrai, para o que ora releva, o seguinte:

ÂMBITO DE APLICAÇÃO

(…)

2. Imóveis

A verba engloba unicamente os serviços efectuados em imóvel ou parte de imóvel que, não estando licenciado para outros fins, esteja afecto à habitação.

Considera-se imóvel ou parte de imóvel afecto à habitação o que esteja a ser utilizado como tal no início das obras e que, após a execução das mesmas, continue a ser efectivamente utilizado como residência particular.

(…)”

Tal interpretação é a que melhor se coaduna com o teor do Anexo K da Diretiva 77/388/CEE (sexta Diretiva), aditado pela Directiva 1999/85/CE, no qual se faz referência a “Obras de reparação e renovação em residências particulares”;

I. Caso o legislador tivesse pretendido abranger na aludida verba n.º 2.24 da Lista I anexa ao CIVA, como considerou o Tribunal a quo, todos os imóveis que se encontrassem licenciados para uso habitacional, decerto teria utilizado a expressão “prédios urbanos habitacionais”, que expressaria perfeita e claramente o seu pensamento, à face da definição dada pelo n.º 2 do artigo 6.º do CIMI. Consequentemente, deve presumir-se que o uso de uma expressão diferente tem em vista uma realidade distinta, pelo que, em boa hermenêutica, “prédio afeto à habitação”, não poderá ser um prédio apenas licenciado para habitação, isto é, não bastará que seja um “prédio habitacional”, tendo de ser um prédio que tenha efectiva utilização com esse fim. De resto, o texto da lei ao adoptar a fórmula “prédio afeto à habitação” aponta fortemente no sentido de que se exige que a afectação habitacional esteja concretizada, pois só assim o prédio estará afecto a tal finalidade;

J. Considerando a inserção sistemática da disposição normativa em causa (a verba n.º 2.24 da Lista I anexa ao CIVA, (atual verba n.º 2.27), verificamos que a mesma foi inserida num conjunto de outras verbas, resultando evidente do teor e confronto da atual verba n.º 2.26 (anterior verba n.º 2.23) com a verba n.º 2.24, que naquela o legislador refere-se expressamente a “prédios urbanos habitacionais” e que, ao invés, na verba de que ora cuidamos, o legislador adotou a expressão “imóveis afetos à habitação”. Considerando que, nos termos da lei, na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados, certo se torna concluir que o legislador pretendeu distinguir duas realidades: os prédios urbanos habitacionais, por um lado, e os prédios afetos à habitação, por outro;

K. Os “prédios urbanos habitacionais” constituem, assim, uma realidade distinta de “prédios afetos à habitação” e atendendo ao sentido da expressão “afeto à habitação” que resulta, quer do CIMI, quer do EBF, quer do CIMT, quer do CIRS, por confronto com a expressão “prédios urbanos habitacionais”, cuja definição resulta do artigo 6.º do CIMI, carece de total sustentação a consideração do Tribunal a quo de que por prédio afeto à habitação se deve entender prédio licenciado para habitação;

L. Ao contrário dos prédios urbanos habitacionais que o próprio legislador fiscal define como sendo todos aqueles que se encontrem licenciados para habitação, nos termos do artigo 6.º n.º 1, alínea a) e n.º 2 do CIMI, os prédios afetos à habitação são todos aqueles que se encontrem efetivamente a ser utilizados com tal finalidade. Sendo que, para efeitos de aplicação da taxa reduzida do IVA prevista na verba 2.24 da Lista I anexa ao CIVA (atual verba 2.27), apenas são considerados estes últimos;

M. No caso dos autos, não tendo a Impugnante logrado demonstrar que as empreitadas em causa tiveram por objeto prédios efetivamente utilizados para habitação, prova que lhe competia nos termos do disposto no artigo 74.º da LGT, não se mostra comprovado um dos requisitos objetivos estabelecidos na verba 2.24 da Lista I anexa ao CIVA, pelo que não tinha aquela o direito à aplicação da taxa reduzida do IVA, não padecendo, assim, as correções efetuadas pelos SIT, no sentido de considerar aplicável a taxa normal do IVA, de qualquer ilegalidade;

N. O Tribunal a quo ao ter decidido que se encontram abrangidos na verba 2.24 da lista I anexa ao CIVA (atual verba 2.27) todos os prédios licenciados para habitação, incorreu em erro de julgamento de direito por errónea interpretação e aplicação da referida verba, pelo que deverá a douta sentença recorrida ser revogada e substituída por outra que julgue a Impugnação Judicial totalmente improcedente, mantendo na ordem jurídica os atos tributários de liquidação adicional do IVA, relativos ao ano de 2007, com as legais consequências

Termos em que com o douto suprimento de Vossas Excelências, deve ser concedido provimento ao presente recurso e, consequentemente, ser revogada a sentença ora recorrida e substituída por outra que julgue a Impugnação totalmente improcedente, assim se fazendo a costumada JUSTIÇA!

[…]».

4 – Não foram produzidas contra-alegações.

5 – O Excelentíssimo Representante do MP junto deste Tribunal emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso.

6 – Por acórdão deste STA de decidiu-se suspender a instância e submeter à apreciação do Tribunal de Justiça da União Europeia a seguinte questão prejudicial:
“O ponto 2 do Anexo IV da Directiva IVA opõe-se a uma disposição de direito nacional segundo a qual a taxa reduzida de IVA apenas pode ser aplicada a empreitadas de reparação e renovação do imóvel em residências particulares que estejam habitadas no momento em que aquelas operações têm lugar?".

7 – Por acórdão de 11 de Janeiro de 2024, o TJUE decidiu que: “O ponto 2 do anexo IV da Directiva 2006/112/CE do Conselho, de 28 de Novembro de 2006, relativa ao sistema comum do imposto sobre o valor acrescentado, deve ser interpretada no sentido de que: não se opõe a uma legislação nacional que prevê que se aplique uma taxa reduzida de imposto sobre o valor acrescentado aos serviços de reparação e renovação em residências particulares, desde que as residências em causa sejam efectivamente utilizadas como habitação na data em que estas operações têm lugar”.

8 – As partes foram notificadas do acórdão do TJUE e não emitiram pronúncia.

Cumpre apreciar e decidir.

II – Fundamentação


1. De facto
A decisão recorrida deu como provada a seguinte factualidade concreta:
[…]

A) A Impugnante é uma sociedade comercial, constituída sob a forma de sociedade anónima, que tem por objeto a “prestação de serviços de construção civil, comércio, empreitadas, compra e venda de propriedades e comércio de materiais de construção civil” (cf. Relatório de Inspeção Tributária – “RIT” – a fls. 125 a 150 dos autos, e Anexos 2 e 3 ao RIT, a fls. 159 a 172 dos autos);

B) Em 2007, a Impugnante efetuou uma empreitada de remodelação no edifício sito na Rua ..., ... e 80, freguesia ..., em Lisboa (cf. RIT a fls. 125 a 150 dos autos, e “Memorandum” a fls. 523 e 524 dos autos)

C) Da certidão predial permanente consta que o prédio urbano referido na alínea antecedente foi adquirido, em 28-07-2008, pela sociedade comercial “B..., S.A.”, e que as respetivas frações autónomas se destinam a habitação (cf. certidão predial permanente a fls. 525 a 530 dos autos);

D) Entre 29-01-2007 e 26-12-2007, no decorrer da empreitada referida nas alíneas antecedentes, a Impugnante emitiu para a sociedade comercial “B..., S.A.” as faturas n.º ...2, ...55, ...57, ...64, ...65, ...80, ...22, ...23, ...24, ...25, ...62, ...63, ...64, ...65, ...66, ...67, ...68, ...69, ...70, ...71, ...72, ...73, ...18, ...19, ...20, ...21, ...22, ...23, ...24, ...25, ...26, ...27, ...85, ...86, ...87, ...88, ...89, ...90, ...91, ...92, ...93, ...94, ...95, ...96, ...97, ...98, ...25, ...26, ...49, ...50, ...88, ...96, ...97, ...43 e ...44, no montante total de € 1.025.472,75 (cf. Anexos 17, 18 e 19 ao RIT, a fls. 343 a 505 dos autos);

E) Nas faturas referidas na alínea antecedente, a Impugnante aplicou a taxa de 5% de IVA, ao abrigo da verba 2.24 da Lista I anexa ao CIVA, ao montante total de € 533.511,84, liquidando € 26.675,62 (cf. Anexos 17, 18 e 19 ao RIT, a fls. 343 a 505 dos autos);

F) Em 2007, a Impugnante efetuou uma empreitada de remodelação nos edifícios sitos na Rua ..., ..., freguesia dos ..., em Lisboa (cf. RIT a fls. 125 a 150 dos autos, e “Memorandum” a fls. 539 e 540 dos autos);

G) Das certidões prediais permanentes consta que os prédios urbanos referidos na alínea antecedente foram adquiridos, em 05-08-2004, pela sociedade comercial “C..., S.A.”, e que as respetivas frações autónomas se destinam a habitação (cf. certidão predial permanente a fls. 541 a 568 dos autos);

H) Entre 29-01-2007 e 26-12-2007, no decorrer da empreitada referida nas alíneas antecedentes, a Impugnante emitiu para a sociedade comercial “C..., S.A.” as faturas n.º ...3, ...0, ...4, ...8, ...9, ...8, ...9, ...00, ...32, ...33, ...94, ...97, ...36, ...00, ...50, ...41, ...42, ...54, ...00, ...06, ...50 e ...70, no montante total de € 962.445,20 (cf. Anexos 17, 18 e 19 ao RIT, a fls. 343 a 505 dos autos);

I) Nas faturas referidas na alínea antecedente, a Impugnante aplicou a taxa de 5% de IVA, ao abrigo da verba 2.24 da Lista I anexa ao CIVA, ao montante total de € 491.288,17, liquidando € 24.564,42 (cf. Anexos 17, 18 e 19 ao RIT, a fls. 343 a 505 dos autos);

J) Em 2007, a Impugnante efetuou uma empreitada de remodelação no edifício sito na Rua ..., freguesia dos ..., em Lisboa (cf. RIT a fls. 125 a 150 dos autos, e “Memorandum” a fls. 590 e 591 dos autos)

K) Da certidão predial permanente consta que o prédio urbano referido na alínea antecedente foi adquirido, em 27-06-2005, pela sociedade comercial “C..., S.A.”, e que as respetivas frações autónomas se destinam a habitação e a estacionamento (cf. certidão predial permanente a fls. 592 a 617 dos autos);

L) Entre 29-01-2007 e 26-12-2007, no decorrer da empreitada referida nas alíneas antecedentes, a Impugnante emitiu para a sociedade comercial “C..., S.A.” as faturas n.º ...4, ...5, ...6, ...7, ...8, ...9, ...9, ...1, ...2, ...3, ...4, ...5, ...6, ...10, ...11, ...12, ...13, ...28, ...47, ...48, ...49, ...50, ...95, ...96, ...06, ...07, ...08, ...09, ...69, ...27, ...28, ...29 e ...30, no montante total de € 270.521,90 (cf. Anexos 17, 18 e 19 ao RIT, a fls. 343 a 505 dos autos);

M) Nas faturas referidas na alínea antecedente, a Impugnante aplicou a taxa de 5% de IVA, ao abrigo da verba 2.24 da Lista I anexa ao CIVA, ao montante total de € 146.068,89, liquidando € 7.303,46 (cf. Anexos 17, 18 e 19 ao RIT, a fls. 343 a 505 dos autos);

N) Em 2007, a Impugnante efetuou uma empreitada de remodelação no edifício “...”, sito na Rua ..., freguesia ..., em Lisboa (cf. RIT a fls. 125 a 150 dos autos, e “Memorandum” a fls. 625 a 631 dos autos)

O) Da certidão predial permanente consta que o prédio urbano referido na alínea antecedente foi adquirido, em 24-01-2005, pela sociedade comercial “D..., Lda.”, e que as respetivas frações autónomas se destinam a habitação, comércio e a estacionamento (cf. certidão predial permanente a fls. 619 a 624 dos autos);

P) Entre 29-01-2007 e 26-12-2007, no decorrer da empreitada referida nas alíneas antecedentes, a Impugnante emitiu para a sociedade comercial “D..., Lda.” as faturas n.º ...9, ...0, ...1, ...7, ...8, ...9, ...0, ...1, ...20, ...21, ...22, ...23, ...24, ...25, ...38, ...39, ...81, ...82, ...83, ...92, ...76, ...01, ...08, ...09, ...10, ...11, ...40, ...83, ...11, ...68 e ...69, no montante total de € 1.545.266,87 (cf. Anexos 17, 18 e 19 ao RIT, a fls. 343 a 505 dos autos);

Q) Nas faturas referidas na alínea antecedente, a Impugnante aplicou a taxa de 5% de IVA, ao abrigo da verba 2.24 da Lista I anexa ao CIVA, ao montante total de € 866.340,49, liquidando € 43.317,04 (cf. Anexos 17, 18 e 19 ao RIT, a fls. 343 a 505 dos autos);

R) Em 2007, a Impugnante efetuou uma empreitada de remodelação no edifício sito na Rua ..., freguesia dos ..., em Lisboa (cf. RIT a fls. 125 a 150 dos autos);

S) Da certidão predial permanente consta que o prédio urbano referido na alínea antecedente foi adquirido pela sociedade comercial “B..., S.A.”, e que as respetivas frações autónomas se destinam a habitação (cf. RIT a fls. 125 a 150 dos autos);

T) Entre 29-01-2007 e 26-12-2007, no decorrer da empreitada referida nas alíneas antecedentes, a Impugnante emitiu para a sociedade comercial “B..., S.A.” a fatura n.º ...45, no montante total de € 9.450,00 (cf. Anexos 17, 18 e 19 ao RIT, a fls. 343 a 505 dos autos);

U) Nas faturas referidas na alínea antecedente, a Impugnante aplicou a taxa de 5% de IVA, ao abrigo da verba 2.24 da Lista I anexa ao CIVA, ao montante total de € 9.000,00, liquidando € 450,00 (cf. Anexos 17, 18 e 19 ao RIT, a fls. 343 a 505 dos autos);

V) Em 19-01-2011, os Serviços de Inspeção Tributária da Direção de Finanças de Lisboa iniciaram um procedimento externo de inspeção à Impugnante, em cumprimento da Ordem de Serviço n.º ...47, datada de 13-12-2010, relativamente ao exercício de 2007 (cf. RIT a fls. 125 a 150 dos autos);

W) Em 01-03-2011, os Serviços de Inspeção Tributária da Direção de Finanças de Lisboa entregaram à Impugnante uma “notificação”, para “apresentar os seguintes elementos / esclarecimentos:

1 - Justificação para a aplicação a serviços prestados pela A... SA da taxa reduzida de IVA, pela aplicação da verba 2.24 da lista l anexa ao CIVA (actual verba 2.27).

2 Comprovativo(s) do cumprimento dos requisitos para tal aplicação, nomeadamente a afectação dos imóveis (objecto da prestação de serviços e liquidação de IVA à taxa reduzida) à habitação - considerando-se afectos à habitação os que estejam a ser utilizados como tal no início das obras e que, após a execução das mesmas, continuem a ser efectivamente utilizados como residência particular - de acordo com o estipulado na referida verba e no ofício circulado n.º ...25, de 07/08/2000 emitido pela Direcção de Serviços do IVA” (cf. Anexo 16 ao RIT, a fls. 338 a 342 dos autos);

X) Em 04-03-2011, a Impugnante emitiu documento, dirigido aos Serviços de Inspeção Tributária da Direção de Finanças de Lisboa, com o seguinte teor:

ASSUNTO: Resposta à V notificação de 1/3/2011 (Ordem de Serviço ...43)

Exmos Senhores,

Em resposta à V notificação em referência apresentamos os seguintes esclarecimentos e elementos:

1. Foram executadas no exercício de 2007 sete empreitadas de remodelação enquadráveis no previsto na verba 2.24 da lista I anexa ao CIVA (actual verba 2.27), são estas as seguintes:

a. 597 - ...

b. 639 - ...

c. 637 -Av. ...

d. 616 - R. de ...

e. 653 - ...

f. 645-...

g. 641 - ...

2. Verificou a A... que todas estas empreitadas respeitavam os requisitos necessários à aplicação da taxa de IVA reduzida, prevista na verba referida anteriormente.

3. Em particular foi verificado que se tratavam de “Imóveis ou partes autónomas destes afectos à habitação”, conforme previsto no texto do Código do IVA.

4. Foi também garantido a aplicação da taxa reduzida aos trabalhos executados não abrangendo os materiais, mais uma vez conforme previsto no referido texto legal.

5. Juntamos em anexo Certidões do Registo Predial das diversas obras onde se atesta que os imóveis intervencionados estão “afectos à habitação” bem como documento elaborado por empresa contratada para o efeito com o cálculo da percentagem dos trabalhos executados que são enquadráveis na referida verba da Lista I do CIVA.

6. Todas as facturas emitidas para as empreitadas em questão foram facturadas com taxas de IVA diferenciadas de acordo com o documento anterior — Taxa normal para-a componente de materiais e taxa reduzida para o restante. Foi também aplicada a taxa normal para as partes da empreitada que incidiram sobre zonas não afectas à habitação.

7. De referir que para a obra 653 não foi possível obter a certidão predial, pelo que a afectação de habitação foi atestada pelo Dono de Obra e por verificação objectiva no local, tendo sido contudo fornecidos pelo Dono de Obra facturas de consumos (SMAS e ...) para atestar a utilização de habitação deste imóvel.

8. Para a obra 645 não foi possível contactar o Dono de Obra para obtenção da Certidão Predial, tendo sido contudo atestado por verificação no local que se tratava de facto de imóvel de habitação, tratando-se de acordo com a informação que possuímos a residência do Dono de Obra.

Julgando ficar assim justificada e comprovada a utilização da verba 2.24 da lista I anexa ao CIVA (actual verba 2.27), ficamos disponíveis para prestar todas as informações adicionais que se revelem necessárias.”

(cf. Anexo 16 ao RIT, a fls. 338 a 342 dos autos);

Y) A Em anexo ao documento referido na alínea antecedente, a Impugnante juntou as certidões prediais permanentes e os “Memorandum” referidos nas alíneas B), C), F), G), J), K), N) e O) da matéria assente (cf. RIT a fls. 125 a 150 dos autos, e Anexo 16 ao RIT, a fls. 338 a 342 dos autos);

Z) Em 12-04-2011, os Serviços de Inspeção Tributária da Direção de Finanças de Lisboa emitiram Relatório de Inspeção Tributária, do qual se extrai o seguinte teor:

(VER ORIGINAL)

AA) A No anexo 17 ao relatório de inspeção tributária referido nas alíneas antecedentes constam os seguintes quadros:

(VER ORIGINAL)

BB) No anexo 18 ao relatório de inspeção tributária referido nas alíneas antecedentes constam os seguintes quadros:

(VER ORIGINAL)

CC) Em 18-04-2011, a Chefe de Divisão dos Serviços de Inspeção Tributária da Direção de Finanças de Lisboa, por subdelegação do Diretor Adjunto, emitiu despacho de concordância com o teor e propostas constantes do relatório final de inspeção tributária referido nas alíneas antecedentes (cf. despacho a fls. 123 dos autos);

DD) Em 19-04-2011, os Serviços de Inspeção Tributária da Direção de Finanças de Lisboa emitiram “Ofício”, dirigido à Impugnante, juntando em anexo o despacho e o relatório referidos nas alíneas antecedentes (cf. despacho a fls. 122 dos autos);

EE) Em 10-05-2011, o Serviço de Finanças de Sintra – 1 emitiu as liquidações adicionais de IVA n.sº ...89, ...90, ...91, ...92, ...93, ...94, ...95, ...96, ...97, ...98, ...99, ...00, ...01, ...02, ...03, ...04, ...05, ...06, ...07, ...08, ...09, ...10, ...11, e ...12, referentes ao ano de 2007, no valor global de € 374.750.77, com a data limite de pagamento de 30-06-2011 (cf. fls. 98 a 121 dos autos).

*

Não existem outros factos alegados relevantes para a decisão, em face das possíveis soluções de direito, que importe referir como indiciariamente provados ou não provados.

[…]».


2. Questão a decidir
A questão controvertida no presente recurso prende-se, no essencial, com a interpretação do disposto na verba 2.24 (actual 2.27) da Lista I anexa ao CIVA, para apurar se houve ou não erro de julgamento da sentença recorrida quando considerou que a previsão normativa em apreço abrangia todos as “empreitadas e demais intervenções” em imóveis ou prédios licenciados para uso habitacional e não apenas aqueles que se encontrassem efectivamente habitados.


3. De direito
3.1. O preceito normativo cujo teor se discute dispõe expressamente o seguinte:

[…]

Bens e serviços sujeitos a taxa reduzida

2.24. As empreitadas de beneficiação, remodelação, renovação, restauro, reparação ou conservação de imóveis ou partes autónomas destes afectos à habitação, com excepção dos trabalhos de limpeza, de manutenção dos espaços verdes e das empreitadas sobre bens imóveis que abranjam a totalidade ou uma parte dos elementos constitutivos de piscinas, saunas, campos de ténis, golfe ou minigolfe ou instalações similares.
A taxa reduzida não abrange os materiais incorporados, salvo se o respectivo valor não exceder 20% do valor global da prestação de serviços.

[…] (esta norma a prever a taxa reduzida para este tipo de operações foi aditada pela Lei n.º 3-B/2000, de 4 de Abril e a redacção actual introduzida pela Lei n.º 55-B/2004, de 30 de Dezembro correspondendo à presente verba 2.27).

3.2. A Recorrente Fazenda Pública alega que “afectos à habitação” é uma expressão que tem de ser interpretada no sentido de abranger apenas prédios que estejam a ser habitados no momento em que são realizadas as referidas intervenções de beneficiação, remodelação, renovação, restauro, etc.

Já o Tribunal a quo, fazendo apelo aos elementos da hermenêutica jurídica, conclui que a norma em causa foi introduzida no nosso ordenamento jurídico no seguimento da aprovação da Directiva 1999/85/CE, de 22 de Outubro, adoptada no Conselho de Viena, cujo propósito era permitir aos Estados, durante um período de tempo limitado, a redução do IVA incidente sobre serviços com grande intensidade do factor trabalho. Na referida Directiva 1999/85/CE, a lista de serviços a incluir no âmbito da taxa reduzida de IVA com base na intensidade do factor trabalho abrangia “obras de reparação e renovação em residências particulares, excluindo os materiais que representassem uma parte significativa do valor da prestação” e esta formulação textual mantém-se na redacção actual da Directiva IVA 2006/112/CE, mais precisamente, no respectivo Anexo IV, ponto 2, no qual se pode ler “obras de reparação e renovação em residências particulares, excluindo os materiais que representam uma parte significativa do valor do serviço prestado”.

A sentença recorrida fez também um estudo exaustivo do direito comparado, no qual concluiu que os legisladores dos Estados-membros têm aproveitado a margem de livre conformação para recortar de modo algo diverso o âmbito de aplicação desta taxa reduzida de IVA, o que significa que a margem de conformidade das soluções do direito nacional com o direito europeu pode ser mais alargada, permitindo acomodar opções de política nacional em matéria de habitação e urbanismo, sem comprometer o regime uniformizado do imposto sobre o valor acrescentado.

3.3. É neste contexto que emergiu a dúvida sobre o recorte dogmático do conceito de “imóveis ou partes autónomas destes afectos à habitação” que o legislador nacional efectivamente quis dar à expressão que empregou no direito nacional para delimitar o âmbito de aplicação da taxa reduzida de IVA.

3.4. Lembramos que a AT sustenta uma interpretação (vertida no Ofício-Circulado n.º ...25) do âmbito de aplicação da taxa reduzida de IVA limitada aos casos em que a reparação e renovação do imóvel em residências particulares que estejam habitadas no momento em que aquelas operações têm lugar, ou seja, os que estão a ser utilizados como habitação no início das obras e que continuam a prosseguir o mesmo fim após a conclusão daquelas. E exclui, como é o caso dos autos, os imóveis destinados (licenciados) a fins habitacionais, mas que se encontram sem afectação efectiva a uso habitacional no momento da intervenção ou que se destinam a alienação após intervenção, como sucedeu com as intervenções em alguns dos imóveis aqui em litígio.

3.5. Da leitura dos §§ 23 a 26 do acórdão do TJUE resulta claro que a interpretação sufragada pela AT é a que está em linha com a jurisprudência europeia, ou seja, com a interpretação que o TJUE vem fazendo das “excepções” à taxa normal do IVA. Como o acórdão clarifica, a taxa de reduzida de IVA respeitante a serviços de reparação e renovação em residências particulares (ponto 2 do anexo IV em conjugação com o artigo 106.º da Directiva IVA) estava concebida para aquele tipo de operações em residências (bens, imóveis ou móveis, destinados a habitação) particulares (ou seja, excluindo edificações destinadas a serviços de alojamento, hotéis ou similares).

3.6. E o mesmo acórdão, no §28, dispõe que não se devem considerar abrangidos pela isenção, à luz do direito europeu, as operações de renovação e conservação em imóveis licenciados para fins habitacionais, mas que não estejam efectivamente afectos a esse fim na data em que aquelas operações têm lugar, incluindo aqueles que sejam utilizados pelos proprietários, à data das referidas operações, para fins comerciais ou de investimento. Lembrando ainda o TJUE da necessidade de aplicar escrupulosamente uma interpretação restritiva às previsões normativas que derrogam o regime geral das taxas de IVA (§ 30).

3.7. E o TJUE lembra ainda que a taxa reduzida se aplica a consumidores finais, não cabendo nesse universo os proprietários investidores que realizem aquelas operações com o propósito de obter rendimento com a alienação ou exploração do imóvel, pelo que, o critério interpretativo deve ser o da efectiva utilização do imóvel como habitação no momento em que as operações de renovação ou conservação têm lugar (§§30-34). Mas o TJUE acrescenta que isso não impede que o benefício deva ser aplicado se imóvel não está temporariamente ocupado (ex. durante o período das obras) ou se constitui uma residência secundária, ou seja, que apenas é ocupado pelo “consumidor final” durante uma parte do ano, pois não é necessário que se trate da habitação própria e permanente.

3.8. Aplicando os parâmetros de interpretação constantes do acórdão do TJUE à factualidade dos autos concluímos que os imóveis em causa são propriedade de uma sociedade comercial, que procedeu às operações de renovação cuja liquidação de IVA vem impugnada nos autos, a título de operações de investimento e não enquanto consumidor final, pelo que, tem razão a AT quando determina a inaplicabilidade in casu do regime de IVA reduzido.


III - Decisão
Nestes termos, acordam em conferência os juízes da Secção de Contencioso Tributário deste Supremo Tribunal, de harmonia com os poderes conferidos pelo artigo 202.º da Constituição da República Portuguesa, em julgar procedente o recurso, revogar a sentença recorrida e ordenar a baixa dos autos para conhecimento dos restantes vícios imputados às liquidações impugnadas.


Custas pelos Recorridos sem dispensa do remanescente da taxa de justiça atenta a complexidade do processo.

Lisboa, 7 de Fevereiro de 2024. - Suzana Maria Calvo Loureiro Tavares da Silva (relatora) - Pedro Nuno Pinto Vergueiro - Jorge Miguel Barroso de Aragão Seia.