Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0185/12
Data do Acordão:03/07/2012
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:LINO RIBEIRO
Descritores:EXECUÇÃO FISCAL
NATUREZA
PROCESSO
PROCEDIMENTO ADMINISTRATIVO
ACTO MATERIALMENTE ADMINISTRATIVO
ACTO JUDICIAL
GARANTIA
ISENÇÃO
Sumário:I - O sentido da norma do artigo 103° da LGT é o de que a execução fiscal actua através da forma de processo, entendido como um conceito moldado a partir do modelo que fornece o processo judicial, e não através da forma de procedimento administrativo, entendido como modo de realização do direito administrativo.
II - A circunstância dos actos executivos poderem ser praticados por um órgão administrativo não lhe retira a natureza de processo nem o transforma parcialmente em procedimento administrativo.
III - Daí que, os actos materialmente administrativos praticados na execução fiscal pelos órgãos da administração tributária sejam os que definem posições subjectivas processuais e que por isso se caracterizam por uma natureza formal ou instrumental.
IV - Pelos efeitos produzidos, o acto de indeferimento do pedido de isenção da prestação de garantia é um acto predominantemente processual: faz cessar o efeito suspensivo da execução iniciado com o pedido de isenção, procedendo-se de imediato à penhora ou à compensação de dívidas (cfr. n°2 do art. 169° n° 1 do art. 89° do CPPT).
V - Por isso, à formação desse acto processual não se aplicam as regras do procedimento tributário, designadamente a do artigo 60° da LGT.
Nº Convencional:JSTA00067458
Nº do Documento:SA2201203070185
Data de Entrada:02/20/2012
Recorrente:FAZENDA PÚBLICA
Recorrido 1:A...
Votação:UNANIMIDADE COM 2 DEC VOT
Meio Processual:REC JURISDICIONAL
Objecto:SENT TAF BRAGA PER SALTUM
Decisão:PROVIDO
Área Temática 1:DIR PROC TRIBUT CONT - EXEC FISCAL
Legislação Nacional:LGT98 ART52 N4 ART54 N1 H ART103
CPPTRIB99 ART44 N1 G ART89 N1 ART151 ART190 N4 ART191 N1 ART192 N1 ART223 N3 ART246 ART252 ART257 ART258 ART276 ART277 ART278 ART170 N3 ART198 N2
CONST76 ART202
CPA91 ART149 N3 ART155
CPC96 ART715 N2
Jurisprudência Nacional:AC STA PROC1054/11 DE 2011/12/07
Aditamento:
Texto Integral: Acordam na Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo
1. A Fazenda Pública interpõe recurso jurisdicional da sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga que julgou procedente a reclamação que, nos termos do artigo 276º do CPPT, A……, devidamente identificado no autos, fez contra o despacho do Chefe de Finanças de Guimarães que lhe indeferiu o pedido de dispensa de garantia, para efeito de suspensão da execução fiscal nº 3476199201025589, que contra si reverteu.
Nas respectivas alegações, conclui o seguinte:
1. Na douta decisão ora recorrida o M.º Juiz julgou procedente a reclamação apresentada pelo contribuinte tendo, em consequência, determinado a anulação do despacho do órgão da execução fiscal que indeferiu o pedido de dispensa de prestação de garantia formulado pelo aqui recorrido, por entender ter o dito despacho sido proferido com preterição de formalidade legal, mais concretamente a prevista no art. 60º da Lei Geral Tributária (LGT). Salvo o devido respeito por opinião contrária, entende a Fazenda Pública que o citado normativo legal não é aplicável em sede de execução fiscal, designadamente antes da decisão que recaia sobre o pedido de dispensa da prestação de garantia formulado pelo executado.
2. A questão essencial que incumbe apreciar reconduz-se a saber se no âmbito de um processo de execução fiscal - maxime antes da decisão do órgão da execução fiscal que recaia sobre um pedido de dispensa da prestação de garantia formulado pelo executado - é aplicável o direito de participação previsto no art. 60º da LGT.
3. O referido normativo legal encontra-se previsto no Capítulo I do Título III da LGT referente às regras gerais do procedimento tributário.
4. Como resulta do disposto na al. h) do n.º 1 do art. 54º da LGT "O procedimento tributário compreende toda a sucessão de actos dirigida à declaração de direitos tributários, designadamente ( ... ) a cobrança das obrigações tributárias, na parte que não tiver natureza judicial".
5. Sendo que o mesmo diploma prescreve no art. 103º que "O processo de execução fiscal tem natureza judicial, sem prejuízo da participação dos órgãos da administração tributária nos actos que não tenham natureza jurisdicional".
6. Em face do teor dos citados normativos legais revela-se imperioso concluir que o processo de execução fiscal não pode ser qualificado como um "procedimento", antes deve ser entendido como um "processo judicial", e, assim sendo, forçoso se torna concluir que o referido normativo legal não pode ser aplicado no âmbito processual.
7. Por outro lado, é pacífico que - com excepção da situação prevista no art. 23º, n.º 4 da LGT - inexiste norma que determine, de forma geral, a aplicação de tal princípio no âmbito da execução fiscal.
8. Aliás, a citada excepção vem, no nosso entender, confirmar a regra; a qual seja, a de que tal direito de audição prévia às decisões proferidas não é, salvo disposição expressa em contrário, aplicável no seio do processo de execução fiscal.
9. Ainda que se entenda que, não obstante a natureza judicial do processo de execução fiscal, os actos praticados pelo órgão da execução fiscal têm natureza administrativa, as normas legais que lhe são aplicáveis são apenas as respeitantes a esse mesmo processo e não as previstas para todo e qualquer procedimento tributário, que, como se referiu, o próprio legislador teve o cuidado de, expressamente, excluir no art. 54º, n.º 1, al. h) da LGT.
10. Ora, não sendo aplicável o dito normativo legal, nem existindo comando legal que imponha tal direito de participação previamente à decisão sobre a dispensa da prestação de garantia, é forçoso inferir que tal formalidade legal não foi preterida.
11. Tendo na douta decisão ora recorrida se decidido de forma diversa é inevitável que se conclua que a mesma enferma de errada interpretação e aplicação do direito.
1.2. Nas contra-alegações, o recorrido conclui o seguinte:
1. No âmbito de um processo de execução fiscal - maxime antes da decisão do órgão de execução fiscal que recaia sobre um pedido de dispensa da prestação de garantia formulado pelo executado -, é aplicável o direito de participação previsto no artigo 60.0 da LGT.
2. A decisão de um órgão de execução fiscal que recaia sobre um pedido de dispensa da prestação de garantia, ainda que inserida num processo de execução fiscal, não tem de uma natureza judicial, mas sim administrativa.
3. Com efeito, apesar do processo de execução fiscal ser um processo judicial tributário, os órgãos da administração tributária têm nele intervenção apenas para a prática de actos materialmente administrativos, isto é, actos que em si não comportam nenhuma resolução de natureza jurisdicional.
4. São as seguintes as considerações que se podem extrair do sumário do Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 30.11.2011, processo 983/11: - direito de audiência prévia implica a existência de um procedimento prévio em que estejam principalmente em causa factos relevantes para a decisão; - Perante requerimentos em que é necessário desenvolver diligências instrutórias é obrigatória a audiência prévia.; - ao contrário do que sucede com um pedido de pagamento em prestações, num pedido de dispensa de prestação de garantia o órgão de execução fiscal não pode decidir com fundamento numa mera informação dos serviços em que nenhuma matéria de facto é avançada; - a falta de audição in casu prejudicou o interessado, uma vez que o mesmo poderia ter levado ao processo elementos que levariam a decisão diversa da proferida pelo órgão da execução fiscal.
5. Tais considerações encontram-se plenamente cumpridas num processo decisório como o sub judice nos presentes autos, relativo a um pedido de dispensa de garantia.
6. Para que a dispensa de prestação de garantia seja concedida é necessário que o executado prove alternativamente dois requisitos, a existência de prejuízo irreparável ou a manifesta falta de meios económicos.
7. Constituindo a audiência prévia em si mesma um elemento probatório, a sua essencialidade advém da sua capacidade para, em abstracto, ser concedida ou não a referida dispensa.
8. Assim, em sede de audiência prévia, sempre poderia o reclamante apresentar elementos ou documentos ou pronunciar-se quanto a uma eventual falta de prova quanto à insuficiência de bens penhoráveis ou quanto à existência de prejuízo considerável.
9. Veja-se ainda que não podemos interpretar, como fez a recorrente, que no artigo 23º, n.º 4, da LGT se estabelece uma norma excepcional relativamente à inserção da audiência prévia no processo de execução fiscal.
10. Essa excepcionalidade não se pode retirar da letra do artigo 23.°, n.º 4, da LGT uma vez que este, ao estabelecer a necessidade de dois procedimentos prévios à reversão - a audiência prévia e a declaração fundamentada dos seus pressupostos e extensão - lido a contrario, não permite inferir a excepcionalidade da audiência prévia por si só, mas apenas a excepcionalidade da cumulação desses dois procedimentos.
11. Verifica-se assim que a douta sentença proferida pelo Tribunal ad quo julgou correctamente a reclamação apresentada, designadamente, o vício praticado pelo Chefe do Serviço de Finanças no despacho proferido em 13.01.2011 e que se prendeu com a preterição de uma formalidade essencial como a audiência prévia.
12. Por outro lado, tendo o órgão de execução fiscal apurado oficiosamente que o requerente é titular de determinado direito à herança indivisa composta por diversos imóveis, elemento que teve em conta na formulação do juízo sobre a admissibilidade do pedido formulado, não tendo essa existência nunca sido revelada ou suscitada no processo, deve ser - previamente - facultada ao requerente a oportunidade para sobre ela se pronunciar, à luz do princípio do contraditório, consagrado no artigo 3º, n.º 3 do CPC, aplicável à execução fiscal por força do artigo 2°, alínea e) do CPPT.
13. A violação do princípio do contraditório integra a preterição de formalidade prescrita por lei e importa a nulidade da decisão do órgão de execução fiscal que se fundou na existência daquele direito sobre o quinhão da herança, visto ter influído no exame e decisão da causa.
1.3. O Ministério Público emitiu parecer no sentido de que o recurso deve ser julgado improcedente quanto ao direito de audição.
2. A sentença recorrida deu como provado o seguinte:
a) Pelo Serviço de Finanças de Guimarães - 2, foi instaurado o processo de execução fiscal n.º 3476 I 99201025589 e apensos, contra "B……, Lda."., para cobrança coerciva de dívidas relativas a IVA, no montante global de € 29.058,18, cfr. pef. apenso e fls. 60 dos autos.
b) A 24.04.2010, foi determinada a reversão do processo de execução fiscal identificado em a), contra A…… cfr. fls. 220 a 228 do pef.;
c) A 13.12.2010, o reclamante requereu a suspensão da execução com dispensa da prestação de garantia, por requerimento cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido, requerendo, a final a inquirição de duas testemunhas, alegando, para o efeito, cfr. fls. 425 a 430 do pef.;
d) A 13.01.2011, pelo Serviço de Finanças foi elaborado informação cujo teor consta de documento de fls. 480 a 482 do pef., que aqui se dá por integralmente por reproduzido, do qual consta de relevante o seguinte: (. . .) Entretanto, encetadas as diligências necessárias para a devida apreciação, com vista à adequada decisão, do pedido formulado pelo executado subsidiário e ora em questão, constatou-se que: - O requerente aufere, a título de pensão, um montante pecuniário anual de 19.754,00 €; - o requerente é titular de duas contas bancárias, à ordem, uma no Banco Espírito Santo, SA., e outra no Banco BPI, S.A.; - O requerente é titular de uma quota parte (1/7) de uma herança indivisa, aberta por óbito de C……, herança essa contendo, pelo menos, 37 prédios, sendo 7 urbanos e 30 rústicos, e ainda 1/5 de um jazigo sito na cidade do Porto. (. . .)
e) A 13.01.2011, foi proferido despacho pelo Ex. Sr. Chefe de Finanças, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido, para todos os efeitos legais, no qual consta a seguinte motivação: "( ... ) De facto, a Administração Fiscal podia, a requerimento do executado, isentá-lo da prestação da garantia nos casos de a sua prestação lhe causar prejuízo irreparável ou haver manifesta falta de meios económicos revelada pela insuficiência dos bens penhoráveis o que seria necessário provar e, na verdade, não existe qualquer documento ou elemento probatório nos respectivos processos de execução fiscal. Acontece ainda, face à análise dos elementos do processo, que o requerente e executado, tal como já foi referido, não conseguiu fazer prova de qualquer dos requisitos ou fundamentos para ser proferida decisão em sentido da isenção da prestação da garantia, conforme dispõe o n.º 3 do artigo o 170º do CPPT, dada que, como se verifica, existem bens no património jurídico do mesmo que podem ser indicados para o efeito, apesar de já se encontrarem penhorados. Além disso, por força do disposto no artigo 74º da LGT, artigo 88º, do CPA e artigo 342º do CC, ex vi artigo 2.º alínea e) do CPPT, aquele que requer ou invoca um direito deverá fazer prova do direito invocado. Nesta conformidade, prossigam as execuções fiscais, seus termos processuais (....).
f) A 17.01.2011, foi o reclamante notificado do despacho referido em e), cfr. fls. 485 a 489 do pef.;
3. O problema que se coloca no processo, em reexame da decisão recorrida, consiste em determinar se aos actos praticados na execução fiscal são aplicáveis as normas do procedimento tributário, nomeadamente a do artigo 60º da LGT que estabelece o direito de participação dos contribuintes, na modalidade de audição prévia, na formação das decisões que lhes digam respeito.
A solução desta questão, que ainda não obteve resposta suficientemente consolidada na jurisprudência tributária, tem por ponto de partida a determinação do sentido e alcance do artigo 103º da LGT, em cujo nº 1 se diz que «o processo de execução fiscal tem natureza judicial, sem prejuízo da participação dos órgãos da administração tributária nos actos que não tenham natureza jurisdicional»; e no nº 2 se prescreve que «é garantido aos interessados o direito de reclamação para o juiz da execução fiscal dos actos materialmente administrativos praticados por órgãos da administração tributária, nos termos do número anterior».
O enunciado normativo «o processo de execução fiscal tem natureza judicial», exprime literalmente o sentido de que a execução fiscal se realiza através de um «processo» e não de um «procedimento administrativo», no pressuposto hoje indiscutível que estamos perante realidades com natureza distinta. Como a questão já não é apenas de nomen iuris diferentes para o mesmo fenómeno processual, mas de categorias jurídicas funcional e estruturalmente diferenciadas, impõe-se averiguar se a “letra da lei” exprime correctamente o significado normativo nela contido.
À primeira vista, a maior dificuldade está no facto da norma dizer que a execução fiscal tem natureza de «processo judicial», quando é certo que a maior parte dos actos jurídicos compreendidos nessa forma processual não correspondem ao exercício de uma actividade jurisdicional. Como se sabe, do ponto de vista formal ou orgânico, à actividade dos órgãos inseridos na organização judicial dá-se o nome de função judicial; enquanto do ponto de vista material, a essa actividade dá-se o nome de função jurisdicional (cfr. art. 202º da CRP); e essa actividade é realizada de forma processualizada, a qual se assume, organicamente, como processo judicial e, materialmente, como processo jurisdicional.
Ora, deste ponto de vista, a execução não se podia identificar na totalidade com um processo de natureza judicial, porque o órgão de execução fiscal é um ente público não judicial. Neste sentido, nas palavras da lei, a execução fiscal apenas seria processo (judicial) na parte jurisdicionalizada, a referida no artigo 151º do CPPT, sendo procedimento (tributário) todos os demais actos jurídicos nela praticados pelos órgãos da administração tributária.
Mas a imperatividade do nº 1 do artigo 103º não permite chegar a essa conclusão. O que se extrai dessa norma é que a natureza judicial do processo de execução fiscal não pode prejudicar a possibilidade de participação dos órgãos da administração tributária nos actos não jurisdicionais. Com esta directiva, a lei pretende que se construa um modelo de execução fiscal, segundo a forma do processo judicial, que a um só tempo comporte momentos jurisdicionais, da competência do juiz, e momentos administrativos, da competência do órgão da administração tributária.
A existência de actos praticados por entidades diferentes, no exercício de funções diferentes, não significa, porém, que a formalização da execução fiscal se faça no primeiro caso através do processo e no segundo através do procedimento administrativo. Desde logo, porque esta conclusão colocaria no absurdo a circunstância daquele ser direito adjectivo e este integrar o direito substantivo, quando a sequência pré-ordenada de actos e formalidades actua em vista do mesmo objectivo de cobrança coerciva de tributos. Depois, porque não faz sentido cindir o processo de execução em duas partes, subsumindo cada uma delas num diverso sistema de normas, quando estão formalmente integradas na mesma unidade processual.
Não se deve estranhar que a execução fiscal se processe segundo o modelo do processo executivo judicial, apesar de intervenção de entes não judiciais. O facto de, em regra, o procedimento administrativo ser a forma da administração e o processo a forma da jurisdição, tal não significa que não possa haver meios processuais em consonância com a diversidade de situações típicas em crise. Veja-se o que acontece com o processo de contra-ordenação, em que a Administração desenvolve uma actividade materialmente jurisdicional, ou com o processo de jurisdição voluntária, em que o juiz desenvolve uma actividade materialmente administrativa. De igual modo, nada impede que as duas funções possam ser exercidas na mesma unidade processual, como aconteceu com a desjurisdicionalização relativa do processo executivo comum levada a efeito pelas alterações efectuadas à lei processual civil pelo DL nº 38/2003 de 8/3, ao entregar-se a direcção da execução a um solicitador de execução, como poderes de autoridade, reservando ao juiz o controlo a posterior dos actos executivos.
Portanto, a diversidade de interesses e pretensões de tutela pode determinar a imposição normativa de um módulo de composição que não corresponde ao modo normal de levar a cabo o exercício da respectiva função.
E assim acontece também com a execução fiscal das obrigações tributárias e de quaisquer actos administrativos que imponham o cumprimento de obrigações pecuniárias (cfr. arts. 149º, nº 3 e 155º do CPA). O modelo de execução coactiva de tais obrigações que o legislador escolheu tem por referência o processo executivo judicial e não o procedimento tributário ou executivo. A circunstância dos actos executivos poderem ser praticados por um órgão administrativo não lhe retira a natureza de processo nem o transforma parcialmente em procedimento administrativo. O sentido da norma do artigo 103º da LGT é o de que a execução fiscal actua através da forma de processo, entendido como um conceito moldado a partir do modelo que fornece o processo judicial, e não através da forma de procedimento administrativo, entendido como modo de realização do direito administrativo. E por isso mesmo, a atestar a natureza processual da execução fiscal, a alínea h) do nº 1 do artigo 54º da LGT a contrario exclui do procedimento tributário a cobrança das obrigações tributárias «na parte que tiver natureza judicial». Daí que, tendo todo o processo de execução fiscal natureza judicial, os actos nele praticados não possam ser qualificados como actos procedimentais, mas antes como actos processuais.
O legislador do CPPT não se afastou do princípio vector consagrado no nº 1 do artigo 103º e na alínea h) do nº 1 do artigo 54º da LGT. Depois de reafirmar na alínea g) do nº 1 do art. 44º que as normas do procedimento tributário não abrangem a cobrança das obrigações tributárias na parte em que tiver natureza judicial, ou seja, na parte relativa à execução fiscal, estruturou os actos executivos tendo por paradigma o modelo de processo executivo comum, muitos deles regidos pela lei processual civil. Com efeito, relativamente os principais actos que compõem a execução, como a citação, penhora, venda, convocação de credores, verificação e graduação de créditos, o CPPT remete para as normas congéneres do CPC e não para quaisquer normas procedimentais (cfr. nº 4 do art. 190º, nº 1 do art. 191º, nº 1 do art. 192º, nº 3 do art. 223º, 246º, 252º, al. c) do nº 1 do art. 257º e 258º). Daqui decorre a qualificação da execução fiscal como um meio processual, um instrumento criado pela ordem jurídica para a cobrança coerciva de obrigações tributárias (e das pecuniárias impostas por acto administrativo) mediante um processo e não mediante um procedimento administrativo.
Com esta fisionomia, a execução fiscal é um exemplo da actividade administrativa sujeita as formas processuais, actuando através de um verdadeiro processo, como tal designado na lei, fora da função jurisdicional do Estado, e não através do modo específico do exercício da função administrativa. E não interessa saber se processo e procedimento são duas espécies do mesmo género ou se são dois géneros opostos, pois a LGT e o CPPT considera-os categorias jurídicas bem distintas e autónomas.
Por isso, não se pode qualificar a actividade administrativa do órgão de execução fiscal como realizada no âmbito de um, perdoe-se-nos a expressão paradoxal, «procedimento processual». Na execução fiscal, há unidade e não diversidade de natureza, sendo exclusiva e integralmente de natureza processual, quer na parte jurisdicional, quer na parte não jurisdicional.
Ora, se execução fiscal deve ser qualificada como um processo, então o conjunto de actos por ele formado são actos processuais e não actos procedimentais. São actos processuais porque fazem parte do complexo de actos que formam a sequência processual e/ou porque têm relevância no desenvolvimento da relação processual. Não são actos procedimentais, porque não estão enquadrados num procedimento tributário que funcione como instrumento de concretização da relação jurídica tributária material que se estabeleceu entre o contribuinte e a administração tributária. A única conexão material que existe entre o procedimento tributário e o processo de execução fiscal concretiza-se na necessária antecedência daquele relativamente a este, na medida em foi nele que se formou o acto tributário subjacente ao título executivo.
A processualidade dos actos jurídicos da execução fiscal depende pois da sua integração na sequência processual e/ou da relevância jurídica imediata que têm na constituição, desenvolvimento e extinção da relação processual. Os actos processuais produzem efeitos no e para o processo, embora dele possam derivar também efeitos típicos de actos não processuais. Com efeito, o facto do acto processual estar incluído na sequência processual - acto processual de sequência - ou, se praticado fora, produzir efeitos necessários e primários no processo – acto processual autónomo – não significa que dele estejam excluídos consequências secundárias de direito substantivo. De igual modo, não há qualquer incompatibilidade em que alguns actos sejam simultaneamente processuais e de direito substantivo, como acontece com o pagamento como forma de extinção da acção executiva. Nestes casos, em que o acto produz a um tempo efeitos processuais e materiais, quando praticados dentro do processo, são indubitavelmente processuais.
O nº 2 do artigo 103º da LGT, pela remissão que faz para o nº 1, e o artigo 151º do CPPT, identificam a categoria dos actos processuais não jurisdicionais com os “actos materialmente administrativos”. Tratando-se de actos processuais, a expressão não tem o mesmo sentido com que normalmente é usada no direito administrativo, ou seja, como acto definidor ou regulador de situações jurídicas subjectivas substantivas. Enquanto actos de processo executivo, que nessa sede são produzidos, correspondem a uma realidade estritamente processual, não actuando sobre a realidade substantiva exterior ao processo, introduzindo novos efeitos na ordem jurídica. Daí que, os actos materialmente administrativos praticados na execução fiscal pelos órgãos da administração tributária são os que definem posições subjectivas processuais e que por isso se caracterizam por uma natureza formal ou instrumental.
A partir do momento em que é instaurada a execução fiscal, emerge na esfera jurídica do executado, ao lado da posição substantiva que dá corpo à relação jurídica tributária materializada no título executivo, uma posição específica, integrada poderes, faculdades, deveres e sujeições, reportada ao desenvolvimento, modificação ou definição da relação processual. Ora, se essa posição subjectiva processual for afectada por um acto processual ilícito, o nº 2 do artigo 103º da LGT garante ao executado a abertura da via jurisdicional para defesa dessa posição. O direito à reclamação, através do processo expedito e urgente regulado nos artigos 276º a 278º do CPPT, é pois um direito subjectivo processual que o executado tem para se defender dos actos processuais lesivas das posições jurídicas que a lei processual lhe atribui.
Em consonância com essa norma, o artigo 276º do CPPT estabelece que são susceptíveis de reclamação, as decisões proferidas pelo órgão de execução fiscal e outras autoridades da administração tributária «que no processo afectem os direitos e interesses legítimos do executado». Portanto, os actos materialmente administrativos objecto de reclamação são apenas aqueles que forem produzidos «no processo», ou seja, os actos processuais, ainda que simultaneamente aplicam normas de direito material.
Posto isto, e determinada a natureza processual dos actos praticados pelo órgão de execução fiscal, conclui-se pela inaplicabilidade das normas próprias do procedimento tributário, como é o caso do artigo 60º relativo ao direito de audição prévia, ao acto que indeferiu o pedido de isenção de garantia.
Pelos efeitos produzidos, o acto de indeferimento do pedido de isenção da prestação de garantia é um acto predominantemente processual: faz cessar o efeito suspensivo da execução iniciado com o pedido de isenção, procedendo-se de imediato à penhora ou à compensação de dívidas (cfr. nº 2 do art. 169º nº 1 do art. 89º do CPPT).
É claro que o direito que o executado dispõe de ser isento de garantia, caso se verifiquem os requisitos positivos do «prejuízo irreparável» ou da «manifesta falta de meios económicos» e o requisito negativo de que «a insuficiência ou inexistência de bens não seja da responsabilidade do executado» (nº 4 do art. 52º da LGT), foi atingido pelo indeferimento dessa pretensão. Na medida em que a lei reconhece ao executado o direito à isenção de garantia, ele corresponde, em si mesmo, a um verdadeira posição jurídica substantiva, que lhe proporciona uma utilidade efectiva que lhe foi negada por aquele acto e que até pode ser fonte de pretensão indemnizatória, quando agredido por acto ilícito.
Mas essa posição jurídica material apresenta uma clara natureza instrumental, que lhe advém do facto de, por si só, não proporcionar ao executado a satisfação da posição subjectiva de fundo que defende na execução, e que é a de evitar o prosseguimento duma execução irregular ou injusta. A prestação da garantia ou a sua isenção são direitos de natureza processual, que funcionam como instrumentos ao serviço do interesse opositivo do executado, que apenas se concretizará com a procedência da impugnação judicial ou da oposição à execução. Os seus efeitos produzem-se quase exclusivamente no âmbito da execução, ainda que indirectamente se dirijam à obtenção do interesse de fundo que move o executado na execução. Por isso mesmo, ao proporcionar-lhe uma utilidade meramente instrumental, a isenção de garantia não pode deixar de ser qualificada como uma pretensão subjectiva de carácter processual.
Na execução fiscal a protecção jurídica dos direitos processuais do executado é assegurada através do controlo a posteriori dos actos executivos, sobre os quais cabe sempre ao juiz a última palavra. O status activus processualis do executado revela-se num processo jurisdicional realizado na e através da execução fiscal, que lhe dá garantias de defesa e contraditório bem superiores às que resultam da audiência prévia à prática do acto processual, ainda que dele resultem efeitos substantivos. Com efeito, seguindo o modelo do agravo em processo civil, o executado pode reagir imediatamente, no prazo de 10 dias, contra as eventuais ilegalidades praticadas no decurso da execução, com possibilidade da reclamação subir imediatamente se causar «prejuízo irreparável» ou, como tem defendido a jurisprudência, se a sua retenção a tornar absolutamente inútil.
Não se pode dizer que o executado precisa de ser previamente ouvido sobre os actos processuais que afectam os seus direitos processuais porque não há confiança na eficácia da protecção jurisdicional, quando a abertura de uma “fase jurisdicional” no próprio processo compensa de sobremaneira uma “fase procedimental”, ou porque é necessário garantir o “contraditório procedimental”, quando a celeridade processual lhe impôs o dever de instruir documentalmente os respectivos requerimentos (v.g. nº 3 do art. 170º e nº 2 do art. 198º do CPPT). A execução fiscal está estruturada para fornecer ao executado todas as garantias de defesa contra actos processuais ilegais, pelo que, se o legislador não teve necessidade de criar mais uma fase procedimental precedente à prática dos actos executivos, não se vislumbra que direitos fundamentais do executado possam justificar e exigir a introdução de uma nova “fase procedimental”, com o prejuízo que isso acarreta para realização célere do interesse público na cobrança dos tributos.
No caso dos autos, foi indeferido um pedido de dispensa de garantia, acto processual cuja prática, nos termos em que se expôs, não precisa de ser precedido de audição prévia, como de resto, embora com outra fundamentação, se decidiu no Ac. do STA, de 7/12/2011, no rec. nº 01054/11.
O Tribunal não pode socorrer-se do disposto no nº 2 do artigo 715º do CPC, aplicável ao presente recurso, porque a sentença recorrida, apenas deu como provado os factos pertinentes para a decisão da questão da falta de audição, havendo necessidade de se fixar a matéria de facto alegada na petição da reclamação para conhecer da verificação dos requisitos de que depende a dispensa de prestação de garantia, o que só o tribunal recorrido pode fazer.
4. Pelo exposto, acordam os juízes da Secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo em conceder provimento ao recurso, revogar a decisão recorrida, e ordenar a baixa do processo para conhecer da questão que ficou prejudicada.
Custas pelo recorrido.
Lisboa, 7 de Março de 2012. - Lino Ribeiro (relator) – Dulce Neto (com declaração de voto anexa) – Ascensão Lopes (votei a decisão sem prejuízo de repensar alguns dos pontos da fundamentação que a sustentou.)

Concordo com a decisão, mas não com toda a sua fundamentação.
Subscrevo-a totalmente quando afirma que o processo de execução fiscal constitui um processo judicial e não um procedimento tributário ou administrativo. Como deixou dito no acórdão que relatei em 23/02/2012, no Processo n.° 59/12, o Órgão da Execução que instaura, conduz e tramita a execução fiscal constitui um sujeito processual que age como interlocutor no diálogo processual, “substituindo” o juiz e praticando nele todos os actos que, não contendendo com qualquer composição de interesses, sejam legalmente necessários para a obtenção do fim a que o processo se destina. E a competência que detém o processo não brota, em princípio, da função tributária exercida pela Administração Fiscal nem emana de um poder de autotutela executiva da Administração, resultando, antes, de uma competência que a lei lhe confere para intervir no processo judicial como órgão auxiliar ou colaborador operacional do Juiz. Razão por que, todos os actos inscritos no procedimento processual pelos sujeitos processuais (partes, mandatários, órgão da execução, funcionários, juiz) estão submetidos a estritas regras processuais, que encontram previsão nas normas que regulam o processo tributário e, subsidiariamente, nas normas inscritas no CPC por força do disposto no artigo 2°, alínea e), do CPPT.
Todavia, já assim não será nos casos em que no procedimento processual surge “enxertado” um procedimento administrativo/tributário, em que a Administração Tributária actua como tal, no exercício da sua função tributária, agindo sobre a relação jurídica tributária estabelecida entre si (como sujeito activo) e o contribuinte (como sujeito passivo) ou sobre a obrigação que dela emana, produzindo actos materialmente administrativos em matéria tributária, pois a estes procedimentos tributários há que aplicar os princípios gerais que regulam a actividade administrativa e as normas que a LGT prevê para os procedimentos tributários, designadamente a norma contida no seu artigo 60.°.
Ora, na minha perspectiva, a decisão sobre o pedido de dispensa de prestação de garantia deve qualificar-se como um verdadeiro acto administrativo em matéria tributária, inserido no âmbito de um procedimento tributário autónomo e funcionalmente diferente do processo judicial ou procedimento processual dirigido à cobrança coerciva de determinadas quantias, submetido, por isso, aos princípios e normas que disciplinam a actividade tributária.
Todavia, e como se deixou referido no citado acórdão, face à urgência objectiva, revelada pela norma ínsita no art.° 170.° do CPPT, de prolação dessa decisão, deve apelar-se ao regime contido no CPA, cujo artigo 103.°, n.° 1, estabelece que não há lugar a audiência dos interessados «Quando a decisão seja urgente», por força da aplicação subsidiária desta norma em conformidade com o disposto no artigo 2.°, alínea c) da LGT.
Razão por que, no caso vertente, seria dispensável o invocado princípio de audiência prévia, não podendo manter-se a sentença que anulou o acto reclamado com base na preterição dessa formalidade.
Dulce Neto.