Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0905/06
Data do Acordão:12/09/2009
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:PIMENTA DO VALE
Descritores:SISA
BENEFÍCIOS FISCAIS
ISENÇÃO DE SISA
INCONSTITUCIONALIDADE
PRINCÍPIO DA CONFIANÇA
Sumário:I - Da análise do artº 11º, nº 31 do CIMSISD resulta claro que o legislador elegeu como pressuposto da constituição do benefício fiscal na esfera jurídica do contribuinte a realização do acto translativo, enquanto facto tributário do qual emerge a obrigação tributária e não a data do início do procedimento destinado à obtenção do benefício.
II - Não gozam do benefício de isenção de sisa, ao abrigo do n.º 31 do artigo 11.º do Código do Imposto Municipal da Sisa e do Imposto sobre Sucessões e Doações, as transacções de imóveis operadas no ano de 2003 - em data posterior à entrada em vigor da Lei n.º 30-G/2000, de 29 de Dezembro, de revogação daquele benefício.
III - O artº 7º, nº 3 da Lei nº 30-G/00 de 29/12 é materialmente constitucional, já que não viola o princípio da confiança, ínsito na ideia de Estado de direito democrático (artº 2º da CRP).
Nº Convencional:JSTA00066172
Nº do Documento:SA2200912090905
Data de Entrada:09/18/2006
Recorrente:SE DOS ASSUNTOS FISCAIS
Recorrido 1:A...
Votação:UNANIMIDADE
Ref. Acórdãos:
Meio Processual:REC JURISDICIONAL.
Objecto:AC TCA.
Decisão:PROVIDO.
Área Temática 1:DIR FISC - SISA.
Legislação Nacional:CIMSISD91 ART2 ART11 N31 ART16 N7.
L 30-G/2000 DE 2000/12/29 ART7 N3.
EBFISC01 ART4 N2 ART11.
CONST97 ART103 N3.
Jurisprudência Nacional:AC TC 11/83 IN ACTC VI PAG11.; AC TC 141/85 IN ACTC V6 PAG39.; AC TC 409/89.; AC TC 216/90.; AC TC 410/95.; AC 1006/96.; AC TC 66/84 IN ACTC V4 PAG35.; AC TC 67/91.; AC TC 1204/96.; AC TC 416/02.; AC TC 185/2000.; AC TC 172/2000.
Referência a Pareceres:P CC 25/81 IN PARECERES DA COMISSÃO CONSTITUCIONAL V16 PAG257.
P CC 14782 IN PARECERES DA COMISSÃO CONSTITUCIONAL V19 PAG183.
Referência a Doutrina:GOMES CANOTILHO E OUTRO CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA ANOTADA V1 2007 PAG1092.
ALBERTO XAVIER MANUAL DE DIREITO FISCAL VI PAG282.
LUÍS BELO AS NOVAS REGRAS DA TRIBUTAÇÃO PELO LUCRO CONSOLIDADO IN FISCO V5 PAG3 - PAG11.
LUÍS BELO ALGUMAS REFLEXÕES AO NÍVEL DO IMPACTO SOBRE OS GRUPOS ECONÓMICOS DA DESIGNADA REFORMA FISCAL IN FISCO VXII T99/100 PAG67 - PAG83.
Aditamento:
Texto Integral: Acordam nesta Secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo:
1 – O Secretário dos Assuntos Fiscais, não se conformando com o acórdão do então Tribunal Central Administrativo que concedeu provimento ao recurso contencioso de anulação intentado por A…, S.A., melhor identificada nos autos, contra o despacho proferido por aquela entidade, de 8/1/03, que lhe indeferiu três pedidos de isenção de sisa, relativas a outras tantas transmissões de prédios urbanos adquiridos, dele vem interpor o presente recurso, formulando as seguintes conclusões:
a) O acórdão recorrido violou o art. 7°, n° 3, da Lei n° 30-G/2000, na medida em que a referida norma legal revogaria o benefício fiscal do art. 11°, 31°, do C.I.M.S.I.D., com efeitos a partir de 1 de Janeiro de 2001.
b) Os pressupostos do benefício fiscal previsto no art. 11°, 31°, constituem-se com a realização da transmissão fiscal entre sociedades autorizadas à tributação pelo lucro consolidado.
c) Deve, assim, o presente recurso jurisdicional ser provido e anulado o acórdão recorrido.
Esta Secção do Supremo Tribunal Administrativo, por acórdão datado de 18/4/07, decidiu negar provimento ao recurso, por entender que o artº 7º, nº 3 da Lei nº 30-G/00 de 29/12, na parte em que revoga o artº 11º, nº 31 do CIMSISD, é materialmente inconstitucional (fls. 149 a 155).
Desta decisão e por dever de ofício, o Exmº Magistrado do Ministério Público interpôs recurso para o Tribunal Constitucional (vide fls. 161).
Este Tribunal, por Acórdão datado de 12/3/09, decidiu não julgar inconstitucional o predito artº 7º, nº 3, na parte em que revoga o artº 11º, nº 31 do CIMSISD, quando aplicável a transacções ocorridas depois da sua entrada em vigor e a sociedades abrangidas pelo regime da tributação do lucro consolidado, ordenando, assim e em consequência, “a reforma da decisão recorrida com o agora decidido quanto à questão da inconstitucionalidade.
O recorrido não contra-alegou.
O Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido de o presente recurso ser julgado improcedente, pelas razões doutamente expostas a fls. 145 e 146, que aqui se dão por integralmente reproduzidas para todos os efeitos legais.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
2 – O aresto recorrido fixou a seguinte matéria de facto:
a) Por requerimentos entrados na Direcção-Geral dos Impostos, Impostos s/o Património, em 17.11.2000, 21.11.2000 e 21.12.2000, dirigidos ao Exmo. Ministro das Finanças, a ora recorrente, ao abrigo do disposto no 1º do art.º 15° do Código do Imposto Municipal de Sisa e do Imposto sobre as Sucessões e Doações (CIMSISD), veio requerer a isenção do imposto municipal de sisa relativamente aos prédios inscritos na matriz predial rústica sob o art.º 984 e descrito na Conservatória do registo Predial de Póvoa de Varzim sob o n° 0185/000322, prédio omisso na matriz e descrito na Conservatória do registo Predial de Matosinhos sob o n° 00624/020689, prédio inscrito na matriz sob o art.º 415 e descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n° 00686/971226, prédio inscrito na matriz sob o art.º 416 e descrito na Conservatória do Registo Predial de Vila do Conde sob o n° 00853/20000922, 32% do prédio inscrito na matriz sob o art.º 1412 e descrito na 2ª Conservatória do Registo Predial do Porto sob o n° 35476, 32% do prédio inscrito na matriz sob o art.º 1411 e descrito na 2ª Conservatória do Registo Predial do Porto sob o n° 35458, 32% do prédio omisso na matriz e descrito na 2ª Conservatória do Registo Predial do Porto sob o n° 35477, 32% do prédio omisso na matriz e descrito na 2ª Conservatória do Registo Predial do Porto sob o n° 35478, 32% do prédio inscrito na matriz sob o art.º 1352 e descrito na 2ª Conservatória do Registo Predial do Porto sob o n° 35460, 32% do prédio inscrito na matriz sob o art.º 1351 e descrito na 2ª Conservatória do Registo Predial do Porto sob o n° 35467, 32% do prédio inscrito na matriz sob o art.º 1326 e descrito na 2ª Conservatória do Registo Predial do Porto sob o n° 35459, 32% do prédio inscrito na matriz sob o art.º 1325 e descrito na 2ª Conservatória do Registo Predial do Porto sob o n° 35485, 32% do prédio inscrito na matriz sob o art.º 1327 e descrito na 2ª Conservatória do Registo Predial do Porto sob o n° 35486, 32% do prédio inscrito na matriz sob o art.º 1323 e descrito na 2ª Conservatória do Registo Predial do Porto sob o n° 35487, 32% do prédio inscrito na matriz sob o art.º 1324 e descrito na 2ª Conservatória do Registo Predial do Porto sob o n° 37792 e 64% do prédio inscrito na matriz sob o artigo 97 e descrito na Conservatória do Registo Predial do Porto sob o n° 276/19981030, respectivamente, invocando-se tratar-se de transmissão de prédios entre empresas abrangidas, pelo regime de tributação pelo lucro consolidado – cfr. Processos administrativos apensos, cujas folhas não se encontram numeradas;
b) Por despachos do Exmo. SEAF de 21.11.2002 (todos), foram indeferidos (conjuntamente com outros pedidos de outras empresas, em igual situação), todos os pedidos de isenção de sisa, em concordância com propostas dos Serviços formuladas nesse sentido — mesmos processos;
c) As transmissões dos prédios em causa não chegaram a ocorrer até 31.12.2000 e não foi solicitada e nem paga qualquer sisa relativa às mesmas transmissões naquele mesmo período — mesmos processos;
d) Em 7.2.2003 e 26.2.2003, a ora recorrente veio a declarar para efeitos de sisa a aquisição de parte dos prédios descritos em a) supra, tendo-lhe sido liquidada as correspondentes sisas, que pagou — docs. de fls. 33 a 36 dos autos;
e) No período de 2000 a 2004, a ora recorrente e a vendedora dos prédios em causa A…, S.A., encontravam-se autorizadas na sua tributação pelo lucro consolidado — mesmos processos;
f) Os despachos referidos em b) supra, foram notificados à ora recorrente em 8.1.2003 — art.º 4° da petição do recurso e art.º 2° da resposta;
g) O presente recurso contencioso foi remetido a este Tribunal através dos CTT, sendo o registo na Boavista — Porto em 10.3.2003, onde deu entrada em 11.3.2003 — doc. de fls. 63 e carimbo aposto a fls. 2 dos presentes autos;
h) O Dec-Lei n° 142-B/91, de 10 de Abril, publicado no DR I Série-A n° 83 (Suplemento), foi objecto de duas Declarações de Rectificação, a Declaração de Rectificação n° 139/91, de 29 de Junho e a Declaração de Rectificação n° 165/91, de 31 de Julho cfr. docs. de fls. 94 e segs destes autos.
3 – Como flui do relato antecedente, a recorrida, em 17/11/00, 21/11/00 e 21/12/00 solicitou ao Ministro das Finanças a isenção do imposto municipal de sisa referente aos prédios descritos na al. a) do probatório.
As transmissões dos prédios em causa não chegaram a ocorrer até 31/12/00. Só em 7/2/03 e 26/2/03, a ora recorrida veio declarar, para efeitos de sisa, a aquisição de parte dos prédios supra referidos, tendo-lhe sido liquidadas as respectivas sisas.
No período compreendido entre 2000 e 2004, a recorrida e a vendedora dos prédios em causa, encontravam-se autorizadas, a ser tributadas, pelo lucro consolidado.
Tal pedido veio a ser indeferido por despacho do SEAF, datado de 21/11/02, com fundamento de que não se encontrava preenchido e verificado o pressuposto legal de transmissão dos imóveis durante o período de tempo em que a lei lhe reconhecia tal isenção e ainda por que o artº 7º, nº 3 da Lei nº 30-G/00 de 29/12 havia revogado o artº 11º, nº 31 do CIMSISD.
A questão que assim se coloca à nossa apreciação consiste em saber qual o momento em que se verificam os pressupostos para a concessão da isenção da sisa e se se aplica ao caso em apreço o predito artº 7º, nº 3 da Lei nº 30-G/00.
4 – No aresto recorrido começou por decidir-se que eram pressupostos da concessão da isenção, não a transmissão dos imóveis, mas sim que “a requerente se encontrasse no regime de tributação pelo lucro consolidado e o reconhecimento da isenção fosse pedido antes do acto ou facto translativo do bem”.
Desde já importa adiantar que discordámos de tal entendimento.
Como é sabido, por norma, a aquisição de um prédio está sujeita ao imposto de sisa (artº 2º do CIMSISD).
Todavia, essa regra soçobra quando se trata de transmissões de bens realizadas entre sociedades autorizadas a ser tributadas pelo lucro consolidado, desde que as mesmas se operem durante os exercícios em que vigorar a autorização para a tributação segundo aquele regime (artº 11º, nº 31 do mesmo diploma legal).
Por sua vez, dispõe o artº 11º do EBF que “o direito aos benefícios fiscais deve reportar-se à data da verificação dos respectivos pressupostos, ainda que esteja dependente de reconhecimento declarativo pela administração fiscal ou de acordo entre esta e a pessoa beneficiada, salvo quando a lei dispuser de outro modo”.
Ora, da análise do referido artº 11º, nº 31 ressalta com mediana evidência que o legislador elegeu como pressuposto da constituição do benefício fiscal na esfera jurídica do contribuinte, ainda que esteja dependente de reconhecimento, com efeito meramente declarativo (artº 4º, nº 2 do EBF), pela administração fiscal, a realização do acto translativo, “enquanto facto tributário do qual emerge a obrigação tributária” e não, como se decidiu no aresto recorrido, a data do início do procedimento destinado à obtenção do benefício.
Na verdade e como bem anota o Exmº Procurador-Geral Adjunto, no seu douto parecer, “antes da realização do acto translativo não estão verificados todos os pressupostos cuja verificação é necessária à concessão do benefício (art. 11º EBF); existe uma mera expectativa, não juridicamente tutelada, de concessão do benefício”.
Aliás, a sisa é um imposto que, incidindo sobre o património, se concretiza sobre as transmissões, a título oneroso, do direito de propriedade, ou de figuras parcelares desse direito, sobre bens imóveis (artº 2º do CIMSISD).
Assentes estes princípios, passemos, então, à apreciação da segunda questão que é, como vimos, a de saber se ao caso em apreço se aplica o artº 7º, nº 3 da Lei nº 30-G/00 de 29/12, então julgado materialmente inconstitucional e, consequentemente, se os despachos em causa merecem censura.
5 – Como referimos supra, sobre esta questão se pronunciou já o Tribunal Constitucional no acórdão de fls. 142 e segs..
Escreve-se, a propósito, no citado aresto que “foi na revisão constitucional de 1997 que o legislador constituinte tomou a opção de consagrar, no n.º 3 do artigo 103.º da Constituição, o princípio geral de proibição de cobrança, pelo Estado, de impostos retroactivos. Explicitou-se, aqui, diz a doutrina, algo que já decorria do princípio da protecção de confiança e da ideia de Estado de direito nos termos do artigo 2.º da CRP (Cfr. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, Vol. I, Coimbra Editora, Coimbra, 2007, p. 1092 e ss).
Decorre deste preceito constitucional que qualquer norma fiscal desfavorável (não se entrando aqui na questão de saber se normas fiscais favoráveis podem, e em que medida, ser retroactivas) será constitucionalmente censurada quando assuma natureza retroactiva, sendo a expressão «retroactividade» usada, aqui, em sentido próprio ou autêntico: proíbe-se a aplicação de uma lei fiscal nova, desvantajosa, a um facto tributário ocorrido no âmbito da vigência da lei fiscal revogada (a lei antiga) e mais favorável.
Em bom rigor, deve dizer-se que, para além de explicitar um princípio que decorria já de outro constitucionalmente consagrado, o legislador constituinte, na revisão de 1997, veio lançar luz sobre a polémica que povoava a jurisprudência do Tribunal.
As decisões do Tribunal, até 1997, assentavam no seguinte argumento: uma lei fiscal seria inconstitucional (por violação do princípio da confiança) apenas quando imposta a retroactividade em “termos que choquem a consciência jurídica e frustrem as expectativas fundadas dos contribuintes”. Desenvolvendo este critério, disse o Tribunal que a retroactividade das leis fiscais seria constitucionalmente legítima sempre que não ferisse “de forma inadmissível ou intolerável, a certeza e a confiança na ordem jurídica dos cidadãos por ela afectados; ou que não trai[sse], de forma arbitrária e injustificada, as expectativas juridicamente tuteladas e criadas na esfera jurídica dos cidadãos ao abrigo das disposições vigentes à data da ocorrência dos factos que as geraram”.(Cfr. neste sentido, e por exemplo, o Parecer da Comissão Constitucional n.º 25/81, em Pareceres da Comissão Constitucional, 16º Vol., p. 257; o Parecer nº 14/82, em Pareceres…, 19º Vol, p. 183; o Acórdão do Tribunal n.º 11/83, em Acórdãos do Tribunal Constitucional, 1º Vol. p. 11; o Acórdão nº 141/85, em Acórdãos …, 6º Vol., p. 39; e ainda os Acórdãos nºs 409/89, 216/90, 410/95 e 1006/96, todos disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt).
Estes critérios, de natureza necessariamente fluida,levaram a que,em diversos arestos, o Tribunal viesse dar como boas leis fiscais retroactivas. Foi o que sucedeu, por exemplo, nos Acórdãos n.º 11/83 e 66/84 (este último em Acórdãos, 4º Vol. p. 35) e ainda nos Acórdãos nºs 67/91, 1006/96, 1204/96 e 416/02 (todos disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt) . Noutros casos, ao invés, o Tribunal entendeu que, por inexistirem razões de interesse público que prevalecessem sobre o valor da segurança jurídica, as normas retroactivas seriam intoleráveis e, consequentemente, constitucionalmente ilegítimas (Cfr., por exemplo, os Acórdãos ns.º 409/89, 216/90, 410/95 e 185/2000, também disponíveis no mesmo lugar).
Uma vez expresso no texto da Constituição a proibição da retroactividade em matéria fiscal, o Tribunal passou a ler esta proibição já não numa dimensão subjectiva (dependendo, em concreto, do contexto dos sujeitos da relação tributária resultante da aplicação da lei) mas antes numa dimensão objectiva. Diz o Tribunal, a este propósito, que à proibição expressa da retroactividade da lei fiscal “não pode deixar de estar ínsita uma garantia forte de objectividade e auto-vinculação do Estado pelo Direito” (Cfr. Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 172/2000,in www.tribunalconstitucional.pt).
Quer isto dizer que, actualmente, e consagrado que está o princípio geral de irretroactividade da lei fiscal, a mera natureza retroactiva de uma lei fiscal desvantajosa para os particulares é sancionada, de forma automática, pela Constituição, qualquer que tenha sido, em concreto, a conduta da administração fiscal ou do particular tributado. Por outras palavras, o juízo de inconstitucionalidade decorre apenas da mera análise dos dados normativos,não dependendo, em nenhum momento,da averiguação de quaisquer elementos circunstanciais que resultem da condição, em concreto, de uma certa relação jurídico-tributária.
…Esclarecido o sentido da proibição constitucional consagrada no n.º 3 do artigo 103.º da Constituição, importa agora atentar na norma sancionada e verificar de que forma pode esta contrariar o preceito da CRP.
No dito do tribunal a quo está gravado que o facto relevante para a determinação da norma aplicável (no tempo) é a data da transmissão dos imóveis. Este juízo, cuja bondade não cabe ao Tribunal questionar, é essencial para aferir se teve ou não razão a decisão recorrida, ao recusar a aplicação do preceito contido no nº 3 do artigo 7º da Lei nº 30-G/2000 com fundamento em violação do princípio geral de não retroactividade da lei fiscal.
Como se disse já, a retroactividade proibida no n.º 3 do artigo 103.º da Constituição é a retroactividade própria ou autêntica. Ou seja, proíbe-se a retroactividade que se traduz na aplicação de lei nova a factos (no caso, factos tributários) antigos (anteriores, portanto, à entrada em vigor da lei nova). Ora, se o Supremo Tribunal Administrativo entende, como se viu já, que o que constitui a relação jurídica é, neste caso, a transmissão dos imóveis – por ser esse, no seu entendimento, o facto tributário hoc sensu, ou o facto-pressuposto da constituição da obrigação tributária – tem forçosamente que concluir-se também que, antes dele, não existia nada que se assemelhasse a uma «relação tributária» já formada.
Assim sendo, deve dizer-se que decorre dos autos que o acto constitutivo da relação tributária (aquele que o Supremo Tribunal Administrativo elegeu enquanto momento relevante para determinação da lei aplicável (no tempo)) decorreu depois da entrada em vigor da lei nova: com efeito, a Lei nº 30-G/2000 entrou em vigor em 2001; os actos de transmissão de imóveis foram declarados em 2003. Quer isto dizer que, in casu, a norma sob juízo se aplicou a factos novos, ocorridos depois da sua entrada em vigor. Não havendo por isso – e retomando a formulação tradicional do princípio da irretroactividade da lei fiscal – aplicação da lei nova a factos (tributários) antigos, não pode igualmente concluir-se que existiu violação do disposto no nº 3 do artigo 103º da CRP.
É claro que se não exclui que, pelo seu enunciado semântico, a norma em juízo possa ter a aparência de uma norma retroactiva – quando se diz que se aplica o seu regime a transmissões efectuadas antes da sua entrada em vigor. Mas este é um problema (apenas equacionado, que não resolvido) que, em fiscalização concreta, se torna irrelevante: os recursos de constitucionalidade não se dirigem a juízos sobre a conformidade constitucional das normas em si, abstractamente tomadas, e portanto cindidas do modo e das circunstâncias da sua efectiva aplicação ao caso concreto. E o que ressalta das circunstâncias do caso, e em especial da decisão recorrida, é a inexistência de retroactividade: a lei nova aplicou-se a um facto novo (ocorrido, portanto, depois da sua entrada em vigor)”.
5 – Por outro lado e a propósito da violação do princípio da protecção da confiança, escreve-se também no citado aresto que “importa, porém, indagar dos contornos (o contexto) da situação de confiança que o tribunal a quo (e a recorrida) entendeu existir no presente caso.
Do relato que foi feito da matéria dos autos, e conforme se disse já, trata-se neste lugar da aplicação de uma lei nova a um facto novo: a lei nova é o n.º 3 do artigo 7.º da Lei n.º 30-G/2000, de 29 de Dezembro, entrada em vigor a 1 de Janeiro de 2001, o facto novo é a transmissão dos imóveis que só se verificou no ano de 2003. A descrição dos autos assim realizada é, todavia, incompleta. Com efeito, apesar de o direito à isenção de pagamento de Sisa nascer apenas com a transmissão dos imóveis, antes disso não se pode, a priori, dizer que a recorrida não tinha uma expectativa jurídica no surgimento do seu futuro direito à isenção de pagamento de Sisa. Na verdade, há que ponderar a relevância que assume, no caso, o «especial estatuto» da recorrida e que decorre da circunstância de esta estar abrangida, durante o período de tempo que termina em 2004, pelo regime de tributação do lucro consolidado.
Este «estatuto», indaga-se agora, pode justificar a existência de uma expectativa jurídica que, à luz do princípio da confiança, torne inconstitucional a norma sob juízo?
A norma sancionada, incluída na categoria de benefício fiscal, veio, muito simplesmente, revogar um tratamento excepcional. Por outras palavras, e considerando a regra geral à data aplicável, segundo a qual todas as transmissões, a título oneroso, do direito de propriedade ou de figuras parcelares desse direito, sobre bens imóveis são tributadas em sede de Sisa, o que n.º 31 do artigo 11.º do CIMSISSD determina é que, a esta regra geral, se aplique uma excepção à incidência do imposto: transacções entre sociedades, em princípio sujeitas a imposto de Sisa, estarão isentas de Sisa quando as sociedades relevantes sejam tributadas ao abrigo do regime do lucro consolidado. Esta excepção é, todavia, condicionada: as transacções serão isentas de Sisa conquanto que as sociedades transmitentes e transmissária se mantenham abrangidas pelo regime de tributação do lucro consolidado nos três anos seguintes ao da transmissão (cfr. n.º 7 do artigo 16.º do CIMSISSD). Este regime aponta, necessariamente, para uma natureza precária da isenção.
A este respeito, importa ainda dizer que outro elemento há, para além do que dispõe o n.º 7 do artigo 16.º do CIMISISSD, que indicia o carácter necessariamente temporário da isenção. Ao integrar-se na categoria geral dos benefícios fiscais (artigo 1º, nº 2 do Estatuto dos Benefícios Fiscais), a isenção apresenta-se tendencialmente como uma medida de natureza conjuntural, ou seja, decorrente de uma opção legislativa por natureza mutável. Se se recordar a distinção feita, a propósito dos elementos essenciais do imposto, por Alberto Xavier (Manual de Direito Fiscal, I, Lisboa, 1974, p. 282) entre contribuinte isento e não contribuinte, a situação da recorrida é a de uma contribuinte que, em dado contexto temporário, se viu na posição de contribuinte isento.
Assim sendo, e atentando agora aos pressupostos ou requisitos da protecção de confiança que se deixaram já enunciados, necessário é concluir pelo não preenchimento de, pelo menos, dois desses pressupostos. Desde logo, não pode afirmar-se que, in casu, tenha o Estado (maxime, o legislador) encetado comportamentos capazes de gerar nos privados «expectativas» de continuidade (pois desde o momento em que a isenção foi aprovada que os particulares sabem tratar-se, aqui, de uma situação excepcional e condicionada). Depois, também não pode considerar-se que fossem fundadas em «boas razões» as expectativas privadas de manutenção do regime jurídico da isenção: já que de nenhum elemento do regime de Sisa se pode deixar de retirar a regra geral segundo a qual todas as transmissões de imóveis são objecto de tributação, a revogação da norma que previa a isenção não podia surgir aos olhos da recorrida como algo de improvável ou inverosímil.
Atenta a especial natureza desta isenção – que, repete-se, desde o início da sua consagração assumia uma natureza condicional (porque dependia da manutenção de uma situação de tributação do lucro consolidado pelo prazo mínimo de três anos) – dos autos decorre, pois, que a recorrida tem, aqui, unicamente uma expectativa de manutenção de um status quo, expectativa esta que não pode considerar-se juridicamente relevante para o efeito de merecer a tutela dispensada pelo princípio constitucional da tutela da confiança.
Adianta-se ainda que também o terceiro requisito – o de que a recorrida fez planos de vida, investimentos, tendo em conta a expectativa da continuidade do «comportamento» estadual – não se afigura preenchido. Pode, neste caso, indagar-se sobre a existência de um «investimento» na confiança sob duas perspectivas: a de que a recorrida transmitiu os imóveis apenas porque confiava que esta transmissão estaria isenta de Sisa; ou, ainda, a de que a recorrida optou pelo regime de tributação pelo lucro consolidado apenas porque confiava que as transmissões «entre-grupo» não seriam tributadas em sede de Sisa.
Quanto à primeira vertente enunciada, decorre claramente dos autos não ter ocorrido este investimento. Com efeito, à data das transmissões, a recorrida sabia já que não lhe seria eventualmente aplicável o regime de isenção de Sisa. Acresce que não se pode afirmar, com certeza, ter a recorrida optado pelo regime de tributação pelo lucro consolidado apenas porque este regime lhe proporcionava a vantagem consubstanciada na isenção de Sisa, no âmbito das transmissões entre sociedades do mesmo grupo económico. É certo que a concessão de uma isenção de pagamento de imposto de Sisa, no caso das transmissões realizadas entre sociedades do mesmo grupo económico, foi gizada pelo legislador com o intuito de incentivar a criação de «grupos empresariais» pois, caso contrário, seria necessário justificar o tratamento privilegiado destas transmissões face a todas as outras transmissões que são não-isentas de Sisa. Mas, a este respeito, importa notar que a isenção de Sisa não era a única vantagem decorrente da opção por este regime de tributação. Na verdade, o regime de tributação pelo lucro consolidado (introduzido pelo Decreto-Lei n.º 414/87, de 31 de Dezembro, alterado pela Lei n.º 71/93, de 26 de Novembro) proporcionava outras vantagens para o grupo societário, nomeadamente: a eliminação total da dupla tributação, em sede de IRC e de imposto sobre as Sucessões e Doações por Avença, relativamente aos lucros/dividendos distribuídos entre as sociedades do grupo, a não realização de quaisquer retenções na fonte, em sede de IRC, nas relações entre as sociedades do grupo, a possibilidade de as mais e menos-valias apuradas na transmissão onerosa de elementos do activo imobilizado, assim como quaisquer ganhos e perdas realizados em transacções entre as diversas sociedades do grupo não serem consideradas ganhos/perdas na determinação da matéria colectável em sede de IRC e a possibilidade de compensação dos lucros e prejuízos gerados no mesmo ano pelas diversas sociedades do grupo (Assim, Luís Belo, “As novas regras da tributação pelo lucro consolidado”, Fisco, Vol. 5, Julho 1994, pp. 3-11 e, do mesmo autor, “Algumas reflexões ao nível do impacto sobre os grupos económicos da designada reforma fiscal”, Fisco, Vol. XII, t. 99/100, pp. 67-83).
Por esta razão, não se pode aqui dizer que tenha sido necessariamente a isenção sob análise a justificação da opção da recorrida por este regime de tributação. Ou seja, não se vislumbra aqui que a recorrida tenha realizado um investimento na confiança da manutenção do regime legal vigente.
Assim sendo, também o terceiro requisito para protecção da confiança não se afigura, no caso, preenchido.
Não tem por isso razão o tribunal a quo quando sustenta ser materialmente inconstitucional a norma ínsita ao artigo 7.º, n.º 3 da Lei n.º 30-G/2000, de 29 de Dezembro, na parte em que revoga o n.º 31 do artigo 11.º do Código Municipal de Sisa e de Imposto sobre Sucessões e Doações”.
Pelo exposto e em resposta ao thema decidendum, havemos de concluir que a sociedade ora recorrida não pode, no caso, beneficiar da isenção de sisa com previsão no n.º 31 do artigo 11.º do Código do Imposto Municipal da Sisa e do Imposto sobre Sucessões e Doações. E, assim, deve ser revogado o aresto recorrido que não laborou neste entendimento.
6 – Nestes termos, acorda-se em conceder provimento ao presente recurso jurisdicional, revogar o acórdão do TCA, negando-se provimento ao recurso contencioso de anulação e manter na ordem jurídica os despachos objecto deste recurso
Custas pelo recorrido, apenas na 1ª instância, fixando-se a taxa de justiça em € 400 e a procuradoria em 50%.
Lisboa, 9 de Dezembro de 2009. – Pimenta do Vale (relator) – António Calhau – Isabel Marques da Silva.