Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0855/21.5BELSB
Data do Acordão:01/25/2024
Tribunal:1 SECÇÃO
Relator:JOSÉ VELOSO
Descritores:RECURSO DE REVISTA EXCEPCIONAL
APRECIAÇÃO PRELIMINAR
CONTRATAÇÃO PÚBLICA
EXCLUSÃO DE PROPOSTAS
CONDENAÇÃO
ADJUDICAÇÃO
Sumário:É de admitir a revista em que a «questão» principal contende com a exclusão de uma proposta e a condenação a adjudicar a uma outra, se surgem sérias dúvidas sobre a correcta aplicação de princípios estruturantes da contratação pública.
Nº Convencional:JSTA000P31850
Nº do Documento:SA1202401250855/21
Recorrente:A..., LDA
Recorrido 1:SANTA CASA DA MISERICÓRDIA DE LISBOA E OUTROS
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: Acordam, em «apreciação preliminar», na Secção de Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo:
1. A..., LDA - autora desta acção do contencioso pré-contratual - vem, invocando o artigo 150º do CPTA, interpor «recurso de revista» do acórdão do TCAS - de 31.07.2023, complementado pelo acórdão de 26.10.2023 - que concedeu provimento às apelações independentes propostas pela SANTA CASA DA MISERICÓRDIA DE LISBOA [SCML] - entidade demandada na acção, e entidade adjudicante - e pela contra-interessada B..., SA - classificada em 2º lugar no concurso público internacional em causa -, e, em conformidade, decidiu revogar a sentença do TAC de Lisboa - de 25.11.2021 - e julgar totalmente improcedente a acção.

Alega que o recurso de revista deverá ser admitido em nome da «necessidade de uma melhor aplicação do direito» e em nome da «relevância social e jurídica da questão» - artigo 150º, nº1, do CPTA.

A SCML e a contra-interessada B... apresentaram contra-alegações, nas quais, para além do mais, defenderam a não admissão do recurso de revista por alegada «falta de verificação dos pressupostos legais» - artigo 150º, nº1, do CPTA.

2. Dispõe o nº1, do artigo 150º, do CPTA, que «[d]as decisões proferidas em segunda instância pelo Tribunal Central Administrativo pode haver, excepcionalmente, revista para o Supremo Tribunal Administrativo quando esteja em causa a apreciação de uma questão que, pela sua relevância jurídica ou social, se revista de importância fundamental ou quando a admissão do recurso seja claramente necessária para uma melhor aplicação do direito».

Deste preceito extrai-se, assim, que as decisões proferidas pelos TCA’s, no uso dos poderes conferidos pelo artigo 149º do CPTA - conhecendo em segundo grau de jurisdição - não são, em regra, susceptíveis de recurso ordinário, dado a sua admissibilidade apenas poder ter lugar: i) Quando esteja em causa apreciação de uma questão que, pela sua relevância jurídica ou social, se revista de importância fundamental; ou, ii) Quando o recurso revelar ser claramente necessário para uma melhor aplicação do direito.

3. Está em causa um «concurso público internacional» - lançado pela SCML - visando a celebração de contrato para prestação de serviços de limpeza em hospitais, unidades de cuidados integrados, unidades de saúde e equipamentos com cuidados médicos da acção social da SCML - tendo o procedimento o número 20DC12CPI061.

A candidata A..., LDA, cuja proposta foi excluída, pede nesta acção urgente que sejam declarados nulos, ou anulados, os actos de «exclusão da sua proposta e de adjudicação à proposta da contra-interessada» C..., SA, e que seja a entidade demandada - SCML - condenada a admitir a sua proposta, a refazer a graduação final de propostas colocando a sua em 1º lugar, e a adjudicar-lhe o objecto do concurso.

Arrimou tais «pretensões», essencialmente, na tese de que foi impedida de impugnar o relatório final do júri por falta da sua notificação antes da deliberação final, e de que a «deliberação de excluir a sua proposta e de fazer a adjudicação» à proposta da contra-interessada C... é ilegal pois viola, alega, os «artigos 56º, nºs 1 e 2, 57º, nº1 alínea b), e 72º, nº2, do CCP» - o que levou à proposta de exclusão ao abrigo do artigo 146º, nº2 alínea o), do CCP.

O tribunal de 1ª instância - TAC de Lisboa - apreciou o pedido formulado pela autora à luz da «causa de pedir» por ela apresentada, julgou não verificada a ilegalidade dos actos por falta de notificação do relatório final do júri antes da deliberação final, mas, tendo procedido à interpretação e aplicação dos invocados artigos «56º, nºs 1 e 2, 57º, nº1 alínea b), 72º, nº2, e 146º, nº2 alínea o), todos do CCP» acabou por julgar procedente a acção, anulando a deliberação da Mesa da SCML - nº886/2021, de 13.05 - e condenando-a a admitir a proposta da autora, a graduá-la em primeiro lugar e adjudicar-lhe o objecto do concurso público internacional em causa. Escreve-se na sentença, a finalizar, que na sua proposta, a autora teve em consideração, no seu Anexo III, o número mínimo de supervisores para todas as posições [de 1 a 30] e, conforme referiu, o valor respeitante aos mesmos integra os respectivos preços apresentados em cada posição [de 1 a 30]. O facto de alguns concorrentes terem interpretado o Anexo III de modo diferente, e terem indicado o preço, em separado, só para o número mínimo de supervisores, tal não significa que os demais concorrentes não tenham tido em consideração o seu custo nos preços apresentados em todas as posições [de 1 a 30], no caso da autora, esta fez constar do Anexo III o número mínimo de supervisores para todas as posições, logo os seus preços necessariamente tiveram esse elemento em consideração. Perante todo o exposto, o tribunal tem de concluir que o júri não podia ter excluído a proposta da autora com fundamento no artigo 70º, nº2 alínea a), do CCP, que devia ter sido admitida e passado à fase de avaliação. Assim, a deliberação da Mesa da SCML nº886/2021, de 13.05, vai ser anulada, por não poder manter-se na ordem jurídica a adjudicação à C..., nem a exclusão da proposta da Autora, e, em consequência, a SCML vai ser condenada a admitir a proposta da Autora e a proferir novo acto de adjudicação à proposta desta, pois, face ao critério de adjudicação fixado e ao valor global proposto, de 7.899.969,46€, constitui a proposta economicamente mais vantajosa.

O tribunal de 2ª instância - TCAS - concedeu provimento às duas «apelações» que lhe foram dirigidas - pela SCML e B... [contra-interessada, graduada em 2º lugar no concurso] -, revogou a sentença aí recorrida e julgou a acção totalmente improcedente, tendo posteriormente, em acórdão complementar - de 26.10.2023 - indeferido a nulidade do seu primeiro acórdão - de 31.07.2023 - por alegado excesso de pronúncia.

A questão apreciada e decidida pelo tribunal de apelação em favor das apelantes, cifra-se em saber se a sentença aí recorrida padece de «erro de julgamento de direito», por errada aplicação à factualidade dada como provada dos «artigos 70º, nº2 alínea a), e 146º, nº2 alínea o), ambos do CCP». Concretamente impunha-se-lhe determinar se a omissão, por banda da candidata autora, do preenchimento do campo 31 do Anexo III do Programa do Concurso deveria conduzir, ou não, à «exclusão da sua proposta» por estar em causa a violação de um atributo, especificamente, o preço do contrato, ou de algum termo ou condição.

Foi entendido pelo tribunal de apelação, no seu acórdão, que a «proposta excluída» - da autora - continha atributos e termos e condições violadores do Programa de Concurso e do Caderno de Encargos, «justificadores, assim, da sua exclusão» em conformidade com o prescrito nos artigos 57º, nº1 alíneas b) e c), 70º, nº2 alínea a), e 146º, nº2 alínea o), do CCP. No acórdão diz-se, já em sede conclusiva, que a omissão cometida pela autora no Anexo III do Programa do Concurso, de indicação dos preços para o quadro mínimo de 3 supervisores, configura, em bom rigor, uma patologia ao nível dos atributos da proposta, que merece valorização no âmbito do disposto nos artigos 57º, nº1 alínea b), 70º, nº2 alínea a), e 146º, nº2 alínea o), todos do CCP, por equivaler, de certo modo, à omissão de um atributo. […] Mas ainda que, porventura, a proposta da autora não fosse excluída pela referenciada patologia nos seus atributos, a verdade é que sempre haveria que a excluir, desta feita, por falta de um termo ou condição. […] Quer isto dizer que, a ausência daquele quadro mínimo de supervisores na proposta da autora corresponde à falta de um termo ou condição na proposta, situação esta que deve conduzir à sua exclusão, em harmonia com o disposto nos artigos 57º, nº1 alínea c), 70º, nº2 alínea a), e 146º, nº2 alínea o), todos do CCP.

Agora é a autora - «A..., LDA» - que discorda, e pede «revista» do decidido no acórdão do tribunal de apelação, apontando-lhe «erro de julgamento de direito», pedindo a sua revogação e a manutenção do decidido em 1ª instância. Alega que o acórdão extravasa as fronteiras da distinção entre matéria de facto e matéria de direito, imiscuindo-se indevidamente naquela, e erra ao entender que «a sua proposta foi bem excluída» por não ter apresentado os «custos unitários dos 3 supervisores», e que isso tinha implicação ao nível dos «atributos essenciais exigidos à proposta ou dos seus termos ou condições».

Compulsados os autos, importa apreciar «preliminar e sumariamente», como compete a esta Formação, se estão verificados os «pressupostos» de admissibilidade do recurso de revista - referidos no citado artigo 150º do CPTA - ou seja, se está em causa uma questão que «pela sua relevância jurídica ou social» assume «importância fundamental», ou se a sua apreciação por este Supremo Tribunal é «claramente necessária para uma melhor aplicação do direito».

Feita tal apreciação, cremos que a presente pretensão de revista deverá ser admitida. Na verdade, está em causa a correcta subsunção da concreta factualidade apurada ao regime jurídico da exclusão das propostas ao abrigo do artigo 146º, nº2 alínea o), do CCP, por referência aos artigos 57º, nº1 alíneas b) e c), 70º, nº2 alínea a), também do CCP, o que se nucleariza, no caso, em saber se a falta de indicação dos preços para o quadro mínimo de 3 supervisores configura, em bom rigor, uma patologia ao nível dos atributos da proposta, ou, dos termos ou condições que lhe são exigidas.

A «questão», no presente caso, apresenta-se de resolução significativamente complexa como desde logo o evidencia a decisão jurídica diametralmente oposta dos tribunais de instância. Trata-se de complexidade acima do comum sobre a solução de uma questão jurídica que surge com relativa frequência no universo da «contratação pública», e que encontra no acórdão recorrido uma solução jurídica susceptível das críticas que lhe são dirigidas nas alegações de revista, impondo-se, por conseguinte, o seu esclarecimento por parte deste Supremo Tribunal.

Assim, e sem mais delongas, quer em nome da necessidade de esclarecer, e solidificar, a decisão jurídica da referida questão, quer em nome da importância fundamental que lhe assiste, é de admitir a presente revista.

Nestes termos, e de harmonia com o disposto no artigo 150º do CPTA, acordam os juízes desta formação em admitir a revista.

Sem custas.

Lisboa, 25 de Janeiro de 2024. - José Veloso (relator) – Teresa de Sousa – Fonseca da Paz.