Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:01005/09
Data do Acordão:02/03/2010
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:VALENTE TORRÃO
Descritores:INVOCAÇÃO
CONCLUSÕES
RECURSO
INCOMPETÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL ADMINISTRATIVO
INCOMPETÊNCIA EM RAZÃO DA HIERARQUIA
Sumário:I - Para determinação da competência hierárquica do STA, por força do preceituado nos artigos 26.º, alínea b), e 38.º, alínea a) do ETAF de 2002 e artigo 280º, n.º 1, do C.P.P.T., o que é relevante é que o recorrente, nas alegações de recurso e respectivas conclusões, suscite qualquer questão de facto, logo abstractamente relevante, ou invoque, como suporte da sua pretensão, factos que não foram dados como provados na decisão recorrida.
II – Invocando a recorrente nas suas alegações e conclusões que “O artº. 114º, n.º 1, do RGIT, que pune como contra-ordenação fiscal a «falta de entrega da prestação tributária», não abrange na sua previsão situações em que o imposto que deve ser entregue não está em poder do sujeito passivo, por não ter sido recebido ou retido” e que “nem sequer consta da decisão que a recorrente tenha embolsado o IVA em causa”, está a ser suscitada questão de facto relevante para a decisão e da qual o STA não pode conhecer, uma vez que lhe cabe conhecer apenas de recursos com exclusivo fundamento em matéria de direito.
Nº Convencional:JSTA000P11435
Nº do Documento:SA22010020301005
Recorrente:A...
Recorrido 1:FAZENDA PÚBLICA
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: Acordam na Secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo
I. A..., LDA com os demais sinais dos autos, veio recorrer da decisão do Mmº Juiz do Tribunal Tributário de Lisboa, que julgou improcedente o recurso por si interposto da decisão do Chefe do Serviço de Finanças de Lisboa, que a condenou ao pagamento de uma coima no montante de 30.044,50€, por ter apresentado a declaração periódica de IVA desacompanhada do respectivo meio de pagamento, apresentando, para o efeito, alegações nas quais conclui:
1ª) Vem o presente recurso apresentado da douta decisão que julgando improcedente o recurso, manteve a decisão de aplicação da coima.
2ª) A finalidade da exigência de descrição sumária dos factos imputados ao arguido visa assegurar-lhe a possibilidade de exercício efectivo dos seus direitos de defesa, que pressupõe um conhecimento perfeito dos factos que lhe são imputados, sendo corolário da imposição constitucional de que nos processos contra-ordenacionais seja assegurado o direito de defesa ao arguido (artº. 32.°, n.º 10, da CRP).
3ª) Quanto à indicação dos elementos que contribuíram para a fixação da coima, a lei exige a explicitação destes elementos para que o arguido possa exercer a sua defesa no âmbito da fixação concreta do montante da penalidade, através de um contraditório que vise a diminuição da coima aplicada e, no caso, a indicação, v.g., da condição económica é totalmente desprezada e não valorada ao que consta por inexistência de informações que indiciem má situação económica da ora recorrente, afirmando-se, por outro lado, o carácter frequente da infracção, sendo que de fls. 33 a 35 não se decifra, a tal respeito, o que quer que seja.
4ª) Com efeito, é necessário descrever na decisão os elementos e as circunstâncias concretas que se consideraram para a fixação do montante da coima, nomeadamente, se a contra ordenação foi cometida com dolo ou com negligência, se foi acidental ou é frequente este tipo de ocorrência, bem como quaisquer outras circunstâncias que tenham sido apuradas e possam influir no grau de culpa do arguido ou na graduação da coima, designadamente, a situação económica do agente.
5ª) No mesmo sentido, “a coima aplicada há-de sê-lo em função da gravidade objectiva e subjectiva da contra ordenação, atendendo-se, designadamente, ao valor do imposto cujo recebimento tenha sido afectado pela infracção, ao prejuízo efectivo, a qualquer especial dever do arguido que tenha sido infringido, ao carácter acidental ou frequente da ilicitude, à situação económica do arguido e a quaisquer outras circunstâncias das quais se possa inferir a culpa do agente” (Soares Martinez, in Direito Fiscal, Coimbra, 1993).
6ª) Por outro lado, a decisão da coima, sempre será nula, porquanto da decisão de aplicação de coima nem sequer consta que a recorrente tenha embolsado o IVA em causa.
7ª) O artº. 114º, n.º 1, do RGIT, que pune como contra-ordenação fiscal a «falta de entrega da prestação tributária», não abrange na sua previsão situações em que o imposto que deve ser entregue não está em poder do sujeito passivo, por não ter sido recebido ou retido.
8ª) Da decisão de aplicação de coima nem sequer consta que a recorrente tenha embolsado o IVA em causa.
9ª) Ao decidir como decidiu a douta sentença recorrida errou no julgamento da questão.
Termos em que e nos mais de direito, deve o presente recurso ser julgado procedente e, consequentemente, ser revogada a douta sentença recorrida e anulada a decisão administrativa de fixação da coima, com todas as legais consequências.
II. A Fazenda Pública não contra-alegou.
III. O MºPº emitiu o parecer que consta de fls. 102, defendendo que o tribunal é hierarquicamente incompetente para conhecer do recurso, uma vez que na conclusão 7ª a recorrente enuncia facto não contemplado no probatório, do qual pretende extrair consequência jurídica.
IV. Notificadas as partes desta questão prévia suscitada pelo MºPº, nada vieram dizer.
V. Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
VI. Com interesse para a decisão foram dados como provados em 1ª instância os seguintes factos:
1º). Em 16 de Outubro de 2004, foi levantado o auto de notícia de fls. 2 contra a recorrente, imputando-lhe a prática de uma infracção prevista e punida nos artºs. 26°, nº 1 e 40. °, n.º 1, a) CIVA e 114°, n.º 2 e 26.° n.º 4, do RGIT porquanto não entregou nos cofres do Estado simultaneamente com a declaração periódica, imposto no montante de EUR 174.444,76, relativo ao período de 2004/07, tendo o prazo para o cumprimento da obrigação terminado em 10 de Setembro de 2004.
2ª). O auto de notícia identificado no ponto 1, deu origem ao processo de contra - ordenação n.º 3247200506050719 (cf fls. 2 dos autos),
3º). Por despacho do director da direcção de finanças, datado de 20 de Março de 2006, foi proferida a decisão de fixação de coima no montante de EUR 33.705,00, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido (cfr. fls. 7-8, dos autos).
4º). Em 5 de Abril de 2006, a recorrente foi notificada do teor da decisão identificada no ponto anterior (cf. fls. 9 e A/R a fls. 10, dos autos).
5º). Na sequência do que em 7 de Abril de 2006, apresentou recurso da decisão de aplicação da coima, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido (cf. fls. 12 a 15, dos autos).
6º). Em 10 de Agosto de 2007, foi emitida informação pelos serviços da divisão de justiça administrativa da direcção de finanças de Lisboa, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido (cf. fls. 38. dos autos):
7º). Em 26 de Outubro de 2007 foi proferida decisão de aplicação da coima pelo director de finanças de Lisboa adjunto, por delegação, com o seguinte teor (cf. fls. 39-40, dos autos):
DESPACHO
1 - O presente processo de contra-ordenação foi instaurado, com base em auto de noticia levantado, por se ter verificado pessoalmente que o sujeito passivo supra identificado, em sede de IVA, enquadrado no regime normal mensal, relativamente ao período 2004/07, não entregou dentro do prazo legal simultaneamente com a declaração periódica que apresentou dentro do prazo, a prestação tributária no valor de € 174.444.75, montante necessário para satisfazer totalmente o imposto exigível
2 - O exposto constitui infracção ao disposto no artigo 26.° n.º 1 e 40.°, n.º 1. al. a) do Código do Imposto sobre o Valor Acrescentado (CIVA), infracção essa punida pelo artigo 114.°, nº 2 e 26°, nº 4 do Regime Geral das Infracções Tributárias (RGIT), aprovado pela Lei n.º 15/2001 de 05 de Junho.
3 – O (A) arguido(a) foi notificado(a) nos termos do artigo 70.° do Regime Geral das Infracções Tributárias, não tendo sido apresentada defesa, em 20.3.2006 foi fixada coima no montante de € 33.705,00 (conforme folhas 8 e 28),
4 - Notificado(a) o(a) arguido(a) para proceder ao pagamento da citada coima ou proceder à apresentação de recurso judicial da decisão que determinou e aplicou a mesma coima em 7.4.2006 apresentou recurso judicial.
5 - Da apreciação e análise, verifica-se:
A coima fixada, no montante de €33.705,00, ultrapassou o limite máximo estabelecido de € 30.000,00 (Artigo 26. °, n.º 1, al b) do RGIT)
6 - Analisado o despacho de fixação de coima a folhas 7 e 8, de 20 de Março de 2006, verificando-se que a coima fixada ultrapassou o limite estabelecido no artigo 26.°, n.º 1, al. b) do RGIT, revogo essa decisão e vai proceder-se à fixação de nova coima, tendo em conta o n.º 3 do artigo 63.° do Regime Geral das Infracções Tributárias, e nos termos do artigo 79,° do RGIT para isso consideram-se as informações constantes dos autos a seguir reproduzidas:
- Inexistência de informações que indiciem uma má situação económica do arguido.
- A não verificação de actos de ocultação com vista à descoberta da infracção.
- Inexistência de especial obrigação de não cometer a infracção.
- A conduta negligente do arguido face à inexistência de provas de actuação dolosa.
- O carácter frequente da ocorrência da infracção (cf. folhas 33 a 35)
- A situação tributária encontra-se regularizada (cf. folhas 31 e 32)
7- Há a possibilidade de pagamento voluntário da coima.
8 - Dão-se como provados os factos constantes do auto de notícia, factos esses que constituem infracção ao disposto no artigo 26º nº 1 e 40.º nº 1, al. a) do CIVA, infracção essa punida pelo artigo 114º n.º 2 e 26º n.º 4 do Regime Geral das Infracções Tributárias (R.G.I.T.) aprovado pela Lei n.º 15/2001 de 05 de Junho.
9 - Na ausência de outros elementos considerados relevantes para a graduação da coima e de acordo com o disposto no artigo 27º do Regime Geral das Infracções Tributárias aprovado pela Lei n.º 15/2001 de 5 de Junho, aplico ao(à) arguido(a) a coima de € 30.000,00 (trinta mil euros) à infracção supra indicada, com observância dos limites mínimos e máximos previstos no artigo 26.º do R.G.I.T. sendo ainda devidas as custas nos termos do nº 2 do artigo 1º do DL. 29/98 a contar no Serviço de Finanças.
11 - Vigorando o princípio da proibição de “reformatio in pejus” (em caso de recurso a coima não é susceptível de agravamento), sem prejuízo dessa possibilidade, no caso da situação económica e financeira tiver entretanto melhorado -Artigo 79º nº 1, alínea d) do R.G.I.T. -, notifique-se o arguido para os seguintes efeitos:
No prazo de 15 dias efectuar o pagamento voluntário de 75% da coima fixada, bem como das custas sob pena de, não o fazendo nesse prazo perder o direito à redução. Sendo que da redução da coima não poderá resultar um valor a pagar inferior ao mínimo legal (n.º 2 do artº. 78. ° do RGIT). Podendo ainda nos 20 dias subsequentes pagar a totalidade da coima e custas, ou recorrer judicialmente para o Tribunal Administrativo e Fiscal territorialmente competente, sob pena de não o fazendo se proceder à cobrança coerciva. (…)
8ª). Em 23 de Novembro de 2007, a recorrente foi notificada da decisão referida no ponto anterior (cf. fls. 41 e A/R a fls. 42, dos autos):
9º). O requerimento inicial do presente recurso deu entrada no serviço de finanças de Lisboa 2 em 10 de Dezembro de 2007 (cf. carimbo aposto a fls. 43. dos autos).
VII. Antes de mais cumpre conhecer da questão prévia suscitada pelo MºPº – incompetência deste Tribunal, em razão da hierarquia, para conhecer do recurso.
VII.1. Invoca o MºPº que na conclusão 7ª a recorrente enuncia facto não contemplado no probatório da decisão do qual pretende extrair consequência jurídica: o imposto não foi recebido ou retido pelo sujeito passivo antes da entrega da declaração periódica à administração tributária.
Neste contexto, o recurso não tem por exclusivo fundamento matéria de direito sendo o STA incompetente, em razão da hierarquia, para o seu conhecimento.
VII.2. Nas conclusões 6ª a 8ª, a recorrente veio referir o seguinte:
“6ª) Por outro lado, a decisão da coima, sempre será nula, porquanto da decisão de aplicação de coima nem sequer consta que a recorrente tenha embolsado o IVA em causa.
7ª) O artº. 114º, n.º 1, do RGIT, que pune como contra-ordenação fiscal a «falta de entrega da prestação tributária», não abrange na sua previsão situações em que o imposto que deve ser entregue não está em poder do sujeito passivo, por não ter sido recebido ou retido.
8ª) Da decisão de aplicação de coima nem sequer consta que a recorrente tenha embolsado o IVA em causa”.
Significa isto, como bem refere o MºPº, que a recorrente veio imputar à decisão recorrida défice instrutório, uma vez que entende que, o artº 114º, nº 1 do RGIT não abrange na sua previsão situações em que o imposto deve ser entregue não está em poder do sujeito passivo, por não ter sido recebido ou retido. Ora, da decisão que aplicou a coima nada consta sobre esta matéria, isto é, se o montante do imposto estava ou não em poder da recorrente.
E esta matéria é relevante para a decisão tal como resulta, entre outros, do Acórdão deste Tribunal e Secção, de 28.05.2008 – Recurso nº 279/08, onde ficou escrito o seguinte:
“... como resulta do texto deste n.º 3 do art. 114.º do RGIT, apenas é sancionado como contra-ordenação o comportamento de quem tem obrigação de liquidar na sequência de recebimento da quantia do imposto. (Excluindo as situações de autoliquidação em que não há recebimento do imposto do âmbito da expressão idêntica que constava do art. 24.º, n.º 2, do RJIFNA, pode ver-se ALFREDO JOSÉ DE SOUSA Infracções Fiscais (Não Aduaneiras), 3.ª edição, páginas 109-110)
A conduta de quem não entrega IVA liquidado nas facturas mas não recebido dos adquirentes das mercadorias ou utilizadores de serviços estava expressamente punida no artº. 95.º do CIVA, em que se previa como transgressão «a falta de entrega ou a entrega fora dos prazos estabelecidos de todo ou parte do imposto devido».
Porém, este artº. 95.º, inserido no Capítulo VIII do CIVA, está expressamente revogado pela alínea c) do artº. 2.º da Lei n.º 15/2001, de 5 de Junho.
Por outro lado, as referências à «prestação tributária que nos termos da lei deduziu» e à «prestação tributária deduzida nos termos da lei», que se utilizam no artº. 114.º do RGIT, têm um evidente alcance restritivo em relação à expressão «imposto devido», que era utilizada no referido art. 95.º do CIVA, pois as primeiras apenas abrangem situações em que o sujeito passivo procede à dedução do imposto, subtraindo-a de uma quantia global.
Assim, no caso em apreço, não tendo havido recebimento do imposto anterior à entrega à administração tributária da declaração periódica referida no ponto B) da matéria de facto fixada, está afastada a possibilidade de preenchimento da hipótese do art. 114.º, n.º 2, do RGIT (que se reporta à conduta prevista no n.º 1 do mesmo artigo).
Temos então que a apreciação do recurso depende do conhecimento de matéria de facto não levada ao probatório, pelo que não está em causa matéria exclusivamente de direito.
De acordo com o artº. 26.º, alínea b), do ETAF, compete à Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo conhecer dos recursos interpostos de decisões dos tribunais tributários, com exclusivo fundamento em matéria de direito.
O artº. 38.º, alínea a), do mesmo diploma, por sua vez, atribui competência à Secção do Contencioso Tributário de cada Tribunal Central Administrativo para conhecer dos recursos de decisões dos tribunais tributários, com excepção dos referidos na citada alínea b) do artº. 26.º.
O artº. 280.º, n.º 1, do CPPT prescreve também que das decisões dos tribunais tributários de 1ª instância cabe recurso para o Tributário do Tribunal Central Administrativo, salvo se a matéria do mesmo for exclusivamente de direito, caso em que cabe recurso para a Secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo.
VII.3. De acordo com o artº. 26.º, alínea b), do ETAF, compete à Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo conhecer dos recursos interpostos de decisões dos tribunais tributários, com exclusivo fundamento em matéria de direito.
O artº. 38.º, alínea a), do mesmo diploma, por sua vez, atribui competência à Secção do Contencioso Tributário de cada Tribunal Central Administrativo para conhecer dos recursos de decisões dos tribunais tributários, com excepção dos referidos na citada alínea b) do artº. 26.º.
O artº. 280.º, n.º 1, do CPPT prescreve também que das decisões dos tribunais tributários de 1ª instância cabe recurso para o Tributário do Tribunal Central Administrativo, salvo se a matéria do mesmo for exclusivamente de direito, caso em que cabe recurso para a Secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo.
Ora, em face do que ficou dito, estando em causa matéria de facto, este Tribunal é incompetente, em razão da hierarquia, para conhecer do recurso, sendo competente o Tribunal Central Administrativo Sul.
Procede, pelo exposto, a questão prévia suscitada pelo MºP.
VIII. Nestes termos acorda-se em julgar este Supremo Tribunal Administrativo hierarquicamente incompetente para o conhecimento do recurso jurisdicional.
Custas pela Recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 3 UC.
Lisboa, 3 de Fevereiro de 2010. – Valente Torrão (relator) – Isabel Marques da Silva – Brandão de Pinho.