Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0855/14
Data do Acordão:02/01/2018
Tribunal:1 SECÇÃO
Relator:FONSECA DA PAZ
Descritores:REPRIVATIZAÇÃO DE BENS NACIONALIZADOS
PRINCÍPIO DA PROTECÇÃO DA CONFIANÇA
PRINCÍPIO DA AUTONOMIA DAS AUTARQUIAS
DIREITO DE PREFERÊNCIA
Sumário:I - A decisão de reprivatizar a “A……….., SA” (A……..), inserta no DL n.º 45/2014, de 20/3, foi feita de harmonia com o disposto no art.º 293.º, n.º 1 e da Lei n.º 11/90, de 5/4 (Lei Quadro das Privatizações – LQP) e, por força do mesmo quadro, tinha que revestir a forma de acto legislativo, já que o uso do decreto-lei assim era imposto ou exigido (cf. artºs. 1.º, 4.º, n.º 1, 7.º, n.º 1 e 13.º, todos da LQP) e não através de ato administrativo ou de acto de direito privado, nomeadamente, de deliberação societária.
II - A matéria e regime normativo inserto no referido DL n.º 45/2014 não integra ou preenche o comando constitucional do art.º 165.º, n.º 1, al. u), da CRP.
III - O tribunal não pode conhecer da alegada questão da inconstitucionalidade material das resoluções do Conselho de Ministros concretizadoras da reprivatização da A………. se não são invocadas as normas ou princípios constitucionais violados.
IV - Por aplicação do art.º 35.º, n.º 1, do DL n.º 133/2013, de 3/10, nada obstava a que uma empresa pública societária criada por decreto-lei deixasse de ser empresa pública em virtude de outro decreto-lei, não sendo as suas normas estatutárias que exigiam a presença de capital maioritariamente público que o impediam.
V - As referidas resoluções do Conselho de Ministros não violam os princípios da confiança e segurança jurídica, nem da prossecução do interesse público ou da autonomia do poder local.
VI - Tendo o art.º 11.º, do DL n.º 45/2014, afastado os direitos de preferência de natureza estatutária no âmbito do processo de reprivatização da A………., os AA., accionistas da “B………..”, não beneficiavam de direito de preferência na alienação de acções detidas pela A………. na “B……….”.
Nº Convencional:JSTA00070528
Nº do Documento:SA1201802010855
Data de Entrada:09/16/2014
Recorrente:MUNICÍPIO DE ARCOS DE VALDEVEZ E OUTROS
Recorrido 1:PCM
Votação:UNANIMIDADE
Meio Processual:ACÇÃO ADM ESPECIAL
Objecto:RCM 30/2014.
RCM 36-A /2014.
RCM 55-B /2014.
Decisão:JULGAR ACÇÃO IMPROCEDENTE
Área Temática 1:DIR ADM CONT - ACÇÃO ADM ESPECIAL.
Legislação Nacional:DL 45/2014.
DL 92/2013.
DL 379/93.
DL 532/75.
DL 496/76.
DL 372/93.
DL 166/96.
DL 294/94.
DL 102/2014.
DL 133/2013.
DL 209/2000.
CONST ART2 ART266 ART242 ART112 ART165 ART235 ART293 ART280 ART237 ART238 ART267.
CSC86 ART1 ART18 ART24 ART85 ART373 ART377.
L 11/90.
L 88-A/97.
L 35/2013.
CPA91 ART6 A.
DL114/96.
Jurisprudência Nacional:AC STA PROC0800/14 DE 2016/10/13.; AC STA PROC0860/14 DE 2016/10/13.; AC STA PROC0910/14 DE 2016/10/13.; AC STA PROC0845/14 DE 2016/11/03.; AC STA PROC0786/14 DE 2016/11/10.; AC STA PROC0780/14 DE 2016/11/23.; AC STA PROC0801/14 DE 2016/11/23.; AC STA PROC0859/14 DE 2016/12/07.; AC STA PROC0854/14 DE 2017/05/11.
Referência a Doutrina:FREITAS DO AMARAL - CURSO DE DIREITO ADMINISTRATIVO VOLII 2012 PÁG45.
GOMES CANOTILHO E VITAL MOREIRA - CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA - ANOTADA VOLII 4ED PÁG796.
JORGE MIRANDA - MANUAL DE DIREITO CONSTITUCIONAL TOMOIII 4ED PÁG184.
Aditamento:
Texto Integral: ACORDAM NA SECÇÃO DE CONTENCIOSO ADMINISTRATIVO DO SUPREMO TRIBUNAL ADMINISTRATIVO:


1.Os Municípios de Arcos de Valdevez, Barcelos, Esposende, Ponte da Barca, Ponte de Lima e Viana do Castelo intentaram, contra o Conselho de Ministros, acção administrativa especial para impugnação dos seguintes actos concretizadores do processo de reprivatização da “A…………, SA” (doravante A…….):
- N.º 1 da Resolução do Conselho de Ministros (doravante RCM) n.º 30/2014, de 8/4, que determinou a alienação de 100% das acções da A……… e decidiu que o concurso público previsto no art.º 2.º, n.º 2, do DL n.º 45/2014, de 20/3, tivesse por objecto acções representativas de 95% do capital social dessa empresa;
- N.º 3 da RCM n.º 30/2014 que estabeleceu as regras de alienação das participações sociais dos accionistas municípios nas entidades gestoras de sistemas multimunicipais e do exercício do direito de preferência pelos restantes municípios accionistas da mesma entidade gestora;
- N.º 4 da RCM n.º 30/2014 que determinou a abertura do concurso público previsto no n.º 2 do art.º 2.º do DL n.º 45/2014;
- N.º 5 da RCM n.º 30/2014 que determinou a oferta pública de alienação de 5% das acções da A………. dirigida exclusivamente aos seus trabalhadores;
- N.º 1 da RCM n.º 36-A/2014, de 6/6, pelo qual se admitiu a participar na fase de apresentação de propostas vinculativas do concurso de alienação de um lote indivisível de 10.640.000 acções da A………. todos os concorrentes que tinham apresentado propostas não vinculativas;
- N.º 2 da RCM n.º 36-A/2014 que autorizou a “Parpública” a proceder ao envio a todos os concorrentes selecionados do convite previsto no n.º 1 do art.º 20.º do caderno de encargos anexo à RCM n.º 30/2014 e que dá início à fase de apresentação de propostas vinculativas;
- RCM n.º 55-B/2014, de 18/9, onde se selecionou o “Agrupamento D……….” como vencedor do concurso público de reprivatização da A………. e foram aprovados os instrumentos jurídicos a celebrar entre este e a “……….., SA”.
Imputaram a esses actos diversos vícios de violação de lei, por padecerem de inconstitucionalidade orgânica e material, infringirem lei de valor reforçado, violarem a regra imperativa constante dos artºs. 6.º, n.º 4, do DL n.º 114/96, de 5/8 e 9.º, n.º 3, dos estatutos da concessionária “B……….”, de acordo com a qual 51% do capital social desta era necessariamente público, bem como das regras que regulamentavam a alteração desses estatutos estabelecidas pelo art.º 5.º, n.º 3, do DL n.º 114/96, infringirem o disposto no art.º 363.º, do Código das Sociedades Comerciais, o direito de preferência dos municípios consagrado no art.º 9.º dos referidos estatutos, o dever de lealdade entre accionistas, o Acordo Parassocial, o contrato de concessão e os contratos de fornecimento e ainda os princípios da prossecução do interesse público, da subsidiariedade ou da aproximação dos serviços às populações, da autonomia local, da estabilidade jurídica, da boa administração e da confiança.
A entidade demandada contestou, invocando as excepções da incompetência absoluta do tribunal e da inadmissibilidade do meio processual e referindo que não se verificava nenhum dos vícios invocados pelo A. Concluiu que deveria ser absolvida da instância ou, se assim se não entendesse, ser absolvida do pedido.
Os contra-interessados, devidamente citados, não contestaram.
Os AA. pronunciaram-se sobre as arguidas excepções, tendo concluído pela sua improcedência.
O relator, pelo despacho de fls. 513 a 515, julgou improcedente as excepções suscitadas e ordenou a notificação das partes para alegarem.
Alegaram os AA. e a entidade demandada, os quais mantiveram as respectivas posições já expressas nos autos.
Colhidos os vistos legais, foi o processo submetido à conferência para julgamento.

2. Consideramos provados os seguintes factos:
a) Em 8/4/2014, foi publicada no DR, I Série, n.º 69, a Resolução do Conselho de Ministros n.º 30/2014, de 3/4, do seguinte teor:
“Nos termos do n.º 1 do art.º 14.º do DL n.º 45/2014, de 20.03, e das alíneas c) e g) do art.º 199.º da Constituição, o Conselho de Ministros resolve:
1-Determinar que são alienadas 100% das ações da A………. e que o concurso público previsto no n.º 2 do art.º 2.º do DL n.º 45/2014, de 20.03, tenha por objeto ações representativas de 95% do capital social da A………..
2-Aprovar o caderno de encargos do concurso público, constante do anexo I à presente resolução, da qual faz parte integrante, no qual se estabelecem os termos e condições específicos a que obedece o concurso público previsto no número anterior.
3-Aprovar os termos do exercício pelos municípios da opção de alienação das participações sociais por aqueles detidas no capital das entidades gestoras de sistemas multimunicipais nas quais a A………. é acionista, bem como do exercício do direito de preferência pelos restantes municípios da mesma entidade gestora, relativamente à referida alienação, os quais constam do caderno de encargos a que se refere o número anterior.
4-Determinar a abertura do concurso público previsto no n.º 2 do art.º 2.º do DL n.º 45/2014, de 20.03, através do envio para publicação do anúncio no Jornal Oficial da União Europeia e no Diário da República.
5-Aprovar, no anexo II à presente resolução, da qual faz parte integrante, algumas condições da oferta pública de venda de ações da A……… dirigida exclusivamente a trabalhadores da A………, no âmbito da qual os referidos trabalhadores podem adquirir ações representativas de 5% do capital social da A………..
6-Determinar que as ações que não sejam vendidas a trabalhadores, assim como aquelas cuja transmissão não se concretize, acrescem automaticamente às ações a adquirir pelo vencedor do concurso público, obrigando-se este a adquirir tais ações pelo preço por ação constante da sua proposta vinculativa.
7-Determinar que, ao abrigo do art.º 16.º do DL n.º 45/2014, de 20.03, compete à Ministra do Estado e das Finanças, com faculdade de subdelegação no Secretário de Estado das Finanças, aprovar o convite e todos os aspetos que, nos termos do caderno de encargos, devam ser fixados no mesmo.
8-Constituir uma comissão especial nos termos do art.º 20.º da Lei n.º 11/90, de 05.04, alterada pelas Leis nºs. 102/2003, de 15.11, e 50/2011, de 13.09, a qual é composta por três membros a nomear por despacho do Primeiro-Ministro.
9-Determinar que, nos termos do art.º 19.º do DL n.º 45/2014, de 20.03, o Governo, através da PARPÚBLICA, coloca à disposição do Tribunal de Contas toda a documentação que integra o processo de venda, incluindo os pareceres e relatórios previstos na lei que regula estes processos.
10-Determinar que a presente resolução entra em vigor no dia seguinte ao da sua publicação”.
b) No DR, I Série, 1.º Suplemento, de 6/6/2014, foi publicada a RCM n.º 36-A/2014 que, nos seus nºs. 1 e 2, referia o seguinte:
“1- Determinar que sejam admitidos a participar na fase de apresentação de propostas vinculativas do concurso público de alienação de um lote indivisível de 10.640.000 ações da A……….., SA (A…….) todos os concorrentes que apresentaram propostas não vinculativas, ou seja, os concorrentes:
a) (…);
b) (…);
c) (…);
d) (…);
e) (…);
f) (…);
g) (…).
2- Autorizar a Parpública – Participações do Estado (SGPS), SA (PARPÚBLICA), a proceder ao envio a todos os concorrentes selecionados do convite previsto no n.º 1 do artigo 20.º do caderno de encargos anexo à Resolução do Conselho de Ministros n.º 30/2014, de 8 de abril, aprovado nos termos do n.º 7 da referida resolução, iniciando-se dessa forma a fase de apresentação de propostas vinculativas”.
c) No DR, I Série, Suplemento n.º 2, de 18/9/2014, foi publicada a RCM n.º 55-B/2014, que selecionou o concorrente D……….. (Agrupamento D……….) como vencedor do concurso público, aberto pela RCM n.º 30/2014, de reprivatização da A……… para proceder à aquisição das acções representativas de 95% do capital social da A………...
d) Entre os Municípios AA. e a A………, foi, em 16/8/98, celebrado o “Acordo Parassocial”, constante de fls. 246 a 253 dos autos, cujo teor aqui se dá por reproduzido.
e) Entre o Estado Português e a “B…………, SA” foi, em 26/10/98, celebrado o contrato de concessão constante de fls. 205 a 229 dos autos, cujo teor aqui se dá por reproduzido.

3.Sobre a pretensão jurídica formulada pelo A. nos presentes autos, já este Supremo se pronunciou em várias acções administrativas especiais intentadas por municípios portugueses para impugnação da Resolução do Conselho de Ministros n.º 30/2014, tendo sempre concluído no sentido da sua improcedência (cf. Acs. de 13/10/2016 – Procs. nºs. 0800/14, 0860/14 e 0910/14, de 3/11/2016 – Proc. n.º 0845/14, de 10/11/2016 – Proc. n.º 0786/14, de 23/11/2016 – Procs. nºs. 0780/14 e 0801/14, de 7/12/2016 – Proc. n.º 0859/14 e de 11/5/2017 – Proc. n.º 854/14).
Por concordarmos com esta jurisprudência quanto ao que foi decidido no que respeita à alegada inconstitucionalidade orgânica e às violações dos princípios da protecção da confiança e da autonomia do poder local, limitar-nos-emos, neste âmbito, a reproduzir parte do texto desses acórdãos.
Assim, quanto à alegada inconstitucionalidade orgânica, é de julgar improcedente pelos fundamentos constantes do citado Ac. de 13/10/2016, proferido no Proc. n.º 800/14, onde se escreveu:
“(…)
"XXVII. Como resulta dos próprios termos insertos no DL n°45/2014 [ver preâmbulo e quadro normativo de habilitação invocado no mesmo] o processo de reprivatização da «A » rege-se «pelo disposto na Lei n°11/90 [...] (Lei Quadro das Privatizações)», sendo que o Governo emanou o referido DL ao abrigo das competências e poderes que, constitucionalmente, lhe são conferidos pelas alíneas a) e c) do artigo 198° da CRP.
XXVIII. Para além do assento na competência legislativa do Governo definida pelo comando constitucional, faz-se, ainda, apelo no mesmo e enquanto também padrão normativo de referência à «LQP», diploma este que aprovou e no qual está contida a disciplina das operações de reprivatização da titularidade ou do direito de exploração dos meios de produção e outros bens nacionalizados depois de 25 de Abril de 1974 previstos no n°1 do artigo 293° da CRP [ver artigo 1° da «LQP»].
XXIX. Resulta deste preceito, o qual tem por epígrafe «reprivatização de bens nacionalizados depois de 25 de Abril de 1974», que «lei-quadro, aprovada por maioria absoluta dos Deputados em efetividade de funções, regula a reprivatização da titularidade ou do direito de exploração de meios de produção e outros bens nacionalizados depois de 25 de Abril de 1974, observando os seguintes princípios fundamentais: [...] a) A reprivatização da titularidade ou do direito de exploração de meios de produção e outros bens nacionalizados depois do 25 de Abril de 1974 realizar-se-á, em regra e preferencialmente, através de concurso público, oferta na bolsa de valores ou subscrição pública; [...] b) As receitas obtidas com as reprivatizações serão utilizadas apenas para amortização da dívida pública e do sector empresarial do Estado, para o serviço da dívida resultante de nacionalizações ou para novas aplicações de capital no sector produtivo; [...] c) Os trabalhadores das empresas objecto de reprivatização manterão no processo de reprivatização da respectiva empresa todos os direitos e obrigações de que forem titulares; [...] d) Os trabalhadores das empresas objecto de reprivatização adquirirão o direito à subscrição preferencial de uma percentagem do respectivo capital social; [...] e) Proceder-se-á à avaliação prévia dos meios de produção e outros bens a reprivatizar, por intermédio de mais de uma entidade independente» [n°1], sendo que, nos termos do seu n°2, «as pequenas e médias empresas indiretamente nacionalizadas situadas fora dos sectores básicos da economia poderão ser reprivatizadas nos termos da lei».
XXX. Foi em concretização deste comando que veio a ser publicada a referida «LQP» da qual e no que releva se extrai que «a reprivatização da titularidade realizar-se-á, alternativa ou cumulativamente, pelos seguintes processos: a) Alienação das acções representativas do capital social; b) Aumento do capital social» [artigo 06°, n°1] e que esses processos são «realizados, em regra e preferencialmente, através de concurso público ou oferta pública nos termos do Código dos Valores Mobiliários» [ver n°2 deste preceito], sendo que «a reprivatização através de concurso público será regulada pela forma estabelecida no artigo 4°, no qual se preverá a existência de um caderno de encargos, com a indicação de todas as condições exigidas aos candidatos a adquirentes» [ver artigo 7°, n°1], ou seja, sujeita ao disposto nesta lei e mediante emissão de decreto-lei [ver artigo 4°, n°1 - DL esse através do qual se «aprovará o processo, as modalidades de cada operação de reprivatização, designadamente os fundamentos da adopção das modalidades de negociação previstas nos n°s 3 e 4 do artigo 6°, as condições especiais de aquisição de acções e o período de indisponibilidade a que se referem os artigos 11°, n°1, e 12°, n°2» - ver artigo 13°, n°1] e em que «a sociedade anónima que viera resultar da transformação continua a personalidade jurídica da empresa transformada, mantendo todos os direitos e obrigações legais ou contratuais desta» [ver artigo 4°, n°3], competindo ao Conselho de Ministros a emissão de «decisão final sobre a apreciação e selecção dos candidatos» [ver n°2 do referido artigo 7°], bem como a aprovação «por resolução, de acordo com a lei, as condições finais e concretas das operações a realizar em cada processo de reprivatização» [ver artigo 14°].
XXXI. De referir, ainda, que o regime da «LQP» aplica-se também e com as devidas adaptações «à reprivatização da titularidade das empresas nacionalizadas que não tenham o estatuto de empresa pública» [ver seu artigo 25°].
XXXII. Tratando-se no caso da «A » dum processo de transferência do sector público para o sector privado de bem antes pertencente a este último sector e que havia sido nacionalizado após o 25 de Abril de 1974, [...] daí denominar-se de «reprivatização» e não «privatização», afigura-se, à luz do que conjugadamente se disciplina nos artigos 165°, n°1, alíneas I) e u), e 293° da CRP, como correto e acertado o padrão normativo a que se fez apelo no DL n°45/2014, porquanto este diploma radica efetivamente o seu enquadramento e emissão no regime definido pela «LQP» enquanto concretização do comando constitucional previsto não no dito artigo 165° mas no artigo 293°.
XXXIII. Com efeito, presente a evolução registada no texto constitucional, após a várias revisões, e uma vez analisados os termos e o teor dos atuais comandos em confronto, ressalta, por um lado, a existência duma clara separação entre aquilo que é a cláusula de reserva de competência legislativa referente às «bases gerais do estatuto das empresas públicas» [alínea u), do n°1, do artigo 165° da CRP] e aquilo que constitui cláusula competencial respeitante à definição dos «meios e formas de [...] privatização dos meios de produção» [alínea I), do n°1, do artigo 165° da CRP], tanto mais que não são confundíveis a legiferação que disciplina as regras de transferência de propriedade e da natureza duma empresa, fazendo-a abandonar o universo jurídico-público e ingressar no sector privado, mas mantendo-a, enquanto unidade jurídico/produtiva ou aglomerado económico, sob controlo de sujeitos privados, por contraposição com aquela em que se definem as bases gerais ou o regime jurídico aplicáveis às empresas públicas enquanto tais.
XXXIV. Para além disso, da evolução e teor dos aludidos comandos constitucionais extrai-se, ainda, uma outra separação ou diferenciação em termos de reservas competênciais entre aquilo que é a definição do regime normativo para as operações de reprivatização da titularidade ou do direito de exploração dos meios de produção e outros bens nacionalizados depois de 25 de Abril de 1974 [previsto no artigo 293° da CRP e nele se incluindo apenas as operações de reprivatização incidentes sobre os meios de produção e bens alvo de nacionalização por parte das leis ordinárias publicadas entre 25 de Abril de 1974 e a data da entrada em vigor da Constituição de 1976 [ver Jorge Miranda e Rui Medeiros in: Constituição Portuguesa Anotada, Tomo III, Coimbra 2007, página 980; António de Sousa Franco e Guilherme D'Oliveira Martins in: A Constituição Económica Portuguesa. Ensaio Interpretativo, Coimbra 1993, página 278] e a definição geral do regime legal relativo às operações de privatização ou reprivatização que incidam sobre a titularidade ou direitos de exploração de meios de produção ou outros bens que ali não estejam abrangidos [ver artigo 165°, n°1, alínea I), da CRP - no qual se incluem, assim, a legiferação sobre as operações que vierem a recair sobre meios de produção/bens que nunca tenham sido alvo de nacionalização, bem como as operações incidentes sobre meios de produção/bens que tenham sido alvo de nacionalização antes de 25 de Abril de 1974 e, bem assim, das nacionalizações que ocorreram ou venham a ocorrer após a data da entrada em vigor da Constituição de 1976 (ver, Jorge Miranda e Rui Medeiros in: ob. cit, páginas 979/981)].
XXXV. Aliás, como referem Jorge Miranda e Rui Medeiros a «figura da privatização, ou seja, [...] o processo de transferência para o sector privado de bens integrantes do sector público que nunca anteriormente estiveram integrados naquele sector privado [...] está assim fora da órbita de atuação do artigo 293° da Constituição, sendo matéria de reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República [artigo 165°, n°1, alínea I)]», sendo que da conjugação dos referidos preceitos «divisam-se claramente dois regimes básicos relativos à transferência de bens do sector público para o sector privado» já que quanto ao regime da reprivatização de bens nacionalizados depois de 25 de Abril de 1974 o mesmo é «objecto de concretização jurídica através de lei-quadro parlamentar aprovada segundo um procedimento qualificado e com respeito de determinados princípios materiais» ao passo que o regime de privatizações dos restantes bens ou meios de produção públicos será fixado «através de uma lei da competência legislativa de reserva relativa da Assembleia da República, bastando para a sua aprovação uma maioria simples de deputados, podendo também ser fixado mediante decreto-lei autorizado, em qualquer caso sem subordinação aos princípios substantivos e procedimentais consagrados no n°1 do artigo 293° da Constituição» [in: ob. cit, página 979] [ver, igualmente, Paulo Otero in: Privatizações, Reprivatizações e Transferências de Participações Sociais no Interior do Sector Público, Coimbra 1999, páginas 43/44].
XXXVI. Aquela «LQP» foi concebida, tal como sustentou o Tribunal Constitucional [ver Acórdão n°71/90 (...)] «como uma norma sobre a produção normativa [à semelhança do que sucede com as leis de autorização legislativa, com as denominadas leis de enquadramento ...], destinada a desempenhar uma função habilitante, na medida em que constitui pressuposto da prática, pelo Governo, dos atos normativos de reprivatização de cada empresa pública ou nacionalizada [os decretos-leis de transformação das empresas em causa em sociedades anónimas ... e as resoluções do Conselho de Ministros que aprovam as condições finais e concretas das operações a realizar em cada processo de reprivatização...] e dotada de uma primariedade material e hierárquica [porque conformadora daqueles decretos-leis e daquelas resoluções e sobre uns e outras naturalmente prevalecente, não só em razão da sua específica função hierárquico-normativa, mas também por força do princípio da repartição de competências entre os órgãos de soberania - já que versando matéria sobre a qual primariamente só o Parlamento detém competência legislativa]», tratando-se de uma lei de «princípios, à semelhança das leis de bases, porquanto a Constituição revista consagra ela própria expressamente, em disposição final e transitória [artigo 296°] - [correspondente ao atual artigo 293°]» e «ordenadora ou de enquadramento de um processo normativo composto por um conjunto de atos nela previstos e a ela subordinados, a praticar pelo Governo, e nisto consistirá a sua função habilitante e simultaneamente conformadora», na certeza de que sendo a «LQP» uma «lei com valor reforçado» caberá ao mesmo Tribunal sindicar e controlar uma eventual ilegalidade de ato legislativo por violação da referida lei, aferindo se é, pelo menos, plausível, ou se não é manifestamente inexistente, que «o interesse nacional ou a estratégia definida para o sector» exijam o afastamento do recurso preferencial às modalidades-regra de privatização, ou se «a situação económica ou financeira da empresa o recomenda», ou se tal afastamento implicou «uma violação dos limites da discricionariedade consentida ao legislador», mas já não «sindicar especificamente o tipo de modalidade de reprivatização escolhido pelo legislador» [ver, neste sentido o Acórdão n°683/2006 do mesmo Tribunal].
XXXVII. No caso ora sob apreciação a decisão de privatizar a «A » inserta no DL n°45/2014, foi-o, pois, como referido, em respeito e obediência ao quadro constitucional e ordinário invocado e, por força do mesmo quadro, e na sequência do atrás exposto, tinha que revestir a forma de ato legislativo já que o uso de DL assim era imposto ou exigido [ver artigos 1°, 4°, n°1, 7°, n°1, e 13° todos da «LQP»] e não através da forma ou de ato administrativo ou de ato de direito privado, nomeadamente, de deliberação societária como se extrai da tese afirmada pelo município autor.
XXXVIII. Tal resultava imposto pelo disposto no artigo 293°, n°1, em articulação com o artigo 112°, n°s 3e 5, ambos da CRP, e com a «LQP» [ver artigos 4°, 7° e 13°], sob pena de verificação ou de inconstitucionalidade, dada a realização de operação de reprivatização por um órgão que não é para tanto competente, ou, então, pelo menos, de ilegalidade reforçada, mercê da violação da exigência quanto à forma fixada pela referida lei-quadro para a concretização de qualquer ato de reprivatização, dado o desrespeito, por conseguinte, do valor reforçado de que goza a «LQP» enquanto «norma sobre a produção normativa» com uma «função habilitante» e que se mostra dotada de «primariedade material e hierárquica» [ver o citado Acórdão do TC n°71/90], infrações essas suscetíveis de, nomeadamente, conduzirem à sua desaplicação concreta por inconstitucionalidade [ver artigo 280°, n°2, alíneas b) e d), da CRP].
XXXIX. Defendem, aliás, Jorge Miranda e Rui Medeiros, quanto à forma de concretização da referida lei-quadro que «não obstante o assinalado silêncio do legislador constitucional, tudo aponta para que a lei-quadro de reprivatizações deva ser concretizada por ato legislativo», para assim apontando não só o elemento literal «a expressão lei-quadro sugere diretamente a ideia de uma lei destinada a servir de moldura a outras leis» já que «se quisesse que as reprivatizações em concreto fossem objeto de atos não legislativos a Constituição ter-se-ia referido, simplesmente, a lei das reprivatizações», mas também os elementos sistemático e histórico [in: ob. c/r., página 996] [vide igualmente Lino Torga! em Da lei-quadro na Constituição Portuguesa de 1976, in: Perspectivas Constitucionais, II, (1997), páginas 923/926; M. Esteves Oliveira e outros in: Privatizações e Reprivatizações. Comentário à Lei-Quadro das Privatizações (2011), páginas 24/26, 36 e 62/63; Paulo C. Rangel em A concretização legislativa da Lei-Quadro das Reprivatizações (a propósito da inconstitucionalidade do Decreto-lei n.° 380/93 ... in: Legislação n°23, página 10].

XL. Por outro lado e como supra sustentado, tendo aquele DL sido emitido ao abrigo do artigo 293°, n°1, da CRP, em conjugação e no quadro da «LQP», soçobra um qualquer entendimento que faça apelo àquilo que são os comandos constitucionais insertos no artigo 165°, n°1, alíneas I) e u), e a uma sua pretensa infração, já que a matéria e regime normativo inserto no DL n°45/2014 não os integram ou preenchem minimamente, visto não estarmos em presença nem de ato legislativo relativo a bases gerais do estatuto das empresas públicas [ver aquela alínea u) do citado comando constitucional e o DL n°133/2013] e que, por isso, possa contender ou lhe deva qualquer respeito, nem sequer de um ato de privatização dos meios de produção que resulte abrangido na referida alínea I) do n°1 do artigo 165°.

XLI. Do facto de se dever caracterizar e inserir a «A…» [de per si e quanto àquilo que são as suas participações] como sendo uma empresa pública integrada no sector empresarial do Estado, face ao que decorre conjugadamente do disposto nos artigos 5°, n°1, e 9°, n°1, 13°, n°1, 56° e 57° do citado DL n°133/2013, [...], já que enquanto organização empresarial constituída sob a forma de societária nos termos da lei comercial, o Estado, através da detenção das participações na «C………..», exerce de forma indireta uma influência dominante na mesma considerando, mormente, os vários pressupostos descritos no referido n°1 do artigo 9° daquele DL, tal todavia não implica, nem deriva minimamente que a disciplina daquilo que é a definição do enquadramento ou do regime da alienação da titularidade da mesma, através de operação de reprivatização, se deva conformar ou fundar/acolher naquilo que são as bases gerais do estatuto das empresas públicas insertos naquele DL n°133/2013, porquanto, como vimos, tratam-se de domínios ou planos diversos, sem que se possa sustentar que ocorra qualquer infracção aos artigos 5°, 9°, 13°, n°1, 34°, n°1, 56° e 57° do citado DL, ou ainda do artigo 165°, n°1, alínea u), da CRP."

Por sua vez, a inconstitucionalidade material dos actos impugnados é invocada pelos AA. com o fundamento que a alteração unilateral dos estatutos da concessionária “B………..” que deles resulta em aplicação do disposto no DL n.º 45/2014, ocorre “ao arrepio do que estabelecem imperativamente as bases gerais das empresas públicas definidas no DL n.º 133/2013, de 3 de Outubro” e “vedam aos municípios a possibilidade de nos órgãos próprios (assembleias gerais das sociedades concessionárias) defenderem os seus próprios interesses e das respectivas populações” (cf. art.º 183.º da petição inicial).
Porém, para aferir se este vício tinha autonomia relativamente a outros que são alegados pelos AA. e para permitir que este tribunal se pronunciasse sobre a conformidade constitucional das normas em crise, impunha-se que, além dos fundamentos da sua verificação, fossem invocadas as normas ou princípios constitucionais violados, o que, no caso vertente, não sucedeu. Assim, não pode este tribunal conhecer da referida questão da inconstitucionalidade material.
No que concerne à “violação de lei de valor reforçado”, é invocada com o fundamento que se está perante um processo extintivo de uma empresa pública (“B……….”) que não encontra habilitação no DL n.º 133/2013, de 3/10 – que estabelece as bases gerais das empresas públicas – nem na respectiva lei de autorização (Lei n.º 18/2013, de 18/2).
Mas não assiste razão aos AA., pois do art.º 35.º, n.º 1, do DL n.º 133/2013, infere-se que nada obsta a que uma empresa deixe de ser pública em virtude de um decreto-lei, além de que, como se refere no citado Ac. deste STA proferido no Proc. n.º 800/14, “ao invés do sustentado pelo A., o DL n.º 133/2013 não se aplica a actos de reprivatização como o em questão, nem o mesmo constitui uma lei de valor reforçado para efeitos de disciplina e definição normativa dos concretos procedimentos reprivatizadores”.
Quanto à alegada violação dos princípios da confiança e da segurança jurídica, ínsitos no art.º 2.º, da CRP, escreveu-se no citado Ac. de 13/10/2016, proferido no Proc. n.º 0780/14:
“(…)
"LI. Enquanto fundamento de ilegalidade assacado ao ato impugnado pelo A. conta-se ainda o da infração por parte do mesmo e do quadro normativo que este veio concretizar dos princípios da proteção da confiança/segurança jurídica, da boa-fé, da legalidade, da proporcionalidade [arts. 02.°, 266.°, 267°, da CRP, e 6.°-A do CPA].

LII. Inexistem dúvidas de que o Estado no momento da constituição da «E…….», através do DL n.° 53/97, quis instituir um regime nos termos do qual a atuação da referida sociedade se regeria para além dos seus estatutos pela lei comercial, mas, todavia, fê-lo por ato legislativo, enquanto afirmação duma opção político-legislativa primária, sendo que a natureza daquele ato não pode ser minimamente esquecida e/ou desconsiderada e sua sujeição ao princípio da autorrevisibilidade dos diplomas legais.

Llll. Ora tais opções político-legislativas e normas que as corporizam não tinham que ficar congeladas ou imóveis no tempo, como sustenta o A. fazendo apelo ao tempo decorrido desde a criação da «E………», detendo o Governo, no quadro da sua competência legislativa genérica [cfr. art. 198°, n.° 1, al. a), da CRP], o poder de alterar/rever as políticas preexistentes e que se mostram vertidas em DL.

LIV. No caso e como vimos na sequência da alteração à Lei Delimitação de Setores produzida pela Lei n.° 35/2013 veio a ser publicado o aludido DL n.° 92/2013, diploma através do qual se procedeu, no que aqui releva, à reformulação do regime dos sistemas multimunicipais de exploração e gestão de resíduos sólidos, eliminando a obrigação de manutenção da titularidade maioritariamente pública do capital das sociedades concessionárias, regime esse que apontava e exigia a necessidade de conformação também das regras e estatutos daquelas mesmas sociedades concessionárias a ser feito também neste domínio por ato legislativo, como de facto o foi.

LV. É certo que, enquanto princípio, a liberdade de conformação conferida pela CRP ao legislador, no caso ao Governo nessa veste, não é absoluta, dado nunca poder afirmar-se sem reservas, já que possui limites, nomeadamente, o da segurança e da confiança na ordem jurídica garantida pelo Estado de direito.

LVI. Na verdade, a exigência da proteção da confiança constitui uma decorrência do princípio da segurança jurídica, imanente ao Estado de Direito, já que o princípio do Estado de Direito Democrático garante seguramente um mínimo de certeza nos direitos das pessoas e nas suas expetativas juridicamente criadas e, consequentemente, a confiança das pessoas e da comunidade na ordem jurídica e na atuação do Estado [cfr. art. 02°da CRP].

LVII. Não podemos deixar de ter sempre como presente que as pessoas para além de liberdade carecem de segurança para poderem conduzir, planificar, estruturar e conformar de forma autónoma e responsável a sua vida e atividade.

LVIII. Nessa medida, a vida num Estado de Direito Democrático terá de estar ancorada necessariamente nos princípios da segurança jurídica e da proteção da confiança, cientes de que o princípio da boa-fé, tendo plena valia no plano da disciplina das relações administrativas e do respeito dos direitos e interesses em confronto, não constitui, todavia, um padrão de aferição da validade ou da legalidade quanto aquilo sejam as opções consagradas legislativamente em ato privatizador já que aí o padrão de aferição normativa se terá de fazer por referência aos princípios estruturantes da proteção da confiança e da segurança jurídica.

LIX. O princípio da segurança jurídica, enquanto implicado no princípio do Estado de Direito Democrático, encerra em si duas ideias basilares. Uma, a de estabilidade, no sentido de que as decisões dos entes públicos "não devem poder ser arbitrariamente modificadas, sendo apenas razoável a alteração das mesmas quando ocorram pressupostos materiais particularmente relevantes". A outra, a da previsibilidade, que no essencial se "reconduz à exigência de certeza e calculabilidade, por parte dos cidadãos, em relação aos efeitos jurídicos dos atos normativos".

LX. Daí que a realização e efetivação do princípio do Estado de Direito, no nosso quadro constitucional, impõe que seja assegurado um certo grau de estabilidade e previsibilidade às pessoas sobre as suas situações jurídicas, ou seja, que se mostre garantida a confiança na atuação dos entes públicos, porquanto "sem a possibilidade, juridicamente garantida, de poder calcular e prever os possíveis desenvolvimentos da atuação dos poderes públicos suscetíveis de se repercutirem na sua esfera jurídica" cada pessoa se converteria "em mero objeto do acontecer estatal" [cfr. Jorge Reis Novais in: "Os Princípios Constitucionais Estruturantes da República Portuguesa" (Coimbra 2004), págs. 261 e 262].

LXI. É, assim, que os princípios da proteção da confiança e da segurança jurídica pressupõem um mínimo de previsibilidade em relação aos atos do poder, no caso vertente do poder legislativo, de molde a que a cada pessoa seja garantida e assegurada a continuidade das relações em que intervém e dos efeitos jurídicos dos atos que pratica.

LXII. A propósito da "segurança jurídica" e da "proteção da confiança" refere o J.J. Gomes Canotilho que "... a segurança jurídica está conexionada com elementos objetivos da ordem jurídica - garantia da estabilidade jurídica, segurança de orientação e de realização do direito - enquanto a proteção da confiança se prende mais com as componentes subjetivas da segurança, designadamente a calculabilidade e previsibilidade dos indivíduos em relação aos efeitos jurídicos dos atos dos poderes públicos. A segurança e a proteção da confiança exigem, no fundo: (1) fiabilidade, clareza, racionalidade e transparência dos atos do poder; (2) de forma que em relação a eles o cidadão veja garantida a segurança nas suas disposições pessoais e nos efeitos jurídicos dos seus próprios atos. Deduz-se já que os postulados da segurança jurídica e da proteção da confiança são exigíveis perante qualquer ato de qualquer poder - legislativo, executivo e judicial. O princípio geral da segurança jurídica em sentido amplo (abrangendo, pois, a ideia de proteção da confiança) pode formular-se do seguinte modo: o indivíduo tem do direito poder confiar em que aos seus atos ou às decisões públicas incidentes sobre os seus direitos, posições ou relações jurídicas alicerçados em normas jurídicas vigentes e válidas por esses atos jurídicos deixado pelas autoridades com base nessas normas se ligam os efeitos jurídicos previstos e prescritos no ordenamento jurídico ..." [in: "Direito Constitucional e Teoria da Constituição", 7.a edição, pág. 257].

LXIII. E, um pouco mais à frente, afirma ainda o mesmo Professor que a "mudança ou alteração frequente das leis (de normas jurídicas) pode perturbar a confiança das pessoas, sobretudo quando as mudanças implicam efeitos negativos na esfera jurídica dessas mesmas pessoas. O princípio do Estado de direito, densificado pelos princípios da segurança e da confiança jurídica, implica, por um lado, na qualidade de elemento objetivo da ordem jurídica, a durabilidade e permanência da própria ordem jurídica, da paz jurídico-social e das situações jurídicas; por outro lado, como dimensão garantística jurídico-subjetiva dos cidadãos, legitima a confiança na permanência das respetivas situações jurídicas. Daqui a ideia de uma certa medida de confiança na atuação dos entes públicos dentro das leis vigentes e de uma certa proteção dos cidadãos no caso de mudança legal necessária para o desenvolvimento da atividade dos poderes públicos" [in: ob. c/r., págs. 259 e segs.].

LXIV. Temos, portanto, que para apreciar uma eventual lesão da proteção da confiança mostra-se essencial apurar se o Estado, no uso dos seus poderes, tomou efetivamente decisões ou encetou comportamentos suscetíveis de gerar nas pessoas expetativas de continuidade, se as mesmas tomaram decisões ou fizeram planos de vida ou de atividade com fundamento nessas mesmas expetativas, mas também se tais expetativas na continuidade da política estadual eram legítimas, já que fundadas ou justificadas por razões sérias apoiadas em bens e valores constitucionalmente protegidos, e se a mudança entretanto havida do comportamento dos poderes públicos não foi ela reclamada ou exigida por um interesse público que, pela sua acuidade, imperiosidade e valor, se deva sobrepor ao valor da tutela das expetativas criadas.

LXV. Tal entendimento corresponde àquilo que constitui a nossa jurisprudência constitucional, extraindo-se da fundamentação do Acórdão n.° 408/2015 do Tribunal Constitucional [no qual reitera e retoma os critérios firmados na sua jurisprudência anterior - cfr, entre outros, os Acórdãos n.°s 287/90, 303/90, 556/2003, 128/2009, 176/2012, 187/2013, 355/2013, 862/2013, 202/2014, 413/2014 e 575/2014] de que o "princípio da proteção da confiança assume, na jurisprudência constitucional portuguesa, um conteúdo normativo preciso, que faz depender a tutela da confiança legítima dos cidadãos da verificação de alguns requisitos ou testes cumulativos. (...) Os primeiros testes procuram escrutinar a consistência e a legitimidade das expetativas dos cidadãos afetados por uma alteração normativa, havendo de concluir-se que aquela existe quando (1) o legislador tenha encetado comportamentos capazes de gerar nestes cidadãos expetativas de continuidade, (2) estas expetativas sejam legítimas, justificadas e fundadas em boas razões, (3) e as pessoas tenham feito planos de vida tendo em conta a perspetiva de continuidade do comportamento estadual", sendo que "[caso todas estas condições se verifiquem, o percurso decisório quanto ao princípio da proteção da confiança culmina num exercício de ponderação entre interesses contrapostos, levado a cabo de acordo com o princípio da proporcionalidade em sentido estrito: de uma parte, a confiança (legítima) dos particulares na continuidade do quadro normativo vigente e, de outra, as razões de interesse público que motivaram a alteração" [consultável no mesmo sítio].

LXVI. Aqui chegados e cientes dos considerandos de enquadramento tecidos impõe-se, então, que nos interroguemos da procedência da argumentação expendida pelo A. para sustentar a tese que esgrimiu nos autos.

LXVII. E para concluir, desde já, pela sua improcedência.

LXVIII. Motivando tal juízo é certo que cada município conjuntamente com a «A » aceitou integrar e participar no capital social das sociedades concessionárias dos sistemas multimunicipais de valorização e tratamento de resíduos sólidos, como ocorreu com o aqui A. na «E », e que, muito possivelmente, o fizeram no pressuposto de que as mesmas se manteriam no universo jurídico-público, pese embora, não se vislumbre que opções então tomadas pelos municípios, seja por razões de natureza económica ou outra, se tenham estribado ou considerado essencial, enquanto legítima expetativa, na consideração de que a sociedade se iria sempre reger pela lei comercial.

LXIX. Ocorre que o ato impugnado e quadro normativo que concretiza e aplica não envolve, presentes os considerandos tecidos e a situação apurada nos autos, uma qualquer violação dos princípios da legalidade, da proporcionalidade, da proteção da confiança e da boa-fé [cfr. arts. 02°, 266° da CRP e 06.°-A do CPA/91] e da participação [cfr. art. 267° da CRP].

LXX. Desde logo, importa ter presente que, de harmonia com o atrás referido, a forma utilizada do DL para a reprivatização e depois a emissão duma resolução por parte do Conselho de Ministros não envolve qualquer atuação ou exercício de poder de forma arbitrária, a ponto de pôr em causa o princípio da segurança jurídica e da proteção da confiança, tanto mais no contexto da mudança/reforma operada na orientação política naquele domínio e após prévia participação e audição dos municípios, nomeadamente do A., se fez uso do DL para proceder à reprivatização da «A » e da «RCM» para a materializar, atuação essa feita no quadro do Estado de direito e em observância do quadro constitucional.

LXXI. Por outro lado, não é minimamente infringida a confiança legítima dos municípios, como o aqui A., já que os mesmos puderam acompanhar a evolução legislativa ocorrida neste domínio desde o desencadear das alterações havidas na Lei de Delimitação de Setores e dos diplomas atrás referidos e, assim, antecipar aquilo que eram as necessárias consequências e decorrências para a sua esfera e posição, na certeza de que o próprio ato reprivatizador consagrou solução através da qual se permitia a sua saída do capital social das sociedades participadas com a «A », desonerando-os de terem de conviver no seio destas com uma maioria de capital privado.

LXXII. Com efeito, quer nos termos previstos no DL n.° 45/2014 [cfr. art. 11.°], como no ato impugnado [cfr. arts. 41.°/44.° do caderno de encargos aprovado em anexo à «RCM»], é conferido aos municípios acionistas daquelas mesmas sociedades, mormente ao A. na «E », o direito de, querendo, alienarem as suas participações, desvinculando-se, dessa forma, dos compromissos assumidos num determinado enquadramento ou contexto e em função de determinados pressupostos.

LXXIII. Daí que no contexto daquilo que foi sendo a reforma operada no setor através do quadro normativo referido, iniciada em julho de 2013 com a Lei n.° 35/2013 e cimentada com o regime inserto no DL n.° 92/2013, da participação/audição e acompanhamento que foi feito pela Associação Nacional de Municípios e pelos próprios Municípios, o ato de reprivatização e o ato impugnado concretizador da mesma não surgem como atos inesperados, de surpresa e ao arrepio daquilo que seria a marcha normal de todo aquele processo e a ponto de não contarem ou não poderem contar ou antecipar tal desfecho, inexistindo, como tal, ofensa da confiança legítima.

LXXIV. O A., para além de estar a par da mudança que se ia operar no setor e no sistema, também no quadro do processo reprivatizador não viu a sua posição jurídica totalmente ignorada, tendo-lhe sido conferida liberdade para alienar a sua participação social na «E » e assim não ficar "amarrado" à mesma contra aquilo que seria a forma de defesa e prossecução dos seus interesses.

LXXV. Entender que o desenvolvimento do processo de reprivatização só seria válido e legal, respeitando este princípio, se feito nos termos propugnados pelo A., envolve uma leitura desacertada do mesmo e que não se mostra compatível com a tutela da confiança e da segurança jurídica [cfr. art. 02° CRP] ou com a boa-fé [cfr. arts. 266° da CRP, 06.°-A do CPA], nem com aquilo que são traves mestras do nosso ordenamento jurídico-constitucional, subvertendo aquilo que são as bases da soberania nacional e do Estado de direito, mercê do condicionamento ilegítimo que uma tal tese implica no e para o processo legislativo enquanto forma por excelência de prossecução do interesse nacional em cada momento, bem como para aquilo que são os poderes e as competências constitucionais dos órgãos de soberania.

LXXVI. No contexto do regime normativo que se mostra aprovado não é aceitável que a decisão de reprivatização tomada por órgão soberania e o procedimento aplicador da mesma [desenvolvido pelo mesmo órgão, mas agora na veste de órgão superior da Administração] careça, como condição de regularidade e de legalidade para prosseguir, de "autorização" dada através duma deliberação societária vinculativa tomada no quadro de assembleia geral de acionistas da sociedade participada pela empresa alvo da decisão reprivatizadora.

LXXVII. A admitir em tese que existisse no caso uma expetativa legítima e daí tivesse derivado um investimento de confiança sempre improcederia este fundamento de ilegalidade dado falhar o último requisito ou teste cumulativo, porquanto no exercício da ponderação entre interesses contrapostos, levado a cabo de acordo com o princípio da proporcionalidade em sentido estrito, a confiança dos municípios, nomeadamente, do aqui A., na continuidade do quadro normativo vigente não se pode sobrelevar em face das razões de interesse público que motivaram a alteração do quadro normativo neste domínio, termos em que inexiste qualquer ofensa aos princípios da proteção da confiança, da boa-fé ou da proporcionalidade.

LXXVIII. Para além disso e presente tudo o atrás exposto temos que o ato impugnado em nada infringe o princípio da legalidade [cfr. art. 266° da CRP], quer na vertente da precedência da lei como no da prevalência da lei, já que o mesmo se mostra proferido no quadro e ao abrigo do que havia sido disciplinado pelo DL n.° 45/2014, diploma que o antecedeu e lhe conferiu sua base normativa, assim como nos seus termos observa e respeita aquilo que era eé o seu quadro normativo de referência e, bem assim, o demais que lhe é aplicável, na certeza de que inexiste alegação suficiente e demonstração probatória cabal nos autos de que na opção tomada de prossecução do interesse público através daquela decisão jurídico-pública de privatizar, tendo subjacentes os deveres de eficiência e de boa administração, a mesma no contexto não constituísse a forma mais eficiente de promover e satisfazer tal interesse.

LXXIX. Improcede, por conseguinte, de harmonia com o supra exposto toda a argumentação expendida pelo A. conducente às ilegalidades do ato impugnado por alegada infração, nomeadamente, dos arts. 02° e 266° da CRP, 06.°-A do CPA/91 e princípios convocados."

Em face do que ficou referido, não pode deixar de se concluir também pela improcedência da alegada violação de um denominado “princípio da estabilidade jurídica”, dado que esta só é protegida no âmbito dos mencionados princípios da confiança e da segurança jurídica, não tendo, por isso relevância autónoma.
Resulta ainda do exposto, a improcedência da invocada violação dos princípios da prossecução do interesse público e da boa administração. Efectivamente, o interesse público, a cuja prossecução a Administração Pública está obrigada (art.º 266.º, n.º 1, da CRP), é uma noção de conteúdo variável, correspondendo ao que está definido na lei que vigora em cada momento (cf. Freitas do Amaral in “Curso de Direito Administrativo, Vol. II, 2012-2.ª edição, pág. 45) e articula-se com as formas de exercício de poderes públicos por entidades privadas e com os vários esquemas de parceria e coordenação com entidades privadas, justificando-se esta coordenação em nome de outros interesses públicos, como a eficiência, economicidade, profissionalismo ou excelência (cf. Gomes Canotilho e Vital Moreira in “Constituição da República Portuguesa Anotada”, II, 4.ª edição revista, pág. 796). Assim, não é pelo facto de, em obediência à lei e em nome de critérios de eficiência e economia, se permitir a exploração e gestão por entidade privada de um sistema multimunicipal de tratamento de resíduos sólidos que ocorre a alegada violação quando não está demonstrada qualquer actuação concreta em desconformidade com esses critérios.
No que concerne à violação do princípio da autonomia local, entendeu-se no mesmo acórdão proferido no proc. nº. 800/14 que ela não se verificava, pelos seguintes motivos:
“(…)
"LVI. A garantia constitucional da autonomia do poder local tem sido alvo de sucessivas e repetidas pronúncias por parte do Tribunal Constitucional, colhendo-se entre os mais recentes a pronúncia constante do Acórdão n.° 494/2015 [consultável no mesmo endereço].
LVII. Extrai-se da linha fundamentadora deste acórdão, naquilo que releva para a questão em discussão, que a "autonomia local é um dos pilares fundamentais em que assenta a organização territorial da República Portuguesa, tal como resulta do artigo 6°, n.° 1, da Constituição" e que nesse contexto "deve ser associada ao princípio constitucional geral da unidade do Estado e, lida em contexto com a autonomia regional, o princípio da subsidiariedade e a descentralização administrativa", para depois centrando a sua atenção no citado art. 235° da CRP afirmar que se trata de norma que "garante e impõe a existência de autarquias locais em todo o país e «tem um sentido de garantia institucional, assegurando a existência de administração local autárquica autónoma» (Acórdão n.° 296/2013 ...)", já que as "autarquias locais são mais que «mera administração autónoma do Estado», uma vez que «concorrem, pela própria existência, para a organização democrática do Estado. Justificadas que são pelos valores da liberdade e da participação, as autarquias conformam um "âmbito de democracia" (Ruiz Miguel), num sistema que conta precisamente com o princípio básico de que toda a pessoa tem direito de participar na adoção das decisões coletivas que a afetam» (cfr. Acórdão n.° 432/93, n.° 1.2., cfr. também Acórdão n.° 296/2013, n.° 13, e o Acórdão n.° 109/2015, n.° 10)".

LVIII. E avançando na sua linha fundamentadora afirma ainda que "segundo o artigo 3°, n.° 1, da Carta Europeia da Autonomia Local, «o princípio da autonomia local pressupõe e exige, entre outros, o direito e a capacidade de as autarquias regulamentarem e gerirem, nos termos da lei, sob a sua responsabilidade e no interesse das respetivas populações, uma parte importante dos assuntos públicos» (Acórdão n.° 296/2013, n.° 14)" e que, como sustentado no Acórdão n.° 432/93, "esses interesses próprios das populações: «(...) justificam a autonomia e porque a justificam delimitam-lhe o conteúdo essencial. Eles entranham as razões de proximidade, responsabilidade e controlabilidade que proporcionam a auto-organização. O espaço incomprimível da autonomia é, pois, o dos assuntos próprios do círculo local, e «assuntos próprios do círculo local são apenas aquelas tarefas que têm a sua raiz na comunidade local ou que têm uma relação específica com a comunidade local e que por esta comunidade podem ser tratados de modo autónomo e com responsabilidade própria» (...)", na certeza de que a "prossecução dos interesses próprios das populações locais pelas autarquias tem que ser conjugada com a prossecução do interesse nacional pelo Estado. De facto, como o Tribunal Constitucional já afirmou, «como as autarquias locais integram a administração autónoma, existe entre elas e o Estado uma pura relação de supraordenação-infraordenação, dirigida à coordenação de interesses distintos (os interesses nacionais, por um lado, e os interesses locais, por outro), e não uma relação de supremacia-subordinação que fosse dirigida à realização de um único e mesmo interesse - o interesse nacional, que, assim, se sobrepusesse aos interesses locais» (Acórdão n.° 379/96 ...)", sendo que, atento o disposto no n.° 1 do art. 237° da CRP, "o legislador deve balancear a prossecução de interesses locais e do interesse nacional ou supralocal, gozando de uma vasta margem de autonomia", mas que "ao desempenhar essa tarefa, «o legislador não pode pôr em causa o núcleo essencial da autonomia local; tem antes que orientar-se pelo princípio da descentralização administrativa e reconhecer às autarquias locais um conjunto de atribuições próprias (e aos seus órgãos um conjunto de competências) que lhes permitam satisfazer os interesses próprios (privativos) das respetivas comunidades locais» (Acórdão n.° 379/96, n.° 5.2., e Acórdão n.° 329/99, n.° 5.4.)".

LIX. Daí que e continua "na síntese efetuada por Artur Maurício sobre a jurisprudência relativa à garantia da autonomia local: «a autonomia do poder local vem sendo essencialmente concebida como uma garantia organizativa e de competências, reconhecendo-se as autarquias locais como uma estrutura do poder político democrático e com um círculo de interesses próprios que elas devem gerir sob a sua própria responsabilidade» só podendo a «restrição legal desses interesses (...) ser feita com o fim da prossecução de um interesse geral, que ao legislador compete definir, não podendo, de todo o modo, ser atingido o núcleo essencial da garantia da administração autónoma». «Nos âmbitos que considera abertos à concorrência do Estado e das autarquias vem ainda o Tribunal entendendo (...) que são constitucionalmente legítimas compressões da autonomia local, não deixando, contudo, de fazer passar as medidas legislativas ou regulamentares em causa pelo crivo da adequação e da proporcionalidade»", sendo que o "condicionamento ou compressão da autonomia local (nomeadamente dos seus elementos) pode apenas decorrer da lei, quando um interesse público nacional ou supralocal o justificar, e sempre com a ressalva do seu núcleo incomprimível", presente que "«a autonomia municipal não pode afetar a integridade da soberania do Estado. De facto, os poderes locais também são, por natureza, limitados, pois não podem ser exercidos para além do âmbito de interesses (necessariamente locais) que os justificam, não podendo invadir espaços de deliberação ou atuação que devem permanecer reservados à esfera da comunidade nacional» (cfr. M. Lúcia Amaral, A Forma da República, Coimbra Editora, 2012, p. 385)".

LX. Cientes do enquadramento relativo ao princípio e garantia em crise que antecede importa ainda ter presente, de harmonia com o já supra referido, que nos sistemas multimunicipais existentes neste domínio assiste-se e apela-se à intervenção do Estado em função de razões de interesse nacional o que acarreta que os interesses dos municípios, como o do aqui A., não são, por conseguinte, os únicos a serem ou deverem ser tidos em consideração, na certeza, porém, de que aos referidos sistemas multimunicipais é também confiada a prossecução de interesses próprios das populações daqueles municípios.

LXI. Na situação em presença constata-se que no âmbito do procedimento/processo legislativo os municípios, através da sua Associação Nacional, tiveram oportunidade de participar e tutelar/defender os interesses próprios das populações, esgrimindo e aduzindo seus argumentos [cfr, no caso, a referência de que foi/foram "ouvidas a Associação Nacional de Municípios Portugueses ..."inserta nos preâmbulos do DL n.° 92/2013, do DL n.° 96/2014, do DL n.° 45/2014, e do DL n.° 102/2014, este último ainda com audição dos "municípios acionistas da ERSUC ..."].

LXII. Se é certo que a pronúncia dos municípios através de seus órgãos autárquicos num procedimento legislativo ou num procedimento societário não é equivalente, nem é a mesma coisa, tal não significa que o art. 235° da CRP exija ou imponha, para ser cumprida e efetivada a garantia nele inserta, um modelo de participação/pronúncia como o existente no âmbito do direito societário e muito menos que tal modelo tenha de ser transposto para o quadro do processo de reprivatização em questão.

LXIII. Esse entendimento constituiria, pois, um entorse àquilo que é a posição constitucional conferida no nosso ordenamento às autarquias locais e àquilo que são os poderes de participação nos procedimentos perante órgãos nacionais quando estejam em causa a colisão com interesses locais, porquanto o n.° 2 do art. 235° da CRP visa tão-só que a opinião das autarquias não seja desconsiderada, que as mesmas sejam ouvidas, mas sem que detenham uma posição de bloqueio do procedimento decisório por parte dos órgãos nacionais.

LXIV. É certo que não nos poderemos esquecer que nosso sistema constitucional aponta para a conjugação do princípio da unidade do Estado com, nomeadamente, o princípio da autonomia local [cfr. citado art. 06°, n.° 1, da CRP] e que não se pode aceitar que um órgão do poder central tome decisões que afetem interesses locais sem dar a oportunidade às autarquias, através de seus órgãos, de contribuírem para a definição do conteúdo dessas decisões [cfr. art. 235°, n.° 2, da CRP].

LXV. Mas o "equilíbrio eficiente" entre princípio da "descentralização local" e o princípio da "unidade de ação na prossecução do interesse público", tal como é afirmado por Jorge Miranda [in: Manual de Direito Constitucional", Tomo III, 6.a edição, págs. 237/239], no quadro da ideia de unidade estatal não se mostra compatível com a exigência de que as decisões tomadas pelos órgãos centrais no quadro dos sistemas multimunicipais, prosseguindo interesses nacionais, tenham de obter a concordância das autarquias locais num quadro ou ambiência disciplinado pelas regras societárias.

LXVI. Aquilo que é a prossecução do interesse nacional neste domínio não pode ficar refém, não pode ficar capturada pela afirmação dum interesse local, pela exigência dum procedimento societário tido como o único compatível do princípio da autonomia do poder autárquico.

LXVII. Para além disso a tese sustentada pelo A. não poderá ser acolhida porquanto não obstante a intervenção do Estado no setor do saneamento e dos resíduos dever envolver as competências dos municípios nesse domínio temos que o princípio em crise admite claramente restrições desde que respeitados o princípio da proporcionalidade e aquilo que é o seu núcleo essencial.

LXVIII. Ora a operação de reprivatização da «A…» feita no quadro do processo de transformação do setor de resíduos, mormente, da gestão e exploração dos sistemas, transcende os interesses dos municípios, tanto mais que prossegue interesses que se prendem com a própria sustentabilidade económico-financeira dos sistemas multimunicipais tomados no seu conjunto, interesses a serem prosseguidos pelo Governo no âmbito daquilo que são as suas competências nesta matéria e que para serem prosseguidos não carecem do "acordo" dos municípios."

Os AA. invocam ainda a violação dos artºs. 5.º, n.º 3 e 6.º, n.º 3, ambos do DL n.º 114/96, 9.º, dos estatutos da “B………..” e o dever de lealdade entre accionistas, por a transmissão da representação pública (estatal) no capital social da referida concessionária infringir a regra imperativa de 51% do seu capital ter de ser público e por a alteração dos estatutos e das bases de concessão ter de ser exercida, nos termos da lei comercial, em assembleia geral de accionistas, pois o Estado fundador esgotou o seu poder jurisgénico específico, passando a deter apenas os poderes próprios de um acionista.
Mas não têm razão.
Antes de mais, porque o processo de reprivatização da A……….. não implica qualquer transmissão de acções da “B………..” – as quais continuarão a ser detidas pela A………. e pelos municípios – não sendo, por isso, aplicáveis as limitações estabelecidas pelo DL n.º 114/96, de 5/8, para a transmissão de acções dessa concessionária.
Além disso, este diploma legal – que não é uma lei de valor reforçado – pode ser derrogado, nos termos do art.º 7.º, do Código Civil, por outra lei ordinária posterior, pelo que se tem de entender que as suas normas incompatíveis com as do DL n.º 45/2014, de 20/3, foram por este revogadas, motivo por que os preceitos pretensamente violados não eram aplicáveis à data em que foram emitidas as resoluções impugnadas.
De qualquer modo, por aplicação do art.º 35.º, n.º 1, do DL n.º 133/2013, de 3/10 – onde se prevê que as empresas públicas societárias criadas por decreto-lei, como sucedeu com a “B………..”, sejam extintas também por decreto-lei –, nada obstava a que a concessionária em causa deixasse de ser empresa pública em virtude de um decreto-lei, não sendo as suas normas estatutárias que exigiam a presença de capital maioritariamente público que o impediam, dado que, tendo sido aprovadas por decreto-lei, podiam ser afastadas por outro.
Não pode, assim, proceder o entendimento dos AA. que, uma vez aprovados os estatutos por via legislativa, o Estado não tinha o poder de os alterar desse modo, por não ter reservado para si próprio esse poder, pois não existe qualquer razão jurídica para que o legislador fique sujeito a limitações materiais que a Constituição não prevê. Aliás, como se refere no parecer junto aos autos pela entidade demandada (cf. fls. 378 e 379 dos autos), “afirmar que a concretização da reprivatização de uma empresa pública estaria dependente de uma deliberação das assembleias de todas as sociedades comerciais onde aquela tivesse participação maioritária equivaleria a sugerir que os actos legislativos de que a Constituição e a lei-quadro exclusivamente incumbiram concretizar qualquer reprivatização veriam a sua eficácia bloqueada por actos não legislativos”, o que seria inconcebível à luz da CRP, quer do art.º 3.º, n.º 3 – “que determina que são todos os actos jurídico-públicos que veem a sua validade depender da conformidade com a Constituição, e não a Constituição que vê a sua eficácia depender da conformidade com deliberações societárias de empresas públicas” –, quer do art.º 112.º, n.º 5 – “que, mesmo autorizando, à luz de uma leitura especialmente optimista, a modificação de estatutos aprovados por decreto-lei através de deliberações societárias, seguramente não autoriza que o decreto-lei fique impedido de voltar a modificar os estatutos e, curiosamente, fique mesmo impedido de adoptar medidas substantivas quanto a (outras) entidades que detenham participações maioritárias nas empresas cujos estatutos foram previamente aprovados também por decreto-lei”.
Nestes termos, improcedem os aludidos vícios.
Os AA. imputam ainda aos actos impugnados a violação do princípio da subsidiariedade ou da aproximação dos serviços às populações e da participação dos interessados na gestão efectiva dos serviços públicos, previstos nos artºs 6.º e 267.º, nºs. 1 e 2, da CRP, os quais, na sua perspectiva, impõem que os assuntos que possam ser resolvidos pelas autarquias locais não devam ser decididos a nível superior, devendo, por isso, a a área dos resíduos e o seu tratamento e recolha ser confiados às pessoas colectivas públicas de menor âmbito territorial.
Mas também este vício não se verifica.
De acordo com o princípio da subsidiariedade, o Estado só deve assumir as atribuições ou incumbências que outras entidades existentes no seu âmbito e mais próximas das pessoas e dos seus problemas concretos, como os municípios, não possam assumir e exercer melhor e mais eficazmente (cf. Jorge Miranda in “Manual de Direito Constitucional”, Tomo III, 4.ª edição, 1998, pág. 184).
Porém, como nota a entidade demandada, no caso em apreço, além de não se estar perante uma repartição de poderes entre entidades de base territorial da Administração, é manifesto que da reprivatização da A………. não resulta qualquer redução do papel dos municípios, pois estes, se assim o entenderem, mantêm a mesma participação social na concessionária.
Assim, das resoluções impugnadas não resulta a violação dos aludidos princípios.
Quanto à pretensa violação do direito de preferência de que os municípios eram titulares nos termos do art.º 9.º, n.º 3, dos estatutos da “B……….”, importa considerar que o art.º 11.º do DL n.º 45/2014, sob a epígrafe “Opção de venda e direito de preferência”, estabeleceu o seguinte:
“1-No âmbito do presente processo de reprivatização é concedido aos municípios direito de alienação das participações sociais por aqueles detidas no capital das entidades gestoras de sistemas multimunicipais nas quais a A……….. é acionista.

2-A alienação referida no número anterior está sujeita ao exercício de direito de preferência por parte de municípios que detenham participação no capital da mesma entidade gestora e que tenham decidido não alienar as respetivas ações.


3-Os direitos previstos nos números anteriores prevalecem sobre quaisquer outros direitos com o mesmo objeto que tenham natureza estatutária ou contratual, os quais não se aplicam à dita alienação ou ao exercício do direito de preferência.


4-Os direitos previstos no presente artigo são exercidos nos termos e condições, designadamente de prazo e de preço a fixar no caderno de encargos e, em qualquer caso, desde que se concretize a transmissão de ações representativa do capital da A………. para o concorrente vencedor”.


Assim, porque esta norma especial afastou o direito de preferência de natureza estatutária no âmbito do processo de reprivatização da A………., tem de se concluir que as resoluções impugnadas, que se integram nesse processo, eram insusceptíveis de violarem tal direito (cf., neste sentido, o citado Ac. deste STA de 11/5/2017 – Proc. n.º 854/14).


Alegam, finalmente, os AA. que a adopção do modelo de privatização da A………, com a consequente alteração dos estatutos das sociedades concessionárias e das bases de concessão, sem que os seus accionistas deliberem as alterações nos termos da lei comercial, irá implicar o incumprimento do Acordo Parassocial (cf. cláusulas 2.ª, 3.ª e 5.ª) assinado por todos os accionistas da “B………..”, viola as cláusulas 4.ª, 15.ª, 16.ª e 41.ª do contrato de concessão celebrado entre a “B……….” e o Estado Português – dado que qualquer alteração contratual implicava, nos termos daquela cláusula 41.ª, que se “chamassem” os municípios – e poderia afectar os contratos de entrega e recepção de RSU e de recolha selectiva para a valorização, tratamento e destino final, celebrados entre os municípios aderentes e as concessionárias dos sistemas multimunicipais.

Porém, em rigor, não é afirmado que os actos impugnados tenham uma repercussão directa e que, em consequência, alterem as referidas cláusulas do Acordo Parassocial, sendo irrelevante para concluir pela alegada violação a mera previsão dos AA. que, passando o acionista dominante a ser uma sociedade comercial privada, quererá alterar tal Acordo. E o mesmo se diga quanto à violação dos contratos de entrega e recepção de RSU e de recolha selectiva para a valorização, tratamento e destino final celebrados entre os municípios aderentes e as concessionárias dos sistemas multimunicipais que, segundo os AA., “poderão ser afectados”, também no futuro.

A mesma conclusão não pode deixar de se extrair no que respeita ao contrato de concessão, uma vez que os actos impugnados não alteram as cláusulas pretensamente violadas, por não se repercutirem sobre o prazo desse contrato, nem sobre as tarifas aludidas nas suas cláusulas 15.ª e 16.ª, não podendo, em consequência, determinar o desrespeito da cláusula 41.ª, sendo também aqui irrelevante a circunstância de os AA. preverem que, no futuro, essas alterações serão efectuadas.

Nestes termos, não se verificando nenhum dos vícios que os AA. imputam aos actos impugnados, terá de improceder a presente acção administrativa especial.

4. Pelo exposto, acordam em julgar a acção totalmente improcedente, absolvendo os RR. do pedido.


Sem custas, por isenção dos AA. [art.º 4.º, n.º 1, alínea g), do RCP], sem prejuízo do disposto nos nºs. 6 e 7 do mesmo art.º 4.º.

Lisboa, 1 de Fevereiro de 2018. – José Francisco Fonseca da Paz (relator) – Maria do Céu Dias Rosa das Neves – António Bento São Pedro.