Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:043845
Data do Acordão:11/11/2003
Tribunal:2 SUBSECÇÃO DO CA
Relator:POLÍBIO HENRIQUES
Descritores:CONSELHO SUPERIOR DOS TRIBUNAIS ADMINISTRATIVOS E FISCAIS.
ESTATUTO DOS TRIBUNAIS ADMINISTRATIVOS E FISCAIS.
INCONSTITUCIONALIDADE.
Sumário:I - A Lei nº 29/83, de 8.9, não autorizava o legislador do DL nº 129/84, de 17.4 (ETAF) à criação do CSTAF e sua regulamentação, matéria que se inscreve no estatuto dos juízes e é, por isso, da reserva absoluta da AR.
II. Tal diploma (DL 129/84) sofreu, porém, profundas alterações através da Lei nº 4/86, de 21.3, sendo que, com esta, a Assembleia da República assumiu a regulamentação que aquele outro diploma havia introduzido na ordem jurídica e, por via disso, pelo menos a partir da publicação da Lei nº 4/86, de 21.3, ficou sanada a inconstitucionalidade de que enfermava o DL nº 129/84.
Nº Convencional:JSTA00059849
Nº do Documento:SA120031111043845
Data de Entrada:05/05/1998
Recorrente:A...
Recorrido 1:CONSELHO SUPERIOR DOS TRIBUNAIS ADMINISTRATIVOS E FISCAIS
Votação:UNANIMIDADE
Meio Processual:RECLAMAÇÃO.
Objecto:AC SUBSECÇÃO DO STA.
Decisão:INDEFERIMENTO.
Área Temática 1:DIR ADM GER - FUNÇÃO PUBL DISCIPLINAR.
Legislação Nacional:L 29/83 DE 1983/09/08 ART1 ART2.
CONST89 ART219 N2.
DL 129/84 DE 1984/04/17 ART94 ART99.
CPC96 ART267 ART268 ART272 ART681 N5.
Referência a Doutrina:LEBRE DE FREITAS CÓDIGO DO PROCESSO CIVIL ANOTADO VI PAG511.
Aditamento:
Texto Integral: Acordam na Secção do Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo
1.
Por acórdão de 2000.10.18, a fls. 347 e segs., foi negado provimento ao recurso contencioso de anulação interposto pelo recorrente A... da deliberação do Conselho Superior dos Tribunais Administrativos e Fiscais que lhe aplicou a pena de aposentação compulsiva.
Em 2000.11.02, veio o mesmo, através do seu advogado constituído, interpor recurso para o Pleno da Secção, o qual foi admitido, a processar como o agravo cível e a subir imediatamente nos próprios autos e com efeito suspensivo, pelo despacho de fls. 426, proferido pelo relator em 2000.11.10.
Por requerimento entrado no Tribunal em 2000.12.13, assinado apenas pelo próprio, o recorrente veio “apresentar desistência da presente instância”
Este requerimento, como os demais que lhe sucedem, são assinados apenas pelo recorrente A..., invocando para o efeito o disposto no art. 19º da Lei nº 21/85 de 30.7.
Em 2000.12.20 o relator proferiu o seguinte despacho:
“O recorrente, ele próprio, Dr. A..., veio dentro do prazo das alegações apresentar, pelo requerimento de fls. 429, a “desistência da presente instância”.
A instância que neste momento está em causa é a do recurso.
Assim, e porque nada obsta, declaro, nos termos do art, 287º, al. d) do Código de Processo Civil “ex vi” dos arts. 1º e 102º da L.P.T.A., extinta a instância do recurso interposto a fls. 425 e admitido a fls. 426”
Em 2001.01.01 foi remetido expediente para notificação do recorrente, na pessoa do mandatário constituído e, por expediente enviado em 2001.01.01 foi notificado o próprio recorrente.
Por requerimento entrado em 2001.01.01, o recorrente veio arguir a nulidade jurídica do acórdão que negou provimento ao recurso, bem como dos despachos do relator de fls. 426 e 430.
O primeiro foi o que admitiu o recurso jurisdicional e o segundo o que julgou extinta a respectiva instância.
Em tal requerimento, que se tem por reproduzido, aduz, em síntese, o seguinte:
O licenciado relator subscritor das “decisões” em pauta, não é e nunca foi juiz do STA. Na verdade, o acto que declarou nomeá-lo é inexistente ou, pelo menos, nulo por vários motivos, entre os quais os seguintes:
1- Consubstancia crime de falsificação
2- Consubstancia crime de abuso do poder
3- Não foi precedido de concurso público e
4- Não é acto imputável à Administração Pública.
E, depois de se afirmar que os pontos 1, 2 e 3 serão desenvolvidos em providência cautelar cível a instaurar no Palácio da Justiça de Lisboa, passa-se a analisar o motivo referido em 4.
E neste âmbito sustenta-se em síntese o seguinte:
O “juiz” em questão foi nomeado por entidade que, tal como foi criada pelo ETAF em 1984, é juridicamente inexistente – o “Conselho Superior dos Tribunais Administrativos e Fiscais”.
É que o ETAF – constituído pelo DL nº 129/84, de 17 de Abril – foi emitido pelo Governo, “no uso de autorização legislativa conferida pela Lei nº 29/83 de 8 de Setembro”. Mas ...” já porque não indica a sua extensão”, já porque não indica ou, pelo menos, não densifica o “seu sentido”, a referida Lei nº 29/83, nos seus artigos 1º a 4º, violou as disposições conjugadas do nº 1, al. q) e do nº 2 do artigo 168º da Constituição, versão de 1982”
Assim, por consequência, todo o ETAF é inconstitucional e, por isso, também os arts. 1º a 122º.
Mas, ainda que assim não fosse – mas é – não padecendo o ETAF no seu todo de “inconstitucionalidade consequente” sempre o CSTAF por ele criado seria órgão inexistente.
Na verdade, a entidade denominada “Conselho Superior dos Tribunais Administrativos e Fiscais”, que o ETAF pretendeu criar ao abrigo da referida autorização legislativa, surge como “órgão de gestão e disciplina dos juizes”.
Só que a referida Lei nº 29/83 nada autorizou em matéria de “estatuto de juizes”, designadamente a sua submissão a um “Conselho Superior dos Tribunais Administrativos e Fiscais” ou a um seu “Presidente”.
Não há aqui, quanto a este ponto, qualquer autorização legislativa.
Daí a inconstitucionalidade.
E nem se verificou, depois, a ratificação pela Assembleia da República mediante a Lei nº 4/86 de 21.3, pois que nada havia a ratificar. A ratificação é inexistente ou, pelo menos, nula.
O vício está a montante, na autorização legislativa, pelo que resultaria violado o processo legislativo.
De resto, no caso, a autorização não era possível, pois a matéria, estatuto dos juizes, sua gestão e disciplina era e é da reserva absoluta da AR.
Assim, as decisões do pretenso “Conselho Superior dos Tribunais Administrativos e Fiscais “não são condutas imputáveis a órgão da Administração. Por isso, tais “deliberações”, enquanto “actos administrativos” são inexistentes (art. 137º, nº 1 e 139º, al. a) do Código do Procedimento Administrativo) ou, no mínimo, nulas.
Logo, a deliberação que declarou nomear o autor do “despacho” juiz do Supremo Tribunal Administrativo é inexistente ou, pelo menos, nula.
Por isso se requer:
“a) – Seja o “acórdão” e os “despachos” referidos declarados juridicamente inexistentes.
b) – Seja notificada ao recorrente a identidade do subscritor dessas “decisões” com vista a requerer ao CSTAF a documentação necessária à interposição de recurso contencioso do acto que declarou nomear o seu subscritor “juiz” do Supremo Tribunal Administrativo e à instauração prévia da providência de suspensão de eficácia, bem como à imediata instauração de providência cível, nos termos do art. 381º e seguintes do Código do Processo Civil, contra o Exmº Subscritor das referidas “decisões”.
Em 2001.01.01 o relator, por despacho de fls 443, indeferiu o requerido na alínea b).
Em 2001.01.29, o recorrente veio reclamar subsidiariamente, sem prejuízo do que já antes havia requerido, do “despacho” do relator de 2000.12.20, nos termos que a seguir se sintetizam:
- o requerimento que apresentou foi de “desistência da presente instância”, isto é, do processo. Não quis apresentar requerimento da desistência do “recurso”.
Mas, o que foi declarado foi a extinção da instância de recurso, contra a lei (art. 287º, al. d) do Código de Processo Civil) e com exorbitância das funções de um juiz de 1ª instância -
Do mesmo despacho e ainda subsidiariamente, sem prejuízo do já requerido, veio o recorrente a interpor recurso para o Pleno da Secção.
Pelo acórdão de fls. 512/516, de 2002.03.14 foi apenas ordenada “a notificação do recorrente e do seu advogado para este ratificar, no prazo de 15 dias, as peças submetidas à apreciação da conferência, sob pena de não produzirem os seus efeitos, e que são os requerimentos de fls. 435 a 442 e de fls. 448/449”.
Pelo requerimento de fls. 520 o mandatário constituído veio “ratificar para todos os devidos e legais efeitos, as peças submetidas à conferência e que são os requerimentos de fls. 435 a 442 e fls. 448 a 449”.
Exercido que foi sempre contraditório o MºPº teve vista nos autos opinando pela improcedência das questões.
Colhidos os vistos dos Exmºs Adjuntos vêm os autos de novo à conferência:
Cumpre decidir.
2.
2.1. O reclamante vem arguir a nulidade do acórdão de fls. 347- 420, do despacho de fls. 426 que admitiu o recurso por ele interposto para o Pleno e ainda do despacho de fls. 430 que julgou extinta, por desistência, a instância do recurso interposto.
Todas as arguições estão alicerçadas no argumento que o relator subscritor de tais decisões não é, nem nunca foi juiz do STA, uma vez que o acto que o nomeou é nulo ou inexistente por provir de um órgão – o Conselho Superior dos Tribunais e Administrativos - que é nulo ou inexistente por ter sido criado por um diploma, também ele nulo ou inexistente – ETAF – por ter sido publicado ao abrigo da Lei de autorização nº 29/83 sem credenciação constitucional bastante para regular, em geral, toda a matéria que constitui o ETAF e em especial o estatuto dos magistrados.
Ora, a esta questão de inconstitucionalidade do ETAF e do CSTAF respondeu já o acórdão de fls. 327- 420, nos termos que aqui se transcrevem e reiteram:
“(...) A Lei de autorização Legislativa nº 29/83, que serve de credencial ao Dec-Lei nº 129/84 (Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais), não habilita, do nosso ponto de vista, e como sustenta a recorrente, à criação do CSTAF e à sua regulamentação, o que se inscreve no estatuto dos magistrados.
Têm o seguinte teor os arts. 1º e 2º daquela Lei nº 29/83, que são os que aqui importam:
Artigo 1º
É concedida autorização legislativa ao Governo para legislar nas seguintes matérias:
a) Revisão do processo do contencioso administrativo, incluindo o processo destinado a efectivar o disposto no art. 268º, nº 3, in fine, da Constituição;
b) Reformulação da organização e da competência dos tribunais administrativos, tendo em conta as novas alterações a introduzir em matéria de contencioso;
c) Revisão do processo nos tribunais fiscais;
d) Reformulação da orgânica e da competência dos tribunais fiscais.
Artigo 2º
A legislação elaborada nos termos do artigo anterior tem em vista permitir um mais eficaz funcionamento dos tribunais administrativos e fiscais e uma maior protecção dos direitos e interesses legítimos dos cidadãos, permitindo ainda aos tribunais um mais amplo acesso às relações administrativas e fiscais controvertidas”
Como se vê, nem directa nem indirectamente há uma alusão ao estatuto dos juizes (...).
E tudo isto sai reforçado pela posição que o próprio Ministro da Justiça de então assumiu na AR, na altura da apreciação da respectiva proposta, ao esclarecer que na mesma não estava a ser considerado o estatuto dos magistrados em geral ou em especial, matéria essa que seria objecto de uma proposta de lei ou de um pedido de autorização legislativa (DAR, I Série, nº 23, de 16.7.83, pág. 1025).
Mas há que atentar em que o Dec- Lei nº 129/84 foi ratificado com emendas pela Lei nº 4/86, que lhe introduziu significativas alterações.
Vejamos, a propósito, o acórdão de 20.1.98 do Pleno da 1ª Secção (rec. nº 34 426) onde a dado passo se escreveu:
“Invoca, de seguida, o recorrente a inconstitucionalidade orgânica do DL nº 129/84 que aprovou o ETAF por falta de credencial autorizativa bastante, vício que se comunicaria ao acórdão recorrido.
Aceitando a doutrina acolhida no acórdão do TC nº 472/95, publicado no DR-I-A de 6/9/95, não restam dúvidas de que se inseria na reserva absoluta de competência da Assembleia da República legislar em matéria de estatuto de juízes, como titulares de órgãos de soberania (art. 167º, alínea g) da CRP, na redacção dada pela 1ª revisão).
Tratava-se, assim, de poder indelegável, pelo que a Lei nº 29/83 não seria título bastante para legitimar o Governo a produzir o ETAF, na parte que conformasse o estatuto dos juízes.
Omite, porém, o recorrente o facto de esse diploma ter sido “ratificado” com emendas pela Assembleia da República, através da sua Lei nº 4/86, de 21 de Março, introduzindo nela importantes e profundas alterações, designadamente em matéria que se pode qualificar como respeitante ao estatuto dos juízes, como é o caso dos arts. 99º (que regula a composição do CSTAF) e 94º (que dispõe sobre as formas de recrutamento de juízes do STA).
Ora, considerando o número e sentido das alterações, não parece ousado afirmar que o ETAF veio a ser assumido, com a Lei nº 4/86 pela Assembleia da República, apagando-se, ao menos a partir de então, a inconstitucionalidade de que enfermava (...)”
(...) E aqui está a resposta, também, para a questão levantada pelo recorrente quanto à convalidação, ou não, do Dec-Lei nº 129/84 através da referida ratificação (...)
(...) a AR, mercê das profundas alterações introduzidas naquele diploma por via da Lei nº 4/86, assumiu-o como seu.
Trata-se de uma posição em boa medida consonante com a de Gomes Canotilho e Vital Moreira na sua “Constituição da República Portuguesa, Anotada”, 3ª edição, pág. 698. Aí se diz com efeito, e entre o mais, que “no caso de serem aprovadas alterações isso não significa que a AR adopte como seu o diploma na parte não alterada, salvo se ele for globalmente renovado e reproduzido na lei de alteração da AR”.
É certo que aqui não ocorreu a republicação do diploma, mas esse índice, mais de ordem formal, não será de molde a obstar àquela assunção, assim se sanando o vício orgânico.
Não vemos, pois, razão para abandonar o caminho traçado no supracitado acórdão do Pleno (...).
(...) Mas há mais, o legislador constituinte de 1989 reconheceu o Conselho Superior através do art. 219º nº 2 (...)”
Soçobram, assim, as invocadas razões de inconstitucionalidade que são o suporte da alegação que o acto que nomeou o relator “não é acto imputável à Administração Pública” e, por consequência, improcede o pedido em relação a todas as nulidades arguidas.
2.2. O recorrente contencioso reclama ainda para a conferência do despacho de fls. 430 cujo teor é o seguinte:
“O recorrente, ele próprio, Dr. A..., veio, dentro do prazo das alegações apresentar pelo requerimento de fls. 429 a “desistência da presente instância”.
A instância que neste momento está em causa é a do recurso.
Assim, e porque nada obsta, declaro nos termos do art. 287º, al. d) do C.P.C. “ex vi” dos arts. 1º e 102º da LPTA, extinta a instância do recurso interposto a fls. 425 e admitido a fls. 426”.
Notifique.”
O reclamante discorda desta decisão, alegando o seguinte:

O recorrente:
1- Apresentou requerimento de «desistência da presente instância», isto é, do processo.
2- Não quis apresentar requerimento de desistência do «recurso»
3- E efectivamente não apresentou requerimento de desistência do «recurso»
4- Não quis sequer mencionar a palavra «recurso»
5- E efectivamente não mencionou a palavra «recurso»
6- Não quis aludir ao que constava de fls. 425 ou a fls. 426
7- E efectivamente não aludiu ao que constava de fls. 425 e 426.

Porém, o douto «despacho»:
1 – Não declarou «extinta a instância»
2 - Declarou, isso sim, «extinta a instância de recurso»
3 – Foi proferido pelo juiz de 1ª instância

O que fez:
1- Contra a vontade do recorrente
2- Contra a declaração expressa do recorrente
3- Contra a lei, que não prevê qualquer desistência da «instância de recurso», mas a desistência do requerimento do recurso
4- Contra os invocados «termos do art. 287º, al., d) do C.P.C.» que prevê a desistência da instância, isto é, do processo, e não do recurso
5- Contra a lei, que não deixa que um juiz de 1ª Instância, como no caso, suba na sua competência hierárquica e assuma as funções do juiz superior, declarando extinta a instância de recurso, sem aí exercer quaisquer funções.
Deste modo
Requer que «sobre a matéria do “despacho” recaia um acórdão» (artigo 700º, nº 3 do C.P.C), decidindo em conformidade com a lei e a vontade do recorrente.”
Fixemos, antes de mais, o conteúdo do requerimento. São estes os seus precisos termos, que se transcrevem:
“A..., recorrente nos autos em epígrafe, em que é recorrido o «Conselho Superior dos Tribunais Administrativos e Fiscais» vem apresentar desistência da presente instância.
Pede deferimento.”
O relator interpretou este requerimento como manifestação da vontade do recorrente de desistir do recurso jurisdicional. O reclamante não aceita esta interpretação, dizendo, como vimos, que a sua intenção era desistir do processo e não apenas do recurso, sendo que, por via disso, nunca usou a palavra «recurso».
Vejamos.
A lei distingue entre desistência da instância e desistência do recurso, submetendo-as a regimes jurídicos diferenciados. A desistência da instância depende da aceitação do réu desde que seja requerida depois do oferecimento da contestação (art. 296º nº 1 do C.P.C.) e faz cessar o processo instaurado, extinguindo a instância (arts. 295º nº 2 e 287º al. d) do C.P.C.). Do recurso interposto pode o recorrente, “por simples requerimento desistir livremente” (art. 681º nº 5 C.P.C.) e a desistência tem como consequência a consolidação da decisão recorrida, com o respectivo trânsito em julgado.
Sendo figuras distintas, é determinante saber se o reclamante quis desistir da instância iniciada com a petição do recurso contencioso de anulação ou, tão-só, do recurso jurisdicional interposto do acórdão de fls. 347- 420.
No requerimento de fls. 429 faz-se apelo apenas ao conceito de instância. Ora, é duvidosa a questão de saber se o exercício de uma via de recurso provoca a abertura de uma nova instância.
Porém, adiante-se, a melhor interpretação é a de que, no nosso ordenamento processual, a interposição de um qualquer recurso ordinário não implica o início de uma nova instância.
Atentemos no capítulo II, do C.P.C., com a epígrafe “da instância” e em especial aos artigos 267º, 268º e 272º que sugerem, com muita força, que a interposição de recurso ordinário não faz desaparecer a instância primitiva. Na verdade, a instância inicia-se pela interposição da acção e fixa-se com a citação do réu (art. 267º), deve manter-se a mesma quanto às pessoas, ao pedido e à causa de pedir (art.268º), mas o pedido e a causa de pedir podem ser alterados ou ampliados em qualquer altura, em 1ª ou 2ª instância, salvo se a alteração ou ampliação perturbar inconvenientemente a discussão e julgamento do pleito.
Em relação a estas normas, escreveu Alberto dos Reis, in Código do Processo Civil Anotado, vol. V, p. 383:
“(…) Que se deduz daqui? Que a instância, iniciada com a propositura da acção e estabilizada com a citação do réu, tem de manter-se imutável, em princípio, enquanto a acção estiver pendente, quer a pendência seja no tribunal perante o qual foi intentada, quer em tribunal superior para o qual haja transitado por efeito de recurso. Com a passagem do processo de tribunal inferior para o tribunal superior em consequência de recurso não se dissolve a instância instaurada, formando-se outra nova; persiste e mantém-se a mesma instância”
(…) O procedimento do recurso representa uma nova fase ou um novo ciclo do processo, mas não um novo processo ou uma nova relação processual. Quer dizer, a interpretação do recurso dá origem ao fenómeno da pluralidade de procedimentos dentro da mesma relação processual (…)”
Ainda de acordo com a lição do mesmo Autor, quando o art. 287º al. a) declara que a instância se extingue pelo julgamento quer referir-se ao julgamento final e definitivo que dá origem ao caso julgado (vide, no mesmo sentido, Lebre de Freitas, in Código de Processo Civil Anotado, vol. I, p. 511 e Miguel Teixeira de Sousa, “Estudos Sobre o Novo Processo Civil”, p. 215)
Dito isto, retomemos os termos do requerimento do ora reclamante. Ora, por um lado, é certo que nele se não faz qualquer alusão ao recurso jurisdicional. Mas, por outro lado, com a utilização da expressão “presente instância”, ao não declarar simplesmente que apresentava desistência da instância, surge a perplexidade, podendo inculcar-se a ideia de que, na óptica do requerente, haveria dualidade processual e que, nessa perspectiva, queria desistir da instância que estava a correr termos, isto é do recurso jurisdicional.
Sucede, porém, que o requerente esclarece agora, em sede de reclamação, que a sua vontade foi, e é, a de desistir da instância do recurso contencioso e não do recurso jurisdicional. E, sendo a desistência uma forma de auto-composição da lide, um “negócio processual unilateral através do qual o autor renuncia à obtenção da tutela jurisdicional requerida” (palavras de Miguel Teixeira de Sousa , in “Estudos Sobre o Novo Processo Civil”, p. 204), a declaração haverá de valer de acordo com vontade real do declarante sem que se descortine justificação razoável para que, na determinação daquela vontade, não possam ser tidos em conta os esclarecimentos ora prestados pelo requerente, desde que o sentido correspondente à vontade real ora proclamada pelo reclamante tenha, também ele, um mínimo de apoio na letra do requerimento (vide arts. 236º nº 2 e 238º nº 1 do C. Civil).
No caso em apreço, como vimos, o texto do requerimento, poderia comportar dois sentidos. Um deles, o que lhe foi atribuído pelo relator no despacho reclamado. O outro, o de que o requerente apresentou a sua desistência da instância do recurso contencioso, que é unitária e persiste ainda, não obstante a interposição do recurso jurisdicional. E é com este último sentido, que corresponde à vontade real, definitivamente esclarecida, do requerente, que o requerimento em causa deve valer.
Assim, revoga-se o despacho do relator proferido a fls. 430.
3.
Pelo exposto acordam:
a) em indeferir as nulidades arguidas;
b) em revogar despacho do relator, de fls. 430 que julgou extinta a instância do recurso jurisdicional interposto;
c) em ordenar a notificação da autoridade recorrida para, em 10 dias, se pronunciar, nos termos e para os efeitos previstos no art. 296º nº 1 do CPC, em relação ao requerimento de fls. 427 no qual o ora reclamante formalizou a desistência da instância.
Custas a cargo do requerente, na parte relativa às nulidades cuja arguição foi desatendida.
Taxa de justiça: 50 € (cinquenta euros)
Lisboa, 11 de Novembro de 2003
Políbio Henriques – Relator – Adelino Lopes – António Madureira –