Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:02247/15.6BELRS
Data do Acordão:02/07/2024
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:ANABELA RUSSO
Descritores:EXECUÇÃO FISCAL
MUNICÍPIO
COMPETÊNCIA
Sumário:I - A cobrança das dívidas aos municípios por custos por estes suportados com a realização de obras coercivas ao abrigo do Regulamento Geral das Edificações Urbanas é a efectuar mediante execução fiscal (artigo 108.º, n.º 2).
II - À data em que foi instaurada a execução fiscal (2010) a competência para instaurar e tramitar a execução fiscal por dívidas aos municípios i) era do município, através dos seus serviços de execuções fiscais, no que respeita às dívidas provenientes de taxas, encargos de mais-valias e outras receitas de natureza tributária que aquelas devam cobrar, designadamente os tributos por eles administrados e ii) era da Administração Tributária, através do serviço de finanças da área da residência do devedor, nos casos em que a dívida não tenha natureza tributária [conforme, conjugadamente, artigos 7.º do Decreto-Lei n.º 433/99, de 26 de Outubro, que aprovou o CPPT, 56.º, n.º 3, da Lei n.º 2/2007, de 15 de Janeiro (Lei das Finanças Locais), vigente na data da instauração da execução, e 155.º, n.º 2, do CPA à data em vigor].
III - Em 2010, os serviços do município não tinham competência para instaurarem execução fiscal para cobrança coerciva de uma dívida da natureza referida em I.
Nº Convencional:JSTA000P31902
Nº do Documento:SA22024020702247/15
Recorrente:CÂMARA MUNICIPAL DE LISBOA
Recorrido 1:AA
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral:
ACÓRDÃO

1. RELATÓRIO

1.1. A Representação da Fazenda Pública no Município de Lisboa, inconformada com a sentença proferida pelo Tribunal Tributário de Lisboa que absolveu a Oponente AA da instância executiva no processo de execução fiscal n.º ...40, da Divisão de Execuções Fiscais, Departamento de Apoio à Atividade Tributária, da Direção Municipal de Finanças, da Câmara Municipal de Lisboa, para o qual foi citada na qualidade de cabeça de casal da herança de BB, e no qual se encontram em cobrança coerciva montantes referentes a «Obras Coercivas», no valor global de 114.867,55, interpôs recurso para este Supremo Tribunal Administrativo.

1.2. Nas alegações de recurso apresentadas, formulou a Recorrente as seguintes conclusões:

1.ª A Sentença objeto dos presentes autos padece de erro de direito, na interpretação das normas que delimitam o exercício pelas autarquias locais de poderes tributários, designadamente do art. 148.º, n.º 2, alínea a) do CPPT e do art. 155.º do CPA, em vigor à data dos factos, e do art. 7.º do DL n.º 433/99, de 26 de Outubro, quanto à possibilidade de instaurarem e tramitarem execuções fiscais, apenas para a cobrança das receitas de natureza tributária, do que resultaria a incompetência das mesmas, relativamente às receitas de natureza distinta, como as decorrentes da realização de obra coerciva, por não revestirem natureza tributária, entendimento que não se enquadra no espírito do sistema jus tributário nacional;

2.ª Decorre da Sentença Recorrida que a execução fiscal instaurada pelo Município de Lisboa tem por título executivo certidão de dívida por dívida exequenda respeitante aos custos suportados pelo Município com a realização coerciva de demolição do prédio sito na Calçada ..., ao abrigo do art. 64.º, n.º 5, alínea c) da L n.º 169/99, de 18 de Setembro e do art. 89.º, n.º 3 do DL n.º 555/99, de 16 de Dezembro (ambos aplicáveis ao tempo da intervenção) – 1., 2., 3., 4. e 5. dos factos assentes;

3.ª O art. 64.º, n.º 5, alínea c) da L n.º 169/99, de 18 de Setembro, que estabelecia o quadro de competências, assim como o regime jurídico de funcionamento, dos órgãos dos municípios e das freguesias, atribuía competência à câmara municipal para “ordenar, precedendo vistoria, a demolição total ou parcial ou a beneficiação de construções que ameacem ruína ou constituam perigo para a saúde ou segurança das pessoas”; no âmbito do dever de conservação do edificado pelos proprietários, o art. 89.º, n.º 3 do DL n.º 555/99, de 16 de Dezembro, que estabelece o Regime Jurídico da Urbanização e da Edificação (RJUE), permite à câmara municipal “oficiosamente ou a requerimento de qualquer interessado, ordenar a demolição total ou parcial das construções que ameacem ruína ou ofereçam perigo para a saúde pública e para a segurança das pessoas”;

4.ª De acordo com o RJUE, as quantias relativas às despesas com o custo da intervenção coerciva, em substituição do proprietário do prédio, são de conta do infrator e, na falta de pagamento voluntário, as mesmas são cobradas judicialmente em processo de execução fiscal, servindo de título executivo a certidão, passada pelos serviços competentes, comprovativa das despesas efetuadas, cfr. n.ºs 1 e 2 do art. 108.º;

5.ª De acordo com o art. 148.º do CPPT, o processo de execução fiscal abrange, nos casos e termos previstos na lei, a cobrança de outras dívidas ao Estado e a outras pessoas colectivas de direito público que devam ser pagas por força de acto administrativo [alínea a) do n.° 2], podendo, igualmente, proceder, por intermédio de execução fiscal, à cobrança coerciva de dívidas que não revestem natureza tributária, como é o caso da dívida exequenda dos autos;

6.ª As autarquias locais integram o conceito lato de administração tributária, detendo competência para a instauração e tramitação de execuções fiscais, sem restrição quanto ao tipo de receita, mas à necessidade de previsão legal de tal possibilidade, constatação que resulta da interpretação sistemática das normas que prevêem tais realidades e, bem assim do espírito do sistema jus tributário nacional;

7.ª Encontra-se expressamente prevista na lei a cobrança coerciva do custo de tal intervenção, enquanto dívida pecuniária decorrente da prática de acto administrativo – determinação da execução das obras e, posteriormente, da sua exigência ao proprietário e beneficiário das mesmas. Não tendo a Oponente procedido ao pagamento voluntário do valor da obra, no prazo concedido para o efeito, foi instaurado o processo de execução fiscal;

8.ª Por outro lado, de acordo com o art. 149.º do CPPT, “Considera-se, para efeitos do presente Código, órgão da execução fiscal o serviço da administração tributária onde deva legalmente correr a execução ou, quando esta deva correr nos tribunais comuns, o tribunal competente.”. Acrescenta o n.º 1 do art. 150.º do mesmo Código que é competente para a execução fiscal a administração tributária, ditando o n.º 1 do art. 152.º do mesmo Diploma, sob a epígrafe “Legitimidade dos exequentes”, que “Tem legitimidade para promover a execução das dívidas referidas no artigo 148.º o órgão da execução fiscal.”;

9.ª Do art. 7.º do Diploma Preambular que aprovou o CPPT, o DL n. º 433/99, de 26 de Outubro, resulta a integração dos Municípios na Administração Tributária, sempre que estiver em causa o exercício de poderes tributários, concedendo aos mesmos, competência para procederem a cobrança coerciva, por intermédio de execução fiscal. Ademais, do mesmo normativo decorre que a competência para a cobrança coerciva, no âmbito das autarquias locais, pertence ao órgão executivo, in casu, do Município, sendo certo que, no CPPT, entre as competências atribuídas a órgãos periféricos locais, inclui-se a promoção da execução fiscal, cfr. os mencionados arts. 149.º e 152.º, n.º 1;

10.ª A LGT consagra, igualmente, a expressa integração das autarquias locais na administração tributária, segundo o n.º 3 do seu art. 1.º, em cujos termos “Integram a administração tributária (…) a Autoridade Tributária e Aduaneira, as demais entidades públicas legalmente incumbidas da liquidação e cobrança dos tributos, o Ministro das Finanças ou outro membro do Governo competente, quando exerçam competências administrativas no domínio tributário, e os órgãos igualmente competentes dos Governos Regionais e das autarquias locais.”;

11.ª E não se diga que não é o facto de o mencionado art 7.º, n.º 1 do DL n.º 433/99, de 26 de Outubro, referir-se a tributos que afasta a competência das autarquias locais para a cobrança coerciva de receitas de natureza não tributária, porquanto tal norma não pode ser interpretada per si, sem integração no demais ordenamento jus tributário e, bem assim, nos poderes constitucionais e legais cometidos aos municípios, in casu, em sede de execução coerciva de obras, e consequentemente, da cobrança do seu custo;

12.ª Do mesmo modo, é certo que a Lei das Finanças Locais, tanto na versão que então vigorava - L n.º 2/2007, de 15 de Janeiro -, como na atualmente em vigor, evidencia a referência à cobrança coerciva de dívidas de natureza tributária. Ainda assim, não deverá assentar-se em normas isoladas a caracterização sistemática do elenco de competências das autarquias locais, que o legislador, aliás, vem a ampliar, realidade que forçosamente deverá ser considerada pelo intérprete e aplicador do Direito;

13.ª Na sequência de tal orientação, e no sentido do esclarecimento das competências atribuídas às autarquias no âmbito tributário e, concretamente, da execução fiscal, deverá considerar-se a alteração introduzida pelo legislador no CPA, sintomática do intuito que subjaz, tanto relativamente ao alcance da norma, quanto ao fim pretendido pelo legislador;

14.ª Com efeito, o CPA, na versão aplicável à data dos factos em causa nos autos, no art. 155.º, remetia para os termos do processo de execução fiscal, regulado no CPPT, a cobrança coerciva de prestações pecuniárias, devidas por força de acto administrativo a pessoas coletivas públicas (n.º 1), que a Sentença a quo enquadra erroneamente, no que concerne à instauração e tramitação da execução fiscal. Assente em argumento estritamente literal apoiou no n.º 2 da referida norma e no facto de o CPA, então, ditar que, para efeitos da cobrança coerciva, o órgão administrativo competente emitiria certidão com valor de título executivo, que seria remetida com o processo administrativo, à repartição de finanças do domicílio ou sede do devedor;

15.ª Não poderá desconsiderar-se que o CPA aplica-se à Administração Pública, na generalidade, sendo que a mesma, genericamente considerada, não dispõe de poderes tributários, legal e constitucionalmente cometidos. Na Administração Pública, os poderes tributários são exercidos pela Administração Tributária, sendo que as autarquias locais dispõem de poderes tributários e, nessa medida e no que respeita ao exercício dos mesmos, integram o conceito de Administração Tributária, realidade que não poderá deixar de estar presente na interpretação daquela norma, no sentido de a designação repartição de finanças ser entendida como o serviço autárquico competente para a instauração da execução fiscal (no Município de Lisboa, a Divisão de Execuções Fiscais);

16.ª As autarquias locais são parte integrante do conceito lato de Administração Tributária, exercendo competências administrativas tributárias, em relações jurídicas estabelecidas com pessoas singulares, coletivas ou outras entidades legalmente equiparadas, cfr. os n.ºs 2 e 3, do art. 1.º da LGT, diploma que define os princípios gerais que regem o direito fiscal português, os poderes da administração tributária e as garantias dos administrados/contribuintes;

17.ª O título III da LGT dedica-se ao procedimento tributário, que compreende toda a sucessão de actos dirigida à declaração de direitos tributários (art. 54.º, n.º 1), abarcando toda a actividade administrativa tributária, na qual, para o que ora importa, se integra o procedimento conducente à cobrança das obrigações tributárias, na parte que não tenha natureza judicial [alínea h)]. No que respeita ao processo tributário, o mesmo Diploma legal, cujos concretos termos são remetidos para o CPPT, limita-se a enunciar alguns princípios orientadores do processo, bem como, algumas das suas formas;

18.ª De entre os meios processuais tributários previstos, avulta, no que ora releva, o processo de execução fiscal, reflectido na alínea d) do art. 101.º e no art. 103.º, ambos da LGT. Efectivamente, entre as competências da administração tributária, enunciadas no art. 10.º do CPPT, realça-se a instauração dos processos de execução fiscal e a realização dos actos a estes respeitantes [alínea f)]. O n.º 2 do mesmo artigo atribui a competência procedimental, por princípio, aos órgãos periféricos locais da administração tributária do domicílio ou sede do contribuinte, da situação dos bens ou da liquidação;

19.ª Paralelamente, da conjugação das disposições constantes dos arts. 149.º e 152.º do CPPT, considera-se órgão de execução fiscal “o serviço periférico da administração tributária onde deva legalmente correr a execução ou, quando esta deva correr nos tribunais comuns, o tribunal competente”, que detém legitimidade para promover a execução;

20.ª A competência jurisdicional encontra-se prevista no art. 151.º do CPPT, que estabelece um conjunto de actos cuja realização é vedada à administração tributária, sendo remetida para a competência do tribunal tributário;

21.ª Como afirmado no Diploma Preambular do CPPT, o mesmo “(…) não se aplica apenas aos impostos administrados tradicionalmente pela Direcção-Geral dos Impostos (DGCI). Fica também claro que se aplica ao exercício dos direitos tributários em geral, quer pela DGCI, quer por outras entidades públicas, designadamente a Direcção-Geral das Alfândegas e dos Impostos Especiais sobre o Consumo (DGAIEC), quer inclusivamente por administrações não dependentes do Ministério das Finanças”. E aplica-se, também, ao exercício dos direitos tributários de que são titulares as autarquias locais. Recorda-se que, nos termos do art. 56.º, n.º 3 da LFL, aprovada pela L n.º 2/2007, de 15 de Janeiro, as normas do CPPT são aplicáveis, com as necessárias adaptações, à cobrança coerciva de dívidas às autarquias locais, sendo certa a integração das mesmas na administração tributária;

22.ª Tal interpretação é acolhida pelo legislador na alteração ao CPA mediante a eliminação da referência a repartições de finanças, sendo que tal expressão não foi substituída pela designação contemporaneamente adoptada para aquelas – serviços de finanças -, mas pela referência mais genérica, à administração tributária, conceito lato em que as autarquias locais se inserem, por efeito das mencionadas normas da CRP, da LGT e do CPPT, cfr. o art. 179.º do novo CPA, aprovado pelo DL n.º 4/2015, de 7 de Janeiro, e que substituiu o anterior art. 155.º;

23.ª O legislador pretendeu impossibilitar interpretações literais e restritivas como a adoptada pela Sentença de que se recorre, mesmo perante a anterior redação, desde que se integrasse a mesma no restante elenco normativo, que deverá considerar-se como um todo, e não, socorrer-se de normas isoladamente consideradas para enquadrar competências, restringindo-as ao invés de as integrar sistematicamente, de modo a obter o seu real alcance e, a final, o visado pelo legislador;

24.ª A evolução legislativa aponta em sentido díspar do que a Sentença considera vigorar. Na realidade, o legislador, ao invés de restringir competências, procura adoptar as mais consentâneas com o espírito do sistema, remetendo, expressamente, a cobrança coerciva de dívidas de natureza não tributária, desde que emergentes de acto administrativo, para os termos da legislação tributária, in casu, o CPPT, e para a competência da Administração Tributária, designação genérica na qual as autarquias locais estão inseridas, no que respeita ao exercício de tais competências, como é o caso da instauração e tramitação da execução fiscal;

25.ª Aliás, relativamente a dívidas não tributárias, embora a Decisão Recorrida se apoie em jurisprudência, a mesma não é uniforme, pois o próprio STA já se pronunciou, explícita e implicitamente, sobre a competência dos municípios para a cobrança coerciva de tais dívidas, no âmbito da execução fiscal, mesmo perante o anterior quadro normativo, que não julgou restringir o elenco de competências dos municípios, de que é exemplo o Acórdão de 31 de Março de 2004, Processo n.º 0317/04; assim como o Tribunal da Relação de Lisboa 17 de Janeiro de 2008, no Acórdão proferido no Processo n.º 9956/2007-2, e o TCAS, no Acórdão de 8 de Março de 2018, exarado no Processo n.º 569/08.1BELRS reconhecem tal competência;

26.ª Além de que, a Sentença objecto de recurso desconsidera o princípio da autonomia das autarquias locais e o seu poder tributário decorrentes directamente da CRP, que delimitam a questão em apreço e, nessa medida, padecendo de inconstitucionalidade. De acordo com o n.º 1 do art. 6.º da CRP, a organização e o funcionamento do Estado respeitam o princípio da autonomia das autarquias locais, que significa, designadamente, que as autarquias locais são formas de administração autónoma territorial, de descentralização territorial do Estado, sendo ainda dotadas de órgãos próprios e de atribuições específicas, correspondentes a interesses próprios, e não a meras formas de administração indirecta ou mediata do Estado;

27.ª A propósito das atribuições das autarquias locais, há que atender ao princípio da subsidiariedade, de acordo com o qual, às autarquias locais deverão ser reconhecidas todas as atribuições necessárias à satisfação das necessidades coletivas que aquelas possam satisfazer com vantagem, em termos humanos, técnicos e financeiros, às demais instâncias, superiores ou inferiores (cfr. António Cândido de Oliveira, “Direito das Autarquias Locais”, Coimbra Editora, 1993, pág. 297);

28.ª O entendimento vertido na Sentença examinada afasta a mencionada vertente da autonomia local, já que, considerando os municípios competentes para a promoção de execuções fiscais referentes a receitas tributárias próprias, afasta essa mesma competência relativamente à cobrança coerciva de receitas de distinta natureza, mesmo quando a mesma se encontre expressamente prevista na lei, como é o caso do RJUE, e do CPA. Tal entendimento colhe apoio apenas no teor literal de algumas normas, que a Sentença defende restringirem o alcance do restante ordenamento jus tributário, e da expressa integração dos municípios no conceito lato de Administração Tributária que resulta do mesmo. O princípio da autonomia das autarquias locais manifesta-se em diversas dimensões, nomeadamente, a autonomia organizacional e a autonomia financeira, cfr. arts. 237.º, n.º 1 e 238.º da CRP;

29.ª Acrescia, ao tempo da instauração da execução dos autos, como se adiantou, a LFL, aprovada pela L n.º 2/2007, de 15 de Janeiro, cujo art. 3.º, n.º 1 determinava a existência de património e finanças próprios, “cuja gestão compete aos respectivos órgãos e compreende, entre outros, os poderes tributários que legalmente lhes estejam cometidos” - alínea c) -, bem como “Arrecadar e dispor de receitas que por lei lhes sejam destinadas” – alínea d). O poder tributário das autarquias locais apresenta-se como uma das vertentes da sua autonomia financeira, assumido, relativamente aos municípios e ao tempo da instauração da identificada execução, no art. 3.º da LFL;

30.ª Pelo que a interpretação no sentido de não atribuir competência às autarquias locais para instaurar e tramitar execução fiscal por dívidas ao município de natureza não tributária desconsidera o descrito ordenamento jus tributário e, bem assim, os poderes constitucionais e legais cometidos aos municípios, no caso vertente, em sede de execução coerciva de obras, e consequentemente, da sua cobrança coerciva. Em suma, não deverá assentar-se em normas isoladas a caracterização sistemática do elenco de competências das autarquias locais, que o legislador vem clarificando, realidade que forçosamente deverá ser considerada pelo intérprete e aplicador do direito;

31.ª Aliás, nem se antevêem as razões porque não seriam atribuídas também às autarquias locais competências para a instauração de execuções fiscais relativamente a dívidas de natureza não tributária, cuja liquidação e cobrança (voluntária) é cometida, por lei, às mesmas autarquias locais, cfr. sublinha André Salgado de Matos (“Dívidas Passíveis de Execução Fiscal pelos Municípios”, Estudos Jurídicos e Económicos em Homenagem ao Prof. Doutor António de Sousa Franco I - Dir. [de] Jorge Miranda - Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. - Coimbra Editora, 2006, - págs. 145 - 159.), que acrescenta: “A execução coerciva pelos serviços estaduais de receitas autárquicas que não sejam administradas pelas autarquias mas sim pelo Estado encontra um fundamento de exequibilidade e desburocratização: deve ser competente para proceder à cobrança coerciva quem tem competência para proceder à cobrança voluntária. Isto explica porque é que deve entender-se que, na situação contrária de receitas das autarquias administradas pelas próprias autarquias, o ditame e coerência sistemática e valorativa que se impõe à actividade de interpretação das normas jurídicas, leva a concluir que tais receitas devem ser cobradas coercivamente pelas próprias autarquias locais. c) A execução coerciva pelos serviços estaduais de receitas autárquicas administradas pelas próprias autarquias violaria os princípios da descentralização e da desburocratização (art. 267º, 1 e 2 CRP) e, sobretudo, o princípio da autonomia local [sobretudo, ver o art. 237º e a alínea n) do art. 288º CRP, que o eleva a limite material da revisão constitucional], pelo que se impõe, se possível, uma interpretação constitucional conforme as normas legais que estabelecem o sistema de cobrança de dívidas referentes àquelas receitas” (com realces nossos);

32.ª Efectivamente, não se alcançam os motivos pelos quais as dívidas como a dos autos, que constituem receitas administradas pelas autarquias e tendo por base acto administrativo, cuja cobrança a lei admite através do processo de execução fiscal, não possam ser objecto de cobrança no âmbito de processo promovido pelos órgãos das autarquias locais;

33.ª A limitação ao exercício de poderes tributários que resulta do entendimento vertido na Sentença Recorrida consubstancia, essencialmente, violação do princípio da autonomia das autarquias locais, tal como vertido nos arts. 237.º e 238.º da CRP, porquanto restringe, sem que razões ponderosas o exijam, o exercício de poderes tributários e financeiros, na perspetiva da arrecadação de receitas próprias e por intermédio de meios legais, próprios e que tal entendimento recusa;

34.ª Os Municípios, enquanto autarquias locais integrantes da Administração Tributária e no uso dos poderes constitucional e legalmente previstos, detêm competência para a promoção, instauração e tramitação da execução fiscal (na sua parte administrativa), relativamente a receitas de que têm direito, devendo considerar-se incluídas nestas, tanto as receitas de natureza tributária, quanto, relativamente às que, não assumindo tal natureza, a lei preveja, expressamente, tal via de cobrança coerciva, como sucede com as provenientes da prática de acto administrativo, por efeito do art. 155.º do CPA (actualmente, art. 178.º) e destas, especificamente, as resultantes da execução de obras coercivas, tal como contempladas no RJUE, normas violadas pelo entendimento restritivo acolhido na Sentença Recorrida;

35.ª Nestes termos, deverá a Sentença Recorrida ser revogada e substituída por outra, que considere legalmente instaurada a execução fiscal objeto da Oposição e a legitimidade activa do Município de Lisboa para a instauração e tramitação da mesma, com a consequente determinação da apreciação do mérito da Oposição.

1.3 Contra-alegou a Recorrida, concluindo nos seguintes termos:

«1. Não merece qualquer censura a sentença recorrida – sendo, pelo contrário, que merece apenas louvores.

2. Com efeito, a sentença recorrida, ao contrário do que agora defende a Recorrente, teve a manifesta preocupação de fazer uma interpretação integrada e sistemática de todas as disposições legais aplicáveis in casu.

3. Foi dessa interpretação integrada e sistemática que adveio o resultado que agora a Fazenda Pública pretende – sem que lhe assista qualquer razão – atacar.

4. Com efeito, a sentença julgou que a instauração de processo de execução fiscal destinado à cobrança de créditos de natureza não tributária pelos serviços das autarquias locais configura uma situação de ilegitimidade ativa, dando lugar à absolvição da Oponente da instância executiva.

5. Sintomático de que não assiste qualquer razão à Recorrente é o facto de o próprio Ministério Público ter emitido parecer no sentido de dar razão ao Tribunal, pugnando pela procedência da referida exceção.

6. Por entender ser “incontornável” a ilegitimidade ativa do Exequente (Município de Lisboa) para através dos seus serviços instaurar a tramitar a fase administrativa do processo de execução fiscal destinado à cobrança de créditos de natureza não tributária, já que lhe incumbia, outrossim, extrair certidão de dívida e remetê-la ao serviço de finanças do domicílio da devedora a fim de aí ser instaurado e tramitado o PEF.

7. Nada mais certo.

8. Pretende a Recorrente, nas suas alegações de recurso, que o Tribunal a quo fez uma interpretação apenas literal dos preceitos aplicáveis, não tendo cuidado de ver o sistema jus tributário nacional como um todo.

9. Mas a verdade é que basta analisar a sentença recorrida para facilmente constatar que o Tribunal fez uma interpretação conjugada, integrada e sistémica das disposições ínsitas nas várias disposições legais aplicáveis in casu – concretamente os arts.º 148º e 149º do CPPT, o art.º 155º do CPA, o art.º 108º do RJUE, o art.º 56º da Lei das Finanças Locais, o art.º 7º do DL 433/99 que aprovou o CPPT, o art.º 152º do CPPT, e o princípio constitucional consagrado no art.º 6º da CRP.

10. E foi dessa interpretação sistémica, e a nosso ver correta, que retirou a conclusão de que os poderes em causa se desenvolvem no âmbito dos tributos, e já não no espectro macro das receitas das autarquias, concluindo que tanto o legislador constitucional como o ordinário tiveram a preocupação de acautelar que as referidas competências existem no âmbito dos tributos, e não no domínio das receitas.

11. E porque é manifesto que as quantias referidas no art.º 108º do RJUE, não obstante serem receitas da autarquia, não são qualificáveis como tributos, impõe-se concluir, como fez o Tribunal a quo, que estão subtraídas ao poder tributário das autarquias, e sujeitas ao regime regra previsto no art.º 155º do CPA conjugado com o art.º 148º, n.º 2 al. a) do CPPT.

12. Sendo receitas não tributárias e por isso subtraídas ao poder tributário das autarquias, a cobrança coerciva das quantias correspondentes não podia ser promovida pelos órgãos da autarquia enquanto órgão da execução fiscal.

13. Pretende a Recorrente que “não é o facto de o mencionado art,.º 7º, n.º 1 do DL n.º 433/99, de 26 de outubro, referir-se a tributos que afasta a competência das autarquias locais para a cobrança coerciva de receitas de natureza não tributária”,

14. mas é precisamente esse facto, ínsito em tal preceito e conjugado com as demais previsões dos restantes preceitos atendíveis, que afasta a referida competência e determinou a ilegitimidade da Exequente in casu.

15. Pois esta redação traduz uma clara e manifesta opção legislativa por tratar de modo diferente vários tipos de receitas das autarquias.

16. E nem por isso se coarta ou se viola o princípio constitucional da autonomia das autarquias locais – que aliás, como bem diz a própria Recorrente, se manifesta em diversas dimensões, e não só, nem apenas, nem principalmente, na dimensão que aqui se aprecia.

17. Aliás tem sido também essa a interpretação dominantemente feita pela maioria da nossa jurisprudência atual, sendo certo que os poucos Acórdãos que a recorrente invoca em benefício da sua tese, para além de estarem reduzidos a algumas passagens descontextualizadas, são bem mais antigos do que aqueles que foram considerados e invocados na sentença.».

1.4. A Senhora Procuradora-Geral-Adjunta, neste Supremo Tribunal emitiu parecer, concluindo no sentido da improcedência do recurso, em conformidade com jurisprudência uniforme dos nossos Tribunais Superiores, caso não se julgue por verificada a excepção de incompetência do Supremo Tribunal Administrativo para apreciar o mérito do mesmo.

1.5. Notificadas as partes do Parecer do Ministério Público, nada disseram.

1.6. Colhidos os vistos dos Exmos. Juízes Conselheiros Adjuntos, submetem-se agora os autos à Conferência para julgamento.

2. OBJECTO DO RECURSO

2.1 Como é sabido, sem prejuízo das questões de que o tribunal ad quem possa ou deva oficiosamente conhecer, o âmbito de intervenção do tribunal de recurso é determinado pelo teor das conclusões com que a Recorrente finaliza as suas alegações [artigo 635.º do Código de Processo Civil (CPC)].

Essa delimitação do objecto do recurso jurisdicional, numa vertente negativa, permite concluir se o recurso abrange tudo o que na sentença foi desfavorável ao Recorrente ou se este, expressa ou tacitamente, se conformou com parte da decisão de mérito proferida quanto a questões por si suscitadas, desta forma impedindo que essas questões voltem a ser reapreciadas pelo Tribunal de recurso (artigos 635.º, n.º 3 e 4 do CPC). Numa vertente positiva, a delimitação do objecto do recurso, especialmente nas situações de recurso directo para o Supremo Tribunal Administrativo, como é o caso, constitui ainda o suporte necessário à fixação da sua própria competência, nos termos em que esta surge definida nos artigos 26.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF) e 280.º e seguintes do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT).

2.2. No caso concreto, face ao parecer emitido pela Excelentíssima Magistrada do Ministério Público e ao teor das conclusões de recurso, são duas as questões a decidir.

A primeira, prévia, conexa com a nossa competência em razão da hierarquia, traduz-se em aferir se a declaração de ilegitimidade e de incompetência do Município no caso concreto constituem o resultado do conhecimento de pressupostos processuais ou de conhecimento dos fundamentos de Oposição à Execução Fiscal, nos termos em que os mesmos vem enunciados no artigo 204.º do CPPT.

A segunda, firmada a nossa competência, saber se na sentença recorrida foi cometido erro de julgamento de direito ao concluir-se pela ilegitimidade e incompetência do Recorrido para instaurar e fazer prosseguir execução fiscal que tem na sua base a emissão de certidão de dívida relativa a custos que o Recorrente incorreu com obras de demolição d prédio de que anteriormente tomou posse administrativa.

3. FUNDAMENTAÇÃO

3.1. Fundamentação de facto

Do julgamento de facto realizado em 1ª instância resultaram apurados os seguintes factos:

1. Do Ofício n.º ...4..., de 26/11/2004, do Departamento de Conservação de Edifícios Particulares, da Direção Municipal de Conservação e Reabilitação Urbana, da Câmara Municipal de Lisboa, subordinado ao “ASSUNTO: Demolição - posse administrativa - notificação - com audiência prévia”, e relativo ao “LOCAL: Cç ...”,cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido, consta, além do mais, que:

“(...)

[IMAGEM]

(…)

[IMAGEM]

(...)” [Cfr. documento 1 junto com a Oposição, a páginas 15-16, de folhas 1-64 do SITAF, e de folhas 51-52 do processo de execução fiscal junto aos autos]

2. Da Informação n.º ...9, de 29/12/2009, da Divisão de Execução de Obras Municipais em Equipamentos, do Departamento de Construção e Conservação de Equipamentos, da Direção Municipal de Projetos e Obras, da Câmara Municipal de Lisboa, relativa ao “LOCAL: Cç ...”, e subordinada ao “ASSUNTO: - Emp.ª n.º 152/DMOP/DCCE/DEOME/05 - Cobrança de Obra Coerciva”, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido, consta, além do mais, que:

“(...)

[IMAGEM]

[IMAGEM]

(...)” [Cfr. documento 1 junto com a Contestação, a páginas 25 de folhas 91-127 do SITAF]

3. Da fatura n.º ...31, com data de emissão de 09/02/2010, consta, além do mais, que:

“(...)

[IMAGEM]

(...)” [Cfr. documento ... junto com a Contestação, a páginas 26 de folhas 91-127 do SITAF, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido]

4. Em 13/12/2010, o Município de Lisboa emitiu «CERTIDÃO DE DÍVIDA» n.º ...74, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido [Cfr. folhas 2-3 do processo de execução fiscal junto aos autos],

5. Em 14/12/2010, o Município de Lisboa instaurou o processo de execução fiscal n.º ...40 [Cfr. folhas 2-3 do processo de execução fiscal junto aos autos, , cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido].

6. Em 18/03/2011, no âmbito do processo de execução fiscal n.º ...40, foi emitida «CITAÇÃO» em nome de «BB» [Cfr. folhas 4-5 do processo de execução fiscal junto aos autos, , cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido].

7. Em 21/03/2011, foi expedida a «CITAÇÃO» referida no ponto anterior [Cfr. folhas 6-7 do processo de execução fiscal junto aos autos, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido].

8. Em 28/03/2011, foi devolvida a referida «CITAÇÃO», com aposição de informação pelos serviços postais de “Falecido/Decede[Cfr. folhas 7-8 do processo de execução fiscal junto aos autos, , cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido].

9. Em 03/02/2015, no âmbito do processo de execução fiscal n.º ...40, foi emitida «CITAÇÃO» em nome de «AA – CABEÇA DE CASAL HERANÇA DE BB» [Cfr. folhas 14-17 do processo de execução fiscal junto aos autos, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido].

3.2. Fundamentação de direito

3.2.1. O presente recurso jurisdicional vem interposto da sentença proferida pelo Tribunal Tributário de Lisboa que jugou, a final, o Município de Lisboa parte ilegítima para instaurar e fazer prosseguir execução fiscal, por não deter competências para o efeito, concluindo pela absolvição da Oponente da instância e pela extinção da instância executiva face à incompetência e ilegitimidade do Exequente.

3.2.2. O Recorrente não se conforma com o julgado, por, em síntese nossa, entender que a sentença não acolheu, como devia, uma interpretação sistemática do conjunto de normas convocadas, errando, particularmente, na interpretação das normas que delimitam o exercício pelas autarquias locais de poderes tributários, designadamente dos artigos 148.º, n.º 2, alínea a) do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), 155.º do Código de Procedimento Administrativo (CPA) em vigor à data da prática dos factos, e 7.º do DL n.º 433/99, de 26 de Outubro.

3.2.3. Em suma, para o Recorrente, a conclusão, extraída no julgamento, de que os Municípios apenas detêm competência para instaurarem e tramitarem execuções fiscais quando as receitas em questão possuem natureza tributária, do que resultaria a sua incompetência relativamente às receitas de natureza distinta, como as decorrentes da realização de obra coerciva, por não revestirem natureza tributária, não se enquadra no espírito do sistema jus tributário nacional.

3.2.4. A Excelentíssima Procuradora Geral Adjunta suscitou, ainda que com dúvidas, a questão da competência hierárquica deste Supremo Tribunal, por, atenta a terminologia utilizada no dispositivo, ser possível concluir-se que o Tribunal a quo se quedou pela análise dos pressupostos processuais, salientando que o próprio Recorrente finaliza a sua motivação de recurso pedindo a revogação da sentença recorrida e a sua substituição por outra que conheça o mérito da pretensão.

3.2.5. Não cremos, porém, que esta primeira questão deva ser julgada procedente, pelas razões que passamos a explicitar.

Resulta dos autos que a sentença foi proferida a 27 de Março de 2023, ou seja, em data em que já tinha entrado em vigor a Lei n.º 118/19, de 17 de Setembro (ocorrida a 16 de Novembro de 2019), que, alterando a redacção do artigo 280.º do CPPT, determinou, para além do mais, que o Supremo Tribunal Administrativo apenas conhece dos recursos de decisões de mérito dos tribunais tributários em que sejam suscitadas exclusivamente questões de direito.

No caso, não temos dúvidas que neste recurso apenas vem suscitada uma questão de direito, a saber, se os Municípios podem ou não instaurar e fazer prosseguir execuções fiscais que tem na sua base certidões de dívida decorrente de trabalhos de demolição de prédios de que o Município tomou posse administrativa e custeou perante a inércia dos proprietários e/ou possuidores do imóvel.

Foi essa falta de competência substantiva que o Tribunal a quo julgou verificada e que, em consequência, entendeu repercutir-se sobre a própria ilegitimidade activa do Recorrente para promover o processo de execução fiscal.

Efectivamente, conforme consta da sentença Recorrida, o Meritíssimo Juiz julgou verificada a ilegitimidade activa do Exequente tendo subjacente o julgamento que previamente realizou quanto à sua competência em razão da matéria, isto é, para a promoção da execução fiscal. Tendo sido este raciocínio de ilegitimidade activa na execução e de incompetência do Município para a sua instauração que foram determinantes na decisão de absolver a Oponente da instância executiva e, simultaneamente, determinar a extinção da execução fiscal.

Afigura-se-nos, pois, que não obstante a recondução da ilegitimidade activa para a promoção da execução fiscal a uma excepção dilatória processual no âmbito da Oposição Judicial, o certo é que, na sentença sob recurso, a questão da competência substantiva do Município para promover a execução fiscal foi efectivamente apreciada e foi a resposta que o Tribunal a quo previamente deu a esta questão que determinou, além do reconhecimento de legitimidade activa da Exequente para promover a execução fiscal, a extinção desta.

Donde, atento o exposto, e porque se mostram igualmente preenchidos os demais requisitos previstos no n.º 2 do actual artigo 280.º do CPPT (valor da causa ser superior à alçada dos Tribunais Centrais), impõe-se concluir pela nossa competência hierárquica.

3.2.6. Quanto à segunda questão enunciada no ponto 2. deste acórdão, isto é, quanto à questão de saber se o Município detém ou não competência para instaurar e fazer prosseguir execuções fiscais com base em certidões de dívida emergente de custos suportados com obras de demolição, uma vez que este Supremo Tribunal Administrativo apreciando a mesma, vem proferindo recorrentemente julgamentos uniformes, limitar-nos-emos a acolher essa jurisprudência, designadamente o julgamento realizado a 12 de Outubro de 2022, no processo n.º 2922/15.5BELRS, do qual consta o seguinte:

«2.2.2 DA COMPETÊNCIA DO MUNICÍPIO PARA INSTAURAR E TRAMITAR A EXECUÇÃO FISCAL

Como vimos, não se discutindo que a dívida exequenda é susceptível de cobrança mediante execução fiscal, cumpre apenas averiguar a quem, à data – i.e., em 2010 –, estava cometida a competência para instaurar e tramitar o processo executivo.

Dispunha o art. 56.º, n.º 3, da Lei n.º 2/2007, de 15 de Janeiro (Lei de Finanças Locais em vigor à data): «Compete aos órgãos executivos a cobrança coerciva das dívidas às autarquias locais provenientes de taxas, encargos de mais-valias e outras receitas de natureza tributária que aquelas devam cobrar, aplicando-se o Código de Procedimento e de Processo Tributário, com as necessárias adaptações».

Por seu turno, o n.º 1 do art. 7.º do Decreto-Lei n.º 433/99, de 26 de Outubro – diploma por que foi aprovado o CPPT – dispunha: «As competências atribuídas no código aprovado pelo presente decreto-lei a órgãos periféricos locais serão exercidas, nos termos da lei, em caso de tributos administrados por autarquias locais, pela respectiva autarquia».

Finalmente, depois de no n.º 1 se prescrever que «[q]uando por força de um acto administrativo devam ser pagas a uma pessoa colectiva pública, ou por ordem desta, prestações pecuniárias, o órgão administrativo competente seguirá, sendo caso disso, o processo de execução regulado no Código de Processo Tributário» (A referência ao Código de Processo Tributário deve considerar-se efectuada para o CPPT, por força do art. 10.º do diploma que aprovou este Código (Decreto-Lei n.º 433/99, de 26 de Outubro).), o n.º 2 do art. 155.º do CPA, na versão e redacção então em vigor (Código aprovado pelo Decreto-Lei n.º 442/91, de 15 de Novembro, e revogado pelo Decreto-Lei n.º 4/2015, de 7 de Janeiro.), dispunha: «Para o efeito, o órgão administrativo competente emitirá nos termos legais uma certidão, com valor de título executivo, que remeterá, juntamente com o processo administrativo, à repartição de finanças do domicílio ou sede do devedor».

Da conjugação destes preceitos resulta que, à data que nos reportamos (2010), relativamente às dívidas a autarquias locais susceptíveis de cobrança mediante execução fiscal, o legislador apenas atribuía competência às autarquias locais para instaurarem e tramitarem o processo executivo através dos seus próprios órgãos quando as dívidas se referissem a «taxas, encargos de mais-valias e outras receitas de natureza tributária» (cfr. art. 56.º, n.º 3, da Lei das Finanças Locais aprovada pela Lei n.º 2/2007, de 15 de Janeiro, em vigor à data), sendo que a referência a “outras receitas de natureza tributária” parece ser inequívoca [cfr. art. 9.º, n.º 3, do Código Civil (CC)] no sentido da exclusão daquela competência relativamente às dívidas de natureza não tributária (Neste sentido, JORGE LOPES DE SOUSA, Código de Procedimento e Processo Tributário, Anotado e Comentado, Áreas Editora, 6.ª edição, 2011, vol. III, nota ao art.º 148.º, pág. 34.).

Como bem salientou o Procurador-Geral-Adjunto neste Supremo Tribunal, que deu conta da existência de posições doutrinais divergentes, não são claras as razões por que não era atribuída também às autarquias locais competência para a instauração de execuções fiscais relativamente a dívidas de natureza não tributária que devam ser cobradas através de processo de execução fiscal, mas a letra da lei – que constitui o ponto de partida e um limite da tarefa hermenêutica (J. BAPTISTA MACHADO, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, Almedina, 1983, pág. 182. O mesmo Autor, na pág. 189, explicita: «A letra (o enunciado linguístico) é, assim o ponto de partida. Mas não só, pois exerce também a função de um limite, nos termos do art. 9.º, n.º 2: não pode ser considerado como compreendido entre os sentidos possíveis da lei aquele pensamento legislativo (espírito, sentido) “que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso”. Pode ter de proceder-se a uma interpretação extensiva ou restritiva, ou até porventura a uma interpretação correctiva, se a fórmula verbal foi sumamente infeliz, a ponto de ter falhado completamente o alvo. Mas, ainda neste último caso, será necessário que do texto “falhado” se colha pelo menos indirectamente uma alusão àquele sentido que o intérprete venha a acolher como resultado da interpretação».) – não abriga o “mínimo de correspondência verbal” requerido (cfr. art. 9.º, n.º 2, do CC) para a interpretação em sentido contrário à que foi adoptada pelo Tribunal Tributário de Lisboa e que também nós subscrevemos.

Poderá não ser esta a solução à luz do quadro legal actualmente em vigor (Actualmente, como resulta do n.º 2 do art. 179.º do CPA, o legislador já fala em “Serviço da Administração Tributária”, ou seja, já confere a competência para a instauração da execução fiscal a qualquer órgão da Administração Tributária, a qual inclui os órgãos autárquicos, pelo que a partir da entrada em vigor do novo CPA, o entendimento sustentado pelo Recurso terá já um enquadramento legal que não existia à data da instauração da execução fiscal. Entendimento que é reforçado pela alínea d) do n.º 2 do artigo 6.º da actual Lei de Finanças Locais (Lei n.º 73/2013, de 3 de Setembro), ao densificar o princípio da autonomia financeira das autarquias, o qual consubstancia o poder de “Liquidar, arrecadar, cobrar e dispor das receitas que por lei lhes sejam destinadas” (sublinhado nosso).), como salientou o Procurador-Geral-Adjunto no seu parecer; mas, atento o princípio tempus regit actus, e o disposto nas acima citadas normas legais, em vigor à data – art. 56.º, n.º 3, da Lei n.º 2/2007, de 15 de Janeiro (Lei das Finanças Locais em vigor à data), art. 155.º, n.º 2, do CPA velho e art. 7.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 433/99, de 26 de Outubro – entendemos que o legislador apenas atribuía competência às autarquias locais para instaurarem e tramitarem o processo de execução fiscal através dos seus próprios órgãos quanto às dívidas de natureza tributária, enquanto para as dívidas de natureza não tributária a competência para instaurar e tramitar o processo de execução fiscal era do serviço de finanças territorialmente competente [cfr. art. 10.º, n.º 1, alínea f), do CPPT], ao qual, para esse efeito, a autarquia deveria remeter a certidão de dívida.

Neste sentido, decidiu já este Supremo Tribunal no acórdão de 16 de Setembro de 2020, proferido no processo com o n.º 529/11.5BEPRT (Disponível em http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/-/2fe65cbd9338fcfd802585ed003da3fe.). No mesmo sentido, embora decidindo questão diversa, também o acórdão de 23 de Fevereiro de 2022, proferido no processo com o n.º 328/21.6BEBJA (Disponível em http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/-/596b54604306e351802587f400553c80.).

Finalmente, note-se que, ao contrário do que sustenta o Recorrente, a interpretação que ora subscrevemos em nada afronta a autonomia das autarquias locais, designadamente nas suas vertentes de autonomia organizacional e de autonomia financeira, e, muito menos, o poder tributário que lhes está cometido.

Sendo inequívoco que a Constituição da República Portuguesa (CRP) consagrou a autonomia das autarquias locais (cfr. art. 6.º, n.º 1, da CRP), as quais são pessoas colectivas de direito público, dotadas de órgãos próprios e de atribuições específicas, correspondentes a interesses próprios, com poder regulamentar e tributário próprios (cfr. n.º 2 do art. 235.º, n.º 4 do art. 238.º, arts. 239.º e 241.º, todos da CRP), a garantia constitucional da autonomia local não abrange a autotutela executiva. Dito de outro modo, a opção legislativa de atribuir a competência para a instauração e tramitação do processo de execução fiscal em que hajam de ser cobradas dívidas aos municípios aos serviços de finanças da Administração Tributária e Aduaneira em nada afronta a garantia constitucional da autonomia local, ainda que essa competência seja (rectius fosse) restrita às dívidas de natureza não tributária.».

3.2.7. Em conclusão, a sentença recorrida não merece a censura que o Recorrente lhe dirigiu, motivo por que o recurso não pode ser provido.

3.3. As custas do presente recurso serão integralmente suportadas pelo Recorrido, integralmente vencido, em conformidade com o artigo 527.º, n.ºs 1 e 2 do CPC, aplicável ex vi artigo 281.º do CPPT.

4. DECISÃO

Termos em que, acordam os Juízes que integram a Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo, negar provimento ao recuso jurisdicional interposto pelo Município de Cascais.

Custas pelo Recorrente.

Registe e notifique.

Lisboa, 7 de Fevereiro de 2024. - Anabela Ferreira Alves e Russo (relatora) – Francisco António Pedrosa de Areal Rothes – Isabel Cristina Mota Marques da Silva.

Segue acórdão de 10 de abril de 2024:

Descritores:

Rectificação

Lapso de escrita



Acórdão

I – AA veio, ao abrigo do preceituado no artigo 249.º do Código Civil requerer a rectificação de lapso de escrita constantes do acórdão proferido nos autos nos pontos 3.3., na parte em que consta “Recorrido” que passe a constar “Recorrente”, e do ponto 4., na parte em que consta “ Município de Cascais” passar a constar “ Município de Lisboa”.

II – Notificada expressamente a parte contrária para, querendo, se pronunciar, nada disse.

III - Como decorre do artigo 613.º do CPC, aplicável aos acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo nos termos das disposições conjugadas dos artigos 279.º e seguintes do CPPT e 666º nº 1, do Código de Processo Civil, “proferida a sentença, fica imediatamente esgotado o poder jurisdicional do juiz quanto à matéria da causa

IV - Contudo, nos termos do nº 2 do mesmo preceito legal, é lícito ao juiz rectificar erros materiais, suprir nulidades e reformar a sentença, nos termos dos artigos seguintes, possibilidade que o nº 3 desse normativo estende, com as necessárias adaptações, aos despachos.

V - Por sua vez, dispõe o artigo 614º do Código de Processo Civil, sob a epígrafe “Rectificação de erros materiais”, que se a sentença “contiver erros de escrita ou de cálculo ou quaisquer inexactidões devidas a outra omissão ou lapso manifesto, pode ser corrigida por simples despacho, a requerimento de qualquer das partes ou por iniciativa do juiz», devendo entender-se que há lapso manifesto quando do próprio teor da decisão, de modo flagrante e sem necessidade de elaboradas demonstrações, se conclua que o que aí ficou escrito devia ter sido distinto do que efectivamente ficou exarado, constituindo alterações materiais que não modificam o julgamento realizado.

VI - No caso, como bem refere a Recorrida, as inexactidões que constam dos pontos 3.3. e 4. do acórdão são meros lapsos de escrita, como se mostra evidenciado pelo confronto do que ficou escrito no ponto 1. (identificação da Recorrente e Recorrido) e do ponto 4. (em que a Recorrente ficou condenada nas custas do processo por ter ficado integralmente vencida).

VII - Nestes termos, acorda-se em deferir o pedido de rectificação, corrigindo-se os lapsos de escrita constante do ponto 3.3. e 4. do referido acórdão, dos quais passará a constar, respectivamente, “ Recorrente” e “Lisboa”.

Sem custas.

Notifique.

Lisboa, 10 de Abril de 2024. - Anabela Ferreira Alves e Russo (relatora) – Francisco Areal Pedrosa de Areal Rothes – Isabel Cristina Mota Marques da Silva.