Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0785/17
Data do Acordão:04/12/2018
Tribunal:1 SECÇÃO
Relator:JOSÉ VELOSO
Descritores:BOMBEIROS PROFISSIONAIS
ADMINISTRAÇÃO LOCAL
DISPONIBILIDADE PERMANENTE
REMUNERAÇÃO
SUPLEMENTO REMUNERATÓRIO
Sumário:I - Os «bombeiros profissionais da administração local» encontram-se integrados em carreiras que exigem uma «disponibilidade permanente», compensada, nos termos da lei, através de «suplemento remuneratório», integrado na respectiva escala salarial, e que inclui «todo o trabalho prestado dentro da disponibilidade permanente obrigatória»;
II - Assim, aos bombeiros municipais sapadores ora representados pelo sindicato autor, os quais prestam trabalho em turnos de 12 horas de serviço, seguidas de 24 ou de 48 horas de folga - conforme esse serviço seja prestado em «período diurno» ou «período nocturno» - não assiste o direito ao descanso compensatório remunerado previsto no artigo 163º, nº1, do RCTFP aprovado pelo DL nº59/2008, de 11.08.
Nº Convencional:JSTA00070640
Nº do Documento:SA1201804120785
Data de Entrada:09/18/2017
Recorrente:SNBP- SINDICATO NACIONAL DOS BOMBEIROS PROFISSIONAIS
Recorrido 1:MUNICÍPIO DE VILA NOVA DE GAIA
Votação:UNANIMIDADE
Meio Processual:RECURSO DE REVISTA
Objecto:ACÓRDÃO DO TRIBUNAL CENTRAL ADMINISTRATIVO NORTE
Decisão:NEGA PROVIMENTO
Área Temática 1:FUNCIONALISMO PÚBLICO
Área Temática 2:DESCANSO COMPENSATÓRIO
Legislação Nacional:ARTIGOS 59º, N.º 1 DA CRP, 28º, N.º 5 E 34º, N.º 1 DO DL N.º 259/98 DE 18/08, 212º, N.º 5, 126º, N.º 1 E163º DA LEI N.º 59/2008, DE 11/09 E DL N.º 10/2002 DE 13/04
Aditamento:
Texto Integral: I. Relatório
1. O SINDICATO NACIONAL DOS BOMBEIROS PROFISSIONAIS [SNBP] interpõe este «recurso de revista» do acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte [TCAN], de 10.02.2017, que concedeu provimento aos recursos de apelação interpostos, por ele e pelo MUNICÍPIO DE VILA NOVA DE GAIA [MVNG], da sentença pela qual o Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto [TAF] condenou este último a pagar aos seus trinta representados o acréscimo remuneratório correspondente às horas extraordinárias que tenham realizado, nos termos legais, desde 01.01.2009.

Conclui assim as suas alegações de revista:

I. O presente recurso preenche todos os requisitos de admissibilidade, tanto no que diz respeito ao conceito de relevância jurídica como no que concerne à relevância social;

II. A relevância jurídica da questão sub judice é patente se atentarmos no facto de, até ao presente, se desconhecer qualquer decisão do STA sobre se assistirá, ou não, aos trabalhadores da administração pública, no caso concreto, aos bombeiros sapadores e municipais, direito a auferir ou gozar o descanso compensatório, devido pela prestação de trabalho extraordinário, por força do serviço prestado no horário de trabalho que lhes está superiormente estabelecido, mas que ultrapassa o limite semanal legalmente estabelecido;

III. A presente situação tem todas as características para se reiterar necessariamente nas relações jurídicas de emprego público reguladas pelas leis sucessivas, basta ter em conta do disposto nos artigos 212º, nº5, do RCTFP, e 162º, nº5, da LGTFP, bem como o universo dos bombeiros sapadores e municipais do País;

IV. Pelo que são evidentes as repercussões para o futuro da questão em análise, bem como a sua manifesta importância para os interesses referidos, o que por si só denota a particular relevância da questão;

V. Os arestos proferidos pelo TAF e pelo TCAN violaram assim o disposto nos artigos 212º e 163º, nº1 e nº2, ambos da Lei nº59/08, de 11.09, por considerar que não obstante ter sido determinado aos bombeiros, trabalhadores da administração pública, um horário de trabalho, pelo executivo camarário, cuja carga semanal pode chegar, dependendo dos turnos, a 48h semanais, o excesso de horas que os trabalhadores efectuam semanalmente não poderão ser qualificadas como extraordinárias em termos de acréscimos remuneratórios, nem poderão, os referidos trabalhadores, terem direito ao correspondente descanso compensatório ou o direito ao seu recebimento;

VI. Isto porque, conforme já referido pelo AC STJ, no processo nº2375/08, para que o trabalhador tenha direito à retribuição por trabalho suplementar é necessário que demonstre que esse trabalho existiu e que foi efectuado com o conhecimento e sem oposição da entidade patronal, os factos demonstram que igualmente o aqui recorrido tinha conhecimento desse trabalho e tomou-o sem se opor à respectiva prestação;

VII. É incontornável que, por força da determinação do executivo camarário, os seus bombeiros sapadores estavam sujeitos a horário desconforme à lei, algo que jamais poderia ser assacado aos próprios trabalhadores, que apenas cumpriam o que lhes foi superiormente determinado porque nunca lhes competiu, por sua iniciativa, fixar os horários segundo os quais prestariam o seu trabalho;

VIII. Os órgãos e entidades competentes do recorrido optaram por manter os mesmos sujeitos ao referido horário, daqui decorrendo não ser curial falar da ausência de um acto autorizando o trabalho suplementar, quando o que se verificou foi a manutenção esclarecida do horário em desconformidade com o legalmente estabelecido, ou seja, não se tratou de autorizar trabalho para além do regulamentar, mas sim de impor que se perpetuasse o anterior;

IX. Se os órgãos competentes do MVNG mantiveram os bombeiros sapadores sujeitos ao horário desconforme à lei, a autarquia recebeu e beneficiou do trabalho prestado para além do horário legalmente permitido, não havendo margem para sustentar a oposição desta ao trabalho suplementar;

X. Verifica-se ainda actualmente que efectivamente o suplemento pelo ónus específico da prestação de trabalho, risco e disponibilidade permanente, encontra-se inserido no vencimento base dos bombeiros sapadores e municipais, mas para compensar os referidos trabalhadores quando prestam o seu serviço em situações de calamidade pública decretada pela entidade competente, não lhes cabendo nesse caso o direito a qualquer outro tipo de remuneração, nomeadamente, trabalho extraordinário;

XI. Ou seja, não é devido aos ditos bombeiros, sapadores e municipais, o pagamento do trabalho extraordinário, feriados ou descanso compensatório no caso da prestação de trabalho, em situações de calamidade pública decretada pela entidade competente - ver artigos 25º do DL nº106/2002, de 13.04, e 3º do DL nº295/2000, de 17.11;

XII. E a única leitura legalmente admissível é de que não está legalmente prevista a atribuição aos bombeiros [sapadores ou municipais] qualquer outro suplemento remuneratório em função do ónus específico desse tipo de trabalho, risco, penosidade, insalubridade, ou disponibilidade permanente - ver artigos 29º e 30° do DL nº106/2002, de 13.04;

XIII. Em suma, nem da jurisprudência nem da doutrina se pode extrair qualquer outro entendimento que não seja a obrigatoriedade do pagamento das horas extraordinárias aos bombeiros profissionais, bem como a atribuição do descanso compensatório;

XIV. É [ainda] um princípio basilar do nosso ordenamento jurídico que todo o trabalho prestado fora do seu horário normal de trabalho é considerado trabalho extraordinário, havendo direito ao seu recebimento por parte dos trabalhadores e direito ao descanso compensatório - ver artigos 158º, nº1, do Regime e Regulamento do Contrato de Trabalho em Funções Públicas [Lei nº59/2008, de 11.09, actualizada pela Lei nº64-B/2011, de 30.12], bem como actualmente nos termos do disposto nos artigos 120º e 162º da LTFP;

XV. E sendo, assim, trabalho extraordinário, deverá ser remunerado como tal e dado o correspondente descanso compensatório;

XVI. Pelo que o douto acórdão recorrido faz errada interpretação e aplicação da lei, designadamente das normas constantes dos artigos 59º, nº1, alíneas a) e d), da CRP, 28º, nº5, e 34º, nº1, do DL nº259/98, 212º, nº5, do RCTFP, e 162º, nº5, da LGTFP, razão pela qual a intervenção deste STA é fundamental para uma melhor aplicação do direito, contribuindo assim para uma interpretação mais segura do quadro normativo aplicável, tanto mais que são situações de inegável importância, enquanto ligadas a interesses particularmente relevantes da comunidade que requerem um acentuado labor interpretativo, pelo que se justifica a admissão da revista excepcional.

Termina pedindo o provimento deste recurso de revista, e, em conformidade, a revogação do acórdão recorrido, com as consequências legais.

2. O recorrido - MVNG - contra-alegou e retirou as seguintes conclusões:

A- O recurso de revista não deve ser admitido, para evitar o risco de existirem decisões contraditórias sobre a mesma questão fundamental de direito;

B- Deve manter-se o douto acórdão recorrido, por os bombeiros sapadores não terem direito ao descanso compensatório;

C- Uma vez que o suplemento remuneratório que auferem se destina a compensá-los por todo o trabalho suplementar que seja necessário executar, e engloba todas as situações a que os bombeiros se vêem obrigados, no exercício das suas funções, a trabalhar mais horas do que o que estaria previsto no seu horário.

Termina pedindo a não admissão da revista, e que, de qualquer modo, lhe seja negado provimento.

3. Mas a revista foi admitida por este Supremo Tribunal - formação a que alude o nº6 do artigo 150º do CPTA.

4. O Ministério Público não se pronunciou - artigo 146º, nº1, do CPTA.

5. Colhidos que estão os «vistos» legais, cumpre apreciar e decidir a revista.

II. De Facto

Os únicos factos que nos vêm das instâncias são os seguintes:

A) Os representados do sindicato autor exercem funções de Bombeiros Sapadores do Corpo de Bombeiros Municipais, encontrando-se, desde 01.01.2009, integrados num horário de trabalho de cinco turnos.

B) A organização do tempo de trabalho por turnos, compreende 12 horas de serviço, seguidas de 24 horas de folga, quando a prestação de trabalho ocorre durante o período diurno [entre as 8h e as 20h], ou 12 horas de serviço, seguidas de 48h de folga, quando a prestação de trabalho ocorre no período nocturno [entre as 20h e as 8h].

III. De Direito

1. O SNBP, em representação de trinta associados, todos bombeiros sapadores de Vila Nova de Gaia [VNG], pediu ao TAF do Porto que condenasse o réu, MVNG, a pagar-lhes o acréscimo remuneratório, correspondente a 25% das horas de trabalho extraordinário realizado, a título de descanso compensatório, desde o início do ano de 2009.

Para tanto, alegam que face ao horário de trabalho em vigor desde 01.01.2009, tem direito ao pagamento daquele acréscimo remuneratório de acordo com a melhor interpretação e aplicação do «artigo 163º da Lei nº59/2008, de 11.09», conjugado com o artigo 126º, nº1, da mesma lei, para a qual remete, quanto a esta matéria, o DL nº106/2002, de 13.04.

O TAF do Porto deu-lhe razão, e, por sentença de 03.07.2014 condenou o MVNG no pedido que lhe havia sido dirigido.

Desta decisão, de 1ª instância, recorreram tanto o SNBP como o MVNG, ambos lhe apontando nulidades, por omissão e excesso de pronúncia, uma vez que nela foi desvirtuada a verdadeira questão que havia sido colocada ao tribunal, ou seja, o réu foi condenado a pagar aos trinta associados do autor o acréscimo remuneratório correspondente às horas extraordinárias mas nada disse sobre a «remuneração do descanso compensatório».

Estes «recursos de apelação» obtiveram provimento, e, nessa conformidade, o TCAN julgou nula a sentença e, conhecendo em substituição, absolveu o MVNG do pedido formulado pelo SNBP na acção administrativa comum [AAC].

Este, discordando da perda da causa, dirige-se agora ao STA, neste «recurso de revista», apontando erro de julgamento de direito ao acórdão da 2ª instância. A seu ver, o acórdão recorrido errou na interpretação e aplicação designadamente dos artigos 59º, nº1, alíneas a) e d), da CRP, 28º nº5, e 34º nº1, do DL nº259/98, de 18.08, 212º nº5, do RCTFP, e 162º nº5, da LGTFP.

2. A Constituição da República Portuguesa assegura a todos os trabalhadores o «direito à retribuição do trabalho, segundo a sua quantidade, natureza e qualidade, observando-se o princípio de que para trabalho igual salário igual, de forma a garantir uma existência condigna» [artigo 59º, nº1 alínea a)], e este direito é reconhecidamente assumido como direito de natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias, pelo que só poderá sofrer as restrições taxativamente enunciadas na lei [Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa, 3ª edição, página 318].

Constatamos que esta norma constitucional impõe, desde logo em homenagem ao princípio da igualdade, uma paridade remuneratória entre trabalhadores que exerçam idênticas funções públicas, sendo que tal paridade é acompanhada por disparidades correctoras, fundadas nas particulares circunstâncias da prestação do trabalho, e que vêm justificar a instituição de suplementos à remuneração.

Por isso, não é de estranhar que na fixação da remuneração dos trabalhadores em funções públicas, e seus suplementos, pontifique o princípio da legalidade, que impõe, ao contrário do que ocorre no domínio privado, que a remuneração seja fixada por lei. O que significa que nem a Administração Pública pode abonar outra remuneração além da prevista na lei, nem aos respectivos trabalhadores assiste o direito de reclamar prestações para além das que decorrem da lei.

3. A Lei nº12-A/2008, de 27.02 - que estabelece os «regimes de vinculação, de carreiras e de remunerações dos trabalhadores que exercem funções públicas», e revogada pelo artigo 42º nº1 alínea c) da LGTFP - cuja vigência abrange boa parte do período temporal reclamado pelo autor, dizia que a remuneração dos trabalhadores que exercem funções ao abrigo de relações jurídicas de emprego público é «composta por: a) Remuneração base; b) Suplementos remuneratórios; c) Prémios de desempenho» [artigo 67º].

Definia os suplementos remuneratórios como «acréscimos remuneratórios devidos pelo exercício de funções em postos de trabalho que apresentam condições mais exigentes relativamente a outros postos de trabalho caracterizados por idêntico cargo ou por idênticas carreira e categoria» [artigo 73º, nº1].

Acrescentava, que «São devidos suplementos remuneratórios quando trabalhadores, em postos de trabalho determinados nos termos do nº1, sofram, no exercício das suas funções, condições de trabalho mais exigentes: a) De forma anormal e transitória, designadamente as decorrentes de prestação de trabalho extraordinário, nocturno, em dias de descanso semanal, complementar e feriados e fora do local normal de trabalho; ou b) De forma permanente, designadamente as decorrentes de prestação de trabalho arriscado, penoso ou insalubre, por turnos, em zonas periféricas, com isenção de horário e de secretariado de direcção […]» [artigo 73º, nº3].

A LGTFP - Lei nº35-A/2014, de 20.06 -, cuja «vigência» abrange o restante período temporal reclamado pelo autor, manteve as normas acabadas de citar [ver artigo 159º].

4. Os corpos de bombeiros organizam-se de acordo com o princípio da unidade de comando, e constituem «unidades operacionais, tecnicamente organizadas, preparadas e equipadas para o cabal exercício do conjunto de missões previstas na lei», entre elas se destacando «o combate a incêndios, o socorro às populações em caso de incêndios, de inundações, de desabamentos, abalroamentos ou acidentes, catástrofes, calamidades, o socorro a náufragos e buscas subaquáticas, bem como o socorro e transporte de sinistrados, doentes, incluindo urgência pré-hospitalar», sendo que, nos municípios, poderão coexistir «corpos de bombeiros profissionais» - sapadores e municipais - e «corpos de bombeiros voluntários» [artigos 2º, nº1, 3º, alíneas a) a d), 4º e 8º, do DL nº295/2000, de 17.11, que aprova o «Regulamento Geral dos Corpos de Bombeiros»].

O actual estatuto de pessoal dos bombeiros profissionais da administração local encontra-se consagrado no DL nº106/2002, de 13.04, que revogou entre outros diplomas o DL nº373/93 e o DL nº374/93, ambos de 04.11, e que consagravam os «estatutos remuneratórios dos bombeiros sapadores e dos bombeiros municipais», respectivamente [artigos 1º, 40º].

Este estatuto, que entrou em vigor no dia 01.05.2002 [artigo 41º], estipula, sobre «Duração e Horário de Trabalho», que «Os corpos de bombeiros profissionais estão sujeitos ao regime da duração e horário de trabalho da Administração Pública, com a possibilidade de se efectuarem doze horas de trabalho contínuas» [artigo 23º, nº1], e diz, sob a epígrafe de «Disponibilidade permanente», que «O serviço do pessoal dos corpos de bombeiros profissionais é de carácter permanente e obrigatório, devendo os funcionários assegurar o serviço quando convocados pelas entidades competentes», e que, «Para efeitos do número anterior, a disponibilidade permanente reporta-se às funções decorrentes do exercício da missão dos corpos de bombeiros, enunciadas nas alíneas a) a d) do artigo 3º do Regulamento Geral dos Corpos de Bombeiros, aprovado pelo DL nº295/2000, de 17.11» [artigo 25º, nº1 e nº2].

Sobre o estatuto remuneratório estipula, no seu artigo 29º, que os bombeiros profissionais - sapadores e municipais - recebem um «suplemento pelo ónus específico da prestação de trabalho, risco e disponibilidade permanente», cujo valor é integrado na escala salarial da respectiva carreira [artigo 29º nº2 e nº3], e adverte que a partir da sua entrada em vigor, e consequente aplicação do seu artigo 29º, «não poderá ser atribuído aos bombeiros profissionais qualquer suplemento com a mesma natureza, designadamente relativo ao ónus específico da prestação de trabalho, risco, penosidade e insalubridade e disponibilidade permanente» [artigo 38º].

5. O Regime do Contrato de Trabalho em Funções Públicas - RCTFP aprovado pelo DL nº59/2008, de 11.08 - permite a organização da prestação do «trabalho por turnos» [artigo 211º], impõe «limites à duração do trabalho», e prevê a possibilidade de realização de «trabalho extraordinário» [artigos 126º e 212º], ou seja, de «trabalho prestado fora do horário de trabalho» [artigos 197º, nº1, do Código do Trabalho aprovado pela Lei nº99/2003 (CT/2003), de 27.08, e 226º, nº1, do Código do Trabalho aprovado pela Lei nº7/2009, de 12.02 (CT/2009), ambos aplicáveis], e é aplicável aos trabalhadores com vínculo de emprego público, com necessárias adaptações e sem prejuízo do especialmente disposto na lei, o Código do Trabalho «em matéria de trabalho suplementar» [artigo 120º, nº1, da Lei nº35/2014, de 20.06, ou seja, Lei Geral dos Trabalhadores em Funções Públicas - LGTFP].

Note-se que a obrigação de prestação deste trabalho extraordinário - ou «trabalho suplementar», na actual terminologia - motivou, da parte do legislador, uma minuciosa e apertada regulamentação, pois a lei delimita as situações que justificam a sua prestação, fixa os pressupostos da sua admissibilidade e obrigatoriedade, fixa-lhe os limites, e determina um «descanso compensatório remunerado» pela sua prestação [ver os artigos 199º e 200º, do CT/2003, e 226º, 227º, 229º e 230º do CT/2009; ver, ainda, artigos 28º e 34º do DL nº259/98, de 18.08, e 162º da LGTFP].

Sobre este descanso compensatório, prescreve o artigo 163º do referido RCTFP o seguinte: «1- A prestação de trabalho extraordinário em dia útil, dia de descanso semanal complementar, e dia feriado, confere ao trabalhador o direito a um descanso compensatório remunerado, correspondente a vinte e cinco por cento das horas de trabalho extraordinário realizado. […]» [ver, ainda, artigos 202º do CT/2003 e 229º do CT/2009].

6. Tendo presente esta súmula jurídica, indispensável ao «enquadramento» da questão, esta, tal como emerge do objecto da revista, centra-se em saber se o «suplemento remuneratório» previsto no artigo 29º do DL 106/2002, de 13.04 - ver anterior ponto 4 -, exclui ou não a «remuneração pelo descanso compensatório» - ver anterior ponto 5 -, correspondente a «25% das horas de trabalho suplementar realizado», prevista no artigo 163º do RCTFP.

7. Como resulta claro da lei, o direito ao descanso compensatório remunerado está umbilicalmente ligado à anterior prestação de trabalho extraordinário, já que é esta prestação que confere aquele direito, e, este, é determinado em razão das horas de trabalho extraordinário realizadas.

Torna-se necessário, portanto, aferir se a prestação de trabalho, por banda dos bombeiros profissionais - sapadores e municipais -, atendendo à sua natureza e seu modo de remuneração, é compatível com a prestação de trabalho extraordinário, ou suplementar, pois que, se o for, naturalmente que tal prestação lhes conferirá o direito ao referido «descanso compensatório remunerado».

Daí que não tenha sido assim tão estranha a abordagem da questão efectuada pelo TAF, que se limitou a reconhecer a prestação de «trabalho extraordinário» pelos associados do sindicato autor, e, nessa única base - o que gerou a nulidade por «omissão de pronúncia» julgada procedente pelo TCAN - a julgar procedente a acção.

8. No caso em apreço, estamos perante bombeiros profissionais que realizavam a sua prestação de serviço organizados em cinco turnos [ponto A) do provado], isto é, desenvolviam o seu trabalho organizados em 5 equipas, que, a determinado ritmo, incluindo o rotativo, contínuo ou descontínuo, ocupavam sucessivamente os mesmos postos de trabalho [ver artigo 220º do CT/2009].

Cada turno, compreendia «12 horas de serviço contínuo» [ver artigo 23º, nº1, do DL nº106/2002, de 13.04, supra citado], que, se prestadas durante o «período diurno» [das 08H00 às 20H00] eram seguidas de 24 horas de folga, e, se prestadas durante o «período nocturno» [das 20H00 às 08H00], eram seguidas de 48 horas de folga [ver ponto B) do provado].

O autor, em representação dos seus associados, entende que esta organização de trabalho por turnos rotativos, de 12 horas contínuas, lhes confere o direito a receber a remuneração do descanso compensatório referido no artigo 163º do RCTFP, correspondente a 25% das horas de trabalho extraordinário realizado. O que significa, obviamente, que entende - em nome dos seus associados - que aquela prestação de trabalho em turnos de 12 horas envolve a prestação de «trabalho extraordinário», isto é, de «trabalho prestado fora do horário de trabalho».

O acórdão ora recorrido entendeu que não lhes assiste razão. E entendeu bem.

E ao dizer isto, não olvidamos a jurisprudência deste STA em sentido contrário, tirada nos anos 90 do século passado, e no âmbito da vigência dos já referidos DL nº373/93 e DL nº374/93, ambos de 04.11 - ver AC STA de 23.05.1996, Rº39576; AC STA de 16.01.1997, Rº41185; AC STA de 20.03.1997, Rº41138; e AC STA de 13.05.1997, Rº41399.

8. Vejamos.

Os corpos de bombeiros profissionais da administração local têm, como vimos, uma «missão» muito específica, e os respectivos trabalhadores dispõem de um estatuto especial, inclusivamente no tocante à duração e horário de trabalho, já que podem ser chamados, nomeadamente, a efectuar «doze horas contínuas de trabalho», o seu serviço tem «carácter permanente e obrigatório», e devem «assegurar o serviço quando convocados pelas entidades competentes». Estão, pois, numa situação de «disponibilidade permanente». Os incêndios, acidentes, doenças, catástrofes… não têm dia nem hora agendados.

É precisamente este ónus específico da prestação de trabalho, risco e disponibilidade permanente que justifica a atribuição, aos referidos bombeiros profissionais, do «suplemento» previsto no artigo 29º do DL nº106/2002, de 13.04, integrado na escala salarial da respectiva carreira, e cuja atribuição impede, por lei, que lhes seja atribuído qualquer suplemento com a mesma natureza, designadamente relativo ao ónus específico da prestação de trabalho, risco, penosidade e insalubridade e disponibilidade permanente [artigo 38º]. Esta «ratio» da atribuição do suplemento, bem como a proibição da sua duplicação, é bem realçada no preâmbulo do DL nº106/2002, de 13.04.

Sendo que, como vimos, uma das justificações para atribuição de suplementos, segundo a lei geral, é, precisamente, o exercício de funções em condições de trabalho mais exigentes, «designadamente as decorrentes da prestação de trabalho extraordinário, nocturno, em dias de descanso semanal, complementar e feriados e fora do local normal de trabalho» [artigos 73º, nº1, da Lei nº12-A/2008, de 27.02, e 159º do RCTFP].

E desta lei geral, lida à luz da lei constitucional, resulta que os suplementos se destinam a remunerar as específicas condições em que o trabalho é prestado, as particularidades que envolvem a sua execução, e traduzem a «concretização legislativa do direito fundamental à retribuição segundo a quantidade, natureza e qualidade» do trabalho, apenas podendo ser «considerados» aqueles que se fundamentam «em alguma das circunstâncias taxativamente previstas na lei», entre elas as contempladas na supra citada alínea a), do nº3, do artigo 73º, da Lei nº12-A/2008, de 27.02 [mantidas na alínea a), do nº3, do artigo 159º, do RCTFP].

Ora, não restam dúvidas que o «suplemento remuneratório» previsto no artigo 29º do DL nº106/2002, se enquadra na alínea a), do nº3, do artigo 73º, da Lei nº12-A/2008, bem como, após a revogação desta lei, no artigo 159º do RCTFP.

Por sua vez, o trabalho extraordinário - ou suplementar - surge na lei com carácter excepcional, a obrigação do seu pagamento é uma obrigação ex lege, que só se constitui quando todos os pressupostos de facto descritos na previsão legal se verifiquem, sendo que o «direito» ao descanso compensatório remunerado está, e repetimos, dependente da sua prestação efectiva, e o mesmo se diga do direito à remuneração de descanso compensatório não concedido - sobre este último aspecto ver AC STJ de 24.02.2010, Rº401/08.

E a verdade é que o trabalho prestado pelos associados do sindicato autor não tem o tal carácter excepcional que a lei confere ao trabalho extraordinário, antes surge como uma «situação de normalidade», com a qual o trabalhador deverá antecipadamente contar quando exerce funções em regime de «disponibilidade permanente» para o serviço. E se é verdade, também, que esta disponibilidade permanente não se confunde com a prestação de trabalho para além do horário normal, esta é dela consequência, sendo o respectivo suplemento remuneratório atribuído ao trabalhador independentemente desta efectiva prestação.

Acresce, ainda, que a própria natureza do trabalho extraordinário, o qual, como vimos, constitui circunstância fundamentadora de pagamento de «suplemento» - alínea a), do nº3, dos artigos 73º da Lei nº12-A/2008, de 27.02, e do artigo 159º, do RCTFP - parece impedir que este possa ser pago em «acumulação» com o suplemento de disponibilidade permanente, dado que o trabalhador que aufere este último deverá encontrar-se investido numa postura de contínua receptividade e disponibilidade para o trabalho, independentemente do horário estabelecido.

É patente, por conseguinte, a dificuldade em considerar como extraordinário o trabalho prestado por alguém em «regime de disponibilidade permanente», que determina obrigatoriedade de se apresentar ao serviço sempre que convocado, quando ocorram situações que pela sua urgência justifiquem a sua presença no serviço. Este tipo de prestação de serviço não poderá estar sujeito às limitações do trabalho extraordinário que são impostas por lei, e que lhe fixam situações justificativas substantivas, pressupostos formais de admissibilidade, e limites.

Temos, pois, que das referidas normas legais, e da sua respectiva conjugação, resulta bem claro ter sido «intenção do legislador» compensar todos os «ónus específicos», inerentes à prestação de trabalho por parte dos bombeiros profissionais da administração local, através de um sistema retributivo próprio, que integra um suplemento remuneratório único pelas particularidades específicas das respectivas funções, globalmente consideradas, abrangendo, desse modo, realidades bem diversas, como a permanente disponibilidade, com o que fica afastada qualquer outra compensação remuneratória pelas particularidades específicas inerentes às referidas funções, incluindo por «trabalho extraordinário».

Em suma: do regime legal descrito resulta que os associados do sindicato autor estão integrados em carreiras que exigem uma disponibilidade permanente que é compensada, nos termos da lei, através de um «suplemento remuneratório», integrado na respectiva escala salarial, e que inclui «todo o trabalho prestado dentro da disponibilidade permanente obrigatória».

IV. Decisão

Nestes termos, decidimos negar provimento ao recurso de revista.

Custas pelo recorrente, mas sem prejuízo, obviamente, do apoio judiciário que lhe foi concedido [ver folha 285 dos autos].

Lisboa, 12 de Abril de 2018. – José Augusto Araújo Veloso (relator) – Jorge Artur Madeira dos Santos – Ana Paula Soares Leite Martins Portela.