Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0599/12.9BEBRG
Data do Acordão:11/10/2021
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:PEDRO VERGUEIRO
Descritores:IMPUGNAÇÃO JUDICIAL
IRC
DEDUÇÕES
PREJUÍZO FISCAL
PRINCÍPIO DA NÃO RETROACTIVIDADE DA LEI
LEI FISCAL
Sumário:I - Os factos relativos às alterações à titularidade do capital social da Recorrida ocorreram no ano de 2009, pelo que não há dúvida que ocorreram posteriormente à entrada em vigor daquela alteração legislativa, produzindo nessa medida os seus efeitos na delimitação negativa do direito à dedução dos prejuízos, o que quer dizer que não existe qualquer aplicação retroactiva da lei, uma vez que a respectiva previsão e estatuição tem por objecto um facto ocorrido na sua vigência.
II - Na medida em que constituem um requisito negativo que obsta à dedução dos prejuízos fiscais apurados nos anos anteriores, independentemente do ano em que estes tenham sido apurados, é certo que acaba por restringir para futuro os efeitos de factos ocorridos anteriormente à data da sua vigência (limitando nessa medida a dedução dos prejuízos), mas essa limitação decorre de um facto autónomo ocorrido na vigência da norma anti-abuso e que o legislador erigiu como de interesse prevalecente sobre o direito genérico da dedução dos prejuízos fiscais consagrado no nº 1 do artigo 47º do CIRC.
III - Assim, o facto da aplicação da nova redacção do nº 8 do artigo 47º do CIRC implicar a restrição do direito à dedução de prejuízos apurados em períodos anteriores à sua vigência, não consubstancia aplicação retroactiva da lei, por estar em causa a aplicação da norma anti-abuso prevista na norma apontada, que a partir de 2005 alargou os limites negativos ao reporte de prejuízos e, ao contrário do decidido, temos por claro que não existe aqui qualquer aplicação retroactiva da lei fiscal, proibida pelo artigo 12º da LGT e pelo artigo 103º da CRP, dado que, não só estamos perante a aplicação da lei a facto ocorrido na sua vigência, como não há violação do princípio da protecção da confiança, uma vez que o legislador não está impedido de criar novas cláusulas específicas anti-abuso, como no ano de 2009, altura da alteração da titularidade do capital social, o sujeito passivo já tinha conhecimento que o requisito da “alteração da titularidade de, pelo menos, 50% do capital social ou da maioria dos direitos de voto” implicava a restrição na dedução dos prejuízos fiscais registados anteriormente.
Nº Convencional:JSTA000P28482
Nº do Documento:SA2202111100599/12
Data de Entrada:02/12/2021
Recorrente:AT - AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA
Recorrido 1:A............, S.A.
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: Processo n.º 599/12.9BEBRG (Recurso Jurisdicional)

Acordam em conferência na Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo:

1. RELATÓRIO

O Excelentíssimo Representante da Fazenda Pública, devidamente identificado nos autos, inconformado, veio interpor recurso jurisdicional da decisão do Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga, datada de 23-10-2020, que julgou procedente a pretensão deduzida por “A…………, S.A.” no presente processo de IMPUGNAÇÃO relacionado com a liquidação adicional de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas (IRC), respeitante ao exercício de 2009, no montante de €111.058,83.


Formulou nas respectivas alegações, as seguintes conclusões que se reproduzem:

“ (…)

A- A presente impugnação tem por objeto a liquidação adicional de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas (IRC), respeitante ao exercício de 2009, no montante de € 111.058,83.

B- Na douta sentença ora recorrida julgou-se parcialmente procedente a impugnação judicial deduzida pela Impugnante, anulando o ato de liquidação de IRC impugnado na parte decorrente das correções relativas à dedução dos prejuízos fiscais apurados nos exercícios de 2003 e 2004.

C- O Representante da Fazenda Pública, não se conformando com o deferimento parcial do pedido da Impugnante, entende que a douta sentença ora recorrida sofre de errada interpretação e aplicação da lei.

D- Para a prolação desta decisão, na sentença recorrida fez-se constar a seguinte fundamentação:

“Neste contexto, é nosso entendimento que a administração fiscal não podia aplicar a norma do artigo 47º, nº 2 do CIRC, na redacção introduzida Orçamento do Estado Rectificativo para o ano de 2005, para aferir da dedutibilidade dos prejuízos fiscais relativos aos anos de 2003 e 2004, por tal configurar uma aplicação retroactiva da lei fiscal, proibida pelo artigo 12º da LGT e pelo artigo 103º da CRP.”

Vejamos,

E- O Tribunal a quo entendeu que a correção efetuada pela AT incorreu no vício de violação de lei, uma vez que, a introdução de uma nova limitação ao exercício desse direito apenas deverá valer para o futuro, sob pena de inutilização de prejuízos relativamente aos quais a lei em vigor no exercício em que foram apurados não previa tal limitação para a sua “utilização” nos exercícios seguintes;

F- Violando, assim, princípio da irretroatividade consagrado no nº 1 do artigo 12º da LGT.

G- Em primeiro lugar importa referir que a limitação de reporte dos prejuízos fiscais, estabelecida no nº 8 do artigo 47º do CIRC (alteração introduzida no nosso ordenamento jurídico pela Lei 39-A/2005, de 29/07, Orçamento de Estado retificativo para o ano de 2005) tem subjacente a vontade do legislador em evitar a prática de compra e venda de sociedades com prejuízos fiscais em reporte, com a finalidade de aproveitamento desses prejuízos por parte dos novos detentores da maioria do capital.

H- Sendo que o artº.47, nº.8 consagra uma cláusula anti-abuso especial, além do mais, acrescentando como nova causa de exclusão do direito ao reporte de prejuízos, a constatação de que no fim do período de tributação a que respeitam os lucros declarados, se verifique uma alteração da titularidade de, pelo menos, metade do capital ou de mais de metade dos direitos de voto, em comparação com o fim do período de tributação em que foram gerados os prejuízos cuja dedução se pretende.

I- Ou seja, o que se pretendeu com esta norma foi limitar a dedução de prejuízos não por via dos prejuízos apurados, mas por via das condições objectivas (pressupostos de dedutibilidade) de quem pretende deduzir esses mesmos prejuízos, e que, entretanto, se alteraram substancialmente em comparação com o fim do período de tributação em que foram gerados os prejuízos.

J- Como resulta da matéria dada como provada, a qual não é controvertida nos presentes autos, a estrutura acionista da aqui Recorrida sofreu nos exercícios de 2008 e 2009 profundas alterações que consubstanciaram uma alteração do capital superior a 50% do capital.

K- Sendo que a ora Recorrida declarou no exercício de 2009 prejuízos fiscais apurados nos exercícios de 2003 a 2008.

L- Assim, a questão que aqui se coloca é apenas a de saber se a correcção efetuada pela AT ao não aceitar os prejuízos fiscais apurados em exercícios anteriores a 2007 (inclusive) aplicou ou não retroativamente a lei fiscal.

M- Com a ressalva do respeito que é devido por opinião contrária, entende a Fazenda que não existiu uma aplicação retroativa da lei fiscal.

N- Porquanto, no nosso entender, a redação da norma aplicável é a vigente à data da dedução dos prejuízos e não a vigente nas datas em que os mesmos foram apurados,

O- Isto porque o que está em causa nos presentes autos é não a existência dos prejuízos fiscais apurados nos exercícios de 2003 e de 2004,

P- mas, antes, a sua dedutibilidade ao lucro tributável do exercício de 2009, ou seja, da verificação dos pressupostos de dedutibilidade previstos na referida norma.

Q- Sendo que aquando das profundas alterações realizadas pela ora Recorrida e que se consubstanciaram numa alteração do capital superior a 50% do capital já estava em vigor a limitação prevista no n.º 8 do artigo 47º do CIRC.

R- Ora, no fim do período de tributação a que respeitam os lucros declarados (2009) a ora Recorrida deixou de ter as condições objetivas para proceder à dedução de qualquer prejuízo em comparação com o fim do período de tributação em que os mesmos foram gerados.

S- Assim, o momento determinante para a verificação da exclusão do direito ao reporte de prejuízos é o fim do período de tributação a que respeitam os lucros declarados e em relação ao qual se pretende proceder à dedução.

T- Nem podia ser outra a interpretação, uma vez que, a não ser assim, podia-se chegar a situações que na prática não chegava a existir qualquer exclusão do direito à dedução, bastava que a alteração da titularidade de, pelo menos, metade do capital fosse coincidente com a alteração legislativa e aí, seguindo o entendimento da douta decisão, poderia deduzir todos os prejuízos de anos anteriores a 2005, apesar de já não reunir as condições para tal.

U- Em síntese, somos a concluir que o disposto no artigo 47º na redação em vigor à data dos factos, determinava uma nova causa de exclusão do direito ao reporte de prejuízos, quando ocorresse uma alteração substancial entre o fim do período em que se pretendia proceder à dedução em comparação com o fim do período de tributação em que foram gerados esses prejuízos,

V- Ou seja, estando apenas em causa os pressupostos da sua dedutibilidade ao lucro tributável do exercício de 2009, que se deixaram de verificar, não existindo, portanto, qualquer aplicação retroativa da lei fiscal no que concerne aos prejuízos fiscais relativos aos anos de 2003 e de 2004.

W- Destarte, a atuação da Administração Tributária foi conforme à lei, não se verificando o vício que é imputado ao ato tributário, sendo que este por ser legal, deverá manter-se,

X- Tendo na douta sentença ora recorrida se decidido de forma diversa é inevitável que se conclua que foi violado o disposto no art. 47º do CIRC com a redação em vigor à data dos factos.

Y- Nestes termos, deverá a sentença recorrida ser revogada e substituída por douto Acórdão que considere a impugnação totalmente improcedente.

Termos em que, com o sempre mui douto suprimento de Vossas Exas., deverá ser concedido provimento ao presente, com o que se fará como sempre, a costumada JUSTIÇA

A Recorrida “A…………, S.A.” apresentou contra-alegações, nas quais enuncia as seguintes conclusões:

“(…)

A. Vêm as presentes Alegações apresentadas no âmbito do recurso interposto pela Fazenda Pública da sentença proferida no processo n.º 599/12.9BEBRG do Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga, que julgou parcialmente procedente o pedido formulado pela Impugnante, ora Alegante, que aí pugnava pela anulação da liquidação adicional de IRC e respetivos juros compensatórios, respeitante ao exercício de 2009, no montante de € 111.058,83.
B. Uma leitura, ainda que superficial, da decisão ora em crise indicia-nos, logo à partida, que o Tribunal a quo decidiu de forma prudente e motivada, ponderando irrepreensivelmente os diversos elementos probatórios disponíveis nos autos.
C. O Tribunal recorrido considerou - e com total acerto - que “(…) a administração fiscal não podia aplicar a norma do artigo 47.º n.º 8 do CIRC, na redacção introduzida pelo Orçamento do Estado Rectificativo para o ano de 2005, para aferir da dedutibilidade dos prejuízos fiscais relativos aos anos de 2003 e 2004, por tal configurar uma aplicação retroactiva da lei fiscal, proibida pelo artigo 12º da LGT e pelo artigo 103º CRP”.
D. Todavia, a Fazenda Pública não se conforma com o assim decidido por entender que “(…) a douta sentença, ora recorrida sofre de errada interpretação e aplicação da lei”
E. Em face do que conclui a Fazenda Pública, a questão que se coloca à apreciação do Tribunal ad quem é precisamente a de saber se a sentença a quo enferma de erro no julgamento ao concluir que A.T. incorreu vício de violação de lei, por aplicação retroativa da lei fiscal, designadamente o disposto no artigo 47.º n.º 8 do CIRC, na redação introduzida pelo Orçamento do Estado Retificativo para o ano de 2005.
F. Nos termos da nova redação do n.º 8 do artigo 47.º do CIRC, a dedução de prejuízos fiscais, apurados em exercícios anteriores, deixará de ser aplicável quando se verificar, à data do termo do período de tributação em que é efetuada a dedução, a alteração da titularidade de, pelo menos, 50% do capital social ou da maioria dos direitos de voto.
G. No caso em apreço, a Recorrida reportou ao exercício de 2009, prejuízos fiscais apurados nos exercícios de 2003 a 2008, sendo que, conforme resulta do probatório, nos exercícios de 2008 e 2009, a Recorrida sofreu alterações na titularidade sobre, pelo menos, 50% do seu capital.
H. Não obstante, é entendimento da Recorrida que o disposto no n.º 8 do artigo 47.º do CIRC, na redação que lhe foi conferida pelo Orçamento de Estado Retificativo para 2005, não poderá ser aplicável aos prejuízos fiscais apurados nos exercícios de 2003 e 2004, por força do princípio da irretroatividade consagrado no n.º 1 do artigo 12.º da LGT.
I. Com a introdução da nova redação do n.º 8 do artigo 47.º do CIRC, o legislador não determinou, de forma expressa, as regras relativas à sua aplicação no tempo, limitando-se a determinar a entrada em vigor do diploma.
J. Por essa razão, impõe-se necessariamente aplicar a regra geral que rege a aplicação da lei fiscal substantiva no tempo, ínsita no artigo 12.º da LGT, que consagra o mencionado princípio da não retroatividade da lei fiscal, de acordo com o qual “As normas tributárias aplicam-se aos factos posteriores à sua entrada em vigor, não podendo ser criados quaisquer impostos retroactivos”.
K. Como bem sanciona a jurisprudência do Tribunal Constitucional, “(…) A Constituição proibiu expressamente o recurso, por parte do legislador, à retroatividade forte, sempre que a medida legislativa que a ela recorre implicar intervenções gravosas na liberdade e (ou) no património das pessoas, assim sucedendo quando estejam em causa restrições a direitos, liberdades e garantias (artigo 18.º n.º 3), a definição de comportamentos criminalmente puníveis (artigo 29.º, n.º 1), ou a criação de impostos ou definição dos seus elementos essenciais (artigo 103.º, n.º 3)” (cf. Ac. do Tribunal Constitucional n.º 575/2014) (destaque da responsabilidade da Recorrente)
L. Assim, não há dúvidas que a alteração legislativa introduzida pelo Orçamento de Estado Retificativo para 2005, porque limitativa dos direitos dos contribuintes e porque apresenta consequências ao nível da delimitação negativa do imposto, não pode ser aplicada a factos que já se verificaram ao abrigo da lei antiga, configurando, configurando a sua aplicação uma retroatividade autêntica, expressamente proibida pelo n.º 3 do artigo 103.º da CRP.
M. Ainda assim, entende a Fazenda Pública que a aplicação do n.º 8 do artigo 47.º do CIRC, na redação que lhe foi conferida pelo Orçamento de Estado Retificativo para 2005 não configura uma aplicação retroativa da lei, já que a lei aplicável é a que estiver em vigor no momento em que opera a dedução dos prejuízos e não a vigente à data do seu apuramento.
N. Contudo, e salvo o devido respeito, entende a Recorrida que não pode proceder a tese recursiva apresentada pela Recorrente, porquanto assenta em pressupostos errados e numa errada interpretação e aplicação da lei.
O. Sendo certo que, o momento determinante para aferirmos da lei aplicável terá de ser, não o momento em que se opera efetivamente a dedução dos prejuízos, mas aquele em que estes foram apurados, já que, ao apurar um determinado prejuízo fiscal num exercício, o sujeito passivo sabe, desde logo, que a lei lhe concede o direito à dedução desse prejuízo, criando a legítima convicção que poderá exercer esse seu direito, mediante o preenchimento de determinadas condições, num dos seis exercícios posteriores.
P. E, na verdade, não se vislumbram, nem a Fazenda Pública avança quaisquer razões para se adotar entendimento diverso, sendo este aquele que melhor se coaduna com o espírito do legislador.
Q. De facto, aquando do apuramento dos prejuízos fiscais, nos anos de 2003 e 2004, nasceu na esfera da Recorrida o direito à dedução dos referidos prejuízos nos exercícios seguintes, verificando-se, à data do nascimento desse direito, todos os pressupostos de que dependia o exercício desse direito.
R. Quer isto dizer que, a alteração legislativa entretanto introduzida, se aplicável ao reporte de prejuízos apurados em 2003 e 2004, para além de violar o principio da retroatividade da lei fiscal, expressamente proibido pelo n.º 3 do artigo 103.º da CRP, seria suscetível de abalar a convicção que a Recorrida formou ao tempo do apuramento desses prejuízos, que deve ser, igualmente, tutelada juridicamente.
S. É precisamente por não ser possível prever as alterações legislativas que venham a ser aplicáveis, que o ordenamento jurídico tutela jurídicoconstitucionalmente a confiança dos sujeitos passivos, proibindo a aplicação retroativa da lei a factos ocorridos em momento anterior à sua entrada em vigor.
EM SUMA,
T. a alteração introduzida pelo Orçamento de Estado Retificativo para 2005, ao consagrar uma limitação ao exercício do direito dos sujeitos, e ao influir diretamente na delimitação negativa da incidência de imposto só pode ser aplicada para o futuro, a factos que ainda não se formaram ao tempo da sua entrada em vigor, por força do princípio da não retroatividade da lei fiscal, previsto no artigo 12.º da LGT e n.º 3 do artigo 103.º da CRP.
U. O momento relevante para aferir da norma temporalmente aplicável é o momento do apuramento do prejuízo, já que é nesse instante que nasce, concomitantemente, o direito à dedução nos exercícios posteriores.
V. Assim, a sentença recorrida não merece qualquer censura ao concluir que “(…) “(…) a administração fiscal não podia aplicar a norma do artigo 47.º n.º 2 do CIRC, na redacção introduzida pelo Orçamento do Estado Rectificativo para o ano de 2005, para aferir da dedutibilidade dos prejuízos fiscais relativos aos anos de 2003 e 2004, por tal configurar uma aplicação retroactiva da lei fiscal, proibida pelo artigo 12º da LGT e pelo artigo 103º CRP”.
ISTO POSTO,
W. todos os argumentos que vêm de se expor são bem elucidativos da legalidade da decisão proferida, pelo que Sentença recorrida não merece qualquer censura.
X. devendo manter-se a decisão recorrida, nos termos da qual se determinou julgar parcialmente procedente a impugnação e, nessa medida, manter-se a anulação parcial das liquidações de IRC, por vício de violação de lei.
Nestes termos, e nos melhores de direito que V. Exas. doutamente suprirão deverá ser rejeitado o recurso em resposta e confirmada a Sentença Recorrida, com o que V. Exas. farão a sã e costumada JUSTIÇA!

O Ministério Público junto deste Tribunal emitiu parecer no sentido de ser concedido provimento ao recurso.

Cumpre decidir.




2. DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO - QUESTÕES A APRECIAR

Cumpre apreciar e decidir as questões colocadas pela Recorrente, estando o objecto do recurso delimitado pelas conclusões das respectivas alegações, sendo que a matéria apontada nos autos resume-se, em suma, em indagar da bondade da decisão recorrida quando entende que a aplicação do disposto no artigo 47º nº 2 do CIRC, na redacção introduzida no Orçamento do Estado Rectificativo para o ano de 2005, para aferir da dedutibilidade dos prejuízos fiscais relativos aos anos de 2003 e 2004, era ilegal, por tal configurar uma aplicação retroactiva da lei fiscal, proibida pelo artigo 12º da LGT e pelo artigo 103º da CRP.




3. FUNDAMENTOS

3.1. DE FACTO

Neste domínio, consta da decisão recorrida o seguinte:

“…

1. A ora Impugnante é uma sociedade comercial constituída sob a forma de sociedade anónima que tem por objecto social “a produção, engarrafamento e comércio de vinhos e derivados e bem assim quaisquer outras bebidas ou produtos do ramo alimentar” – cfr. doc. 1 junto com a PI (fls. 71/75 do suporte físico dos autos).

2. Em 31.12.2007, a estrutura do capital social da sociedade era composta pelos seguintes accionistas:

[Imagem]

Cfr. fls. 8 do RIT (fls. 49 do apenso).
7. Com a entrada da sociedade A………… – Administração de Bens Imóveis, Lda. (doravante A…………, Lda.) no capital social da sociedade impugnante, em 2009, a estrutura do capital social da sociedade impugnante passou a ser composta pelos seguintes accionistas:

[Imagem]

Cfr. fls. 9 do RIT (fls. 50 do apenso).

8. A sociedade impugnante apurou prejuízos fiscais reportáveis na Declaração de Rendimentos Modelo 22 referente a 2009, relativamente aos períodos de tributação de 2003 a 2008, conforme quadro discriminativo infra:

[Imagem]

Cfr. fls. 10 do RIT (fls. 51 do apenso).
9. Com base nos prejuízos fiscais apurados em exercícios anteriores, identificados no quadro supra, deduziu a ora Impugnante ao apuramento da matéria colectável efectuado no respectivo quadro 9 da Modelo 22 referente ao período de 2009, o montante de €757.041,88 – cfr. doc. 4 junto com a Pi (fls. 34 a 36 do suporte físico dos autos).
10. Por determinação constante das ordens de serviço n.ºs OI201101579 e OI201101580 foi iniciado um procedimento inspetivo de âmbito parcial, o qual teve por incidência temporal os exercícios de 2008 e 2009, respetivamente – cfr. fls. 2 e 3 do apenso.
11. O referido procedimento inspectivo teve como motivo a “situação de divergências nas declarações de retenção na fonte, de 2008 e 2009, quando comparado com o Anexo J/modelo 10 e, pelo facto do sujeito passivo (SP) se encontrar em situação de incumprimento, ao nível da entrega da declaração de rendimentos do exercício de 2009 e da declaração de informação contabilística e fiscal (Declaração Anual) dos exercícios de 2008 e 2009” – cfr. fls. 5 do RIT (fls. 11 do apenso).
12. Através do ofício n.º 507.11118 de 21.10.2011, foi o sujeito passivo notificado, nos termos e para os efeitos do disposto nos arts. 60º da LGT e 60º do RCPIT, do projeto de relatório do procedimento inspetivo e, ainda, para, querendo, exercer, no prazo de 10 dias, o seu direito de participação na decisão de tal procedimento – cfr. fls. 6 e ss. do apenso e anexo 5 do RIT, a fls. 72 do apenso.
13. Direito esse que o sujeito passivo exerceu por escrito rececionado pelos serviços da IT em 03.11.2011 – cfr. anexo 6 do relatório, a fls. 74 do apenso.
14. Em 25.10.2010, foi elaborado o relatório final de inspecção, que foi notificado à Impugnante através dos ofícios n.ºs 507.11835 e 502.11836 de 10.11.2011 - cfr. fls. 37 a 39 do apenso.
15. Em sede de correcções meramente aritméticas à matéria tributável de IRC - exercício de 2009, concluiu a Inspecção Tributária conforme segue:

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[cfr. fls. 40 a 54 do apenso]
16. Em consequência das correcções efectuadas, foram emitidas as seguintes liquidações:

[Imagem]

- cfr. docs. fls. 78 a 84 do apenso.
Mais se provou o seguinte:
17. A sociedade A…………, Lda. é composta pelos seguintes accionistas:

[Imagem]

Cfr. fls. 9 do RIT (fls. 50 do apenso).
18. A sociedade B………… tem como objecto social o “Comércio por grosso, importação e exportação” - cfr. doc. 5 junto com a PI (fls. 76 a 79 do suporte físico dos autos).

*
B) MATÉRIA DE FACTO NÃO PROVADA
Inexistem factos relevantes para a decisão que importe registar como não provados.
C) MOTIVAÇÃO DA DECISÃO DE FACTO
A convicção do Tribunal quanto aos factos provados alicerçou-se nos documentos juntos aos autos, supra identificados a propósito de cada um dos factos.”
«»

3.2. DE DIREITO

Assente a factualidade apurada cumpre, então, entrar na análise da realidade em equação nos autos, sendo que a este Tribunal está cometida a tarefa de indagar da bondade da decisão recorrida quando entende que a aplicação do disposto no artigo 47º nº 2 do CIRC, na redacção introduzida no Orçamento do Estado Rectificativo para o ano de 2005, para aferir da dedutibilidade dos prejuízos fiscais relativos aos anos de 2003 e 2004, era ilegal, por tal configurar uma aplicação retroactiva da lei fiscal, proibida pelo artigo 12º da LGT e pelo artigo 103º da CRP.


Nas suas alegações, a Recorrente refuta o exposto na decisão recorrida no sentido de que a AT não podia aplicar a norma do artigo 47º nº 2 do CIRC, na redacção introduzida Orçamento do Estado Rectificativo para o ano de 2005, para aferir da dedutibilidade dos prejuízos fiscais relativos aos anos de 2003 e 2004, por tal configurar uma aplicação retroactiva da lei fiscal, proibida pelo artigo 12º da LGT e pelo artigo 103º da CRP, na medida em que não existiu uma aplicação retroactiva da lei fiscal, pois que a redacção da norma aplicável é a vigente à data da dedução dos prejuízos e não a vigente nas datas em que os mesmos foram apurados, sendo que o que está em causa nos presentes autos é não a existência dos prejuízos fiscais apurados nos exercícios de 2003 e de 2004, mas, antes, a sua dedutibilidade ao lucro tributável do exercício de 2009, ou seja, se estavam a ser observados os pressupostos de dedutibilidade previstos na referida norma.
Mais refere que o disposto no artigo 47º na redacção em vigor à data dos factos, determinava uma nova causa de exclusão do direito ao reporte de prejuízos, quando ocorresse uma alteração substancial entre o fim do período em que se pretendia proceder à dedução em comparação com o fim do período de tributação em que foram gerados esses prejuízos, de modo que, estando apenas em causa os pressupostos da sua dedutibilidade ao lucro tributável do exercício de 2009, que se deixaram de verificar, não existe qualquer aplicação retroactiva da lei fiscal.

Que dizer?
Como se aponta na decisão recorrida, até à entrada em vigor da Lei nº 39-A/2005, de 29 de Julho (Orçamento de Estado Rectificativo para 2005) - em 3 de Agosto de 2005 -, o artigo 47º estipulava, no seu nº 8, que “O previsto no n.º 1 deixa de ser aplicável quando se verificar, à data do termo do período de tributação em que é efectuada a dedução, que foi modificado o objecto social da entidade a que respeita ou alterada, de forma substancial, a natureza da actividade anteriormente exercida”.
Com o Orçamento do Estado Rectificativo para o ano de 2005, o mencionado nº 8 do artigo 47º passou a ter a seguinte redacção: “O previsto no n.º 1 deixa de ser aplicável quando se verificar, à data do termo do período de tributação em que é efectuada a dedução, que, em relação àquele a que respeitam os prejuízos, foi modificado o objecto social da entidade a que respeita ou alterada, de forma substancial, a natureza da actividade anteriormente exercida ou que se verificou a alteração da titularidade de, pelo menos, 50% do capital social ou da maioria dos direitos de voto”.
Assim, nos termos da nova redacção do artigo 47º nº 8 do CIRC, a dedução de prejuízos deixará de ser aplicável quando se verificar, à data do termo do período de tributação em que é efectuada a dedução, que foi alterada a titularidade de, pelo menos, 50% do capital social ou da maioria dos direitos de voto.

Diga-se também que o art. 47º nº 8 do CIRC consagra uma cláusula anti-abuso especial, da qual consta, além do mais, uma nova causa de exclusão do direito ao reporte de prejuízos, a constatação de que no fim do período de tributação a que respeitam os lucros declarados, se verifique uma alteração da titularidade de, pelo menos, metade do capital ou de mais de metade dos direitos de voto, em comparação com o fim do período de tributação em que foram gerados os prejuízos cuja dedução se pretende. O normativo em exame introduziu no sistema do IRC um factor de aumento da matéria colectável exterior ao próprio sujeito passivo, posto que pode estar fora do controlo de uma sociedade (ou dos sócios) a transmissão de participações do seu próprio capital (cfr. v.g. transmissão de participações sociais no caso da transmissão “mortis causa”). A norma pretendia evitar que os sujeitos passivos realizassem operações de aquisição de capital de natureza meramente fiscal, em concreto, com a redução do lucro tributável através da dedução dos prejuízos fiscais gerados pela sociedade, ou seja, o legislador pretendeu evitar o “comércio de prejuízos” ou a prática de compra e venda de sociedades com prejuízos fiscais em dedução, com a finalidade de aproveitamento desses prejuízos por parte dos novos detentores do capital - Nuno de Oliveira Garcia, Prejuízos, menos e mais-valias, Casos de aplicação de normas anti-abuso específicas do Código do IRC, Fiscalidade, nº 29, Janeiro/Março de 2007, pág.105 e segs; Manuel Anselmo Torres, A portabilidade dos prejuízos fiscais, Reestruturação de Empresas e Limites do Planeamento Fiscal, Coimbra Editora, 2009, pág.111 e segs; Gustavo Lopes Courinha, A Cláusula Geral Anti-Abuso no Direito Tributário - Contributos Para a Sua Compreensão, Almedina, 2004, pág. 91 e segs).

No caso em análise, a decisão recorrida ponderou que “o regime de reporte de prejuízos consubstancia um regime que consagra, designadamente por força do princípio da solidariedade entre exercícios, a possibilidade de “deduzir” prejuízos fiscais apurados em determinado período de tributação, ao lucro tributável de períodos de tributação posteriores.
Assim, a introdução de uma nova limitação ao exercício desse direito apenas deverá valer para futuro, sob pena de inutilização de prejuízos relativamente aos quais a lei em vigor no exercício em que foram apurados não previa tal limitação para a sua “utilização” nos exercícios seguintes”, para depois concluir que “é nosso entendimento que a administração fiscal não podia aplicar a norma do artigo 47º, nº 2 do CIRC, na redacção introduzida Orçamento do Estado Rectificativo para o ano de 2005, para aferir da dedutibilidade dos prejuízos fiscais relativos aos anos de 2003 e 2004, por tal configurar uma aplicação retroactiva da lei fiscal, proibida pelo artigo 12º da LGT e pelo artigo 103º da CRP” situação que conduziu à procedência da impugnação.

O caso dos autos envolve o reporte de prejuízos fiscais apurados nos anos de 2003 e 2004 no exercício de 2009 (€ 247.728,52 + € 149.423,01), que nos termos do nº 1 do artigo 47º do CIRC, na redacção então em vigor, podiam ser deduzíveis nos seis exercícios posteriores, sendo que a alteração legal apontada veio adicionar mais um requisito negativo para efeitos de admissibilidade da dedução dos prejuízos fiscais: “alteração da titularidade de, pelo menos, 50% do capital social ou da maioria dos direitos de voto”.
Nesta sequência, a análise da Lei nº 39-A/2005, de 29-07 permite dizer que tal diploma não consagra qualquer norma especial de regime transitório, pelo que a mesma produz os seus efeitos para o futuro - artigo 12º nº 1 do C. Civil, o que significa que só é aplicável aos factos que consubstanciem uma “alteração da titularidade do capital social” ocorridos posteriormente à sua entrada em vigor.

Pois bem, os factos relativos às alterações à titularidade do capital social da Recorrida ocorreram no ano de 2009 - pontos 6) e 7) do probatório -, pelo que não há dúvida que ocorreram posteriormente à entrada em vigor daquela alteração legislativa, produzindo nessa medida os seus efeitos na delimitação negativa do direito à dedução dos prejuízos, o que quer dizer que não existe qualquer aplicação retroactiva da lei, uma vez que a respectiva previsão e estatuição tem por objecto um facto ocorrido na sua vigência.
Como já ficou dito, a sentença posta em crise refere que “a introdução de uma nova limitação ao exercício desse direito apenas deverá valer para futuro, sob pena de inutilização de prejuízos relativamente aos quais a lei em vigor no exercício em que foram apurados não previa tal limitação para a sua “utilização” nos exercícios seguintes”.
Ora, na medida em que constituem um requisito negativo que obsta à dedução dos prejuízos fiscais apurados nos anos anteriores, independentemente do ano em que estes tenham sido apurados, é certo que acaba por restringir para futuro os efeitos de factos ocorridos anteriormente à data da sua vigência (limitando nessa medida a dedução dos prejuízos), mas essa limitação decorre de um facto autónomo ocorrido na vigência da norma anti-abuso e que o legislador erigiu como de interesse prevalecente sobre o direito genérico da dedução dos prejuízos fiscais consagrado no nº 1 do artigo 47º do CIRC.
Como assim, tal como refere o Ex.mo Magistrado do Ministério Público, o facto da aplicação da nova redacção do nº 8 do artigo 47º do CIRC implicar a restrição do direito à dedução de prejuízos apurados em períodos anteriores à sua vigência, não consubstancia aplicação retroactiva da lei, por estar em causa a aplicação da norma anti-abuso prevista na norma apontada, que a partir de 2005 alargou os limites negativos ao reporte de prejuízos e, ao contrário do decidido, temos por claro que não existe aqui qualquer aplicação retroactiva da lei fiscal, proibida pelo artigo 12º da LGT e pelo artigo 103º da CRP, dado que, não só estamos perante a aplicação da lei a facto ocorrido na sua vigência, como não há violação do princípio da protecção da confiança, uma vez que o legislador não está impedido de criar novas cláusulas específicas anti-abuso, como no ano de 2009, altura da alteração da titularidade do capital social, o sujeito passivo já tinha conhecimento que o requisito da “alteração da titularidade de, pelo menos, 50% do capital social ou da maioria dos direitos de voto” implicava a restrição na dedução dos prejuízos fiscais registados anteriormente.

Neste domínio, o acórdão do TC nº 85/2010, de 03/03/2010, no qual, citando anterior aresto - Ac. 287/90 considerou que: «De acordo com esta jurisprudência sobre o princípio da segurança jurídica na vertente material da confiança, para que esta última seja tutelada é necessário que se reúnam dois pressupostos essenciais:
a) a afectação de expectativas, em sentido desfavorável, será inadmissível, quando constitua uma mutação da ordem jurídica com que, razoavelmente, os destinatários das normas dela constantes não possam contar; e ainda
b) quando não for ditada pela necessidade de salvaguardar direitos ou interesses constitucionalmente protegidos que devam considerar-se prevalecentes (deve recorrer-se, aqui, ao princípio da proporcionalidade, explicitamente consagrado, a propósito dos direitos, liberdades e garantias, no n.º 2 do artigo 18.º da Constituição).
Os dois critérios enunciados (e que são igualmente expressos noutra jurisprudência do Tribunal) são, no fundo, reconduzíveis a quatro diferentes requisitos ou “testes”. Para que haja lugar à tutela jurídico-constitucional da «confiança» é necessário, em primeiro lugar, que o Estado (mormente o legislador) tenha encetado comportamentos capazes de gerar nos privados «expectativas» de continuidade; depois, devem tais expectativas ser legítimas, justificadas e fundadas em boas razões; em terceiro lugar, devem os privados ter feito planos de vida tendo em conta a perspectiva de continuidade do «comportamento» estadual; por último, é ainda necessário que não ocorram razões de interesse público que justifiquem, em ponderação, a não continuidade do comportamento que gerou a situação de expectativa.
Este princípio postula, pois, uma ideia de protecção da confiança dos cidadãos e da comunidade na estabilidade da ordem jurídica e na constância da actuação do Estado. Todavia, a confiança, aqui, não é uma confiança qualquer: se ela não reunir os quatro requisitos que acima ficaram formulados a Constituição não lhe atribui protecção.
Por isso, disse-se ainda no Acórdão n.º 287/90 – e importa ter este dito presente no caso – que, em princípio, e tendo em conta a autorevisibilidade das leis, «não há (…) um direito à não-frustração de expectativas jurídicas ou a manutenção do regime legal em relações jurídicas duradoiras ou relativamente a factos complexos já parcialmente realizados».

Perante o carácter assertivo do que ficou exposto, tem de concluir-se que a decisão recorrida merece a censura feita pela Recorrente, por errónea interpretação e aplicação do disposto no artigo 47º do CIRC e do disposto no artigo 12º da LGT, o que implica a procedência do presente recurso, com a consequente revogação da sentença posta em crise nos autos.


4. DECISÃO

Nestes termos, acordam em conferência os juízes da Secção de Contencioso Tributário deste Tribunal, de harmonia com os poderes conferidos pelo art. 202.º da Constituição da República Portuguesa, em conceder provimento ao recurso jurisdicional interposto pela Recorrente, revogar a decisão recorrida e julgar improcedente a presente impugnação judicial.

Custas pela Recorrida.

Notifique-se. D.N..




Lisboa, 10 de Novembro de 2021. – Pedro Nuno Pinto Vergueiro (relator) – Jorge Miguel Barroso de Aragão Seia - Nuno Filipe Morgado Teixeira Bastos.