Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0820/19.2BEAVR
Data do Acordão:07/01/2020
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:JOSÉ GOMES CORREIA
Descritores:CONTRA-ORDENAÇÃO
RECURSO JURISDICIONAL
COMPETÊNCIA EM RAZÃO DA HIERARQUIA
Sumário:I - O Supremo Tribunal Administrativo tem a sua competência em sede contra-ordenacional demarcada pelo n.º 2 do art. 83.º do RGIT, que determina: «Se o fundamento exclusivo do recurso for matéria de direito, é directamente interposto para a Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo».
II - Em sede de recurso jurisdicional da decisão judicial que apreciou o recurso da decisão de aplicação da coima, suscitando a recorrente, a não prova da falta de notificação do auto de notícia e questões sobre a imputação subjectiva da culpa ao agente e à aplicação do instituto da reincidência conexas, pois, com o concreto grau de culpa na prática da infracção (cfr. n.º 1 do art. 32.º do RGIT) e sobre o reconhecimento da sua responsabilidade (cfr. n.º 2 do art. 32.º do RGIT), é de considerar estarmos perante questões de facto, na medida em que se trata de juízos a efectuar exclusivamente com base nos factos provados, com base na livre convicção do julgador e com recurso às regras de experiência.
Nº Convencional:JSTA000P26142
Nº do Documento:SA2202007010820/19
Data de Entrada:02/18/2020
Recorrente:A............, LDA
Recorrido 1:AT- AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA E OUTROS
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: Acordam, em conferência, na Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo

1 – Relatório

Vem interposto recurso jurisdicional por A………………… Lda., melhor identificada nos autos, visando a revogação da sentença de 24-11-2019, do Tribunal Administrativo e Fiscal de Aveiro, que julgou improcedente o recurso de contra-ordenação interposto, mantendo a decisão de condenação no pagamento da coima de 2.238,89€, e custas processuais no valor de 76,50€, relativas à autoria do ilícito fiscal por falta de entrega da prestação do IVA.

Inconformada, nas suas alegações, a recorrente A…………….. Lda. Formulou as seguintes conclusões:

“1.º A Arguida apresentou o respetivo recurso contraordenacional, ao abrigo do artigo 80.º do Regime Geral das Contraordenações, por via eletrónica com assinatura digital, no dia 14-08-2019.
2.º No corpo do próprio texto do recurso, a Arguida invocou a nulidade da decisão contraordenacional porque nunca tinha sido notificada do auto de notícia.
3.º A referida nulidade foi indeferida, porquanto o Tribunal recorrido entendeu que a arguida não tinha que ser notificada do auto de notícia.
4.º A dita notificação é essencial, já que permite ao arguido contraordenacional aferir o respeito pelas atribuições e competências do respetivo autuante e pessoa coletiva pública.
5.º Vale isto por dizer que em toda a fase organicamente administrativa, a arguida nunca pôde aferir das atribuições e competências do órgão e do agente administrativo que criou o referido auto de notícia.
6.º Aliás, tais dúvidas permanecem, atenta a impossibilidade genérica de delegação de competências, prevista no artigo 34.º, número 2 e 3, a contrario do Regime Geral das Contraordenações e do artigo 59.º, alínea l do Regime Geral das Contraordenações.
7.º De resto, já este Supremo Tribunal se pronunciou em semelhante sentido, no acórdão de 30-05-2018, processo n.º 0269/18, disponível no sítio em linha www.dgsi.pt
8.º Desta forma, o auto de notícia presente nos autos (essencial à decisão recorrida) é prova proibida, por violação dos direitos de defesa da Arguida, o que provoca a nulidade da sentença, por força do artigo 122.º, número 1, artigo 379.º, numero 2 e artigo 412.º, número 3, todos do Código de Processo Penal, ex vi artigo 41.º do Regime Geral das Contraordenações, por força do art.º 3.º do Regime Geral das Infrações Tributárias.
9.º Nestes termos, tendo o Tribunal recorrido admitido como válida uma prova proibida, a douta sentença incorre no vício de direito, o qual gera a nulidade da sentença, o que se invoca.
10.º O princípio da publicidade implica que qualquer ato derivado dos poderes públicos não produza efeitos enquanto o respetivo destinatário não o conhece ou não tem a possibilidade de o conhecer (1).
11.º Nesse sentido, há uma proibição de atos secretos dos poderes públicos (geheime Agieren der Verwaltung) dotados de eficácia externa.
12.º A notificação consiste no instrumento formal e oficial que possibilita a produção de efeitos de um ato cujo destinatário está devidamente individualizado. Assim, nos atos administrativos, tendo em conta que o destinatário está, em regra, individualizado, o princípio da publicidade obriga que, para que não haja atos secretos, o ato seja levado ao conhecimento do destinatário determinado através da notificação.
13.º Por força do artigo 268.º, número 3 da Constituição, a notificação não deve limitar-se a dar conhecimento da existência de determinado ato, mas deve igualmente incluir a totalidade do ato comunicado.
14.º O conteúdo da notificação há-de ser, por isso, o próprio ato.
15.º O ato que está a ser notificado tem de acompanhar obrigatoriamente a própria notificação – só assim se garante que o ato chegou à esfera de cognoscibilidade média do destinatário.
16.º O Tribunal recorrido, no ponto 4 dos factos provados da douta sentença, dá como provado que a autoridade administrativa praticou uma decisão contraordenacional que foi notificada à arguida.
17.º Para surpresa da Arguida – e permita-se o desabafo, não se olvida que também será a surpreendente para este Supremo Tribunal, a Arguida nunca recorreu da decisão referida no ponto 4 dos factos provados.
18.º A Arguida nunca foi notificada de outras decisões contraordenacionais, com outras fundamentações (“atos de ocultação, benefício económico, frequência da prática, negligência, obrigação de não cometer a infração, situação económica e financeira, tempo decorrido desde a prática da infração.
19.º Na decisão de que a Arguida recorreu não havia uma linha que provasse qualquer imputação subjetiva.
20.º Em suma, a Arguida foi notificada de uma decisão contraordenacional, recorreu da mesma, e foi surpreendida na decisão judicial ora recorrida com outra decisão contraordenacional, porventura mais fundamentada.
21.º Não deixa de ser aliás paradigmático que a decisão contraordenacional que o Tribunal recorrido suportou o seu entendimento tenha a data de 21-08-2019, e o recurso contraordenacional tenha dado entrada nos serviços competentes no dia 13-08-2019 – oito dias antes.
22.º Assim sendo, como se julga ser claro, não podia o Tribunal recorrido fundamentar a sentença numa decisão contraordenacional que à data do recurso contraordenacional, não existia; e de que a Arguida não recorreu.
23.º Exatamente nestes termos, veja-se a jurisprudência deste Supremo Tribunal, de 18-04-2018, processo n.º 0137/18, disponível no sítio em linha www.dgsi.pt..
24.º Desta forma, as decisões contraordenacionais (essenciais à decisão recorrida) são prova proibida, por violação dos direitos de defesa da Arguida e do princípio da publicidade, o que provoca a nulidade da sentença, por força do artigo 122.º, número 1, artigo 379.º, número 2 e artigo 412.º, número 3, todos do Código de Processo Penal, ex vi artigo 41.º do Regime Geral das Contraordenações, por força do art.º 3.º do Regime Geral das Infrações Tributárias.
25.º Nestes termos, tendo o Tribunal recorrido admitido como válida uma prova proibida, a douta sentença incorre no vício de direito, o qual gera a nulidade da sentença, o que se invoca.
26.º A autoridade administrativa não produziu qualquer prova sobre a imputação subjetiva da culpa do agente;
27.º E o Tribunal recorrido, apesar de dar como provados factos sem qualquer produção de prova, teve o entendimento de que «a omissão da entrega do imposto devido, no prazo para o efeito, constitui por si só o tipo de ilícito subjectivo negligente»
28.º Assim, entendeu o Tribunal recorrido que é suficiente a simples menção da negligência.
29.º Salvo o devido respeito, que é muito, entende o Tribunal recorrido que a mera aposição da «negligência» serve de fundamento para imputar subjetivamente a culpa do agente.
30.º Não teve o Tribunal recorrido em conta que em qualquer Direito sancionatório, onde se inclui o Direito contraordenacional, (1) a culpa é pressuposta da sanção; (2) a culpa é a medida da sanção; e (4) a culpa não se presume.
31.º Grosso modo, sob pena da violação da Convenção Europeia dos Direitos do Homem (artigo 6.º) e do princípio da proporcionalidade previsto no artigo 18.º, número 2 da Constituição, a responsabilidade contraordenacional é uma responsabilidade subjetiva.
32.º E o facto de se permitir que no Direito contraordenacional a prova da culpa seja menos exigente que a do Direito penal, não fundamenta a permissão jurisdicional de que a mera referência à negligência permite a responsabilidade subjetiva contraordenacional.
33.º Dito de outra forma: o enfraquecimento do controlo jurisdicional da prova da culpa no domínio contraordenacional, além de inconstitucional, por violação do princípio da culpa, dá o sinal preocupante de que a autoridade administrativa pode, a seu bel-prazer, transfigurar a responsabilidade sancionatória contraordenacional numa responsabilidade administrativa – com intuitos financeiros.
34.º Sendo esse o caminho da autoridade administrativa na fase organicamente administrativa, entende-se não dever ser esse o caminho dos órgãos jurisdicionais.
35.º Pior ainda, quando é o próprio tribunal que, erradamente, se substitui à autoridade administrativa, aprofundando a decisão condenatória.
36.º De facto, na decisão de que a Arguida recorreu não havia uma linha relacionada com qualquer imputação subjetiva de factos.
37.º Desta forma, a decisão contraordenacional é nula, por violação dos direitos de defesa da Arguida, o que provoca a nulidade da sentença, por força do artigo 122.º, número 1, artigo 379.º, número 2 e artigo 412.º, número 3, todos do Código de Processo Penal, ex vi artigo 41.º do Regime Geral das Contraordenações, por força do art.º 3.º do Regime Geral das Infrações Tributárias.
38.º Da decisão recorrida, consta que houve a aplicação do instituto da reincidência.
39.º Não há uma linha nos autos que provem ou fundamentem esta reincidência.
40.º Desta forma, a decisão contraordenacional é nula, por violação dos direitos de defesa da Arguida, o que provoca a nulidade da sentença, por força do artigo 122.º, número 1, artigo 379.º, número 2 e artigo 412.º, número 3, todos do Código de Processo Penal, ex vi artigo 41.º do Regime Geral das Contraordenações, por força do art.º 3.º do Regime Geral das Infrações Tributárias.
TERMOS EM QUE,
Deve ser concedido provimento ao presente recurso, proferindo-se douto Acórdão que decida pela revogação da, aliás douta, sentença recorrida.
NESTES TERMOS,
Farão V.ªs Ex.ªs, Colendos Conselheiros, a habitual e sempre esperada JUSTIÇA.

Não foram apresentadas contra-alegações.

Neste Supremo Tribunal, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto pronunciou-se no sentido da improcedência do recurso no seguinte parecer:

“A………………………. Lda., veio interpor o presente recurso da sentença proferida pelo TAF de Aveiro, que julgou improcedente o recurso de contraordenação e em consequência manteve a decisão recorrida.
Alega a nulidade da sentença por esta se fundamentar em prova nula. Isto é, considera que os autos de notícia suportam a decisão recorrida, pese embora a ora Recorrente nunca tenha sido notificada do teor do mesmo.
Argumenta também, existir nulidade da decisão por violação do princípio da publicidade, do princípio da culpa e do princípio da presunção de inocência.
Não foram apresentadas contra-alegações.
Vejamos em primeiro lugar a falta de notificação do auto de notícia.
A arguida refere repetidamente que não foi notificada dos autos de notícia, tendo apenas sido notificada para apresentação de defesa ou pagamento antecipado da coima.
Ora, pese embora não tenha sido notificado à arguida o auto de notícia, a mesma foi notificada nos termos constantes de fls., onde se incluem todos os factos vertidos no auto de notícia, o que salvaguardou o seu direito de defesa.
Logo terá de improceder o recurso neste concerne.
Quanto à invocada nulidade da decisão por violação do princípio da publicidade, partilhamos a opinião vertida no despacho de sustentação da decisão, pelo que nada mais temos a acrescentar.
No que concerne à violação do princípio da culpa, sempre se dirá na sequência da linha da sentença recorrida, que não se vê que da decisão de aplicação da coima recorrida padeça do vício que lhe é assacado.
Com efeito, para além de conter a descrição sumária dos factos e a indicação das normas violadas e punitivas, como é exigido pelo art. 79º, nº, al. b) do RGIT, contém ainda, em conformidade com a al. c) do mesmo preceito, a indicação dos elementos que contribuíram para a fixação da coima. E se bem que elementar, esse facto não prejudica o exercício dos direitos de defesa do arguido pois, como é jurisprudência deste STA, sendo a coima fixada no limite mínimo abstratamente aplicável, como é o caso, ou num valor próximo desse limite, a indicação dos elementos que contribuíram para a fixação da coima, perde o seu significado essencial: o arguido não tem necessidade de conhecer os elementos que contribuíram para a fixação da coima pois não pode diminuir o seu valor (…) (nesse sentido, entre outros, os Acs.de 2.11.2006, proc. 045/06 e de 2.12.2006, proc. 01045/06).
Quanto à apontada violação do princípio da presunção de inocência, mesmo não se alcançando a presumida alegada violação do princípio constitucional da presunção de inocência, sempre se consigna mas somente que, in casu, mormente no sobredito entendimento aplicado pelo Tribunal resulta intocado tal princípio, carecendo por conseguinte de qualquer fundamento, a presumida alegada respetiva.
Assim, em face de todo o exposto e em conclusão, emito parecer no sentido da improcedência do recurso, mantendo-se a sentença recorrida.”
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Os autos vêm à conferência corridos os vistos legais.
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2. FUNDAMENTAÇÃO:

2.1. - Dos Factos:

Na decisão recorrida foi fixado o seguinte probatório reputado relevante para a decisão:

1. Em 22 de Maio de 2019, a Recorrida levantou o auto de notícia que abaixo se reproduz (fls. 7 dos autos em suporte físico):





2. Em 29 de Maio de 2019, a Recorrente recebeu o documento «Notificação para apresentação de defesa ou pagamento antecipado da coima (art. 70.º, n.º 1 do Regime Geral das Infracções Tributárias - RGIT)», com o conteúdo que abaixo se reproduz (fls. 36 dos autos em suporte físico):






3. Em 14 de Junho de 2019, o Chefe do Serviço de Finanças em exercício decidiu a fixação da coima, nos termos em que abaixo se reproduz (fls. 10,11 e 12 dos autos):














4. Em 26 de Junho de 2019, a Recorrente foi notificada da decisão referida em 3, nos termos abaixo reproduzidos (fls. 29 e 36 dos autos em suporte físico):




5. Em 13 de Agosto de 2019, a Recorrente interpôs junto do Serviço de Finanças de Espinho o presente recurso contra-ordenacional (fls. 14 dos autos em suporte físico).
6. Em 09 de Setembro de 2019, o presente recurso de contra-ordenação deu entrada no Tribunal Administrativo e Fiscal de Aveiro (fls. 2 dos autos em suporte físico).

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2.2.- Motivação de Direito

Sendo o objecto do recurso delimitado pelas conclusões das respectivas alegações, no caso, em face dos termos em que aquelas foram enunciadas pela recorrente, as questões que cumpre decidir subsumem-se a saber se a decisão vertida na sentença, a qual julgou improcedente o recurso:
i) padece de nulidade por falta de notificação do auto de notícia;
ii) padece de nulidade por violação do princípio da publicidade, do princípio da culpa e do princípio da presunção de inocência.
Previamente e em face da alegação aduzida pela Recorrente, há que ajuizar da competência deste Supremo Tribunal para conhecer do recurso, designadamente da competência em razão da hierarquia, que determina a incompetência absoluta do tribunal, a qual é do conhecimento oficioso e pode ser arguida até ao trânsito em julgado da decisão final [cfr. art. 32.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, aplicável ex vi do art. 3.º, alínea b), do RGIT e do art. 41.º, n.º 1, do Regime Geral das Contra-Ordenações (RGCO), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro].
Nos termos do disposto nos arts. 26.º, alínea b), e 38.º, alínea a), do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF), aprovado pela Lei n.º 13/2002, de 19 de Fevereiro, a competência para conhecer dos recursos das decisões dos tribunais tributários de 1.ª instância em matéria de contencioso tributário, pertence à Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo quando os recursos tenham por exclusivo fundamento matéria de direito, constituindo uma excepção à competência generalizada dos tribunais centrais administrativos, aos quais cabe conhecer «dos recursos de decisões dos Tribunais Tributários, salvo o disposto na alínea b) do artigo 26.º» [art. 38.º, alínea a), do ETAF].
Em consonância com estas normas, o art. 83.º, n.ºs 1 e 2, do RGIT prescreve que das decisões dos tribunais tributários de 1.ª instância cabe recurso para o tribunal central administrativo (que seja territorialmente competente na área do tribunal tributário que proferiu a decisão recorrida), salvo se a matéria do mesmo for exclusivamente de direito, caso em que competirá à Secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo.
Assim, para aferir da competência em razão da hierarquia do Supremo Tribunal Administrativo, há que observar as conclusões da alegação do recurso e apurar se, em face das mesmas, as questões controvertidas se resolvem mediante uma exclusiva actividade de aplicação e interpretação de normas jurídicas, ou se, pelo contrário, implicam a necessidade de dirimir questões de facto, nomeadamente e no que ao caso em exame importa, em face de uma divergência do juízo ou ilação retirada pelo julgador da factualidade que se encontra fixada ou em face da formulação pela recorrente de um juízo ou ilação a extrair de factualidade que considera dever ter sido dada como provada.
No caso, a Recorrente, em ordem a demonstrar a verificação da nulidade da decisão por falta de notificação do auto de notícia refere reiteradamente que não foi notificada dos autos de notícia, tendo apenas sido notificada para apresentação de defesa ou pagamento antecipado da coima, afirmando a tal propósito nas conclusões alegatórias 16º a 25º, que:
“O Tribunal recorrido, no ponto 4 dos factos provados da douta sentença, dá como provado que a autoridade administrativa praticou uma decisão contraordenacional que foi notificada à arguida;
Para surpresa da Arguida – e permita-se o desabafo, não se olvida que também será a surpreendente para este Supremo Tribunal, a Arguida nunca recorreu da decisão referida no ponto 4 dos factos provados;
A Arguida nunca foi notificada de outras decisões contraordenacionais, com outras fundamentações (“atos de ocultação, benefício económico, frequência da prática, negligência, obrigação de não cometer a infração, situação económica e financeira, tempo decorrido desde a prática da infracção;
Na decisão de que a Arguida recorreu não havia uma linha que provasse qualquer imputação subjectiva;
Em suma, a Arguida foi notificada de uma decisão contraordenacional, recorreu da mesma, e foi surpreendida na decisão judicial ora recorrida com outra decisão contraordenacional, porventura mais fundamentada; Não deixa de ser aliás paradigmático que a decisão contraordenacional que o Tribunal recorrido suportou o seu entendimento tenha a data de 21-08-2019, e o recurso contraordenacional tenha dado entrada nos serviços competentes no dia 13-08-2019 – oito dias antes;
Assim sendo, como se julga ser claro, não podia o Tribunal recorrido fundamentar a sentença numa decisão contraordenacional que à data do recurso contraordenacional, não existia; e de que a Arguida não recorreu.
Exatamente nestes termos, veja-se a jurisprudência deste Supremo Tribunal, de 18-04-2018, processo n.º 0137/18, disponível no sítio em linha www.dgsi.pt..
Desta forma, as decisões contraordenacionais (essenciais à decisão recorrida) são prova proibida, por violação dos direitos de defesa da Arguida e do princípio da publicidade, o que provoca a nulidade da sentença, por força do artigo 122.º, número 1, artigo 379.º, número 2 e artigo 412.º, número 3, todos do Código de Processo Penal, ex vi artigo 41.º do Regime Geral das Contraordenações, por força do art.º 3.º do Regime Geral das Infrações Tributárias.
Nestes termos, tendo o Tribunal recorrido admitido como válida uma prova proibida, a douta sentença incorre no vício de direito, o qual gera a nulidade da sentença, o que se invoca.”
Na vertente da imputação subjectiva da culpa ao agente, afirma a recorrente nas conclusões 26º a 37º, que:
“A autoridade administrativa não produziu qualquer prova sobre a imputação subjetiva da culpa do agente;
E o Tribunal recorrido, apesar de dar como provados factos sem qualquer produção de prova, teve o entendimento de que «a omissão da entrega do imposto devido, no prazo para o efeito, constitui por si só o tipo de ilícito subjectivo negligente»,
Assim, entendeu o Tribunal recorrido que é suficiente a simples menção da negligência;
Salvo o devido respeito, que é muito, entende o Tribunal recorrido que a mera aposição da «negligência» serve de fundamento para imputar subjetivamente a culpa do agente;
Não teve o Tribunal recorrido em conta que em qualquer Direito sancionatório, onde se inclui o Direito contraordenacional, (1) a culpa é pressuposta da sanção; (2) a culpa é a medida da sanção; e (4) a culpa não se presume;
Grosso modo, sob pena da violação da Convenção Europeia dos Direitos do Homem (artigo 6.º) e do princípio da proporcionalidade previsto no artigo 18.º, número 2 da Constituição, a responsabilidade contraordenacional é uma responsabilidade subjectiva;
E o facto de se permitir que no Direito contraordenacional a prova da culpa seja menos exigente que a do Direito penal, não fundamenta a permissão jurisdicional de que a mera referência à negligência permite a responsabilidade subjetiva contraordenacional;
Dito de outra forma: o enfraquecimento do controlo jurisdicional da prova da culpa no domínio contraordenacional, além de inconstitucional, por violação do princípio da culpa, dá o sinal preocupante de que a autoridade administrativa pode, a seu bel-prazer, transfigurar a responsabilidade sancionatória contraordenacional numa responsabilidade administrativa – com intuitos financeiros;
Sendo esse o caminho da autoridade administrativa na fase organicamente administrativa, entende-se não dever ser esse o caminho dos órgãos jurisdicionais; Pior ainda, quando é o próprio tribunal que, erradamente, se substitui à autoridade administrativa, aprofundando a decisão condenatória;
De facto, na decisão de que a Arguida recorreu não havia uma linha relacionada com qualquer imputação subjetiva de factos; Desta forma, a decisão contraordenacional é nula, por violação dos direitos de defesa da Arguida, o que provoca a nulidade da sentença, por força do artigo 122.º, número 1, artigo 379.º, número 2 e artigo 412.º, número 3, todos do Código de Processo Penal, ex vi artigo 41.º do Regime Geral das Contraordenações, por força do art.º 3.º do Regime Geral das Infrações Tributárias.”
Por fim e no que tange à aplicação do instituto da reincidência assevera nas conclusões 38º e ss que:
“Da decisão recorrida, consta que houve a aplicação do instituto da reincidência.
Não há uma linha nos autos que provem ou fundamentem esta reincidência.
Desta forma, a decisão contraordenacional é nula, por violação dos direitos de defesa da Arguida, o que provoca a nulidade da sentença, por força do artigo 122.º, número 1, artigo 379.º, número 2 e artigo 412.º, número 3, todos do Código de Processo Penal, ex vi artigo 41.º do Regime Geral das Contraordenações, por força do art.º 3.º do Regime Geral das Infrações Tributárias.”
A nosso ver, quer o juízo sobre o grau da culpa na prática da infracção quer o juízo sobre o reconhecimento pela Arguida da responsabilidade pela infracção, bem como a sua não notificação e a aplicação do instituto da reincidência nos termos em que vêm configuradas, se reconduzem a questões de facto, porquanto têm de ser inferidos de factos materiais, apreciados segundo a livre convicção do julgador e em conjugação com as regras da experiência comum, não requerendo o apelo à interpretação ou aplicação de quaisquer regras de direito (Neste sentido, vide JORGE LOPES DE SOUSA, Código de Procedimento e de Processo Tributário, Áreas Editora, 2011, 6.ª edição, volume I, nota 10 ao art. 16.º, pág. 223 e segs.
Tal como se expendeu nos Acórdãos deste STA-SCT ambos prolatados em 04-03-2020, nos Processos nºs 03404/15.0BESNT (0322/18) e 03408/15.3BESNT (0335/18), publicados em www.dgsi.pt, e cujo discurso fundamentador vamos acompanhar,
“De modo geral, pode dizer-se que são factos não só os acontecimentos externos, como os internos ou psíquicos, e tanto os reais, como os simplesmente hipotéticos. Existe matéria de facto quando o apuramento das realidades se faz todo à margem da aplicação directa da lei, isto é, quando se trata de averiguar factualidade cuja existência, ou inexistência, não depende da interpretação a dar a nenhuma norma jurídica. Por sua vez, existe matéria de direito sempre que, para se chegar a uma solução, se torna necessário recorrer a uma disposição legal e sua interpretação (cfr. ALBERTO DOS REIS, Código de Processo Civil Anotado, Coimbra Editora, 1985, volume III, pág. 206 e segs.; ANTUNES VARELA et al., Manual de Processo Civil, Coimbra Editora, 1985, 2ª. Edição, pág. 406 e segs.).
Na jurisprudência, por todos e entre muitos, vide o acórdão da Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo de 17 de Abril de 2002, proferido no processo com o n.º 26544, disponível em http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/26b7b78200d269f780256ba70037c7d9, onde ficou dito: «os juízos de facto, incluindo os de valor sobre matéria de facto, formulados a partir de critérios da experiência, passíveis de ser emitidos pelo homem comum, sem necessidade de apelo aos conhecimentos especializados do julgador, não estão senão ao alcance dos tribunais com poderes no domínio da fixação da matéria de facto. É o caso dos juízos feitos pelo Tribunal recorrido, ou, agora, pelo recorrente, quanto à matéria da culpa, das causas de exclusão, da impossibilidade de cumprimento, do conflito de deveres…».).
Ora, a formulação desses juízos de facto está excluída do âmbito da competência deste Supremo Tribunal, nos termos acima referidos.”
De outro modo, a Recorrente invoca expressamente a discordância com o que considera terem sido juízos de apreciação da prova efectuados pelo Tribunal a quo, assumindo uma clara divergência nas ilações de facto supostamente retiradas do probatório, como resulta da mera literalidade e do fio lógico condutor das conclusões supra transcritas.
Por fim e tal como também se consigna nos doutos arestos que nos servem de guia neste excurso discursivo, enfatize-se que, para efeitos da determinação da competência, não releva sequer saber se se impõe ou não a apreciação das invocadas questões de facto, bastando-nos um mero juízo perfunctório quanto à sua relevância em abstracto, pois o tribunal ad quem, antes de estar decidida a sua competência, não pode antecipar a sua posição sobre a solução da questão de direito, solução que cabe apenas ao tribunal que estiver já julgado competente.
É por isso injuntivo concluir pela incompetência em razão da hierarquia deste Supremo Tribunal para conhecer do presente recurso.
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3. DECISÃO:

Em face do exposto, acordam os juízes da Secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo, em conferência, em julgar este Supremo Tribunal incompetente em razão da hierarquia para conhecer do presente recurso e em declarar que a competência para o efeito é do Tribunal Central Administrativo Norte (Secção de Contencioso Tributário).
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Custas pela Recorrente.
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Lisboa, 1 de Julho de 2020. - José Gomes Correia (relator) – Nuno Filipe Morgado Teixeira Bastos – Gustavo André Simões Lopes Courinha.