Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0368/08.0BECTB
Data do Acordão:07/02/2020
Tribunal:1 SECÇÃO
Relator:CARLOS CARVALHO
Descritores:RESPONSABILIDADE CIVIL EXTRACONTRATUAL
FACTO ILÍCITO
PRESCRIÇÃO
PRAZO DE PRESCRIÇÃO
CONHECIMENTO DO DIREITO
PROCESSO PENAL
PRINCIPIO DA ADESÃO
PEDIDO DE INDEMNIZAÇÃO
COMPETÊNCIA DOS TRIBUNAIS ADMINISTRATIVOS
Sumário:I - O momento a partir do qual se inicia a contagem do prazo de prescrição é aquele em que o lesado teve «conhecimento do direito que lhe compete» [art. 498.º, n.º 1, do Código Civil (CC)], conhecimento este que não é, ou não significa, necessariamente conhecer na perfeição e na sua integralidade todos os elementos que compõem o dever de indemnizar, não se traduzindo na consciência de que haja uma possibilidade legal de ressarcimento.
II - A aplicação do prazo prescricional mais longo previsto no n.º 3 do art. 498.º do CC apenas depende da prova de que o facto ilícito constituía crime cujo prazo de prescrição do procedimento criminal era superior a três anos, para tal não sendo exigível nem a demonstração de que continua a ser possível a perseguição penal do agente do crime, nem o facto de os entes públicos não estarem sujeitos a responsabilidade criminal.
III - Não vigorando in casu o princípio de adesão [cfr. arts. 71.º e 72.º, n.º 1, al. f), do CPP] nada no quadro normativo permite ou autoriza a mudança do prazo prescricional, fazendo-o cair na previsão da regra geral do n.º 1 do art. 498.º do CC.
IV - Dado as sociedades demandadas revestirem natureza privada as mesmas não integram a previsão da al. g) do n.º 1 do art. 04.º do ETAF.
Nº Convencional:JSTA000P26180
Nº do Documento:SA1202007020368/08
Data de Entrada:09/16/2019
Recorrente:A............ E OUTROS
Recorrido 1:MUNICÍPIO DE CASTELO BRANCO E OUTROS
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: Acordam em conferência na Secção de Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo:
RELATÓRIO
1. A…………, B………… e C………… [doravante AA.], devidamente identificados nos autos, instauraram no Tribunal Administrativo e Fiscal de Castelo Branco [doravante TAF/CB], ação administrativa comum, sob forma ordinária, para efetivação de responsabilidade civil extracontratual contra «MUNICÍPIO DE CASTELO BRANCO», «D…………, SA», «E…………, LDA.» e «F…………., SA» [doravante RR.], formulando, pela motivação inserta na petição inicial [cfr. fls. 01/10 paginação «SITAF» - tal como as referências posteriores a paginação salvo expressa indicação em contrário], o seguinte pedido:
A) a título principal, condenação do R. Município a pagar i) «aos 1.º e 2.º AA. a quantia de 189.505,00 €, relativamente aos danos referidos em art. 22.º a 28.º da P.I.», ii) «à 3.ª A. a quantia de 128.478,00 €, relativa aos danos referidos no art. 30.º a 35.º da P.I.», iii) em liquidação ulterior «os danos causados aos AA., ainda não apurados», e iv) nos «juros que se vencerem desde a citação até efetivo pagamento …»;
B) a título subsidiário, caso o R. Município «venha a ser absolvido», a condenação dos 2.º a 4.º RR. a pagarem solidariamente i) «aos 1.º e 2.º AA. a quantia de 189.505,00 €, relativamente aos danos referidos em art. 22.º a 28.º da P.I.», ii) «à 3.ª A. a quantia de 128.478,00 €, relativa aos danos referidos no art. 30.º a 35.º da P.I.», iii) em liquidação ulterior «os danos causados aos AA., ainda não apurados», e iv) nos «juros que se vencerem desde a citação até efetivo pagamento …».

2. O TAF/CB por decisão de 08.07.2015 [cfr. fls. 576/608] veio, quanto ao pedido subsidiário, a julgar-se incompetente em razão da matéria, absolvendo da instância os 2.º a 4.º RR., sendo que, quanto ao pedido principal, julgou parte ilegítima o R. Município e que caso «assim, se não entendesse…», então julgou «procedente … a exceção perentória … da prescrição», absolvendo o referido R. dos pedidos que contra o mesmo haviam sido deduzidos.

3. Os AA., inconformados recorreram para o Tribunal Central Administrativo Sul [doravante TCA/S], o qual, por acórdão de 07.03.2019 [cfr. fls. 798/816], decidiu «julgar o Município de Castelo Branco parte legítima na causa e improcedente o recurso, confirmando a sentença proferida».

4. Invocando o disposto no art. 150.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos [CPTA] [na redação anterior à alteração introduzida pelo DL n.º 214-G/2015, de 02.10 (cfr. art. 15.º, n.ºs 1 e 2, do referido DL e art. 13.º, n.º 2, da Lei n.º 118/2019, de 17.09) - redação a que se reportarão todas as ulteriores referências àquele Código sem expressa indicação em contrário] a 3.ª A., de novo inconformada com o acórdão proferido pelo TCA/S, interpôs, então, o presente recurso jurisdicional de revista [cfr. fls. 829/848], apresentando o seguinte quadro conclusivo que se reproduz:
«...
1ª No caso dos autos, o douto acórdão do tribunal “a quo” declarou a prescrição do direito de indemnização da recorrente, por ter considerado que quem não tenha deduzido pedido civil no âmbito de um processo crime, tal acarreta a consequência de o prazo de prescrição do seu direito passar a ser o do regime geral do art. 498.º n.º 1 do CC, isto é 03 anos, não beneficiando da extensão do prazo de prescrição previsto no art. 498.º n.º 3 do CC;
Além disso o tribunal “a quo”, também, declarou a incompetência dos tribunais administrativos face ao pedido subsidiário deduzido. (…)
2.ª No douto acórdão recorrido os venerandos juízes desembargadores julgaram improcedente o recurso da recorrente, decidindo que apesar de o Município ter legitimidade passiva para a presente ação se verificou a prescrição do direito de indemnização da recorrente face ao Município e demais réus, para além de ter declarado a incompetência dos tribunais administrativos para apreciarem o pedido subsidiário.
3.ª A recorrente não se conforma com o decidido, quer quanto à prescrição quer quanto a incompetência dos tribunais administrativos para apreciarem o pedido subsidiário.
4.ª Nos presentes autos estamos face a um facto ilícito que tem por base um processo crime.
5.ª O tribunal recorrido fundou a sua decisão nas normas constantes do art. 272.º n.º 1 al. a) e n.º 3 conjugado com o art. 118.º n.º 1 al. b) todos do Cód. Penal, art. 498.º n.º 1 e 3, art. 323.º e 327.º todos do Cód. Civil. Considera a recorrente que a forma de interpretação dada pelo tribunal “a quo” foi incorreta.
6.ª Apesar, de a boa decisão da causa quanto à prescrição dos direitos se encontrar nestes preceitos legais e, ainda, no disposto no art. 306.º do Cód. Civil, contudo com uma outra interpretação, diferente da dada na decisão recorrida.
7.ª A prescrição do direito é única e corre independentemente da participação efetiva no processo crime como parte civil, demandante, demandado, arguido ou outra e/ou existência de processo crime. A ampliação do prazo prescricional prevista no n.º 3 do art. 498.º do CC não está dependente da efetiva instauração de processo penal, mas apenas da alegação (e posterior prova), em sede de petição inicial, por parte dos demandantes de factos, dos quais decorra que o facto ilícito em que ancoram o direito indemnizatório a que se arrogam titulares, preenche os elementos objetivos e subjetivos de um tipo legal de crime, em relação ao qual a lei penal preveja um prazo de prescrição superior aos três anos previstos no art. 498.º n.º 1 do CC.
8.ª Sendo que o prazo de prescrição mais longo se aplica a todos os lesados e aos direta, indireta e/ou subsidiariamente responsáveis pela lesão. Não estando dependente do efetivo exercício de procedimento criminal.
9.ª A pendência do processo-crime (inquérito) representa uma interrupção contínua ou continuada que cessará naturalmente quando o lesado for notificado do arquivamento (ou desfecho final) do processo crime adrede instaurado. Só depois de esgotadas as possibilidades de punição criminal ficará o lesado habilitado a deduzir, em separado, a ação de indemnização, face ao disposto no n.º 1 do art. 306.º do C. Civil.
10.ª Assim, considera a recorrente que a forma correta de interpretar os art. 272.º n.º 1 al. a) e n.º 3 conjugado com o art. 118.º n.º 1 al. b) do Cód. Penal; art. 498.º n.º 1 e 3; art. 323.º e 327.º todos do Cód. Civil, sinteticamente é de que no caso em apreço nos autos os factos alegados na P.I. (cfr. arts. 1.º a 13.º da P.I.) consubstanciam em abstrato o tipo de crime de incêndio para o qual o prazo de prescrição penal é dez anos, atento o disposto no art. 272.º n.º 1 al. a) e n.º 3 conjugado com o art. 118.º n.º 1 al. b) do Cód. Penal.
11.ª Assim, a prescrição do direito de indemnização é de dez anos e não de três anos, tal como decorre da interpretação conjugada do art. 498.º n.º 1 e 3 do Cód. Civil.
12.ª Enquanto perdurar o inquérito e até ao arquivamento ou a acusação ocorre a interrupção do prazo de prescrição de prazo mais longo, o qual só inicia o seu curso nessa altura (art. 306.º n.º 1 do CC). Interrompendo-se, de novo, face às partes que vierem a ser citadas no âmbito do processo crime (arts. 323.º e 326.º do CC).
13.ª Concretizando, o incêndio ocorreu em 26/07/2004. O prazo de prescrição esteve interrompido durante o inquérito tendo-se iniciado a sua contagem 27/02/2007 altura em que o arguido no processo crime foi pronunciado, isto é, altura em que se estabilizou a ordem jurídico-penal após o inicial arquivamento. A partir de 27/02/2007 iniciou-se a contagem do prazo de prescrição de dez anos. A ação foi proposta junto do TAF contra todos os réus em 05/09/2008, isto é, volvido pouco mais de um ano sobre o início da prescrição de dez anos que é oponível a todos os réus, inclusive, ao município face ao supra exposto. Tendo-se por interrompida cinco dias após a propositura da ação, nos termos do art. 323.º n.º 2 do CC.
14.ª Assim, não se mostra prescrito o direito à indemnização da recorrente.
15.ª Interpretar o art. 498.º n.º 1 e 3 do CC da forma como o fez o tribunal “a quo” de modo bipartido, consoante a interpelação ou não no processo crime dos responsáveis civis viola o princípio da igualdade previsto no art. 13.º da Constituição da República Portuguesa, pois trata situações idênticas de forma desigual. Inconstitucionalidade que expressamente se invoca para os devidos e legais efeitos.
16.ª Do pedido subsidiário
O tribunal “a quo” considerou inadmissível o pedido subsidiário por extravasar a competência do TAF, uma vez que não se funda numa relação jurídico-administrativa.
Apesar de não figurar qualquer entidade pública como demandada no pedido subsidiário consideram os recorrentes que o tribunal administrativo é competente para o decidir, face à acessoriedade, pois a causa subordinada é objetivamente conexa e dependente do pedido da causa principal; à complementaridade, ambas as relações são autónomas pelo seu objeto, mas uma delas é convertida, por vontade das partes, em complemento da outra; e na sua dependência, qualquer das relações é objetivamente autónoma como na complementaridade, simplesmente o nexo entre ambas é de tal ordem que a relação dependente não pode viver desligada da relação principal.
Isto é, as relações entre os pedidos formulados são de tal modo “fortes” que a competência dos tribunais administrativos em razão da matéria para apreciar o pedido principal “contamina” o pedido subsidiário, levando consequentemente a uma extensão de competência dos tribunais administrativos para apreciar o pedido subsidiário …».

5. Devidamente notificados os RR., aqui ora recorridos, apenas o R. Município veio produzir contra-alegações [cfr. fls. 866/879], concluindo nos seguintes termos:
«...
De qualquer modo e caso o recurso de revista excecional seja admitido,
4. O recorrido revê-se inteiramente no teor do douto acórdão do TCA-Sul prolatado em 7.03.2019;
5. Quanto à aplicação à recorrente do prazo prescricional no n.º 3 do art. 498.º CC há que ter em conta os limites subjetivos da interrupção da prescrição, sendo a regra a de que a interrupção só produz efeitos relativamente às pessoas entre as quais se verifica;
6. Não tendo o recorrente intervindo no processo crime em ordem de pedir judicialmente o seu direito à indemnização ao abrigo do instituto da responsabilidade civil extracontratual, tal tem como consequência nos termos gerais de direito previstos no n.º 1 do art. 498.º do CC que o prazo de 3 anos começa a contar da data em que o lesado teve conhecimento do dano;
7. Não lhe podendo aproveitar o regime do n.º 3 do art. 498.º CC;
8. Tendo a ora recorrente instaurado a ação no TAF em 5.09.2008 o “termo ad quem” do prazo de prescrição de 3 anos já tinha ocorrido, mostrando-se o seu direito à indemnização prescrito desde dezembro de 2007, pelo facto do incêndio ter ocorrido em 2004;
9. Não tendo os recorrentes deduzido pedido cível contra o ora recorrido que não foi citado, não tem aplicação o regime interruptivo do art. 323.º, n.º 1 do CC, aplicando-se o prazo prescricional de 3 anos, nos termos do art. 498.º, n.º 1 CC;
10. O direito à indemnização no referente ao Município de Castelo Branco, mostra-se prescrito como bem decidiu o douto acórdão recorrido;
11. Quanto ao pedido subsidiário formulado contra as empresas privadas a lei não admite a subsidiariedade de sujeitos havendo que respeitar relativamente ao pedido principal a identidade das partes ou identidade dos sujeitos nos termos definidos no art. 581.º, n.º 2 do CPC;
12. A relação material controvertida configurada na causa de pedir que consubstancia o pedido subsidiário de indemnização deduzido pelos recorrentes não tem natureza de relação jurídico-administrativa;
13. E o facto do contrato adjudicado assumir a natureza de contrato administrativo, não pode significar que as sociedades privadas cocontratantes exerçam funções materialmente administrativas;
14. Donde, dever o Tribunal Administrativo considerar-se incompetente para decidir o pedido subsidiário deduzido contra empresas privadas cabendo o seu conhecimento à jurisdição comum …».

6. Pelo acórdão da formação de apreciação preliminar deste Supremo Tribunal prevista no n.º 5 do art. 150.º do CPTA, datado de 10.07.2019 [cfr. fls. 891/892] veio a ser admitido o recurso de revista.

7. O Digno Magistrado do Ministério Público junto deste Tribunal, notificado nos termos e para os efeitos do disposto no art. 146.º, n.º 1, do CPTA, não emitiu qualquer pronúncia [cfr. fls. 900 e segs.].

8. O 1.ºA., invocando a sua qualidade de comparte nos presentes autos em litisconsórcio voluntário, veio formular pedido de adesão ao recurso de revista que havia sido interposto pela 3.ª A. [cfr. fls. 938], pedido esse que veio a ser deferido por despacho do Relator [cfr. fls. 940].

9. Colhidos os vistos legais foram os autos submetidos à Conferência para julgamento.

DAS QUESTÕES A DECIDIR
10. Constitui objeto de apreciação nesta sede aferir se a decisão judicial recorrida ao ter negado provimento ao recurso de apelação interposto pela A., mantendo o juízo de improcedência da pretensão indemnizatória deduzido contra o R. Município, incorreu, conforme alegado, em erro de julgamento por incorreta interpretação e aplicação, nomeadamente, das disposições conjugadas dos arts. 306.º, n.º 1, 323.º, 326.º, 327.º e 498.º, n.ºs 1 e 3, todos do Código Civil [CC] e dos arts. 118.º, n.º 1, al. b), e 272.º, n.ºs 1, al. a) e 3, ambos do Código Penal [CP] [na redação vigente à data dos factos], e, ainda, em interpretação normativa inconstitucional por violação do princípio constitucional da igualdade [consagrado no art. 13.º da Constituição da República Portuguesa (CRP)] e, bem assim, de erro de julgamento agora quanto ao juízo de incompetência em razão da matéria relativamente ao pedido subsidiário deduzido contra às demais RR. por firmado em infração, mormente, do disposto no art. 04.º, n.º 1, al. g), do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais [ETAF] [na redação anterior à introduzida pelo DL n.º 214-G/2015] [cfr. alegações e demais conclusões supra reproduzidas].

FUNDAMENTAÇÃO
DE FACTO
11. Resulta como assente nos autos o seguinte quadro factual:
11.1) A…………, ora 1.º A., é legítimo proprietário e possuidor: (a) do prédio misto, sito à ………, na freguesia de Castelo Branco, inscrito na matriz predial rústica sob o artigo …… da secção …… e na matriz urbana sob o artigo ……, descrito na Conservatória do Registo Predial de Castelo Branco sob o n.º …… da freguesia de Castelo Branco, com a área de oitocentos e vinte três mil setecentos e cinquenta metros quadrados; (b) do prédio misto, sito à ………, inscrito na matriz predial rústica sob o artigo …… da secção …… e na matriz predial urbana sob o artigo ……, descrito na Conservatória do Registo Predial de Castelo Branco sob o n.º …… da freguesia de Castelo Branco, com a área de um milhão cento e treze mil duzentos e cinquenta metros quadrados; (c) do prédio rústico, sito à ………, inscrito na matriz predial sob o artigo …… da secção ……, descrito na Conservatória do Registo Predial de Castelo Branco sob o n.º …… da freguesia de Castelo Branco, com a área de quatrocentos noventa e um mil setecentos e cinquenta metros quadrados; e (d) do prédio rústico, sito à ………, inscrito na matriz predial sob o artigo …… da secção ……, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º …… da freguesia de Castelo Branco, com a área de quatrocentos e quinze mil metros quadrados [cfr. documentos (docs.) constantes de fls. 36/56 dos autos e cujo teor integral aqui se dá por reproduzido].
11.2) B…………, ora 2.ª A., é legítima usufrutuária de ⅟₂ quer do prédio descrito em (a) quer do prédio descrito em (b), identificados em 11.1) [cfr. documento (doc.) constante de fls. 57/81 dos autos e cujo teor integral aqui se dá por reproduzido].
11.3) A 2.ª A. celebrou, em 10.08.1992, com o «IFADAP, IP» [ora, «IFAP, IP»] um contrato de atribuição de ajuda [medidas florestais nas explorações agrícolas], com a atribuição de prémios anuais por hectare arborizado, entre 1993 a 2012, em valores computados entre três mil escudos e dois mil e setecentos escudos anuais [cfr. documentos (docs.) constantes de fls. 82/84 dos autos e cujo teor integral aqui se dá por reproduzido].
11.4) C…………, ora 3.ª A., é dona e legítima possuidora dos prédios rústicos sitos em ………, freguesia e concelho de Castelo Branco, inscritos na respetiva matriz sob os artigos …… e …… da Secção …… [cfr. documentos (docs.) constantes de fls. 90/91 dos autos e cujo teor integral aqui se dá por reproduzido].
11.5) Em 26.07.2004, pelas 12 horas e 45 minutos, junto ao Km 9 da Estrada Municipal, n.º 551, perto do local denominado «………», limite da freguesia de ………, área do concelho de Castelo Branco, deflagrou um incêndio [cfr. documento (doc.) constante de fls. 13/29 dos autos e cujo teor integral aqui se dá por reproduzido].
11.6) Em 27.02.2007, foi proferido despacho de pronúncia quanto ao arguido G…………, nos seguintes termos, a saber:
«… Porquanto, indiciam suficientemente os autos que:
1. No dia 26.07.2004, pelas 12 horas e 45 minutos, junto ao Km 9 da Estrada Municipal n.º 551, perto de um local denominado de "………", limite da freguesia de ………, área desta comarca, deflagrou um incêndio.
2. O mesmo ficou a dever-se ao facto de o arguido G…………, então ao serviço da sociedade comercial "E…………, Lda.”, com sede na Rua ………, n.º ……, ……, em ……… - Figueiró dos Vinhos, na referida data, hora e local, proceder à limpeza das bermas da aludida Estrada Municipal, utilizando para o efeito uma motorroçadora com disco de aço, nos termos fotografados a fls. 19, e que aqui damos por reproduzidos.
3. Os aludidos trabalhos de limpeza de bermas da estrada foram adjudicados pela Câmara Municipal de Castelo Branco em 22 de julho de 2004, à sociedade comercial “D………… SA”, com sede na Rua da ………, n.º ……, em ………, Santa Catarina da Serra, prevendo-se um plano de trabalhos de 45 dias a partir da adjudicação.
4. Na área da localidade de ………, no dia 26 de julho de 2004, no período compreendido entre as 12.00 e as 12.30 horas, a temperatura do ar situou-se entre os 33,7 e os 34,2 graus centígrados e a humidade relativa do ar entre os 22° e os 25°.
5. O incêndio foi causado pelo facto de o arguido, ao manobrar a motorroçadora com disco de aço, nos termos fotografados a fls. 19 e que aqui damos por reproduzidos, ter tocado com o mesmo num aqueduto existente no local, o que provocou faísca e, consequentemente, o início do incêndio, que o arguido já não consegui controlar.
6. Estiveram envolvidos no combate ao incêndio os Bombeiros Voluntários de Castelo Branco, Idanha-a-Nova, Cascais, Queluz, Dafundo, Penamacor, Fundão, Barcarena, Sintra, Tomar, Proença-a-Nova, Sapadores de Castelo Branco, para além da Proteção Civil, Aliança Florestal, Polícia Florestal, EPNA da GNR, meios aéreos e os populares.
7. No decurso das operações ficou destruído um veículo todo-o-terreno pertencente aos Bombeiros Voluntários de Castelo Branco, que se encontrava envolvido no combate ao incêndio, e ficou ferido um bombeiro voluntário da mesma corporação, quando combatia o incêndio, tendo o mesmo sido transportado para o Hospital Amato Lusitano de Castelo Branco.
8. Com o aludido incêndio terão ardido, pelo menos 238 ha de sobreiros, pinheiro bravo, eucalipto, carvalhos, azinheiras, matos e pastagens, distribuídos por prédios de diversos proprietários, tais como o Sr. H………… e a Sr.ª I………….
9. Aí se incluindo os prédios rústicos denominados de "…………" pertencentes à assistente C………… tendo, no primeiro, ardido 150 hectares de carvalhos, pastagens e cercas; e no ……… arderam 200 sobreiros e 100 pinheiros mansos, estimando-se os prejuízos ali existentes em cerca de 160 400,00 Euros.
10. Existem no mercado dispositivos giratórios com fios de "nylon", destinados a ser colocados no cabeçote das motorroçadoras, para que, substituindo os discos de aço, não provoquem fricção noutros objetos em que embatam no decurso dos trabalhos, capaz de darem lugar a faíscas ou fagulhas, causadoras de ignição.
11. O incêndio aconteceu em virtude de o arguido, atuando nos termos e condições referidos supra nos pontos 1°), 2°), 4°) e 5°), não ter procedido com o cuidado a que segundo as circunstâncias está obrigado e de que é capaz, e não chega sequer a representar a possibilidade de deflagração do incêndio, omitindo dessa forma um dever de cuidado, adequado a evitar a realização do mesmo, e que se traduzia num dever de previsão ou de justa previsão daquela realização, e que o aquele, segundo as circunstâncias concretas do caso e as suas capacidades pessoais podia ter cumprido.
12. Bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.
Por tudo isto, cometeu o arguido um "crime de incêndio", p. e p. pelo artigo 272.º n.º 1 al. a) e n.° 3 do Cód. Penal …» - cfr. doc. constante de fls. 13/29 dos autos e cujo teor integral se dá por reproduzido.

11.7) Em 01.10.2007, no âmbito do processo n.º 32/04.0GICTB, foi proferida sentença absolutória do arguido identificado em 11.6), cujo teor se reproduz, a saber:
«...
I. Relatório
1. O arguido:
G…………, solteiro, cantoneiro, nascido a 28.08.1971, filho de ………… e de …………, natural de ………. e residente na ………, Figueiró do Vinhos,
Foi pronunciado, para julgamento perante o Tribunal Singular pelo indiciado cometimento de um "crime de incêndio", p. e p. pelo artigo 272.º, n.º 1, al. a) e n.º 3, do Cód. Penal.
2. O despacho de pronúncia foi recebido nos seus precisos termos e o arguido, devidamente notificado, apresentou contestação e rol de testemunhas.
3. Procedeu-se à realização de audiência de julgamento com observância do legal formalismo.
II. Fundamentação
2.1. Julgam-se provados os seguintes factos:
I. No dia 26.07.2004, pelas 12 horas e 45 minutos, junto ao Km 9 da à Estrada Municipal n.º 551, perto de um local denominado de "………", limite da freguesia de ………, área desta comarca, deflagrou um incêndio.
II. O mesmo ficou a dever-se ao facto de o arguido G…………, então ao serviço da sociedade comercial "E…………, Lda.", com sede na Rua ………, n.º ……, ……, em ……… - Figueiró dos Vinhos, na referida data, hora e local, proceder à limpeza das bermas da aludida Estrada Municipal, utilizando para o efeito uma motorroçadora com disco de aço, nos termos) fotografados a fls. 19 ….
III. Os aludidos trabalhos de limpeza de bermas da estrada foram adjudicados pela Câmara Municipal de Castelo Branco, em 22 de julho de 2004, à sociedade Comercial “D…………, SA”, com sede na Rua da ………, n.º ……, em ………, Santa Catarina da Serra, prevendo-se um plano de trabalhos de 45 dias a partir da adjudicação.
IV. Na área da localidade de ………, no dia 26 de julho de 2004, no período compreendido entre as 12.00 e as 12.30 horas, a temperatura do ar situou-se entre os 33,7 e os 34,2 graus centígrados, e a humidade relativa do ar variou entre os 22% e os 25%.
V. O incêndio foi causado pelo facto de o arguido, ao manobrar a motorroçadora com disco de aço, nos termos fotografados a fls. 19 e que aqui se dão por reproduzidos, ter tocado com o mesmo num aqueduto existente no local, o que provocou faísca e, consequentemente, o início do incêndio, que o arguido já não conseguiu controlar.
VI. Estiveram envolvidos no combate ao incêndio os Bombeiros Voluntários de Castelo Branco, Idanha-a-Nova, Cascais, Queluz, Dafundo, Penamacor, Fundão, Barcarena, Sintra, Tomar, Proença-a-Nova, Sapadores de Castelo Branco, para além da Proteção Civil, Aliança Florestal, Polícia Florestal, EPNA da GNR, meios aéreos e os populares.
VII. No decurso das operações ficou destruído um veículo todo-o-terreno pertencente aos Bombeiros Voluntários de Castelo Branco, que se encontrava envolvido no combate ao incêndio, e ficou ferido um bombeiro voluntário da mesma corporação, quando combatia o incêndio, tendo o mesmo sido transportado para o Hospital Amato Lusitano de Castelo Branco.
VIII. Com o aludido incêndio terão ardido, pelo menos 238 ha de sobreiros, pinheiro bravo, eucaliptos, carvalhos, azinheiras, matos e pastagens, distribuídos por prédios de diversos proprietários, tais como o Sr. H………… e a Sr.ª I………….
IX. Aí se incluindo os prédios rústicos denominados de ………… pertencentes à assistente C…………, tendo, no primeiro, ardido 150 hectares de carvalhos, pastagens e cercas; e no ……… arderam 200 sobreiros e 100 pinheiros mansos, estimando-se os prejuízos ali existentes em cerca de 160 400,00 Euros.
X. Existem no mercado dispositivos giratórios com fios de "nylon", destinados a ser colocados no cabeçote das motorroçadoras.
Mais se provou que:
XI. O arguido não poderia realizar os trabalhos em causa utilizando o mecanismo aludido em X. dado que o mato a corte era grosso e o dispositivo em causa apenas permite cortar ervas.
XII. O arguido não tem antecedentes criminais.
XIII. O arguido aufere cerca de € 509,00 mensais e não tem qualquer encargo com habitação, vivendo com a companheira, que aufere cerca de € 400,00 por mês, uma filha de dois anos de idade.
XIV. O arguido tem como habilitações literárias o 7.º ano de escolaridade.
XV O arguido é pessoa estimada e considerada honesta e trabalhadora pelas pessoas a tal respeito ouvidas em Tribunal.
2.2. Factos não provados
Para além dos que resultam logicamente excluídos da matéria supra dada como provada e das alegações que revestem carácter meramente conclusivo ou de direito, não se provou que:
A. O incêndio aconteceu em virtude de o arguido, atuando nos termos e condições referidos supra nos pontos I., II., III. e V. não ter procedido com o cuidado a que segundo as circunstâncias está obrigado e de que é capaz e não chegar sequer a representar a possibilidade de deflagração do incêndio, omitindo dessa forma um dever de cuidado, adequado a evitar a realização do mesmo, e que se traduzia num dever de previsão ou de justa previsão daquela realização, e que aquele, segundo as circunstâncias concretas do caso e as suas capacidades pessoais, podia ter cumprido.
B. Bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.
C. Os fios de "nylon" referidos no ponto X. supra, destinam-se a evitar que os discos de aço, não provoquem fricção noutros objetos em que embatam no decurso dos trabalhos, capaz de darem lugar a faíscas ou fagulhas, causadoras de ignição.
Convicção do Tribunal:
O arguido ouvido em audiência de discussão e julgamento negou que tenha sido ele, com a utilização da motorroçadora, quem provocou o incêndio a que se reportam os autos, referindo que não bateu no referido aqueduto, causando as faíscas que originaram a deflagração do incêndio.
O arguido corroborou em parte o teor do despacho de pronúncia, mas afastou de si qualquer responsabilidade na produção do incêndio em causa.
Todavia cumpre referir que a sua versão, neste tocante, foi infirmada pelo teor dos depoimentos das testemunhas ………… e …………, o primeiro agente da GNR e o segundo, à data, pertencente ao Corpo Nacional da Guarda Florestal, atualmente incorporada na GNR, as quais de, forma isenta e desinteressada, referiram em uníssono que, chegados ao local dos factos, o arguido lhes disse que, com a motorroçadora que manobrava causou faíscas que estiveram na origem do incêndio.
A estes elementos haverá que somar os elementos documentais de fls. 19 e 20 dos autos - fotografias da motorroçadora e do ponto de origem ou foco de incêndio, onde se pode ver que um dos cantos do aqueduto foi cortado, sendo que corte apresenta uma aparência de ter sido muito recente, pois o cimento posto a descoberto tem uma aparência limpa e não degradada pelo decurso do tempo -, e, atentas as duas dimensões e características mostra-se passível de ter sido provocado pela motorroçadora em crise.
Por outro lado, é o próprio arguido que refere que tinha acabado de cortar o mato grosso que existia no local onde deflagrou o incêndio e que alguns metros à frente, depois de ter sido alertado pelo colega ………… viu que o local se encontrava a arder, de tal forma, que nem ele nem o colega conseguiram já controlar o fogo, sendo certo que quando por lá passou não existia qualquer foco de fogo.
A testemunha ………… referiu, também, que só o arguido tinha/andado a trabalhar no local. Esta testemunha referiu que bem podia ter sido uma beata, lançada para o local por um condutor, que ateou o fogo em causa, tendo tido conhecimento de uma situação similar na A23, todavia tal versão não tem qualquer suporte fáctico, dado que ninguém viu tal acontecer e, numa perspetiva de experiência comum e de normalidade do acontecer só se pode concluir que foi o arguido a causar o incêndio, tendo provocado uma faísca com a motorroçadora que manobrava, conclusão essa que se impõe tirar de todos os elementos supra referenciados, devidamente conjugados entre si.
Importa referir que todas as testemunhas ouvidas a tal respeito referiram que com o uso do sistema referido no ponto 10.º do despacho de pronúncia apenas é possível cortar erva e, não já, o tipo de mato que se encontrava no local (giestas grossas e altas e outro mato grosso) e que a distinção entre o sistema de disco de aço e o de fio de nylon tem que ver com a tipologia de vegetação que se pretende cortar.
Voltando, ainda, ao depoimento do arguido este referiu que não podia prever que a motorroçadora fizesse alguma faísca, pois tal nunca lhe tinha acontecido, o mesmo tendo referido a testemunha ………… que, no âmbito das suas funções, utiliza habitualmente tais mecanismos. Também referiu o arguido que, no momento a que os factos se reportam andava a trabalhar, cumprindo ordens do seu patrão, e que nunca lhe foi dito para suspender tais atividades se estivesse calor.
Ouvida em julgamento …………, patroa do arguido, além de depor acerca da personalidade do arguido, confirmou que havia dado ordens ao arguido para trabalhar naquele dia e que, à data não se falava em riscos de incêndio decorrente do uso da motorroçadora, muito embora fosse ministrada formação prévia aos trabalhadores, sendo-lhes fornecidas instruções acerca da segurança na utilização dos equipamentos, sendo que a partir dos factos em apreço há um cuidado acrescido para alertar os funcionários para o risco de criar incêndios com o uso de motorroçadoras, coisa em que, até àquela data, a testemunha nunca tinha pensado.
Esclarecedor quanto à origem do incêndio revelou-se o depoimento da testemunha …………, que descreveu qual o ponto de origem do incêndio e a causa do mesmo, revelando conhecimentos específicos e precisos nessa área do saber técnico, tendo analisado e descrito os vestígios (os quais se encontram documentados a fls. 19 e 20) que se encontravam no local e as conclusões que os mesmos permitem retirar, referindo que o incêndio não pode ter tido outra causa que não a referida na pronúncia, inexistindo no local vestígios de qualquer outra. A testemunha …………, que no âmbito da sua atividade profissional é engenheiro agrário e trabalha na …………, também investigou o incêndio em causa e apresentou em juízo as mesmas conclusões. Ambas as testemunhas referiram que não há consciência do perigo que estas máquinas representam e não há o bom senso de não trabalhar com elas em dias de risco elevado de incêndio como era no caso dos autos, havendo necessidade de se convencerem do perigo das motorroçadoras, designadamente trabalhando em horas de menos calor e mais humidade.
Quanto às consequências do incêndio depuseram as testemunhas H…………, I…………, A………… e ………… que de forma coerente e homogénea entre si descreveram a área ardida, espécies arbóreas destruídas e outros bens, corporações de bombeiros envolvidos no combate às chamas, prejuízos pessoais e materiais decorrentes do fogo, corroborando o teor do despacho de pronúncia.
O Tribunal gizou a sua convicção nos documentos de fls. 2 e 3; 8; 12 a 20; 26 a 43; 48; 50 a 52; 105; 132 e 134, os quais foram analisados criticamente e conjugados com a demais prova produzida.
O certificado de registo criminal constante de fls. 505 e seguintes fundou a prova do ponto XI. supra.
Quanto à situação familiar e económica do arguido o Tribunal fez fé nas declarações prestadas pelo mesmo a tal respeito.
No que toca à restante matéria dada como não provada o Tribunal fundou a sua decisão na total ausência de prova, designadamente testemunhal ou documental, acerca da mesma, não se podendo retirar as inferências aí plasmadas da factualidade dada como provada, nem tão pouco tendo as mesmas resultado de um qualquer meio de prova produzido em audiência de julgamento.
Importa, contudo, lançar um olhar mais detalhado quanto à factualidade não provada ínsita na alínea A supra:
Conclui o Tribunal que não ficou provado que "O incêndio aconteceu em virtude de o arguido, atuando nos termos e condições referidos nos pontos I, II, III e V não ter procedido com o cuidado a que segundo as circunstâncias está obrigado e de que é capaz e não chegar sequer a representar a possibilidade de deflagração do incêndio, omitindo dessa forma um dever de cuidado, adequado a evitar a realização do mesmo, e que se traduzia num dever de previsão ou de justa previsão daquela realização, e que aquele, segundo as circunstâncias concretas do caso e as suas capacidades pessoais, podia ter cumprido" (…)
Desde logo não se provou que o arguido não procedeu com o cuidado a que estava obrigado: que dever de cuidado era esse?
Não embater com a motorroçadora no viaduto ali existente?
Uma vez que as questões em causa se revestem, além de uma inarredável componente fáctica, uma componente dogmático jurídica opta-se por analisá-las na secção seguinte.
3. Do Direito
Em causa está a eventual prática por G………… de um crime de incêndio negligente p. e p. pelo artigo 272.º n.º 1 al. a) e n.º 3, do Cód. Penal; a resposta acerca da eventual imputação do dito crime ao agente terá, necessariamente, que passar por uma análise mais detalhada da estrutura dos crimes negligentes, maxime da estrutura dogmática do facto negligente e do problema da imputação objetiva do resultado à conduta do agente.
A) Da estrutura dogmática do facto negligente
O tipo legal de crime em apreço é recondutível à categoria dos crimes de perigo comum - "crimes de perigo em que o perigo se expande relativamente a um número indiferenciado ou indiferenciável de objetos de ação sustentados, ou iluminados, por um ou vários bens jurídicos" […] - esta categoria normativa abarca no seu seio, de forma algo difusa, os crimes de perigo concreto - categoria à qual se reconduz o crime de incêndio - e os crimes de perigo abstrato; estes crimes constituem a consagração de uma linha de pensamento da política criminal no intuito de salvaguardar certos bens jurídicos que a nossa sociedade tecnológica põe em perigo; o ponto crucial destes crimes reside no facto de que condutas cujo desvalor da ação é de pequena monta se repercutem, amiúde, num desvalor de resultado de efeitos, não poucas vezes, catastróficos.
O tipo de ilícito negligente - de acordo com o art. 15.º do Cód. Penal - considera-se preenchido por um comportamento sempre que este discrepa daquele que era objetivamente devido numa situação de perigo para bens jurídico-penalmente relevantes, para deste modo se evitar uma violação juridicamente indesejada; o tipo de ilícito do facto negligente integra-se pela verificação de um resultado tornando-se, também, indispensável que tenha ocorrido a violação, por parte do agente, de um dever objetivo de cuidado que sobre ele impende e que conduziu à verificação do resultado típico e, consequentemente, que o resultado fosse previsível, e evitável, para o homem prudente, dotado das capacidades que detém o "homem médio", pertencente à categoria intelectual e social e ao círculo de vida do agente.
B) Da imputação objetiva do resultado à conduta do agente
O elemento que confere especificidade ao tipo de ilícito negligente é, assim, a violação pelo agente de um dever objetivo de cuidado que sobre ele, juridicamente, impendia ou, nas palavras de Claus Roxin, a criação, pelo agente, de um perigo não permitido.
A violação do dever objetivo de cuidado ("A violação de exigências de comportamento tipicamente específicas, cujo cumprimento o direito requer, na situação concreta respetiva, para evitar o preenchimento de um certo tipo objetivo de ilícito" […]) é, ela mesma, um puro critério de imputação objetiva dos factos negligentes; essa violação quando concretizada na criação de um perigo não permitido fornece o consubstancia o nexo de imputação objetiva que permitirá assacar, ao agente, responsabilidade criminal; ou, por outras palavras, a doutrina da imputação objetiva tem pleno cabimento no domínio dos crimes negligentes exigindo-se aqui a conexão do cuidado objetivamente devido com a realização de um facto que preenche um tipo de crime.
Após esta análise perfunctória das várias categorias dogmáticas que a solução do caso vertido nos autos reclama, resta-nos adequar o que acima ficou dito à concreta situação em apreço:
C) Da não verificação da violação, pelo agente, de uma concreta norma objetiva de cuidado
De acordo com o círculo de atividade em causa - a desmatação da berma das estradas - o comportamento do arguido corresponde àquele que teria um homem fiel aos valores protegidos, prudente e cuidadoso?
Apelando aos costumes profissionais, sempre com os olhos postos no cuidado objetivamente exigível ao agente, não se vislumbra uma qualquer conduta do agente que pudesse evidenciar falta de cuidado; o facto de o arguido, ao manobrar a motorroçadora com disco de aço, ter tocado com o mesmo num aqueduto existente no local, o que provocou faísca, a qual terá iniciado a combustão, é um facto que escapa totalmente à vontade do agente e que, maior fosse a diligência, não poderia ter sido evitado, cumpridas que estivessem todas as cautelas de acordo com as capacidades individuais do agente agindo naquela circunstância.
O mesmo é dizer que não se vislumbra a violação de um qualquer dever objetivo de cuidado por G…………, por inexistir algum cujo conteúdo se prenda com a prevenção da situação aludida.
Mas mesmo que se excogitasse que o facto praticado pelo arguido era em si mesmo dominável pela vontade, importa referir, ainda que de forma parentética que, inexiste norma jurídica que proibisse ou proíba o uso de dispositivos idênticos aos que o arguido utilizava (motorroçadora), pelo que, também por aqui faleceria a responsabilidade criminal do arguido.
Temos o disposto do artigo 30.º do Decreto-Lei n.º 124/06 de 28/06 (à data o artigo 19.º do Decreto-Lei 156/04 de 30/06 com a mesma redação) sob a epígrafe: "Maquinaria e equipamento" que dispõe que:
"Durante o período crítico [definindo o período crítico al. f) do artigo 3.º do dito diploma legal] nos trabalhos e outras atividades que decorram em todos os espaços rurais e com eles relacionados, é obrigatório: a) Que as máquinas de combustão interna e externa a utilizar, onde se incluem todo o tipo de tratores, máquinas e veículos de transporte pesados, sejam dotadas de dispositivos de retenção de faíscas ou faúlhas e de dispositivos tapa-chamas nos tubos de escape ou chaminés".
A conduta em causa é punida com coima de 100 a 3700,00 Euros, para as pessoas singulares e de 200 a 44500,00 Euros para as pessoas coletivas (artigo 29.º, al. i).
No entender do Tribunal a motorroçadora em causa não se subsume à categoria da maquinaria em apreço, até porque dos autos não resulta que a mesma se trate de uma máquina de combustão interna ou externa; certo é que, também, não cabe no âmbito de proteção desta norma, que tem como objeto evitar que as faíscas ou faúlhas provenientes da combustão interna ou externa dos motores das máquinas sejam projetadas para o exterior ou que sejam lançadas chamas pelos tubos de escape ou chaminés, e, assim, se deflagrem incêndios.
Ora, não foi este o caso dos autos uma vez que a faísca que provocou o incêndio teve origem na fricção de uma lâmina num outro objeto sólido.
O mesmo é dizer, que a norma em causa não visa prevenir condutas idênticas à do arguido e, ainda assim ali enquadráveis, pois o que se pretende é conter a combustão e não evitar a fricção.
D) Da não verificação do nexo de imputação objetiva
Ainda assim se referirá que, não obstante não considerarmos verificada uma violação de um dever objetivo de cuidado pelo agente, não seria possível imputar ao agente o resultado danoso que em concreto se verificou.
O juízo de imputação objetiva exige que da violação do dever objetivo de cuidado - infração da norma de ilicitude ou "norma de cuidado" - resulte a criação de um perigo não permitido; acompanhamos, neste sentido, Roxin e Figueiredo Dias para quem o tipo de ilícitos negligentes é preenchido integralmente pela doutrina da imputação objetiva.
Ora este juízo de imputação objetiva, partindo da prévia causalidade naturalística, não dispensa, como é óbvio, que a conduta do agente plasme a violação de uma "norma de cuidado"; o que no caso não acontece, desde logo porque inexiste essa norma de cuidado.
É caso para dizer que não era exigível que o agente representasse como possível aquele resultado - o incêndio - como consequência possível da sua conduta, e, não obstante, não levou a cabo as cautelas necessárias para o evitar; esta é uma situação de todo inusitada e imprevisível que escaparia ao mais diligente dos homens.
Por ser assim, inexistindo violação de um dever objetivo de cuidado, nem sequer podemos partir para a formulação de um juízo de imputação objetiva.
*
4. Dispositivo
Nos termos e com os fundamentos invocados decido, julgando o despacho de pronúncia improcedente …:
A. Absolver o arguido G………… da prática de um "crime de incêndio", p. e p. pelo artigo 272.º, n.º 1 al. a) e n.º 3, do Cód. Penal.
Sem custas.
Proceda a depósito.
Notifique o arguido através de entidade policial.
Castelo Branco, 01/10/2007 (...)» - cfr. doc. constante de fls. 111/121 dos autos e cujo teor integral aqui se dá por reproduzido.
11.8) Os AA. deduziram pedido de indemnização cível no âmbito do processo criminal identificado em 11.7), contra G…………, a empresa «F…………, SA», a empresa «E…………, Lda.» e a empresa «D…………, SA» [cfr. documento (doc.) constante de fls. 243 dos autos e cujo teor integral aqui se dá por reproduzido].
11.9) Em 31.10.2007, a sentença reproduzida em 11.7) transitou em julgado [cfr. documento (doc.) constante de fls. 110 dos autos e cujo teor integral aqui se dá por reproduzido].
11.10) Em 05.09.2008, os AA. deram entrada da presente petição inicial no TAF de Castelo Branco [cfr. fls. 01/10 dos autos e cujo teor integral aqui se dá por reproduzido].
11.11) Em 08.09.2010, foi o R. citado para os termos da presente ação referida em 11.10) [cfr. fls. 96 dos autos e cujo teor integral aqui se dá por reproduzido].
11.12) Os AA. tiveram conhecimento do direito que alegaram na petição inicial mencionada em 11.10), no ano de 2004 [cfr. documento (doc.) constante de fls. 13/29 dos autos e cujo teor integral aqui se dá por reproduzido].
11.13) Em 09.03.2007 os AA. A………… e B………… deduziram pedido de indemnização cível no proc. n.º 32/04.0GICTB que tramitou no 1.º Juízo do Tribunal Judicial da Comarca de Castelo Branco, identificado no ponto 11.7) deste probatório, contra G………… e as sociedades «F…………, SA», «E…………, Lda.» e «D…………, SA» - doc. fls. 243 dos autos.
11.14) Em 23.08.2007 os AA. A………… e B………… deduziram incidente de chamamento do Município de Castelo Branco na qualidade de «(...) associado dos demais demandados cíveis (...)» no proc. n.º 32/04.0GICTB que tramitou no 1.º Juízo do Tribunal Judicial da Comarca de Castelo Branco, identificado no ponto 11.7) deste probatório, invocando o disposto no art. 325.º do CPC - fls. 244 dos autos.
11.15) Em 18.09.2007 no proc. n.º 32/04.0GICTB que tramitou no 1.º Juízo do Tribunal Judicial da Comarca de Castelo Branco, referido supra no ponto 11.7) deste probatório, pelo juiz do julgamento foi proferido o seguinte despacho:
«...
Como já decorria aquando da prolação do despacho de fls. 279 e ss., a complexidade das questões suscitadas no pedido de indemnização cível geram incidentes que, pela sua natureza, excedem inquestionavelmente o processo penal.
Disso mesmo são exemplo os requerimentos de fls. 470 e ss., 478 e ss., 497 e ss..
Assim sendo, em ordem a evitar o adiamento da audiência de discussão e julgamento agendada para o próximo dia 20 e, bem assim, o excessivo protelamento deste processo com os, por demais, evidentes inconvenientes para a produção da prova, sendo certo que os factos em causa remontam já a 2004 e para todos os intervenientes processuais, remeto as partes para os Tribunais Cíveis quanto ao conhecimento da matéria respeitante aos pedidos de indemnização cível formulados ao abrigo do disposto no art. 82.º n.º 3 do CPP …» - fls. 247/248 dos autos.
11.16) Em 19.09.2007 pelo Juiz do proc. n.º 32/04.0GICTB que tramitou no 1.º Juízo do Tribunal Judicial da Comarca de Castelo Branco e referido supra no ponto 11.7) deste probatório, foi proferido o seguinte despacho:
«
Em face do despacho que antecede proferido pela Mm.ª Juiz do julgamento (fls. 506) todas as questões suscitadas pelas partes cíveis nos requerimentos referidos na primeira parte do nosso despacho de fls. 500 ficam prejudicadas e perdem acuidade.
Notifique, de imediato via fax, todos os sujeitos processuais, do teor do despacho de fls. 500 do despacho que antecede e do presente, por esta precisa ordem, para que possuam o nexo lógico das decisões tomadas …» - fls. 249 dos autos.

12. Com relevância para a apreciação da questão o Tribunal julgou não provada a seguinte factualidade:
§ O R. Município de Castelo Branco foi citado para os termos da ação referida em 11.9) [factualidade suscetível apenas de ser provada mediante prova documental; sendo certo que dos documentos constantes de fls. 244/249 dos autos não resulta a comprovação de tal factualidade].
DE DIREITO
13. Presente o quadro factual antecedente passemos, então, à apreciação do objeto do recurso de revista sub specie.

14. A discussão nos autos, mantida no presente recurso, mostra-se centrada, no essencial, em determinar: i) quanto ao pedido principal, se o acórdão do TCA/S de 07.03.2019, confirmando a decisão judicial do TAF/CB que havia julgado procedente a exceção de prescrição, enferma de erro de julgamento, já que proferido em infração do disposto nos arts. 306.º, n.º 1, 323.º, 326.º, 327.º e 498.º, n.ºs 1 e 3, todos do CC, 118.º, n.º 1, al. b), e 272.º, n.ºs 1, al. a) e 3, ambos do CP e, ainda, em interpretação normativa inconstitucional por violação do princípio constitucional da igualdade [cfr. art. 13.º da CRP]; e, ii) quanto ao pedido subsidiário, se o mesmo acórdão padece de erro de julgamento quanto manteve o juízo de incompetência em razão da matéria relativamente ao pedido subsidiário, violando o disposto no art. 04.º, n.º 1, al. g), do ETAF.

15. Passando pela ordem definida à apreciação das questões acabadas de enunciar temos que, cotejando o pertinente quadro legal, extrai-se do art. 498.º do CC que «[o] direito de indemnização prescreve no prazo de três anos, a contar da data em que o lesado teve conhecimento do direito que lhe compete, embora com desconhecimento da pessoa do responsável e da extensão integral dos danos, sem prejuízo da prescrição ordinária se tiver decorrido o respetivo prazo a contar do facto danoso» [n.º 1], sendo que «[s]e o facto ilícito constituir crime para o qual a lei estabeleça prescrição sujeita a prazo mais longo, é este o prazo aplicável» [n.º 3].

16. Resulta, ainda, do art. 323.º do CC que «[a] prescrição interrompe-se pela citação ou notificação judicial de qualquer ato que exprima, direta ou indiretamente, a intenção de exercer o direito, seja qual for o processo a que o ato pertence e ainda que o tribunal seja incompetente» [n.º 1], prevendo-se no art. 326.º do mesmo Código que «[a] interrupção inutiliza para a prescrição todo o tempo decorrido anteriormente, começando a correr novo prazo a partir do ato interruptivo, sem prejuízo do disposto nos n.ºs 1 e 3 do artigo seguinte» [n.º 1] e que «[a] nova prescrição está sujeita ao prazo da prescrição primitiva, salvo o disposto no artigo 311.º» [n.º 2], derivando do n.º 1 do artigo seguinte que «[s]e a interrupção resultar de citação, notificação ou ato equiparado, ou de compromisso arbitral, o novo prazo de prescrição não começa a correr enquanto não passar em julgado a decisão que puser termo ao processo», sendo que, de harmonia com o disposto no n.º 1 do art. 306.º, o «prazo da prescrição começa a correr quando o direito puder ser exercido».

17. Derivava, por seu turno, do n.º 1 do art. 118.º do CP que «[o] procedimento criminal extingue-se, por efeito de prescrição, logo que sobre a prática do crime tiverem decorrido os seguintes prazos: (…) b) 10 anos, quando se tratar de crimes puníveis com pena de prisão cujo limite máximo for igual ou superior a 5 anos, mas que não exceda 10 anos …» e do n.º 1 do preceito seguinte que «[o] prazo de prescrição do procedimento criminal corre desde o dia em que o facto se tiver consumado», prevendo-se no art. 272.º do mesmo Código, no que releva para a discussão, que «[q]uem: a) Provocar incêndio de relevo, nomeadamente pondo fogo a edifício ou construção, a meio de transporte, a floresta, mata, arvoredo ou seara …» [n.º 1] e que «[s]e a conduta referida no n.º 1 for praticada por negligência, o agente é punido com pena de prisão até 5 anos» [n.º 3].

18. Presente o quadro legal acabado de convocar temos que, tal como vem sendo afirmado pela jurisprudência e pela doutrina, o momento a partir do qual se inicia a contagem do prazo de prescrição é aquele em que o lesado teve conhecimento do direito, tendo podido exercê-lo.

19. Importa, ainda, ter presente que a expressão ter «conhecimento do direito» não é, ou não significa, necessariamente conhecer na perfeição e na sua integralidade todos os elementos que compõem o dever de indemnizar, porquanto, como vimos, deriva desde logo do n.º 1 do art. 498.º do CC que o exercício do direito é independente do desconhecimento da «pessoa do responsável» e da «extensão integral dos danos» [cfr., entre outros, os Acs. deste Supremo Tribunal de 25.09.2008 - Proc. n.º 0456/08, de 08.01.2009 - Proc. n.º 0604/08, de 04.02.2009 -Proc. n.º 0522/08, de 27.01.2010 - Proc. n.º 01088/09, de 25.02.2010 - Proc. n.º 01112/09, de 09.06.2011 - Proc. n.º 0410/11, de 21.11.2013 - Proc. n.º 0929/12, 06.02.2014 - Proc. n.º 01811/13, de 06.02.2014 - Proc. n.º 0512/13, de 10.03.2016 - Proc. n.º 0214/16, de 07.06.2018 - Proc. n.º 0802/17, de 07.05.2020 (Pleno) - Proc. n.º 02142/13.3BELSB, todos consultáveis in: «www.dgsi.pt/jsta» - sítio a que se reportarão todas as demais citações de acórdãos deste Tribunal sem expressa referência em contrário], tanto mais que quanto a este último aspeto é possível quer a dedução de pedido genérico [cfr. arts. 569.º do CC, e 556.º do CPC], quer ainda que a fixação cômputo dos prejuízos seja remetida para momento posterior mediante liquidação através de incidente próprio [cfr. arts. 564.º, n.º 2, e 565.º do CC, 358.º e segs. e 609.º, n.º 2, do CPC] e que anteriormente se realizava em execução de sentença [cfr. arts. 661.º, n.º 2, do CPC na redação anterior à introduzida pelo DL n.º 303/2007 e vigente após 01.01.2008].

20. Como afirmou este Supremo no seu acórdão de 21.11.2013 [Proc. n.º 0929/12] aquele conhecimento «… “não tem que ser ‘um conhecimento jurídico’, bastando que o lesado conheça os factos constitutivos desse direito, ou seja, esteja em condições de formular um juízo subjetivo, pelo qual possa qualificar aquele ato como gerador de responsabilidade e seja percetível que sofreu danos em consequência dele” …» e, também, no seu acórdão de 06.02.2014 [Proc. n.º 01811/13] que «o prazo prescricional se inicia com o conhecimento dos pressupostos (objetivos) que condicionam a responsabilidade civil; e não com a consciência (necessariamente subjetiva) da possibilidade legal de um ressarcimento. Ou seja: o sobredito “conhecimento do direito” é, no fundo e apenas, o conhecimento dos pressupostos fácticos da responsabilidade civil, sendo despiciendo que o lesado, depois de apreender os constituintes naturalísticos desses requisitos, tenha incorrido numa errada representação das consequências jurídicas que deles resultariam, só mais tarde se apercebendo de que era, afinal, titular de um direito relativamente ao lesante», tanto mais que, e continua, «a circunstância do lesado não ter submetido os factos lesivos a uma determinada perspetiva jurídica, o que equivale a uma “ignorantia legis” (que “non excusat” - art. 6.º do Código Civil), é impotente para alterar o termo inicial do prazo de prescrição, por forma a reportá-lo ao momento em que ele ficara juridicamente esclarecido», para além que o «estabelecimento de prazos prescricionais de direitos indemnizatórios visa, desde logo, instar os lesados a esclarecerem os contornos e as consequências da consabida lesão - a fim de que a discussão dos litígios não se distancie muito dos factos».

21. E com especial pertinência para a questão sob análise, ou seja, determinar se o prazo de prescrição a aplicar é o mais longo previsto no n.º 3 do art. 498.º do CC em articulação com os arts. 118.º, n.º 1, al. b), e 272.º, n.ºs 1, al. a), e 3, ambos do CP [in casu, 10 anos] ou, ao invés, o do regime regra constante do n.º 1 do mesmo preceito [03 anos], temos que extrai-se da jurisprudência deste Supremo Tribunal o entendimento de que a aplicação daquele prazo prescricional mais longo apenas depende da prova de que o facto ilícito constituía crime cujo prazo de prescrição do procedimento criminal era superior a três anos, não sendo também exigível a demonstração de que continua a ser possível a perseguição penal do agente do crime [cfr., neste sentido, os acórdãos deste Supremo de 12.04.2002 - Proc. n.º 044060, de 16.01.2003 - Proc. n.º 046481, de 19.11.2003 - Proc. n.º 01602/03, de 02.12.2004 - Proc. n.º 0145/04, de 19.04.2005 - Proc. n.º 0211/05, de 04.10.2005 - Proc. n.º 01806/03, de 30.05.2006 - Proc. n.º 0323/04, de 03.03.2011 - Proc. n.º 0722/10, de 15.05.2013 - Proc. n.º 01260/12, de 21.11.2013 - Proc. n.º 0929/12], sendo que tal aplicação não é afastada pelo facto de os entes públicos não estarem sujeitos a responsabilidade criminal [cfr., nomeadamente, os citados acórdãos deste Supremo de 19.04.2005 - Proc. n.º 0211/05, de 04.10.2005 - Proc. n.º 01806/03].

22. Com efeito, para o operar de tal aplicação são indiferentes a existência ou as vicissitudes do processo criminal, designadamente o seu arquivamento por uma causa qualquer, não dependendo, nem interessando/relevando que o crime tenha sido participado, ou que já não seja possível a perseguição criminal dos agentes do crime, porquanto o alargamento do prazo prescricional encontra sua justificação no facto de fazer «todo o sentido harmonizar o prazo de prescrição do direito de indemnização com o prazo em que, pelos mesmos factos, se pode perseguir criminalmente o autor da conduta lesiva», na certeza de que a fórmula legal utilizada «se o facto ilícito constituir crime» significa «a postulação de que a atividade em que se funda a responsabilidade civil integra os elementos constitutivos de um ilícito-típico penal, não interessando que o crime tenha sido participado ou que a respetiva queixa haja sido arquivada - já que o art. 498.º, n.º 3, do Código Civil não cura destes pormenores» [vide, nomeadamente, o citado Ac. deste Tribunal de 03.03.2011 - Proc. n.º 0722/10].

23. Daí que para efeitos da aferição do operar da prescrição na ação de indemnização cível, como a sub specie, a qualificação do facto ilícito como crime não está dependente do apuramento e definição da concreta responsabilidade penal do agente [cfr. neste sentido, entre outros, os Acs. deste Tribunal de 21.04.1994 - Proc. n.º 033412, de 16.01.2003 - Proc. n.º 046481], razão pela qual e para efeitos cíveis os AA. não estavam e não estão impedidos de infirmar aquele juízo de apuramento de responsabilidade, entendimento que se mantém e colhe pleno fundamento também no regime aplicável ao caso e que deriva, nomeadamente, do disposto nos arts. 84.º do Código Processo Penal [CPP] e 624.º do CPC [anterior art. 674.º-B do CPC], pois decorre do disposto no primeiro que «[a] decisão penal, ainda que absolutória, que conhecer do pedido civil constitui caso julgado nos termos em que a lei atribui eficácia de caso julgado às sentenças civis» e do segundo que «[a] decisão penal, transitada em julgado, que haja absolvido o arguido com fundamento em não ter praticado os factos que lhe eram imputados, constitui, em quaisquer ações de natureza civil, simples presunção legal da inexistência desses factos, ilidível mediante prova em contrário» [n.º 1] e que «[a] presunção referida no número anterior prevalece sobre quaisquer presunções de culpa estabelecidas na lei civil» [n.º 2].

24. Mas, por outro lado, importa ainda cuidar que, tal como afirmado por este Supremo, mormente no acórdão supra citado de 19.04.2005 [Proc. n.º 0211/05] e jurisprudência nele invocada, não é pelo facto de o R. Município não ser responsabilizado penalmente que deixa de se lhe poder aplicar a previsão do n.º 3 do art. 498.º do CC, porquanto tal como se extrai da fundamentação «ficaria injustificadamente sujeito a um tratamento diferente e menos exigente a responsabilidade das pessoas coletivas apenas pelo facto de os interesses ou atividades que estão na origem do dano estarem na órbita do património ou das competências ou dos fins da pessoa coletiva», militando a favor da aplicação do prazo previsto naquele preceito ainda «o facto de existindo responsabilização conjunta ou mesmo em exercício de direito de regresso da pessoa ou pessoas físicas que deram origem ao dano imputável à esfera da pessoa coletiva em cujo nome e interesse agiram, tal responsabilidade criminal e civil poder ser exercida» não fazendo sentido «submeter a prazo diferente a responsabilidade de apenas um dos obrigados civilmente a tal reparação dos danos, a pessoa coletiva».

25. Nessa medida, presentes os considerandos expostos e aquilo que constitui a alegação factual feita pelos AA. na petição inicial, da qual se extrai um quadro factual pretensamente integrador de ilícito criminal [de um crime de incêndio à data, p. e p., pelo art. 272.º do CP com a pena de prisão até 5 anos] carecida de vir a ser demonstrada pelos AA. em sede e momento próprio, temos que o prazo de prescrição para a instauração da ação seria de 10 [dez] anos, nos termos dos arts. 118.º, n.º 1, al. b), do CP e 498.º, n.º 3, do CC, não sendo possível, nem admissível, como fez o acórdão em crise, julgar procedente a exceção de prescrição com base no entendimento de que por não ter sido deduzido no processo penal pedido de indemnização civil contra o referido R. então, para além de não se ter logrado interromper a prescrição, aplicar-se-ia não o prazo prescricional previsto no n.º 3 do art. 498.º do CC, mas antes o da regra geral do n.º 1 do mesmo preceito.

26. Se é certo que no caso não vigorava o princípio de adesão [cfr. arts. 71.º e 72.º, n.º 1, al. f), do CPP] e que, como tal, os AA. poderiam demandar o R. Município, enquanto ente com mera responsabilidade civil, nos tribunais materialmente competentes, in casu os tribunais administrativos, deduzindo pretensão indemnizatória sujeita, como vimos, ao prazo prescricional que deriva da aplicação conjugada dos arts. 498.º, n.º 3, do CC, 118.º, n.º 1, al. b), e 272.º, n.ºs 1, al. a) e 3, do CP, temos que nada no quadro normativo permite ou autoriza a mudança do referido prazo prescricional, fazendo-o cair na previsão da regra geral do n.º 1 do art. 498.º do CC, e muito menos pelo simples facto de os mesmos não terem deduzido no processo penal um pedido de indemnização civil contra aquele R. para assim lograrem interromper o prazo prescricional, tanto mais que, inclusive, como referido, os AA. a tal nem sequer estavam obrigados.

27. Assim, à luz da alegação desenvolvida a este propósito pelos AA. na petição e que neste momento se mostra como controvertida é forçoso representar a possibilidade de uma prescrição de 10 [dez] anos desde que a ilicitude criminal da conduta descrita venha a ser oportunamente demonstrada, em sede e momento próprio e através dos meios de prova permitidos em direito.

28. Resulta, assim, como prematuro o conhecimento da exceção de prescrição feito no despacho saneador quando ainda existia controvérsia acerca dos respetivos pressupostos de facto [cfr. arts. 87.º e 90.º do CPTA, e 595.º do CPC], razão pela qual tal conhecimento apenas deverá ter lugar na sentença final, depois de produzida prova sobre tal matéria controvertida, pelo que quanto ao pedido indemnizatório deduzido contra o R. Município torna-se necessário fazer prosseguir a ação.

29. Face ao assim julgado fica prejudicado o conhecimento da outra questão suscitada no âmbito do pedido deduzido a título principal.

30. Insurgem-se, ainda, os AA. quanto ao juízo firmado no acórdão recorrido no segmento em que o mesmo manteve a decisão do TAF/CB de absolvição da instância das demais demandadas e chamada fundado na incompetência em razão da matéria para a apreciação do pedido indemnizatório deduzido como subsidiário, sustentando que o mesmo infringiria, nomeadamente o disposto no art. 04.º, n.º 1, al. g), do ETAF.

31. Refira-se, desde já, que o recurso neste segmento não procede, não nos merecendo reparo o juízo firmado no acórdão em crise.

32. Explicitando este nosso juízo temos que manifestamente as demandadas e chamadas não integram a previsão da al. g) do n.º 1 do art. 04.º do ETAF, porquanto as mesmas, desde logo, não são pessoas coletivas de direito público, nem as mesmas em termos de regime de responsabilidade civil extracontratual se mostram sujeitas ao regime daquelas, na certeza de que não se descortina no quadro normativo disciplinador do contencioso a alegada «contaminação» do pedido subsidiário pelo pedido principal e a consequente «extensão de competência dos tribunais administrativos para apreciar o pedido subsidiário».

33. É que, de facto, a causa de pedir que substancia o pedido subsidiário de indemnização deduzido pelos AA. contra as sociedades demandadas decorrente do incêndio florestal de 26.07.2004 não envolve, nem reveste, a natureza de uma relação jurídico-administrativa, como acertadamente considerou o acórdão recorrido, sendo que a natureza administrativa do contrato de empreitada de obra pública não as torna ou transforma em pessoas coletivas de direito público dado as mesmas manterem a sua natureza societária privada e a sua caracterização como sujeitos de direito privado exteriores à Administração, termos em que o pedido indemnizatório deduzido a título subsidiário extravasa o âmbito daquilo que é a competência dos tribunais administrativos tal como a mesma se mostra delimitada pelo art. 04.º do ETAF.

34. Em face do explicitado, procedem apenas em parte as críticas acometidas pelos recorrentes ao acórdão recorrido, que assim não pode manter-se na sua integralidade.



DECISÃO
Nestes termos, acordam em conferência os juízes da Secção de Contencioso Administrativo deste Supremo Tribunal, de harmonia com os poderes conferidos pelo art. 202.º da Constituição da República Portuguesa, em:
A) conceder parcial provimento ao recurso jurisdicional sub specie, e, em consequência, revogar acórdão recorrido no segmento que manteve o juízo do TAF/CB de procedência da exceção de prescrição quanto ao pedido deduzido a título principal, determinando a remessa dos autos ao referido TAF para prosseguimento da ação quanto a tal pedido, se a isso não obstar outra causa;
B) confirmar o demais decidido no acórdão recorrido quanto ao pedido deduzido a título subsidiário.
Custas a cargo do R./recorrido Município e dos AA., aqui recorrentes, em proporção a fixar a final. D.N..

Lisboa, 2 de julho de 2020. - Carlos Luís Medeiros de Carvalho (relator) - Maria Benedita Malaquias Pires Urbano - Adriano Fraxenet de Chuquere Gonçalves da Cunha.