Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:051/17.6BEBRG 0379/18
Data do Acordão:12/20/2018
Tribunal:1 SECÇÃO
Relator:CARLOS CARVALHO
Descritores:CARTA DE CONDUÇÃO
ACUSAÇÃO
FRAUDE
APTIDÃO
PROVAS
Sumário:A acusação penal por alegada utilização de meios fraudulentos para a obtenção de carta de condução não se pode ter como suficiente para que se entenda existirem «fundadas dúvidas» sobre a aptidão física, mental ou psicológica ou sobre a capacidade do A., enquanto condutor, para conduzir com segurança e, assim, justificadoras da submissão do mesmo a novo exame de condução ao abrigo do disposto no art. 129.º do Código da Estrada.
Nº Convencional:JSTA000P24024
Nº do Documento:SA120181220051/17
Data de Entrada:05/18/2018
Recorrente:A......
Recorrido 1:INSTITUTO DA MOBILIDADE E DOS TRANSPORTES,IP
Votação:UNANIMIDADE COM 1 DEC VOT
Aditamento:
Texto Integral: Acordam em conferência na Secção de Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo:

RELATÓRIO
1. A…………, devidamente identificado nos autos, instaurou no Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga [doravante «TAF/B»] a presente ação administrativa contra o “INSTITUTO DA MOBILIDADE E DOS TRANSPORTES, IP” [«IMT»], impugnando o ato praticado em 19.08.2016, pela Diretora de Serviços de Formação e Certificação [que lhe impôs que se submetesse à realização de novo exame de condução, consistente na realização de prova teórica e, obtida aprovação nesta, de prova prática], e na qual, pela motivação aduzida na petição inicial de fls. 04/10 dos autos [paginação processo suporte físico tal como as referências posteriores a paginação salvo expressa indicação em contrário], peticiona que seja «julgado nulo ou anulado o ato (…) com base em violação das suas formalidades mais essenciais, nomeadamente de direito constitucional, penal e estradal, com as demais consequências legais».

2. O «TAF/B», por sentença de 29.05.2017 [cfr. fls. 65 e segs.], julgou totalmente improcedente a ação, absolvendo o R. do pedido.

3. O A., inconformado recorreu para o TCA Norte [doravante «TCA/N»], o qual, por acórdão de 26.01.2018 [cfr. fls. 136/148], veio a negar provimento ao recurso e confirmar a sentença recorrida.

4. Invocando o disposto no art. 150.º do CPTA o A., de novo inconformado agora com o acórdão proferido pelo «TCA/N», interpôs, então, o presente recurso jurisdicional de revista [cfr. fls. 161 e segs.], apresentando o seguinte quadro conclusivo que se reproduz:
«...
1.ª O Acórdão ora recorrido representa uma clara ofensa de caso julgado de 26/02/2018.
2.ª O Acórdão ora recorrido nega provimento à pretensão do recorrente por entender que não invalida, e antes dá até conforto à integração da previsão do art. 129.º do CE, justificativa da prestação de “novos exames”, a acusação por factos que integram a obtenção da carta de condução com recurso a meios fraudulentos, já que, recebida, comporta fortes indícios da prática dos factos, justificando “fundadas dúvidas” sobre a aptidão ou capacidade de um condutor. para conduzir com segurança.
3.ª O recorrente foi absolvido naquele processo crime número 1420/11.0T3AVR do Tribunal Judicial Bragança, em cuja acusação se baseou o ato praticado pelo IMTT que obrigava o recorrente a submeter-se a novo exame de condução nas suas vertentes de prova teórica e prática.
4.ª Nesse mesmo processo crime, e ao contrário do que se verificou com os arguidos condenados, não lhe foi aplicada qualquer medida de apreensão e destruição da carta de condução.
5.ª Com a absolvição do arguido, aqui recorrente, não pode, pois manter-se aquele ato praticado pelo IMTT.
6.ª De outra forma, assistiríamos a uma clara violação do caso julgado.
7.ª O douto acórdão proferido pelo Tribunal Judicial de Bragança referente ao processo crime número 1420/11.0T3AVR, já transitado em julgado, torna-se assim aquela decisão definitiva e obrigatória, designadamente para as partes do processo.
8.ª Com o efeito do caso julgado, procura-se especialmente garantir o mínimo de certeza do direito ou de segurança jurídica, e assim, salvaguardar a segurança e a paz social.
9.ª Assim, por manifesta ofensa ao caso julgado formado não pode manter-se o acórdão ora trazido em revista.
10.ª Tendo o recorrente sido absolvido naquele processo crime, tendo o ato proferido pelo IMTT - que obrigava à realização de novo exame, nos termos do art. 129.º do CE - como fundamento a acusação deduzida naquele processo crime, deverá, pois ser dado provimento à presente revista, revogando-se o acórdão recorrido, devendo aquele ato ser anulado.
11.ª Aplicada com a interpretação que o tribunal acolheu, aquelas normas - art. 129.º do CE - violam os direitos fundamentais explicitados na fundamentação da impugnação, aqui tido por reproduzidos, e discrimina o recorrente, de fazer valer e defender os seus direitos.
12.ª A interpretação sustentada viola o art. 20.º da Constituição, produz injustiça relativa e viola o dever de os tribunais assegurarem a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos, consignado no art. 202º, n.º 2 da Constituição, contra o disposto no artigo 20.º, n.º 1, o qual consagra o direito de tutela jurisdicional efetiva, similar aos direitos, liberdades e garantias, diretamente aplicável, ex vi do artigo 18.º, todos da CRP assim como o princípio da igualdade, consignado no artigo 13.º, n.º 1, da CRP, tornando materialmente inconstitucional esse normativo.
13.ª Face ao presente caso concreto, em que, por via da interpretação acolhida, se produz tão intensa ofensa a valores fundamentais constitucionalmente protegidos, uma interpretação meramente literal das citadas normas, acolhendo um sentido restritivo que, no caso concreto, produza o efeito de considerar que o Requerente praticou factos conducentes à prática de crimes, posterga o princípio in dubio pro reo e o direito de defesa do arguido, e, em virtude disso, a tutela jurisdicional efetiva dos direitos e legítimos interesses do recorrente, bem como o seu direito a receber dos tribunais um tratamento similar ao de todos os seus concidadãos, é incompatível com o n.º 1 do artigo 20.º e com o n.º 1 do artigo 13.º, ambos da CRP.
14.ª Inconstitucionalidade essa que expressamente se invoca para todos os legais efeitos …».

5. Devidamente notificado o R., aqui ora recorrido, veio produzir contra-alegações [cfr. fls. 175 e segs.], concluindo nos seguintes termos:
«...
I. O presente Recurso de Revista foi interposto do douto Acórdão proferido pelo Tribunal Central Administrativo do Norte em 26 de janeiro de 2018, que negou provimento ao recurso da douta sentença de 29.05.2017, do Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga, que impugnava a decisão administrativa de submeter o Recorrente às provas de exame de condução, nos termos e para efeitos do disposto no n.º 1 do artigo 129.º do Código da Estrada (CE). Porém, não se encontram preenchidos os requisitos fixados no artigo 150.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA).

VI. - Sem prejuízo de tudo o que foi referido atrás sobre a inadmissibilidade do presente recurso de revista, por mera cautela de patrocínio, se dirá que o douto Acórdão Recorrido, bem como a douta sentença do TAF de Braga, fizeram uma correta interpretação e aplicação do disposto no n.º 1 do artigo 129.º do CE, no que concerne designadamente às “fundadas dúvidas sobre a sua aptidão física, mental ou psicológica sobre a sua capacidade para conduzir com segurança”.
VII. É que, ao contrário do alegado pelo Recorrente não estamos perante uma violação de caso julgado. Ocorre a exceção de caso julgado, quando se verificar a repetição de uma causa idêntica a outra, quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir, decidida por sentença que já não admite recurso ordinário, o que impõe ao juiz a abstenção de conhecer do mérito da causa repetida - Manuel de Andrade in “Noções Elementares de Processo Civil”, Coimbra Editora, … 1979, escreve sobre a noção de pedido “É a pretensão do Autor, o direito para que ele solicita ou requer a tutela judicial e o modo por que intenta obter tutela”, ainda refere “Pedido é a enunciação da forma de tutela jurisdicional pretendida pelo Autor e o conteúdo e objeto do direito a tutelar”, e sobre “a causa de pedir é o ato ou o facto jurídico, simples ou complexo mas sempre concreto, donde emerge o direito que o autor invoca. Esse direito não pode ter existência sem um ato ou facto jurídico que seja legalmente idóneo para o condicionar ou produzir”, referindo ainda sobre a causa de pedir o seguinte: “é o ato ou facto jurídico (contrato, testamento, facto ilícito, etc.) donde o autor pretende ter derivado o direito a tutelar; o ato ou facto jurídico que ele aduz como título aquisitivo desse direito (art. 498.º, n.º 4)”.
VIII. No Processo n.º 1420/11.0T3AVR, que correu termos no Tribunal Judicial de Bragança, e do qual o Recorrente foi acusado de factos que integram a obtenção da carta de condução com recurso a meios fraudulentos, designadamente da prática do crime de corrupção ativa para a prática de ato ilícito, p. e p. pelo artigo 374.º, n.º 1, do Código Penal, e do crime de falsificação de documento p. e p. pelos artigos 256.º, n.º 1, alínea c) e d), por referência ao artigo 255.º, alínea a), todos do Código Penal, pelo que estamos no âmbito de factos jurídicos de ilícito criminal, cujos bens jurídicos, definidos nos Acórdãos do STA 5.ª secção, de 18.04.2013, proc. 180/05JACBR.C1.S1, e do Tribunal da Relação de Coimbra, de 23.11.2010, proc. 269/09.5.TACBC.C1, são distintos do objeto do presente recurso, trata-se de uma decisão de âmbito administrativo, que tem um cariz meramente preventivo de salvaguarda do interesse público na preservação do princípio da segurança rodoviária, pelo que não são aqui aplicados os princípios insertos no direito penal como alega o Recorrente, designadamente ao referir que “está o A. sob proteção do princípio in dubio pro reo!”
IX. Estamos perante pedidos diferentes, que visam produzir efeitos jurídicos distintos, pelo que nunca houve a possibilidade de o Tribunal vir a contradizer ou reproduzir decisões, assim sendo, ao contrário do alegado pelo Recorrente, não há violação de caso julgado, não estão preenchidos todos os requisitos para que se considere verificada tal exceção dilatória, cfr. artigos 580.º e 581.º do CPC e artigo 89.º, n.º 4 alínea l), do CPTA.
X. Também não pode proceder a argumentação deduzida pelo Recorrente de que a interpretação sustentada “viola o artigo 20.º da Constituição”. O direito de impugnar não lhe foi vedado, apenas existe uma discordância com o sentido do decidido.
XI. A titularidade de uma carta de condução não constitui um direito, mas antes a posse de uma autorização que evidencia publicamente que o seu titular é detentor de condições/aptidões e capacidades que lhe permitem o exercício de uma condução em segurança. O direito de conduzir, conforme assinala o Acórdão n.º 472/2007 do Tribunal Constitucional, publicado no Diário da República, 2.ª Série, n.º 211, de 2.11.2007, “(…) decorre de uma licença, (…), e que está dependente da verificação de um conjunto de condições de perícia e de comportamento psicológico; apenas existe um direito generalizado a obter uma licença se certas condições se verificarem, mas não existe, obviamente, um direito absoluto de conduzir fora desse condicionamento. (…) A obtenção da carta ou licença de condução é, assim, um processo com várias fases, que exige o preenchimento de vários requisitos positivos e negativos, o que é justificado pelos potenciais riscos dessa atividade para bens jurídicos essenciais”, por conseguinte, não estamos perante a ofensa de valores fundamentais constitucionalmente protegidos, i.e., a tutela de direitos, liberdades e garantias, mas apenas perante o direito de conduzir, que está sob o escrutínio contínuo da Administração/IMT, através de diferentes normativos contidos no CE, que vão além do disposto no artigo 129.º, e que pretendem prosseguir o interesse público de uma condução em segurança nas vias públicas.
XII. O condutor durante a validade da carta de condução pode vir a estar sujeito a demonstrar que possui as aptidões/capacidades que lhe permitam conduzir em segurança, pelo que o direito a conduzir não é um direito que se inseria nos direitos consagrados no artigo 18.º da Constituição, como procura fazer valer o Recorrente no presente recurso …».

6. Pelo acórdão da formação de apreciação preliminar deste Supremo Tribunal prevista no n.º 5 do art. 150.º do CPTA, datado de 26.04.2018 [cfr. fls. 190/191], veio a ser admitido o recurso de revista consignando-se na sua fundamentação de que a «… solução das instâncias baseou-se na ideia, já presente no ato, de que o art. 129.º do Código da Estrada - cujo n.º 1 permite reexaminar um condutor quando haja “fundadas dúvidas” sobre a sua “capacidade” para “conduzir com segurança” - abrange os casos em que a legitimidade da obtenção do título esteja a ser discutida em sede criminal. Aliás, o aresto “sub specie” noticia que tal ideia tem triunfado em situações análogas - pormenor denotativo de que o ato se inscreve numa linha decisória a que o IMT se habituou. (…) No entanto, o elenco exemplificativo daquelas “fundadas dúvidas” - inserto no n.º 2 do mesmo art. 129.º - apenas se refere a comportamentos do condutor, “qua talis”, e não à bondade da obtenção do próprio título. Por outro lado, partir-se da qualidade de arguido - acusado, num processo penal, de obter fraudulentamente a licença - para administrativamente se duvidar da capacidade titulada parece, ao menos “primo conspectu”, contender com o princípio da presunção de inocência, consagrado no art. 32.º, n.º 2, da CRP; pois essa presunção - no caso, negatória de que o título fora ilegitimamente obtido - harmoniza-se mal com a emergência das “fundadas dúvidas” que o ato impugnado pressupôs …».

7. O Digno Magistrado do Ministério Público (MP) junto deste Tribunal notificado nos termos e para efeitos do disposto no art. 146.º do CPTA não emitiu qualquer pronúncia [cfr. fls. 197 e segs.].

8. Colhidos os vistos legais foram os autos submetidos à Conferência para julgamento.


DAS QUESTÕES A DECIDIR

9. Constitui objeto de apreciação nesta sede o assacado erro de julgamento acometido pelo A./Recorrente ao acórdão recorrido quanto ao juízo no mesmo efetuado, visto entender haver violação, nomeadamente, do disposto no art. 129.º do Código da Estrada [CE], bem como dos princípios do in dubio pro reo, da presunção de inocência, dos direitos de defesa do arguido, da tutela jurisdicional efetiva, da segurança jurídica por ofensa ao «caso julgado» e da proporcionalidade, constitucionalmente consagrados [cfr. arts. 20.º, n.º 1, 13.º, n.º 1, 18.º, 32.º, n.ºs 1 e 2, 202.º, n.º 2 e 266.º, n.º 2, todos da CRP], e, nessa medida, deveria ter sido julgada procedente a pretensão impugnatória por si deduzida ao invés do que concluíram as instâncias [cfr. alegações e demais conclusões supra reproduzidas].


FUNDAMENTAÇÃO
DE FACTO
10. Resulta como assente nos autos o seguinte quadro factual:
I) O A. é titular da carta de condução n.º ………. - categorias A/A1/A2/ e B/B1 e B1, respetivamente com as datas de emissão de 08.09.2011 e 29.12.2011 [cfr. doc. n.ºs 02 e 03 juntos com a petição inicial (P.I.) e fls. 10 e 11 do processo administrativo («PA») - Parte I].
II) A Senhora Procuradora Adjunta da 6.ª Secção do Departamento de Investigação e Ação Penal do Porto, através do ofício com a referência 9935621, datado de 15.07.2014, enviou ao Presidente da Entidade R., em suporte informático (CD), cópia da acusação deduzida no inquérito n.º 1420/11.0T3AVR, que naquela secção corria termos, na qual figura, entre outros arguidos, o aqui A. [cfr. fls. 01 a 03 do «PA» - Parte I].
III) Pelos Serviços da Entidade R., no âmbito do processo instrutor, em 21.08.2015 foi prestada a informação n.º 039300096538763-DSC/DHC, pronunciando-se no sentido de que as acusações deduzidas no inquérito n.º 1420/11.0T3AVR contra os arguidos condutores, conduzem à previsão do disposto no n.º 1 do artigo 129.º do Código da Estrada, tendo em conta que se levantam sérias dúvidas relativamente às condições legalmente exigidas para serem titulares de carta de condução, nomeadamente quanto aos conhecimentos teóricos sobre o Código da Estrada e a capacidade para exercerem uma condução estradal segura, propondo que os mesmos sejam submetidos a novo exame de condução ao abrigo do citado n.º 1 do artigo 129.º do Código da Estrada [cfr. fls. 10 a 20 do «PA» - Parte I].
IV) Em 24.03.2016 a Chefe de Departamento de Habilitação de Condutores da Entidade R. emitiu parecer sobre a informação n.º 039300101604858-DSC/DHC prestada pelos serviços da Entidade R. na mesma data, o qual se transcreve:
«À elevada consideração superior com o meu parecer de concordância quanto à proposta de submissão nos termos do art. 129.º do CE, dos arguidos identificados em lista anexa à presente informação, a novo exame de condução, composto por prova teórica e prova prática, porquanto conforme despacho de acusação deduzido no âmbito do processo n.º 1420711.0T3AVR que corre os seus termos no Tribunal Judicial de Bragança, existem fortes indícios de que os arguidos não respeitaram as normas relativas à formação e avaliação com vista à obtenção de título de condução, designadamente durante as provas de exame, suscitando desta forma fundadas dúvidas sobre aptidão dos mesmos para a condução com segurança. Concordando-se, igualmente com a proposta de interação com a Direção de Serviços de Fiscalização na execução dos procedimentos necessários a realização destes exames, indicando-se, desde já, nos termos e para os efeitos do art. 55.º CPA, como representante da DSFG, a B………, entendendo-se que se torna necessária a indicação de um representante da DSF» [cfr. fls. 39 do «PA» - Parte I].
V) O Presidente do Conselho Diretivo da Entidade R. em 28.03.2016 proferiu sobre o Parecer, referido no ponto IV), o seguinte despacho:
«Concordo.
À DSFC para proceder conforme proposta com carácter de urgência em coordenação com a DFS» [cfr. fls. 39 do «PA» - Parte I].
VI) Através do ofício, remetido ao A., por carta registada com aviso de receção, subscrito pela Diretora de Serviços de Formação e Certificação com a referência n.º 039200102202317, sob o Assunto “Notificação para a realização de exames - Audiência prévia” foi-lhe dado conhecimento e notificado do seguinte:
«(...) Considerando as competências legalmente conferidas a este Instituto, para nos termos do art. 129.º, n.º 2, do Código da Estrada sujeitar os condutores à realização de exame de condução;
Considerando ainda que os elementos comunicados pelo Digníssimo Procurador do Ministério Público do Tribunal de Bragança no âmbito do Processo n.º 1420/11.0T3AVR se enquadram na supra norma;
Considerando o despacho do Senhor Presidente do IMT, IP, de 28 de março de 2016. Nos termos do qual se determina a submissão dos condutores arguidos no processo supra identificado à realização de provas de exame de condução;
Assim,
Notifica-se do projeto de decisão de submissão de V.ª Ex.ª à realização de prova teórica de condução e, em caso de aprovação nesta prova à realização de prova prática.
Mais se notifica para, nos termos do art. 121.º e seguintes do Código do Procedimento Administrativo, querendo, exercer o direito de pronúncia no prazo de 10 (dez) dias úteis, relativamente ao presente projeto de decisão» [cfr. fls. 52 do «PA» - Parte I e fls. 01 a 03 Parte III].
VII) O A., através do seu mandatário, exerceu o direito de pronúncia, em sede de audiência prévia, remetendo peça escrita à Entidade Requerida, na qual refere para além do mais:
«(...) não existe qualquer razão para que o Expoente se submeta a prova teórica e prova prática. Pelo que nunca poderá haver qualquer dúvida - mas, ao invés, haverá certeza - sobre a sua aptidão para a condução.
Por outro lado, a referência ao processo 1420/11.0T3AVR diz respeito a factos que o Expoente não praticou e a crime que também não cometeu e dos quais será absolvido. E tal decisão virá a impor-se, após trânsito em julgado, ao presente procedimento pelo que este é extemporâneo e que, além do mais, é infundado, ilegal e nulo.
Termos em que deve o presente procedimento ser arquivado» [cfr. fls. 04 a 09 do «PA» - Parte II].
VIII) Em 21.06.2016, em sede de audiência prévia, foi exarada a informação n.º 039300103657389-DSC/DHC por Técnica Superior da Entidade R., concluindo:
«Face ao exposto, os argumentos apresentados não colhem, pelo que se deve manter a decisão de submissão da pronunciante à realização da prova de exame de condução, nas suas vertentes de prova teórica e prova prática, o que se propõe. À consideração superior ...» [cfr. fls. 12 a 15 do «PA» - Parte II].
IX) Em 07.07.2016 a Diretora de Serviços de Formação e Certificação da Entidade R., por delegação de competência, concedida pela Deliberação 1293/2016, de 01.06.2016, proferiu o seguinte despacho:
«Concordo com o proposto. Atuar como proposto» [cfr. fls. 15 do «PA» - Parte II].
X) O A. foi notificado do despacho supra através de ofício datado de 30.09.2016, subscrito pela Diretora de Serviços de Formação e Certificação do seguinte teor:
«Assunto: Notificação para realização de exame de condução - Decisão Final - Agendamento das Provas teórica e prática, constitutivas de exame de condução.
Relativamente ao assunto supra identificado notifica-se que, por meu despacho datado de 07 de julho de 2016, foi proferida decisão final de submissão a exame de condução nas suas vertentes de prova teórica e prova prática, com os fundamentos constantes na informação de que se junta cópia.
Assim fica V.ª Ex.ª notificado para comparecer no Centro de Exames de Vila Real, sito em ……….., …….. (junto ao Aeródromo) ……….. Vila Real (…) no dia e hora a seguir indicados, a fim de realizar prova teórica de exame de condução:
DIA
HORA
24-10-2016
10h00
Mais se notifica que, se obtiver aprovação na referida prova teórica é de imediato agendada data para a realização de prova prática (podendo a mesma ser realizada no próprio dia ou dia seguinte), devendo para efeitos de realização desta, providenciar veículo licenciado para o ensino da condução, conforme despacho do Presidente do Conselho Diretivo do IMT, IP, de que se junta cópia.
Adverte-se que a não comparência ou reprovação em qualquer das provas determinadas pelo Ministério Público de Bragança, no dia e hora agendados, implica a não realização da(s) prova(s) seguinte(s), bem como a caducidade do título de condução nos termos da alínea b) do n.º 1 do art. 130.º do Código da Estrada e a consequente comunicação àquela entidade» [cfr. Fls.16 a 18 do «PA» - Parte II].
XI) O A. é arguido no Processo n.º 1420/11.0T3AVR, que corre termos no Tribunal Judicial de Bragança, no âmbito do qual foi acusado de factos que integram a obtenção da carta de condução com recurso a meios fraudulentos [cfr. fls. 33 a 38 do «PA» - Parte I].
XII) A petição inicial da presente ação, intentada pelo A., deu entrada em juízo em 05 de janeiro 2017 [cfr. página 01 eletrónica].

*

DE DIREITO
11. Presente o quadro factual antecedente passemos, então, à apreciação do objeto do presente recurso de revista.

12. Insurge-se o A., aqui recorrente, quanto ao juízo firmado pelo acórdão recorrido que, negando provimento ao recurso, manteve a sentença do «TAF/B» que havia julgado improcedente a ação por ele intentada contra o R./«IMT», e onde impugnou o ato que - por ele estar acusado, num processo penal, de haver obtido fraudulentamente a sua licença de condutor - lhe impôs a submissão a um novo exame de condução, nas vertentes teórica e prática.

13. A discussão nos autos centra-se na interpretação e aplicação do regime previsto no art. 129.º do CE à atuação imputada ao A. nos termos que se mostram feitos pelo R., e reputadas de erradas por este, bem como em violação dos princípios do in dubio pro reo, da presunção de inocência, dos direitos de defesa do arguido, da tutela jurisdicional efetiva, da segurança jurídica por ofensa ao «caso julgado» e da proporcionalidade [cfr. arts. 20.º, n.º 1, 13.º, n.º 1, 18.º, 32.º, n.ºs 1 e 2, 202.º, n.º 2 e 266.º, n.º 2, da CRP].

14. Extrai-se do art. 129.º do CE [na redação que lhe foi dada pelo DL n.º 138/2012, de 05.07, e à data vigente] [preceito inserido no capítulo IV - relativo a “Novos exames e caducidade”, do título V concernente à “habilitação legal para conduzir” e que teve suas fontes nos n.º 8 do art. 47.º do CE/85, no n.º 1 do art. 53.º do CE/92, no n.º 2 do art. 129.º do CE/94], que «[s]urgindo fundadas dúvidas sobre a aptidão física, mental ou psicológica ou sobre a capacidade de um condutor ou candidato a condutor para conduzir com segurança, a autoridade competente determina que aquele seja submetido, singular ou cumulativamente, a avaliação médica, a avaliação psicológica, a novo exame de condução ou a qualquer das suas provas» [n.º 1], que «[c]onstitui, nomeadamente, motivo para dúvidas sobre a aptidão psicológica ou capacidade de um condutor para exercer a condução com segurança a circulação em sentido oposto ao legalmente estabelecido em autoestradas ou vias equiparadas, bem como a dependência ou a tendência para abusar de bebidas alcoólicas ou de substâncias psicotrópicas» [n.º 2], que «[o] estado de dependência de álcool ou de substâncias psicotrópicas é determinado por avaliação médica, ordenada pelas entidades referidas no n.º 1, em caso de condução sob a influência de quaisquer daquelas substâncias» [n.º 3]. sendo que «[r]evela a tendência para abusar de bebidas alcoólicas ou de substâncias psicotrópicas a prática num período de três anos, de duas infrações criminais ou contraordenacionais muito graves, de condução sob a influência do álcool ou de substâncias psicotrópicas» [n.º 4], e que «[q]uando o tribunal conheça de infração que tenha posto em causa a segurança de pessoas e bens a que corresponda pena acessória de proibição ou inibição de conduzir e haja fundadas razões para presumir que a mesma resultou de inaptidão ou incapacidade do condutor, deve determinar a sua submissão, singular ou cumulativamente, a avaliação médica, psicológica, a exame de condução ou a qualquer das suas provas» [n.º 5].

15. Cumpre, então, determinar se, em decorrência da acusação penal de que o A. foi alvo no processo n.º 1420/11.0T3AVR, por alegada utilização de meios fraudulentos para a obtenção de carta de condução, e de cuja imputação penal terá sido absolvido pelo que se mostra afirmado pelo mesmo nos autos [cfr. fls. 127/128], tal bastará para lograr preencher a previsão do n.º 1 do art. 129.º do CE?

16. E respondendo à questão diga-se, desde já, que uma tal imputação não se pode ter como suficiente para que se entenda existirem «fundadas dúvidas» sobre a aptidão física, mental ou psicológica ou sobre a capacidade do A., enquanto condutor, para conduzir com segurança e, assim, justificadoras da submissão do mesmo a novo exame de condução.

17. É que o preenchimento da previsão da norma em referência carece ou mostra-se estribado na exigência de comportamentos desenvolvidos pelo candidato a condutor ou pelo condutor, qua talis, comportamentos esses conducentes a gerar tais fundadas dúvidas sobre as respetivas capacidades pessoais em termos de aptidão física, mental ou psicológica [cfr., sobre as condições mínimas de aptidão física, mental e psicológica e sua avaliação médica/psicológica, os arts. 23.º e 24.º e anexos V) e VI) do Regulamento da Habilitação Legal para Conduzir (RHLC) - aprovado pelo DL n.º 138/2012, de 05.07] ou sobre as suas capacidades para conduzir com segurança, e que revelam, assim, a existência de um perigo ou de uma ameaça à segurança rodoviária.

18. E, nessa medida, a previsão não contenderá com a questão da bondade da obtenção do próprio título [carta de condução], tanto mais que a demonstração de que foram utilizados meios fraudulentos para a sua obtenção acarretará ou implicará a necessária nulidade do título, com a sua apreensão/perda [cfr. arts. 41.º do RHLC, 133.º, n.º 2, al. c), do CPA (na redação anterior à introduzida pelo DL n.º 4/2015) - atual art. 161.º, n.º 2, al. c), do CPA/2015 -, e 110.º do Código Penal (CP)], e, consequente, imposição/obrigação do sujeito seu portador, querendo estar habilitado legalmente a conduzir na via pública, de ter de obter título novo e válido em estrita submissão e observância do regime legal disciplinador da matéria [cfr., entre outros, os arts. 121.º, 123.º, 126.º, do CE, 01.º, 03.º, 18.º, 33.º/35.º, 42.º, 47.º, 50.º/60.º do RHLC].

19. Efetivamente, a medida administrativa de imposição da submissão, singular ou cumulativamente, de um condutor, ou de candidato a sê-lo, a avaliação médica, psicológica, ou a novo exame de condução ou a qualquer das suas provas, tal como previsto no n.º 1 do art. 129.º do CE, mostra-se conexionada, por força do que, aliás, de seguida se encontra concretizado nos n.ºs 2, 3, e 4, do mesmo preceito, com condutas ou comportamentos havidos pelo condutor ou pelo candidato [v.g., circulação em sentido oposto ao legalmente estabelecido em autoestradas ou vias equiparadas, dependência ou tendência para o abuso de bebidas alcoólicas ou de substâncias psicotrópicas], sendo que a mesma exigência está, igualmente, na base, das decisões judiciais que os venham a determinar [cfr., n.º 5 do art. 129.º, do CE], ou que determinem a cassação do título de condução ou a interdição da concessão do título de condução de veículo com motor [cfr. arts. 101.º do CP, e 148.º do CE].

20. Atente-se que sobre qualquer médico impende, nos termos do art. 28.º do RHLC, um dever de notificação à autoridade de saúde da área da residência do condutor sempre que, no decurso da sua atividade clínica, detete que o condutor sofra de doença ou deficiência, crónica ou progressiva, ou apresente perturbações do foro psicológico suscetíveis de afetar a segurança na condução, notificação essa a operar sob a forma de relatório clínico fundamentado e confidencial, sendo que o procedimento a desenvolver «é ainda aplicável à avaliação médica determinada ao abrigo dos n.ºs 1 e 5 do artigo 129.º do Código da Estrada» [n.º 4, do art. 28.º].

21. Por outro lado, constitui um entorse ao princípio da presunção de inocência [cfr. art. 32.º, n.º 2, da CRP] o partir-se da qualidade de arguido/acusado, no quadro de um processo penal, por haver obtido fraudulentamente a licença de condução, para daí e sem mais se inferir e concluir, administrativamente, pela existência, em termos definitivos, de fundadas dúvidas sobre a capacidade titulada, e fazê-lo a ponto de impor a submissão daquele arguido a provas/exames destinados a atestar e comprovar as suas capacidades, sem que haja ainda uma condenação transitada em julgado.

22. O princípio da presunção de inocência integra àquela classe de princípios materiais do processo penal que, enquanto constitutivos do Estado de direito democrático, são extensíveis ao direito sancionatório público [n.ºs 2 e 10 do art. 32.º da CRP].

23. Ora uma interpretação que considere preenchida a previsão do n.º 1 do art. 129.º do CE e que imponha e sujeite o A. a uma medida administrativa lesiva da sua esfera e situação jurídica com a simples e mera acusação, enquanto arguido no quadro de processo penal, dispensando-se a existência de uma sentença transitada em julgado que o haja punido pela obtenção fraudulenta do título de condução, envolve afetação da sua garantia da presunção de inocência.

24. Com efeito, é-lhe imposta uma obrigação de sujeição a exame/prova no pressuposto de o mesmo já ser tido como culpado antes de o tribunal haver formalizado o juízo sancionatório de forma necessariamente fundamentada, tanto mais que o mesmo vê, por um lado, o seu título de condução caducar se não se submeter ou reprovar na avaliação médica ou psicológica, no exame de condução ou em qualquer das suas provas [cfr. al. b), do n.º 1 do art. 130.º do CE], e, por outro lado, fica sujeito ao exame especial previsto no n.º 2 do mesmo art. 130.º caso queira obter novo título de condução e, bem assim, ao regime probatório previsto no art. 122.º do mesmo código, sendo que, por força do cancelamento do título, deixa de estar habilitado a conduzir os veículos para os quais o título havia sido emitido [cfr. n.ºs 4, 5 e 6 do art. 130.º daquele código].

25. O entendimento da norma ora questionada com um tal alcance, forçando o A., por efeito do preenchimento da previsão, a submeter-se ao exame/prova e à possibilidade, inclusive de vir a reprovar, com as implicações e consequências apontadas, não pode deixar de se ter como violadora do princípio da presunção da inocência, tanto mais que, tal como afirmado no acórdão da formação preliminar que admitiu a revista supra aludido, essa «presunção - no caso, negatória de que o título fora ilegitimamente obtido - harmoniza-se mal com a emergência das “fundadas dúvidas” que o ato impugnado pressupôs e mostrar-se pressuposto».

26. No mais revelam-se como insubsistentes os demais fundamentos aduzidos pelo A., aqui recorrente, porquanto não resultam, no contexto em presença, minimamente postergados quaisquer direitos de defesa ou à tutela jurisdicional efetiva, aliás aqui exercidos e observados plenamente no âmbito da presente ação administrativa, assim como não procede a alegação e convocação do caso julgado por claramente improfícua no quadro e termos sub specie, cientes de que a análise do demais quadro principiológico convocado no contexto do entendimento que se mostra firmado se tem aqui como desnecessário.

27. À luz do que supra se expendeu assiste, pois, razão ao A., aqui recorrente, impondo-se conceder provimento ao presente recurso de revista, e julgar procedente a pretensão pelo mesmo deduzida.


DECISÃO
Nestes termos, acordam em conferência os juízes da Secção de Contencioso Administrativo deste Supremo Tribunal, de harmonia com os poderes conferidos pelo art. 202.º da Constituição da República Portuguesa, em:
A) conceder provimento ao recurso jurisdicional sub specie, e, em consequência, revogar o acórdão recorrido;
B) julgar a presente ação administrativa procedente, por provada, e consequentemente, anular o ato impugnado.
Custas nas instâncias e neste Supremo a cargo do R./Recorrido. D.N..
Lisboa, 20 de Dezembro de 2018. - Carlos Luís Medeiros de Carvalho (relator) – Maria Benedita Malaquias Pires Urbano (com declaração anexa) – Jorge Artur Madeira dos Santos.

Declaração de voto

À partida, dada a abertura consentida pelo n.º 1 do artigo 129.° do CE, designadamente pela expressão "fundadas dúvidas (...) sobre a capacidade de um condutor ou candidato a condutor para conduzir com segurança", não me repugnaria incluir o caso relatado nos autos no âmbito das situações contempladas nesse mesmo n.º 1 do artigo 129.° do CE e exemplificadas no seu n.º 2. Com efeito, a obtenção fraudulenta da carta de condução indicia não quantas vezes a dificuldade que certas pessoas têm na sua obtenção em virtude da incapacidade demonstrada para conduzir e/ou compreender as regras do trânsito. Em nosso entender, isso será um sinal claro de que não há garantias de que a pessoa que obteve fraudulentamente a sua carta de condução irá conduzir de forma segura. Ainda assim, entendemos dever acompanhar o sentido do acórdão pelos seguintes motivos:

1) A ideia de que a obtenção fraudulenta da carta de condução indicia a incapacidade para a obter de forma legal não passa disso mesmo, ou seja, de mero indício;

2) A inclusão da situação em apreço na estatuição do n.º 1 do artigo 129.° conduziria a um imbróglio caso o condutor submetido a novo exame de condução ou a qualquer das suas provas 'chumbasse' e ulteriormente fosse absolvido da acusação de obtenção fraudulenta da carta de condução, ou, inversamente, se 'passasse' no dito exame ou provas e ulteriormente fosse condenado por fraude na obtenção da sua carta de condução e, em consequência, a mesma fosse cassada.
3) Como se afirma no texto do acórdão, existem outros meios que permitem que, durante o desenrolar do processo criminal, a pessoa que alegadamente obteve a sua carta de condução de forma fraudulenta se veja impossibilitada de conduzir.

Lisboa, 20.12.18

Maria Benedita Urbano