Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0139/19.9BCLSB
Data do Acordão:07/02/2020
Tribunal:1 SECÇÃO
Relator:FONSECA DA PAZ
Descritores:DISCIPLINA DESPORTIVA
LIBERDADE DE EXPRESSÃO
Sumário:I – Preenche a infracção disciplinar prevista e punida pelos artºs. 19.º e 112.º do RDLPFP a publicação de um artigo na “newsletter” de um clube desportivo onde se imputa ao VAR uma actuação deliberada de erro com o objectivo de favorecer um clube em detrimento de outro, colocando em causa a sua idoneidade para o exercício das funções que desempenha.
II – Os citados preceitos do RDLPFP não podem ser interpretados no sentido de que a liberdade de expressão e de informação se sobrepõe à honra e reputação de todos aqueles que intervêm nas competições desportivas organizadas pela Liga Portuguesa de Futebol Profissional.
Nº Convencional:JSTA000P26177
Nº do Documento:SA1202007020139/19
Data de Entrada:05/21/2020
Recorrente:FEDERAÇÃO PORTUGUESA DE FUTEBOL
Recorrido 1:FUTEBOL CLUBE DO PORTO - FUTEBOL, SAD
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: ACORDAM NA SECÇÃO DE CONTENCIOSO ADMINISTRATIVO DO STA:


1. A Federação Portuguesa de Futebol (FPF), inconformada com o acórdão do TCA – Sul que negou provimento ao recurso que havia interposto do acórdão do Colégio Arbitral constituído junto do Tribunal Arbitral do Desporto (TAD) que revogara a pena de multa que havia sido aplicada ao “Futebol Clube do Porto - Futebol SAD” pelo Conselho de Disciplina da FPF, dele interpôs, para este STA, recurso de revista, tendo na respectiva alegação, formulado as seguintes conclusões:

1. A Recorrente vem interpor recurso de revista para o STA do Acórdão proferido pelo TCA Sul em 30 de janeiro de 2020, que confirmou o acórdão arbitral proferido pelo Tribunal Arbitral do Desporto. Esta instância, por seu turno, havia decidido revogar a decisão de aplicação à ora Recorrida de multa por força do artigo 112.º do RD da LPFP.
2. A questão em apreço diz respeito à responsabilização dos clubes pelas declarações consideradas ofensivas da honra e reputação de agentes desportivos e de órgãos da estrutura desportiva e que podem com isso afetar a própria competição, o que, para além de levantar questões jurídicas complexas, tem assinalável importância social uma vez que, infelizmente, tais declarações têm eco nos episódios de violência em recintos desportivos que têm sido uma constante nos últimos anos em Portugal e o sentimento de impunidade dos clubes dado por decisões como aquela de que agora se recorre nada ajudam para combater este fenómeno.
3. A Recorrente não pretende fazer deste recurso de revista e do STA uma terceira (ou quarta, se tivermos em consideração a decisão proferida pelo Conselho de Disciplina da Requerida) instância de apreciação deste caso, o que, como se sabe, não é possível.
4. Contudo, a questão essencial trazida ao crivo deste STA – responsabilização dos clubes pelas declarações que difundem ou fazem difundir nas suas redes sociais e nos meios de comunicação social - revela uma especial relevância jurídica e social e sem dúvida que a decisão a proferir é necessária para uma melhor aplicação do direito.
5. Recorde-se que em causa nos presentes autos estão publicações na newsletter oficial da Sociedade Desportiva ora Recorrida, consideradas ofensivas da honra e da reputação dos órgãos da estrutura desportiva e dos seus membros, as quais foram divulgadas na comunicação social.
6. Por um lado, se é certo que o futebol é a modalidade desportiva com mais relevo na sociedade portuguesa, tal não torna os litígios com ele relacionados automaticamente relevantes do ponto de vista social, pese embora possam ter o seu espaço cativo diário nos órgãos de comunicação social.
7. Porém, o que assume especial relevância social é a forma como a comunidade olha para o crescente fenómeno de violência generalizada no futebol – seja a violência física, seja a violência verbal, seja perpetrada por adeptos, seja perpetrada pelos próprios clubes e/ ou dirigentes dos clubes, através dos seus meios de comunicação oficiais ou outros.
8. De igual forma, também este Supremo Tribunal Administrativo, quando aceitou conhecer este tipo de declarações, num situação muito idêntica à dos presentes autos, entendeu, de forma clara, que imputações destas “atingem não só os árbitros envolvidos, como assumem potencialidade para gerar um crescente desrespeito pela arbitragem e, em geral, pela autoridade das instituições e entidades que regulamentam, dirigem e disciplinam o futebol em Portugal, sendo o sancionamento dos comportamentos injuriosos, difamatórios ou grosseiros necessário para a prevenção da violência no desporto, já que tais imputações potenciam comportamentos violentos, pondo em causa a ética desportiva que é o bem jurídico protegido pelas normas em causa.”.
9. É também verdade que o STA não pode ser chamado a pronunciar-se sobre todas as questões que lhe são colocadas, mas apenas quando a sua intervenção seja necessária para uma melhor aplicação do direito.
10. O bem jurídico a proteger no âmbito disciplinar é distinto daquele que se visa proteger no âmbito penal, ainda que existam normas punitivas semelhantes, por vezes coincidentes, que possam induzir o aplicador em erro. Deste modo, a análise subjacente num e noutro caso tem, também, de ser muito distinto.
11. A afirmação de que a responsabilidade disciplinar é independente e autónoma da responsabilidade penal está, desde logo, presente na Lei e nos Regulamentos Federativos.
12. Assim, quando analisado o artigo 112.º do RD da LPFP é possível vislumbrar, em abstrato, indícios do ilícito penal correspondente à injúria ou difamação.
13. Por outro lado, não se pode olvidar que a Recorrida tem deveres concretos que tem de respeitar e que resultam de normas que não pode ignorar.
14. A Recorrida tem, nomeadamente, o dever de “manter uma conduta conforme aos princípios desportivos de lealdade, probidade, verdade e retidão em tudo o que diga respeito às relações de natureza desportiva” (artigo 19.º, n.º 1, do RDLPFP19); e de “manter comportamento de urbanidade e correção entre si, bem como para com os representantes da Liga Portugal e da FPF, os árbitros e árbitros assistentes.” (artigo 51.º, n.º 1 do Regulamento de Competições da LPFP).
15. Naturalmente que as sociedades desportivas, clubes e agentes desportivos não estão impedidos de exprimir pública e abertamente o que pensam e sentem. Contudo, os mesmos estão adstritos a deveres de respeito e correção que os próprios aceitaram determinar e acatar mediante aprovação do RD e RC da LPFP.
16. Quando uma entidade, qualquer que seja, aceita aderir a determinada associação ou grupo organizado, aceita também as suas regras, deontológicas, disciplinares, sancionatórias, etc..
17. Com efeito, para que a Recorrida, ou qualquer outra sociedade desportiva, seja condenada pela prática do ilícito disciplinar previsto no artigo 112.º é essencial indagar se as declarações respetivas violam, pelo menos, um dos bens jurídicos visados pela norma disciplinar: a honra e bom nome dos visados ou a verdade e a integridade da competição, particularmente evidenciados pela imparcialidade e isenção dos desempenhos dos elementos das equipas de arbitragem.
18. Ao contrário daquilo que entende o TCA, não estamos, obviamente, perante a prática de um ilícito disciplinar que pretende, exclusivamente, proteger a honra e o bom nome dos árbitros visados, nem muito menos perante uma questão que deva ser analisada da perspetiva do direito penal.
19. Em suma, o Acórdão recorrido erra ao analisar a questão sub judice sob a perspetiva do direito penal e não da perspetiva do direito disciplinar, pelo que se impõe que este Supremo Tribunal proceda a uma correta aplicação do direito ao caso.
20. Ademais, a questão em apreço é suscetível de ser repetida num número indeterminado de casos futuros, porquanto este tipo de casos são cada vez mais frequentes, o que é facto público e notório.
21. O TCA entendeu, no seu aresto, que o conteúdo das publicações em causa não tem qualquer relevância disciplinar pois não configura uma lesão da honra e reputação dos órgãos ou equipas de arbitragem, mas sempre tendo por referência às normas penais que sancionam condutas típicas dos crimes de injúria ou difamação.
22. E é aí que reside o grande equívoco dos Exmos. Senhores Desembargadores. Com efeito, a questão deve ser colocada, como acima se referiu, no âmbito da apreciação no campo disciplinar e não no campo do direito penal, autónomo e distinto deste.
23. Conforme já deixámos bem patente na parte inicial deste recurso, o valor protegido pelo ilícito disciplinar em causa, à semelhança do que é previsto nos artigos. 180.º e 181.º, do Código Penal, é o direito “ao bom nome e reputação”, cuja tutela é assegurada, desde logo, pelo artigo 26.º n.º 1 da Constituição da República Portuguesa, mas que visa em primeira linha, e ao mesmo tempo, a proteção das competições desportivas, da ética e do fair play.
24. A nível disciplinar, como é o caso, os valores protegidos com esta norma (112.º do RD da LPFP), são, em primeira linha, os princípios da ética, da defesa do espírito desportivo, da verdade desportiva, da lealdade e da probidade e, de forma mediata, o direito ao bom nome e reputação dos visados, mas sempre na perspetiva da defesa da competição desportiva em que se inserem.
25. Atenta a particular perigosidade do tipo de condutas em apreço, designadamente pela sua potencialidade de gerar um total desrespeito pela autoridade das instituições e entidades que regulamentam, dirigem, disciplinam e gerem o futebol em Portugal, o sancionamento dos comportamentos injuriosos, difamatórios ou grosseiros encontra fundamento na tarefa de prevenção da violência no desporto, enquanto fator de realização do valor da ética desportiva.
26. A Recorrida sabia ser o conteúdo dos textos publicados adequado a prejudicar a honra e reputação devida aos demais agentes desportivos, na medida em que tais declarações indiciam uma atuação do árbitro a que não presidiram critérios de isenção, objetividade e imparcialidade, antes colocando assim e intencionalmente em causa o seu bom nome e reputação.
27. O conteúdo da newsletter está longe de ter uma base factual, sendo, pelo contrário, a imputação de um juízo pejorativo não só ao desempenho da equipa de arbitragem mas às suas próprias características, colocando deste modo em causa a própria integridade da competição.
28. Para além de imputar a tal equipa de arbitragem a prática de atos ilegais, encerram em si um juízo de valor sobre os próprios árbitros que, face às exigências e visibilidade das funções que este desempenham no jogo, colocam em causa a sua honra, pelo menos, aos olhos da comunidade desportiva.
29. Assim, não podemos deixar de considerar que se é legítimo o direito de crítica da Recorrida à atuação dos árbitros, já a imputação desonrosa não o é, e aquelas publicações usaram esse tipo de imputação sem que se revele a respetiva necessidade e proporcionalidade para o fim visado.
30. Não se nega que expressões como a usada pela Recorrida são corriqueiramente usadas no meio desporto em geral e do futebol em particular.
31. Porém, já não se pode concordar que por serem corriqueiramente usadas não são suscetíveis de afetar a honra e dignidade de quem quer que seja ou de afetar negativamente a competição, ademais quando nos referimos a uma suspeita de falta de isenção por parte de agentes de arbitragem, uma vez que tais afirmações têm intrinsecamente a acusação ou pelo menos a insinuação de que eventuais erros dos árbitros são intencionais. Deste modo, vão muito para além da crítica ao desempenho profissional do agente.
32. O futebol não está numa redoma de vidro, dentro da qual tudo pode ser dito sem que haja qualquer consequência disciplinar, ao abrigo do famigerado direito à liberdade de expressão, muito menos se pode admitir que o facto de tal linguarejo ser comum torne impunes quem o utilize e que retire relevância disciplinar a tal conduta.
33. Ao decidir da forma que fez, o Tribunal a quo violou o artigo 112.º do Regulamento Disciplinar da LPFP, pelo que deve ser a revista admitida e o Acórdão recorrido revogado, tendo em vista uma melhor aplicação do direito.”

O Futebol Clube do Porto – Futebol SAD contra-alegou, tendo concluído do seguinte modo:
A. Ao contrário do que advoga a Recorrente, a decisão ora recorrida não merece qualquer reparo ou censura, desde logo porquanto – como bem sintetizou o Tribunal a quo – não se mostra preenchido o tipo de ilícito p. e p. pelo art. 112.º-1 e 3 do RD, em virtude de estar em causa um juízo crítico sobre o desempenho desportivo que é reconduzível ao exercício legítimo da liberdade de expressão da Recorrida.
B. Prende-se o presente processo com as afirmações vertidas na newsletter “………” as quais consubstanciam críticas negativas à arbitragem realizada no jogo que opôs o Clube Desportivo Feirense - Futebol, SAD e a Sport Lisboa e Benfica – Futebol SAD a 07-04-2019.
C. Limitou-se, no entanto, a Recorrida a emitir aquela que é a sua fundada convicção sobre a insatisfatória prestação do Sr. Árbitro A……., a qual, do seu ponto de vista, vem resultando reiteradamente em benefício do Sport Lisboa e Benfica e, consequentemente, em detrimento dos demais clubes em competição.
D. Como bem reconheceu a decisão recorrida, as afirmações vertidas no artigo “……..” ancoram-se num determinado desempenho (ou juízo valorativo sobre esse desempenho), tendo uma base factual, concreta e real, que legitima a formulação de tais afirmações, ainda que abstractamente lesivas da honra e da reputação de terceiro.
E. Trata-se da emissão de meros juízos de valor – ainda que depreciativos, é certo – sempre voltados para o desempenho profissional do árbitro A……, apreciando-se de forma crítica as suas decisões naquele jogo em concreto, pois que, na opinião da Recorrida, as mesmas revelaram-se lamentáveis e atentatórias da verdade desportiva, padecendo de demasiados erros que prejudicavam a competição.
F. Convicção para a qual concorreram diversas realidades a ter em conta, nomeadamente: as imagens do jogo, as opiniões dos diversos intervenientes no jogo e as notícias divulgadas na comunicação social acerca da arbitragem realizada no jogo de 07-04-2019.
G. As quais, confirmando a existência de erros grosseiros de arbitragem, e um desempenho profissional que fica muito aquém daquele que seria o esperado de um árbitro desta categoria, levaram a Recorrida a concluir pela parcialidade na arbitragem do jogo em apreço.
H. Note-se que, à data dos factos, o campeonato de futebol encontrava-se numa fase decisiva, sendo cada jogo e cada resultado especialmente importante para a competição, exigindo-se rigor e um acrescido profissionalismo às equipas de arbitragem.
I. Principalmente, em face de um panorama futebolístico marcado por sucessivas revelações de suspeitas de corrupção na arbitragem, as quais deram, inclusive, origem a vários processos de natureza criminal, sendo incontáveis as denúncias públicas de suspeitas de favorecimento e de falseamento de resultados a favor e por parte do Sport Lisboa e Benfica.
J. Como vem sublinhando o TEDH, o único limite, fundado na protecção da honra, que há-de reconhecer-se à manifestação de juízos de valor desprimorosos da personalidade do visado pela crítica é o da crítica caluniosa sob a forma de um “ataque pessoal gratuito”. O que está longe de suceder in casu!
K. Seguindo de perto o entendimento jurisprudencial e doutrinal dominante, os juízos de valor cairão fora da tipicidade das normas sancionatórias que tutelam a protecção do direito à honra e ao bom nome sempre que a liberdade de expressão não ultrapasse o âmbito da crítica objectiva – cf., entre outros, acórdão do STJ de 07-03-2007, proc. n.º 07P440, disponível em www.dgsi.pt.
L. Devendo, pois, considerar-se como atípicos mesmo aqueles juízos que, como reflexo necessário da crítica objectiva, acabam por atingir a honra do visado, desde que a valoração crítica seja adequada aos pertinentes dados de facto.
M. Para além do mais, como vem entendendo o STJ, na esteira aberta pelo TEDH, tratando-se de juízos de valor exclui-se a prova da sua exactidão, pelo que, tudo está em saber se a emissão de juízos de valor tipicamente desmerecedores da honra de um terceiro se encontra ou não totalmente desprovida de base factual.
N. Sob a perspectiva desta corrente jurisprudencial e doutrinal, os juízos de valor que possam qualificar-se como típicos sob o ponto de vista do crime de difamação só serão, portanto, penalmente ilícitos se não detiverem uma qualquer base factual que os suporte.
O. Mobilizando este parâmetro de aferição de ilicitude típica da infracção p. e p. pelo art. 112.º do RD para as afirmações em apreço nos autos, terá de convir-se que as falhas de arbitragem grosseiras em que o árbitro A……. incorreu no jogo em apreço são por si só suficientes para que sobre ele pudesse ser lançado um juízo de suspeição nos termos em que o foi.
P. Tinha, pois, a Recorrida base factual mais do que suficiente para criticar a prestação da arbitragem, em especial desse árbitro, nos termos duros em que o fez, não lhe podendo nessa medida ser atribuída qualquer responsabilidade disciplinar.
Q. De modo que, a conduta da Recorrida não consubstanciou a prática de qualquer crime, seja porque nem sequer assumiu relevo típico, seja porque (embora típica) não chegou a ser ilícita, uma vez que realizada no exercício legítimo do direito fundamental à liberdade de expressão.
R. Assim se impondo por isso a improcedência do presente recurso, mantendo-se in totum a decisão absolutória proferida – o que se requer com as devidas e legais consequências.
S. Decisão essa que se tem por devidamente fundamentada, e que vai ao encontro da posição sufragada por toda a mais recente jurisprudência do Tribunal Central Administrativo do Sul na matéria em discussão (veja-se, em especial, entre outras, as decisões do TCAS proferidas no âmbito dos processos n.ºs 18/19.0BCLSB e 155/19.0BCLSB). Não merecendo a mesma, portanto, qualquer censura”.

Pela formação a que alude o art.º 150.º, do CPTA, foi proferido acórdão a admitir a revista, com a seguinte fundamentação:
“(…).
Na sua revista, a FPF critica o acórdão recorrido porque a temática dos autos – que é de índole puramente disciplinar – deve enquadrar-se e resolver-se à luz da norma «in casu» aplicada (o art.º 112.º do Regulamento Disciplinar da Liga) – que o TCA terá negligenciado.
«Primo conspectu», e face à dita norma regulamentar, a solução do TCA é muito controversa. Até porque parece afastar-se da jurisprudência deste Supremo («vide» o acórdão de 29/2/2019, in Proc. n.º 66/18.7BCLSB).
Por outro lado, a questão colocada no recurso é relevante; pois importa saber até que ponto se pode disciplinarmente reagir – com base em normas regulamentares, aliás similares às do estrangeiro – contra declarações dos clubes que, para além de excitarem anormalmente os ânimos dos seus adeptos e assim introduzirem comportamentos rudes, contribuam para o descrédito das competições desportivas e do negócio que as envolve”.

Sem vistos, foi o processo submetido à conferência para julgamento.

2. O acórdão recorrido considerou provados os seguintes factos:
a) No dia 7 de Abril de 2019, pelas 17h30, realizou-se no Estádio Marcolino de Castro, em Santa Maria da Feira, o jogo n.º 120802, entre a Clube Desportiva Feirense - Futebol, SAD e a Sport Lisboa e Benfica - Futebol SAD, a contar para a 28.ª jornada da "Liga ……" (p. 10 do Acórdão de 14 de Maio de 2019 do Conselho de Disciplina);
b) Para o referido jugo foi nomeado, como árbitro principal, B…….., como árbitro assistente n.º 1, C…….., como árbitro assistente n.º 2, D……., como 4° árbitro, E……. e como VAR A………… e como AVAR, F…….. (p. 10 do Acórdão de 14 de Maio de 2019 do Conselho de Disciplina);
c) Na sequência do sobredito jogo, no dia 8 de abril de 2019, na newsletter oficial do Futebol Clube do Porto - "………", foi publicado o seguinte texto:
"………
A……… teve uma carreira de árbitro recheada de decisões insustentáveis e, agora como VAR, segue a mesma lamentável tradição. Ontem, na feira, assinalou um penálti a favor do Benfica depois de um toque tão levezinho que fez G……. cair em câmera (sic) lenta, mas fez vista grossa a dois lances na área do Benfica, um deles uma pisadela clara. Já no ano passado, também na Feira, o mesmo VAR deixou passar um penálti claríssimo sobre H………... Definitivamente, A…….. parece ter um problema com a imparcialidade, o que pode e deve afastá-lo dos jogos que vão decidir o campeonato." (p. 13 do Acórdão de 14 de maio de 2019 do Conselho de Disciplina);
d) Nos termos referidos no seu site oficial (www.fcportopt), o Demandante disponibiliza, a todos os que a pretendam receber, uma newsletter denominada "………..", acessível mediante subscrição gratuita no aludido site e remetida, por correio eletrónico, aos subscritores (p. 13 do Acórdão de 14 de maio de 2019 do Conselho de Disciplina);
e) A newsletter "………." é uma publicação disponibilizada gratuitamente através do site oficial do Demandante na internet, que é explorado pela referida SAD ou pelo Futebol Clube do Porto (Clube) diretamente ou por interposta pessoa, tendo veiculado as mencionadas declarações, visando o agente de arbitragem A………., a um vasto leque de destinatários, mais tendo tais declarações sido difundidas para o público em geral, através da imprensa desportiva (p. 14 do Acórdão de 14 de Maio de 2019 do Conselho de Disciplina);
f) Por Acórdão de 14 de Maio de 2019 do Conselho de Disciplina foi a Demandante condenada por cometimento da infração disciplinar p. e p. pelo artigo 112.°, n.ºs 1, 3 e 4 do RDLFPF 2018, punida com a sanção de multa fixada em 200 (duzentas) UC e, correspetivamente (aplicando o fator de ponderação de 0,75 estatuído no artigo 36.°, n.º 2, do RDLFPF 2018), em € 15.300,00 (quinze mil e trezentos euros) (p. 28 do Acórdão de 14 de Maio de 2019 do Conselho de Disciplina).”

3. A ora recorrida impugnou, junto do TAD, o acórdão do Pleno da Secção Profissional do CD, datado de 14/5/2019, que, negando provimento ao recurso hierárquico que interpusera, confirmou a pena de multa que lhe havia sido aplicada pela prática da infracção disciplinar prevista e punida pelos n.ºs 1, 3 e 4 do artigo 112.° do RDLPFP.
Após o TAD ter concedido provimento ao recurso e revogado o aludido acórdão do CD – por ter considerado que, estando em causa um juízo crítico sobre um determinado desempenho desportivo, abrangido pelo exercício da liberdade de expressão consagrada no art.º 37.º, da CRP, não fora cometida a infracção disciplinar imputada à demandante –, a FPF interpôs recurso para o TCA-Sul, ao qual também foi negado provimento pelo acórdão recorrido.
Para o efeito, este acórdão, considerou:
“(…).
Concluímos, pois, que as afirmações do arguido, feitas no exercício do direito fundamental previsto no artigo 37º da Constituição, interferem com uma intensidade muito leve no direito fundamental previsto no artigo 26º/1 da Constituição, ao passo que considerar tais afirmações violadoras do artigo 112.°/1/3/4 do RDLFPF-2018 e do artigo 26º/1 da Constituição seria aceitar uma constrição grave ou muito séria no direito fundamental previsto no cit. artigo 37º da Constituição, assim violando o artigo 18º da Constituição e a máxima metódica da proporcionalidade (utiliza-se aqui a ”métrica” ponderativa de ALEXY: “A construção dos direitos fundamentais”, trad. de P. Pereira Gouveia, in revista Direito & Política, Dir. Paulo Otero, nº 6, 2014, ponto 5, e “Direitos fundamentais e princípio da proporcionalidade”, trad. de P. Pereira Gouveia, in revista O Direito, Dir. Jorge Miranda, 146º, 2014, pp. 822-825).
Na verdade, considerar tais afirmações violadoras do artigo 112.° do RDLFPF-2018 implicaria, implica, uma incorreta interpretação jurídica do artigo 112º cit., alheia (i) aos artigos 37º e 18º da Constituição e (ii) à metodologia concretizadora dos direitos fundamentais em concretas colisões desses mesmos direitos, a qual deve orientar o intérprete das normas infraconstitucionais que pretendam concretizar os artigos 37º ou 26º da Constituição (cf. ainda os artigos 112º da Constituição e 9º do Código Civil).
Portanto, ao não entender assim, o ato administrativo do CD/FPF errou, como bem decidiu o TAD.
Finalmente, quanto ao suposto bem jurídico protegido, segundo a FPF, “a proteção das competições desportivas, da ética e do respeito entre agentes desportivos”, o que nos parece é que se trata apenas de uma das razões de ser ou objetivos do RD/FPF. E não de um bem jurídico fundamental que esteja no nível ou grau de possibilidade de colisão com o direito fundamental previsto no artigo 37º da Constituição”.
Entendeu-se, assim, que as afirmações da arguida, feitas no exercício do direito fundamental de liberdade de expressão, assentaram em juízos opinativos sobre factos que não se poderiam considerar violadores do art.º 112.º, n.º 1, do RDLPFP, sob pena de se aceitar “uma constrição grave ou muito séria no direito fundamental previsto no art.º 37.º da CRP”.
A questão que está em causa nos autos – a de saber se um texto publicado no jornal electrónico de um clube desportivo preenche a infracção disciplinar prevista pelo aludido preceito do RDLPFP – não é nova neste STA, tendo sido objecto dos Acs. de 26/2/2019 – Proc. n.º 066/18.7BCLSB e de 4/6/2020 – Proc. n.º 154/19.2BCLSB que incidiram sobre situações de contornos idênticos à aqui em discussão e que, tendo a nossa adesão, seguiremos de perto.
Vejamos então.
O art.º 112.º, do RDLPFP, estabelece o seguinte, nos seus nºs. 1, 3 e 4:
“1- O clube que desrespeite ou use de expressões, desenhos, escritos ou gestos injuriosos, difamatórios ou grosseiros para com os órgãos da Liga ou da Federação Portuguesa de Futebol, respetivos titulares, árbitros, dirigentes e demais agentes desportivos, em virtude do exercício das suas funções, são punidos com a sanção de multa de montante a fixar entre o mínimo de 25 UC e o máximo de 350 UC.
3- Em caso de reincidência, os limites mínimo e máximo das multas previstas nos números anteriores serão elevados para o dobro.
4- O clube é considerado responsável pelos comportamentos que venham a ser divulgados pela sua imprensa privada e pelos sítios na internet que sejam explorados pelo clube, pela sociedade desportiva ou pelo clube fundador da sociedade desportiva, diretamente ou por interposta pessoa”.
A questão a resolver foi claramente identificada no mencionado Ac. deste STA de 4/6/2020, nos seguintes termos:
“…independentemente da relevância penal que a conduta da recorrida possa ter, que é autónoma e que não cabe neste âmbito apreciar, a sua responsabilidade disciplinar não depende do preenchimento dos tipos legais de crime de difamação ou de injúria, mas apenas da violação dos deveres gerais ou especiais a que a mesma está adstrita no âmbito dos regulamentos desportivos e demais legislação aplicável à realização das competições desportivas em que participa – V. art.º 17.º/2 do RDLPFP.
E esses deveres resultam, exclusivamente, da conjugação dos artºs. 19.º e 112.º do RDLPFP, não sendo necessário o recurso ao C. Penal para preencher o respectivo tipo disciplinar”.
Em face da matéria fáctica dada por provada, cremos que não pode deixar de se concluir que o texto publicado em 8/4/2019, na newsletter oficial do Futebol Clube do Porto – “……..”, é lesivo da reputação do VAR em questão, atentando directamente contra o seu bom nome e reputação.
Efectivamente, esse texto, considerado na globalidade, não se limita a apontar erros de apreciação ocorridos no jogo em causa, mas afirma a parcialidade do agente desportivo em questão que já teria ficado demonstrada na carreira que tivera como árbitro e que, enquanto VAR, deveria levar ao seu afastamento dos jogos que iriam decidir o campeonato.
Imputa-se-lhe, assim, uma actuação deliberada de erro com o objectivo de favorecer um clube em detrimento de outro, colocando em causa a sua idoneidade para o exercício das funções que desempenha.
Ora, constituindo a imparcialidade e a isenção atributos que têm de ser intrínsecos às funções exercidas, não pode deixar de se considerar que o aludido texto põe em causa a integridade moral e o bom nome e reputação do agente desportivo em questão, além de afectar a credibilidade e o prestígio da própria competição desportiva.
E se é verdade que o direito à crítica se inclui no exercício da liberdade de expressão consagrada no art.º 37.º, da CRP, como um direito fundamental, também o é que não se está perante um direito absoluto, ilimitado, insusceptível de ser restringido, como se notou no citado Ac. deste Supremo de 4/6/2020, onde se escreveu:
“(…).
Naturalmente, a liberdade de expressão e de informação não protege tais imputações, quando as mesmas não consubstanciem factos provados em juízo, ou objetivamente verificáveis, pois aquelas liberdades não são absolutas e tem de sofrer as restrições necessárias à salvaguarda de outros direitos fundamentais, como são os direitos de personalidade inerentes à honra e reputação das pessoas, garantidos pelo n.º 1 do art.º 26.º da Constituição.
O disposto nos artigos 19.º e 112.º do RDLPFP não é, por isso, inconstitucional, nem os mesmos podem ser interpretados no sentido de que a liberdade de expressão e de informação se sobrepõe à honra e reputação de todos aqueles que intervém nas competições desportivas organizadas pela Liga Portuguesa de Futebol Profissional, nomeadamente a dos respetivos árbitros, tanto mais que não está em causa a liberdade de expressão e de informação de órgãos de comunicação social independentes, mas da imprensa privada do próprio clube – cfr. art.º 112.º/4 do RDLPFP.
Acresce ainda, na linha do que se decidiu no Acórdão desta Secção, de 26 de fevereiro de 2019, atrás citado, que o respeito estrito pelos deveres de lealdade, probidade, verdade e retidão inerentes ao regime disciplinar estabelecido pelas normas em apreciação é indispensável à prevenção da violência no desporto, que é também um valor constitucional legitimador da compressão da liberdade de expressão e de informação dos clubes desportivos, nos termos do n.º 2 do art.º 79.º da CRP. O que nos permite responder afirmativamente à questão colocada no Acórdão Preliminar proferido nestes autos, sobre «(…) até que ponto se pode disciplinarmente reagir – com base em normas disciplinares, aliás similares às do estrangeiro – contra declarações dos clubes que, para além de excitarem anormalmente os ânimos dos seus adeptos e assim induzirem comportamentos rudes, contribuam para o descrédito das competições desportivas e do negócio que as envolve». Não só se pode, como se deve reagir sempre que os clubes extravasem o âmbito estrito da mera informação ou opinião, e ofendam a honra e a reputação dos árbitros e de todos aqueles que intervém nas competições desportivas organizadas pela Liga Portuguesa de Futebol Profissional”.

Assim sendo, merece provimento a presente revista.

4. Pelo exposto, acordam em conceder provimento ao recurso, revogando o acórdão recorrido e confirmando o acórdão da secção profissional do CD que aplicou à ora recorrida a pena disciplinar de multa.

Custas pela ora recorrida.

Lisboa, 2 de julho de 2020. – Fonseca da Paz (relator) – Maria do Céu Neves – Cláudio Ramos Monteiro.