Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0570/11
Data do Acordão:10/26/2011
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:ISABEL MARQUES DA SILVA
Descritores:PRESCRIÇÃO
OBJECTO
LEI GERAL TRIBUTÁRIA
Sumário:O objecto da prescrição tributária são dívidas tributárias, como expressamente dispõe o n.º 1 do artigo 48.º da LGT, e não liquidações, menos ainda liquidações das quais nenhuma dívida resulte.
Nº Convencional:JSTA000P13400
Nº do Documento:SA2201110260570
Recorrente:FAZENDA PÚBLICA
Recorrido 1:A..., SA
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: Acordam na Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo:
- Relatório -
1 – A FAZENDA PÚBLICA recorre para este Supremo Tribunal da sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal de Viseu, de 14 de Fevereiro de 2011, que, na impugnação deduzida por A…, S.A., com os sinais dos autos, contra liquidação de IRC relativo ao ano de 1999 e contra a fixação de prejuízos fiscais em IRC relativos ao ano de 1997, julgou extinta a instância, por inutilidade superveniente da lide.
A recorrente termina as suas alegações de recurso apresentando as seguintes conclusões (que vão por nós numeradas):
1 – Incide o presente recurso sobre, a aliás douta sentença, que julgou extinta a instância por inutilidade superveniente da lide, nos termos do art. 287.º, alínea e) do CPC, com relação às liquidações impugnadas de IRC do ano de 1999 e do acto de fixação dos prejuízos fiscais do exercício de 1997, por se ter verificado a prescrição;
2 – Estão em causa nos presentes autos de impugnação duas situações distintas, a saber: por um lado, a liquidação de IRC do exercício de 1999, sob o n.º 8310008523, cujo montante global ascende a € 4.588,76 e, por outro lado, o acto de fixação de prejuízos fiscais do ano de 1997;
3 – O presente Recurso incide apenas sobre a decisão proferida, na parte em que declarou prescrito o acto de fixação de prejuízos fiscais relativo ao ano de 1997, não se questionando, pois, a prescrição da liquidação de IRC do exercício de 1999;
4 – A questão que importa colocar é a de saber se se verifica a prescrição em relação ao acto de fixação dos prejuízos fiscais do ano de 1997. Antecipando a resposta, somos de parecer e salvo melhor entendimento, que não;
5 – Desde logo, o disposto no art.º 48.º n.º 1 da LGT, é claro: “As dívidas tributárias prescrevem … no prazo de oito anos contados, nos impostos periódicos, a partir do termo do ano em que se verificou o facto tributário …”;
6 – Da leitura do referido normativo legal retira-se que o pressuposto base para que se verifique uma situação de prescrição reside na existência de uma concreta dívida de natureza tributária, sendo que no caso vertente estamos perante um acto que fixou prejuízos fiscais em IRC do ano de 1997, não existindo uma qualquer dívida à Administração Fiscal (contrariamente ao exercício de 1999, que deu origem a uma liquidação a pagar);
7 – Compulsados os presentes autos, verifica-se que no articulado 1º da petição (no seu ponto 2), a impugnante contesta o acto de fixação dos prejuízos fiscais relativo ao ano de 1997, no montante de € 53.472,54;
8 – Não obstante as correcções efectuadas, o valor da liquidação n.º 8910005481 é igual a zero, porquanto, as correcções realizadas pela inspecção tributária produziram efeitos, mas consubstanciaram um corte de prejuízos fiscais, não tendo originado uma liquidação com imposto a pagar;
9 – A situação é patente da análise do quadro de fls. 7 do processo administrativo, daí resultando que a respeito do exercício de 1997, havia sido declarado um montante de prejuízos fiscais de € 57.601,28, mas que em virtude de correcções efectuadas com recurso a métodos indirectos, determinou a fixação do valor de prejuízos fiscais para € 53.472,54;
10 – Ora, não havendo dívida, também não é possível a declaração da prescrição;
11 – Decorre do preceituado no art. 304.º, n.º 1 do Código Civil que o instituto da prescrição consiste na faculdade concedida ao devedor de, após ter decorrido determinado prazo previsto na lei, recusar o cumprimento da prestação e opor-se ao seu exercício coercivo, com a consequente extinção do direito de o credor proceder à cobrança;
12 – Como refere Jorge Lopes de Sousa na sua obra intitulada “Sobre a prescrição da obrigação tributária”, 2.ª edição 2010, Áreas Editora (capítulo 1.1, fls. 16) “De qualquer forma, desta dificuldade de distinção teórica da prescrição e caducidade não resultam, no direito tributário, quaisquer dificuldades relativas à determinação do campo de aplicação de cada um dos regimes, pois eles resultam perfeitamente definidos dos arts. 45.º e 48.º da LGT: o regime da caducidade aplica-se ao direito de liquidar tributos; o regime da prescrição é aplicável ao direito de cobrar coercivamente dívidas de tributos, previamente liquidadas”.
13 – De conformidade com a posição do mesmo autor, plasmada na obra citada “Para impedir a prescrição é necessário que a cobrança da dívida se efectue dentro do prazo prescricional, tendo em conta as situações de interrupção e suspensão previstas na lei”;
14 – Subscrevendo ainda Jorge Lopes de Sousa, obra citada (fls. 18, capítulo 1.4.1), a propósito dos efeitos da prescrição “Para a generalidade das obrigações, o decurso do prazo de prescrição não implica uma extinção da obrigação, tendo como consequência poder o beneficiário da prescrição recusar o cumprimento da prestação ou de se opor, por qualquer modo, ao exercício do direito prescrito (art. 304.º, n.º 1 do Código Civil)”;
15 – O que quer dizer que, uma vez decorrido o prazo de prescrição, deixa a obrigação de existir como civil, portanto, como obrigação exigível coercivamente, persistindo apenas como obrigação natural;
16 – Mais: Refere Jorge Lopes de Sousa in obra citada “A obrigação tributária é uma obrigação em dinheiro (artº 40º, nº1 da LGT). Em consonância com o regime previsto no art. 304.º do Código Civil, decorrido o prazo de prescrição, o contribuinte pode recusar-se a pagar e, se for instaurada execução fiscal para cobrança coerciva, pode deduzir oposição, invocando a prescrição”;
17 – Atento todo o exposto, não podia a sentença recorrida declarar a prescrição em relação a um acto de fixação de prejuízos fiscais, do qual não resultou qualquer liquidação de imposto a pagar;
18 – Pois que, a obrigação tributária passível de ser considerada prescrita consubstancia uma obrigação em dinheiro, o que não sucede no caso dos autos, em relação ao ano de 1997, porque a Administração Fiscal não exigiu da impugnante qualquer valor a pagar;
19 – Por outro lado, para que possa ocorrer uma situação de prescrição supõe-se e exige-se a prévia existência de uma dívida e a possibilidade da sua cobrança por parte do credor tributário, inclusive cobrança coerciva se, terminado o prazo de pagamento voluntário, não for objecto de pagamento pelo sujeito passivo;
20 – Como defende Jorge Lopes de Sousa, o regime da prescrição é aplicável ao direito de cobrar coercivamente dívidas de tributos, previamente liquidadas, o que não sucede no caso em apreço;
21 – Ou seja, não havendo dívida tributária, não podia o Meritíssimo Juiz declarar prescrito o acto de fixação de prejuízos fiscais em IRC do exercício de 1997, como se de uma dívida se tratasse;
22 – Até porque a possibilidade de haver prescrição implica a faculdade do credor exigir o pagamento da dívida no prazo legal, para tanto socorrendo-se do processo executivo em vista da cobrança coerciva da dívida, sendo que inexistindo dívida, o credor nada tem a exigir, porque nada o sujeito passivo terá a pagar;
23 – Em face do exposto, conclui-se que a sentença recorrida, fez uma aplicação inadequada do disposto nos art.º 48.º e 40.º, n.º 1, ambos da LGT e do artigo 304.º do Código Civil.
Termos em que, deve ser dado provimento ao presente recurso, ordenando-se, em consequência, a substituição parcial da douta sentença recorrida, por outra em que se julgue inverificada a prescrição relativa a IRC do exercício de 1997, com as legais consequências.
2 – Não foram apresentadas contra-alegações.
3 – O Excelentíssimo Procurador-Geral Adjunto junto deste Tribunal no seu parecer junto aos autos a fls. 107 pronunciou-se no sentido de que é de julgar o recurso procedente, pois que tendo sido impugnado a fixação de prejuízos fiscais, não era de declarar a prescrição, a qual é de reportar a “dívidas tributárias”, conforme resulta do disposto na parte inicial do art. 48.º n.º 1 da LGT.
Notificadas as partes do parecer do Ministério Público (fls. 108 a 110 dos autos), nada vieram dizer.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
- Fundamentação -
5 – Questão a decidir
É a de saber se, como decidido, pode ser declarada a prescrição relativamente a um acto de fixação de prejuízos fiscais relativos a um ano (1997) no qual não foi apurado qualquer imposto a pagar.
6 – Matéria de facto
Na sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal de Viseu objecto do presente recurso foram dados como provados os seguintes factos:
A) Nestes autos impugna-se a liquidação n.º 8310008523, referente a IRC do ano de 1999 e o acto de fixação dos prejuízos fiscais, relativa ao ano 1997, cfr. fls. 12 e 13 dos presentes autos, elementos aqui dados por reproduzidos o mesmo se dizendo dos demais infra referidos;
B) A Impugnante apresentou, em 15-02-2002, pedido de revisão da matéria tributável, nos termos do art. 91.º da Lei Geral Tributária, onde foi proferida decisão em 05-04-2002, vide fls. 26 a 30 dos presentes autos e 7 e 8 do P.A. apenso;
C) Os presentes autos foram instaurados em 18-06-2003 e, por razões estranhas à Impugnante, pararam entre Janeiro de 2004 e 13-12-2005, cfr. fls. 41 e 43 dos presentes autos;
D) O processo de execução destinado à cobrança coerciva da quantia originada na liquidação em causa nestes autos foi instaurada no dia 20-11-2002, ocorrendo a citação do executado em 15-01-2003. Não se verificou qualquer pagamento ou adesão ao “Plano Mateus”, nem foi prestada qualquer garantia, nomeadamente por inexistência de bens, cfr. informação de fls. 72 e 75 dos presentes autos.
7 – Apreciando.
7.1 Do objecto da prescrição tributária
A sentença recorrida, a fls. 80 a 83 dos autos, julgou extinta a instância, por inutilidade superveniente da lide, nos termos do art. 287º, al. e) do CPC, aplicável ex vi do disposto no artº 2º, al. e) do Código de Procedimento e de Processo Tributário, relativamente às liquidações impugnadas, nos autos de impugnação tendo por objecto a liquidação n.º 8310008523, pela qual lhe foi imputada uma dívida no montante de € 4.588,76, referente a IRC do ano de 1999, bem como o acto de fixação dos prejuízos fiscais, relativa ao ano de 1997 (cfr. sentença recorrida a fls. 83, verso, e 80, frente, dos autos).
Discorda do decidido, na parte em que declarou prescrito o acto de fixação de prejuízos fiscais relativo ao ano de 1997, não se questionando, pois, a prescrição da liquidação de IRC do exercício de 1999 (cfr. conclusão 3.º das alegações de recurso) a Fazenda Pública, por entender, em síntese, que a declaração de prescrição tem por objecto dívidas tributárias (artigo 48.º n.º 1 da Lei Geral Tributária – LGT), sendo que no caso vertente estamos perante um acto que fixou prejuízos fiscais em IRC do ano de 1997, não existindo uma qualquer dívida à Administração Fiscal (contrariamente ao exercício de 1999, que deu origem a uma liquidação a pagar), pois que não obstante as correcções efectuadas, o valor da liquidação n.º 8910005481 é igual a zero, porquanto, as correcções realizadas pela inspecção tributária produziram efeitos, mas consubstanciaram um corte de prejuízos fiscais, não tendo originado uma liquidação com imposto a pagar. Sustenta, pois, que não havendo dívida, também não é possível a declaração da prescrição, pelo que ao tê-la declarado relativamente à fixação dos prejuízos fiscais do ano de 1997 o tribunal “a quo” incorreu em erro de julgamento, violando o disposto nos artigos 48.º e 40.º n.º 1 da LGT e 304.º do Código Civil.
Vejamos.
Não nos oferece dúvida alguma que o objecto da prescrição tributária são dívidas tributárias, como expressamente o n.º 1 do artigo 48.º da LGT, e não liquidações, menos ainda liquidações das quais nenhuma dívida resulte.
Em geral, a prescrição extingue o direito do credor a exigir o cumprimento coercivo da prestação, ou, visto da perspectiva do devedor, confere ao beneficiário desta a faculdade de recusar o cumprimento da prestação ou de se opor, por qualquer modo, ao exercício do direito prescrito (cfr. o n.º 1 do artigo 304.º do Código Civil). Ora, o direito que o credor tributário pode ver-se impedido, em razão do decurso do prazo prescricional, de exigir coercivamente ao devedor de imposto é o seu direito de crédito, satisfeito através do pagamento de prestação pecuniária (cfr. o n.º 1 do artigo 40.º da LGT), daí que onde não haja prestação a exigir não pode a prescrição do direito do devedor ao seu cumprimento ser declarada, por impossibilidade de objecto.
No caso dos autos - em que se impugnava uma liquidação de IRC (do exercício de 1999) da qual resultava imposto a pagar e uma correcção aos prejuízos fiscais do exercício de 1997 (da qual não resultava imposto a pagar, mas que o impugnante atacou igualmente porque o imposto a pagar em 1999 resultava, designadamente, da impossibilidade de dedução do prejuízo fiscal do ano de 1997 porque apurado por métodos indirectos de determinação da matéria tributável – cfr. o artigo 36.º da sua petição inicial de impugnação, a fls. 10 dos autos) -, o tribunal “a quo” veio a julgar prescritas ambas as obrigações tributárias, determinando a extinção da instância por inutilidade superveniente da lide, justificando, com apelo a JORGE LOPES DE SOUSA, a decisão na consideração de que “tendo a impugnação subjacente o interesse do impugnante em não ser obrigado a pagar a quantia a que o acto tributário se refere, acto este que tem força executiva, se transcorreu o prazo de prescrição da obrigação tributária cuja liquidação se impugnou, «o contribuinte não poderá ser obrigado a pagar coercivamente aquela obrigação», pelo que «decorrido o prazo de prescrição, em casos deste tipo, o impugnante deixa de ter qualquer interesse na anulação ou declaração de nulidade do acto impugnado, pois, mesmo sem esta anulação ou declaração, não poderá ser obrigado a pagar coercivamente a quantia que é objecto do acto impugnado “ (cfr. sentença recorrida, a fls. 83, frente e verso, dos autos).
Da justificação apresentada – e bem assim do cálculo da prescrição efectuado na sentença recorrida em relação à fixação dos prejuízos fiscais no ano de 1997 (na qual se consideram como factos interruptivos a instauração da execução e a citação do devedor para a execução, quando decorre dos autos, por via da informação prestada pela Administração fiscal e constante de fls. 72, que em relação ao exercício de 1997, não havia qualquer imposto a pagar, nem foi instaurado qualquer processo de execução fiscal) -, parece decorrer que a decisão tomada pelo tribunal “a quo” quanto à prescrição da correcção dos prejuízos fiscais do ano de 1997 não decorre de qualquer posição original que adopte quanto ao objecto possível da prescrição tributária, antes se deverá a um mero lapso.
De qualquer modo, tem razão a recorrente na sua alegação, não podendo a sentença recorrida ser confirmada na parte que é objecto de recurso, pois que não cabia averiguar da prescrição “da liquidação” da qual nenhuma dívida tributária resultou.
O recurso merece provimento.
- Decisão -
8 - Termos em que, face ao exposto, acordam os juízes da Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo em conceder provimento ao recurso, revogar a sentença recorrida na parte impugnada, baixando os autos ao tribunal “a quo” para conhecimento do mérito da impugnação, se a tal nada mais obstar.
Sem custas, pois a recorrida não contra-alegou.
Lisboa, 26 de Outubro de 2011. - Isabel Marques da Silva (relatora) - Ascensão Lopes - António Calhau.