Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0185/16.4BESNT 01352/16
Data do Acordão:11/18/2020
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:ANABELA RUSSO
Descritores:CÔNJUGE
EXECUÇÃO
EMBARGOS DE TERCEIRO
COMPROPRIEDADE
PENHORA
Sumário:I – Numa situação em que a dívida exequenda foi constituída pelo executado após a dissolução do matrimónio com a embargante, em que esta não consta do título executivo, a dívida não lhe é comunicável e não houve reversão da execução contra si, não se pode negar à Embargante a qualidade de terceiro para efeitos de Embargos de Terceiros, ainda que tenha sido citada nos termos e para os efeitos do preceituado nos artigos 220.º e 239.º do CPPT, porque esta citação, nos termos determinados pelo legislador, apenas dever ser feita aos cônjuges e não aos ex-cônjuges.
II – E porque nessa situação a Embargante não pode assumir na execução uma posição igual à do cônjuge, nem é caso de a citar para os efeitos previstos nos artigos 220.º e 239º do CPPT, os embargos de terceiro constituem o meio processual adequado para defesa dos seus direitos relativamente a um bem comum penhorado, tendo em conta que a penhora não pode incidir sobre esse bem mas apenas sobre o direito que o executado detém no património comum.
Nº Convencional:JSTA000P26740
Nº do Documento:SA2202011180185/16
Data de Entrada:04/07/2020
Recorrente:AT – AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA
Recorrido 1:A............ E OUTROS
Votação:UNANIMIDADE COM 1 DEC VOT
Aditamento:
Texto Integral:
ACÓRDÃO

1. RELATÓRIO

1.1 A Autoridade Tributária e Aduaneira, inconformada com a sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra que julgou procedentes os embargos de terceiro deduzidos pela ex-cônjuge do Executado contra a penhora de imóvel que integra o património comum ainda não partilhado, da mesma veio interpor recurso jurisdicional para este Supremo Tribunal Administrativo.

1.2. Tendo o recurso sido admitido, a Recorrente apresentou alegações que encerrou com as seguintes conclusões:

«I — Vem o presente recurso reagir contra a Sentença proferida pelo Douto Tribunal a quo nos presentes autos em 19-12-2019, a qual julgou totalmente procedente os Embargos de Terceiro deduzidos por A…………, com o NIF ………., contra a penhora do prédio inscrito na matriz urbana da união das freguesias de ……… e ……….., sob o artigo 1454, fracção “L”, registada pela inscrição Ap. 16 de 2015/10/12, na Conservatória do Registo Predial de Mafra, já devidamente identificada nos autos, a qual foi efectivada no âmbito dos autos de execução fiscal n.° 3549201001201883 e apensos, que correm termos no Serviço de Finanças de Sintra 2.

II — A Sentença proferida pelo Douto Tribunal a quo, socorrendo-se da matéria factual dada como assente no segmento Factos Provados da Sentença recorrida, os quais aqui damos por plenamente reproduzidos para todos os efeitos legais, consignou que a Embargante deve ser considerada terceiro para efeitos do disposto no n.° 1 do artigo 237.° do CPPT e que a penhora ora colocada em crise e ilegal por não existir comunhão de bens em virtude da dissolução do casamento entre esta e B………...

III — Ora, no caso em apreço, encontram-se em causa dívidas exigidas por força da utilização do mecanismo de reversão patente no artigo 24.º da LGT, ou seja, dívidas da responsabilidade exclusiva de um dos cônjuges.

IV — Sendo igualmente certo que, no momento em que operou a reversão contra o ex-cônjuge da Embargante, bem como na altura em que se efectuou a penhora ora embargada, o casamento entre ambos já havia sido dissolvido, sem que, contudo, o bem imóvel penhorado haja sido objecto de partilha.

V — Nos termos do disposto no artigo 1730.º do Código Civil, ambos os cônjuges participam por metade no activo e no passivo da comunhão (propriedade colectiva ou de mão comum), sendo que, ao abrigo do disposto nos artigos 1688.º e 1795.º-A, ambos do Código Civil, as relações de caracter patrimonial estabelecidas entre os cônjuges cessam pela dissolução do casamento ou pela separação judicial de pessoas e bens.

VI — Ou seja, se os bens comuns constituem uma massa patrimonial que, como decorre do artigo 1689.° do Código Civil, está especialmente afecta à satisfação das dívidas conjugais e que, por isso, goza de certo grau de autonomia, e se a respectiva titularidade pertence aos cônjuges-ou, decretado o divórcio, faz com que tal massa tenha a natureza daquilo que a doutrina tem vindo a designar como património colectivo ou comunhão conjugal (destaque nosso).

VII — E, contrariamente ao que foi postulado pelo Douto Tribunal a quo, após a dissolução do casamento, os bens comuns do casal não permanecem numa situação de indivisão enquanto não se proceder a partilha, pois que o direito dos respectivos membros não incide directamente sobre cada um dos elementos que constitui o património, mas sobre todo ele, concebido como um todo unitário. Assim, a qualquer daqueles membros, individualmente considerados, não pertencem direitos específicos (designadamente uma quota) sobre cada um dois bens que integram o património global, não lhes sendo licito, por conseguinte dispor desses bens ou onerá-los, cfr. Pires de Lima e Antunes Vareja, Código Civil Anotado, vol. III, 1984, pag. 347 e segs.

VIII — Isto é, após a dissolução do casamento, os bens comuns do casal ficam conservados como propriedade ou património colectivo até que ocorra a sua divisão, através de partilha ou separação judicial de bens, cfr. Antunes Varela, in Direito da Família, Livraria Petrony, Lisboa, 1982, pags. 373 a 375, e Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira, in Curso de Direito da Família volume I, 3.ª ed., Coimbra Editora, 2003, pag. 550

IX — Não se pode, por isso, concordar com o entendimento vertido na Sentença recorrida, uma vez que não é a mera extinção do vínculo conjugal que automaticamente opera a alteração do regime de bens, legal ou contratualmente fixado para o casamento; de facto apenas a partilha pode colocar termo à comunhão podendo, ou não, dar lugar à compropriedade. Enquanto aquela não ocorrer, o regime legal de bens mantém a imutabilidade que lhe é natural, podendo terceiros valer-se das normas legais que o pressupõem.

X — Portanto, nos presentes autos, e subscrevendo o entendimento vertido nos acórdãos da Relação do Porto de 12-07-2017, proc. n.° 159/17.8TBAVR.P1, da Relação de Évora de 20-09-2011, proc. n.° 322/04.4GBPSR-B.E 1 e da Relação de Lisboa de 04-03-2004, proc. n.° 528/2004-2, a natureza do bem penhorado não sofreu quaisquer alterações por força da dissolução do casamento, permanecendo um bem pertencente ao património comum conjugal e não um bem indiviso.

XI — Contrariamente à tese da indivisão enquanto não houver partilha (compropriedade) seguida na Sentença sob recurso, na comunhão conjugal existe uma comunhão sem quotas, em que os respectivos titulares são sujeitos de um único direito e de um direito uno que não comporta a sua divisão nem mesmo ideal.

XII — Nesta conformidade, em virtude de a mera dissolução do casamento não operar qualquer alteração ao regime da comunhão dos bens, e tendo sido penhorado um bem comum do casal, devia ter sido citada a ora Embargante para requerer a separação judicial de bens, nos termos do disposto no artigo 220.° do CPPT, e também nos termos e para os efeitos do artigo 239.° do CPPT o que sucedeu no caso sub judice, cfr. alínea D) do probatório fixado na Sentença recorrida.

XIII — E, subscrevendo os ensinamentos do Ilustre Conselheiro Jorge Lopes de Sousa, in Código de Procedimento e Processo Tributário anotado e comentado, 4.ª Edição, nota 4 ao artigo 239.º, “[e]sta atribuição ao cônjuge da posição de executado e a obrigatoriedade da sua citação nos casos de penhora de bens imóveis ou móveis sujeitos a registo, implica que ele, nestes casos, não tenha a possibilidade de embargar de terceiro, devendo reagir contra actos ilegais que afectem os seus direitos através dos meios processuais concedidos ao executado, se já tiver sido citado, ou arguindo a nulidade insanável da falta da citação indevidamente omitida, nos termos do art. 165.º, n.º 1, alínea a), deste Código, usando em seguida das referidas faculdades processuais”.

XIV — Face ao supra exposto, e dando-se como provado que a Embargante foi citada nos termos do artigo 220.° do CPPT, e entendimento da Administração Tributária que, em relação à acção principal, a embargante não possui a qualidade de terceiro nem se verificou qualquer acto ofensivo da posse da ora Embargante que seja susceptível de ser sindicado através do presente mecanismo processual.

XV — Destarte com o devido e muito respeito, a Sentença sob recurso, ao decidir como efectivamente o fez, estribou o seu entendimento numa inadequada valoração da matéria de direito relevante para a boa decisão da causa, tendo violado o disposto nas supra mencionadas disposições legais».

1.3. Não foram apresentadas contra-alegações.

1.4. Recebidos os autos neste Supremo Tribunal Administrativo foi dada vista ao Ministério Público, tendo o Senhor Procurador-Geral Adjunto emitido douto parecer em que, após sublinhar a complexidade e a divisão que ainda hoje subsiste na doutrina e na jurisprudência, que cita abundantemente, quanto à natureza que assume o património conjugar após a dissolução do casamento por divórcio e ainda não partilhado, conclui o seu parecer nos seguintes termos.

«A penhora de imóvel integrante de património conjugal não partilhado após decretado o divórcio dos cônjuges, para responder por dívida da exclusiva responsabilidade de um deles e contraída após o divórcio, é ilegal e constitui fundamento para a dedução de embargos de terceiro por parte do ex-cônjuge que não responde por essa dívida, não obstando a tal facto a sua citação nos termos dos artigos 220º e 239º do CPPT, cujo procedimento não é aplicável neste caso, por terem cessado as relações patrimoniais entre os cônjuges e não ser aplicável o disposto no artigo 1696º do Código Civil.

Afigura-se-nos, assim, que a sentença recorrida não padece do vício de erro de julgamento que lhe é assacado pela Recorrente, motivo pelo qual se impõe a sua confirmação, julgando-se improcedente o recurso».

1.5 Cumpre decidir.

2. OBJECTO DO RECURSO

2.1. Como é sabido, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, a intervenção do Tribunal ad quem é especialmente delimitada pelo teor das conclusões que finalizam as alegações do recurso jurisdicional apresentado [artigo 635.º do Código de Processo Civil (CPC)].

Essa delimitação do objecto do recurso jurisdicional, na sua vertente negativa, permite concluir se o recurso abrange tudo o que na sentença foi desfavorável ao Recorrente ou, se este, expressa ou tacitamente, se conformou com parte das decisões de mérito proferidas quanto a questões por si suscitadas (artigos 635.º, n.º 3 e 4 do CPC), situação em que não podem ser reapreciadas pelo Tribunal ad quem. Na sua vertente positiva, a delimitação do objecto do recurso, especialmente nas situações de recurso para o Supremo Tribunal Administrativo como é o caso, constitui ainda o suporte necessário à fixação da sua própria competência, nos termos em que esta surge definida pelos artigos 26.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF) e 280.º e seguintes do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT).

2.2. As questões sob recurso, delimitadas que estão pelas conclusões da alegação da Recorrente, são as de saber se a sentença padece de erro, por ter julgado que a Embargante detém a qualidade de terceiro na execução fiscal em que foi penhorado o imóvel e se esta penhora, realizada pela Administração fiscal, é ilegal.

3. FUNDAMENTAÇÃO

3.1. Fundamentação de facto

O Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra julgou provados com relevo para a decisão de mérito dos autos, os seguintes factos:

A) O Serviço de Finanças de Sintra 2, instaurou contra o executado “C……………….., Ldª”, o processo de execução fiscal n° 3549201001201883 e aps., por dívidas de IRS, IRC e IVA, dos anos de 2010 e 2011, no valor de €48.715,90 - cfr “Autos de Execução” apenso aos presentes autos.

B) Por despacho de 28.09.2014, foi chamado à execução o responsável subsidiário B………….., e concretizada a reversão da execução com a citação do revertido para os autos efectuada em 14.10.2014, para cobrança da dívida exequenda - cfr “Ofício”, de fls 186 e “Despacho de Reversão”, de fls 187 a 189, do processo de execução apenso.

C) Em 12.10.2015, foi efectuado a penhora do prédio inscrito na matriz predial Urbana da União das Freguesias de …………. e …………., sob o art° 1454, Fracção “L”, registado pela inscrição Ap. 16, de 12.10.2015, na C.R.P. de Mafra, o qual faz parte do património comum da embargante e do revertido- cfr “Certidão Permanente” da C.R.P. de Mafra, de fls 26 e 27, do processo de execução apenso.

D) Após notificação do revertido da penhora do bem referido supra, procedeu-se à citação da Embargante para os autos, da penhora do bem comum do casal e para efeitos de requerer a separação judicial de bens - cfr “Ofício” de fls 32 e de fls 34, do Processo de Execução apenso).

E) A Embargante foi casada com o referido revertido nos autos, tendo-se divorciado em 14.12.2010 - cfr “Certidão” da C.R.C. Lisboa, de fls. 33 a 35 dos autos.

3.2. Fundamentação de direito

3.2.1. A sentença recorrida julgou os embargos de terceiro deduzidos pela ex-cônjuge do Executado procedentes com três fundamentos: a Embargante, enquanto ex-cônjuge do executado, detém a qualidade de terceiro; a penhora concretizada no processo executivo ofende o direito da Embargante e é com este incompatível; a penhora é ilegal porque, na ausência de partilha de bens, só pode incidir sobre o direito que o Executado detém sobre os bens que compõe o património comum e não sobre um bem concreto que o integre.

3.2.2. A Fazenda Pública aceita que a Execução Fiscal, que originariamente foi instaurada contra uma sociedade, apenas prosseguiu contra o ex-cônjuge marido, na qualidade de revertido, isto é, aceita que execução não corre termos contra a Embargada.

A Fazenda Pública aceita que a dívida em cobrança coerciva foi constituída após o divórcio ente a Embargante e o Executado-revertido (ex-cônjuge) e que é da exclusiva responsabilidade deste último.

A Fazenda Pública aceita que a penhora do imóvel cuja legalidade está em discussão nos autos foi concretizada após a dissolução do matrimónio.

Com o que a Fazenda Pública não se conforma, é (i) que na sentença tenha sido reconhecido à Embargante a qualidade de terceiro; (ii) que tenha ficado provado que a penhora do imóvel afecta o direito de posse desta e (iii) que o imóvel não pode ser penhorado para garantir a cobrança da dívida exequenda.

3.2.3. Vejamos, pois, se a sentença merece a censura que lhe vem dirigida, analisando, per se, os argumentos subjacentes a cada um dos fundamentos invocados no recurso.

3.2.3.1. A qualidade de terceiro do ex-cônjuge

Diz a Recorrente, em resumo nosso, que a Embargante não detém a qualidade de terceiro porque apesar de estar divorciada do Executado não partilhou o seu património, pelo que, tendo sido penhorado um bem imóvel que integra o património comum, a Embargante apenas tem que ser citada nos termos do preceituado nos artigos 220.º e 239.º do CPPT e só pode reagir à penhora através dos mesmos meios que estão à disposição do Executado: requerer a separação judicial de bens ou, não tendo sido citada, arguir a nulidade da falta de citação perante o órgão de execução fiscal.

Tendo tal citação sido realizada, prossegue, e nada tendo a Embargante requerido, conclui que não pode a Recorrente, invocando a sua qualidade de ex-cônjuge, deduzir embargos por não ser terceiro.

Vejamos.

O Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT - na falta de qualquer menção especifica, os preceitos citados reportar-se-ão à redacção que dispunham antes da entrada em vigor da última reforma processual), onde os embargos de terceiro se encontram regulados apenas quanto às especialidades que se colocam quando deduzidos contra actos praticados numa execução fiscal, não nos faculta um conceito de terceiro, mas, tão só, os fundamentos admissíveis para a sua dedução (artigo 237.º do CPPT).

Na verdade, aí se dispõe que: «Quando o arresto, a penhora ou qualquer outro acto judicialmente ordenado de apreensão ou entrega de bens ofender a posse ou qualquer outro direito incompatível com a realização ou o âmbito da diligência de que seja titular um terceiro, pode este fazê-lo valer por meio de embargos de terceiro».

Todavia, recorrendo ao Código de Processo Civil [(CPC) - na sua actual redacção, uma vez que os presentes embargos foram deduzidos após a entrada em vigor da Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho, cuja aplicabilidade subsidiária se mostra imposta pelo artigo 2.º do CPPT), onde o presente incidente se encontra amplamente regulado, encontramos os elementos necessários ao preenchimento do conceito de terceiro, já que aí se prescreve que “Se a penhora, ou qualquer outro ato judicialmente ordenado de apreensão ou entrega de bens, ofender a posse ou qualquer direito incompatível com a realização ou o âmbito da diligência, de que seja titular quem não é parte na causa, pode o lesado fazê-lo valer, deduzindo embargos de terceiro.

Em suma, face à lei, é terceiro quem não é parte na causa; quem não é parte na causa pode deduzir embargos de terceiro e estes são o meio processual próprio para quem não é parte na causa reagir contra a penhora ou outro ato de apreensão de bens, alegando ofensa da sua posse ou a titularidade de outro direito real incompatível com a diligência realizada ou com o seu âmbito (Neste sentido, Jorge Lopes de Sousa, Código de Procedimento e de Processo tributário, vol. III, pag., anotação ao artigo António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pereira de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Almedina, 2018, volume I, anotação 1. ao artigo 342).

Ora, não há dúvida que a Embargante não é parte na causa. A própria Exequente o reconhece, afirmando peremptoriamente que a execução não corre termos contra a Embargante, mas apenas contra o seu ex-marido e revertido. Pelo que, neste quadro factual e de direito, não é discutível que Embargante detém a qualidade de terceira.

Terá sido por esta conclusão ser indiscutível que a Recorrente, pese embora várias vezes afirme que a Embargante não é terceiro, concentra o afastamento dessa qualidade na citação que àquela foi dirigida nos termos do artigo 220.º e 239.º do CPPT e não no regime decorrente do artigo 327.º do CPPT ou 343.º do CPC.

Em suma, para a Recorrente, verdadeiramente, a Embargante não é parte (e por isso é terceiro), mas não deve ser admitida a deduzir embargos de terceiro por ter sido citada nos termos dos artigos 220.º e 239.º do CPPT. Segundo a Recorrente, a Embargante passou a partir desta citação a estar numa posição idêntica à do seu ex-cônjuge o que a impede de deduzir embargos de terceiro, ou seja, por força dessa citação este meio processual deixa de constituir o meio processual próprio para reagir ao acto ofensivo (penhora).

Sem razão. A lei não estabelece essa limitação e a qualidade de terceiro ou a definição dos meios processuais ao dispor do terceiro não podem estar dependente da vontade do Exequente.

Concretizemos.

A lei não estabelece essa limitação porque os artigos artigo 327.º do CPPT e 342.º do CPC a não fazem.

A lei não estabelece essa limitação porque o próprio legislador admite a dedução de embargos do cônjuge que deva ser considerado terceiro (artigo 343.º do CPC).

A lei não estabelece essa limitação porque os fundamentos legais que suportam a “equiparação da Embargante a Executada” em consequência da citação ocorrida nos artigos 220.º e 239.º do CPPT, com a consequente restrição dos meios de reacção aos legalmente consagrados para os Executados, apenas valem para os cônjuges e não para os ex-cônjuges.

É verdade que a doutrina e a jurisprudência há muito vem firmando o entendimento de que, nas situações em que o cônjuge tenha sido citado, nos termos dos artigos 786.º, n.º 1, al. a), 740.º, 741.º ou 742.º do CPC (respectivamente, por terem sido penhorados bens imóveis ou estabelecimento comercial, bens comuns do casal em execução movida contra um só dos cônjuges ou deduzidos incidentes de comunicabilidade por parte do Exequente ou do executado), adquire um estatuto equiparável ao do Executado, pelo que, nessas situações, os meios de reacção de que o cônjuge pode lançar mão para defender os seus direitos são exactamente os mesmos que estão legalmente disponíveis para o executado reagir, o que, naturalmente, exclui os embargos de terceiro.

E embora não logremos encontrar qualquer óbice a que esta doutrina e jurisprudência possam ser integralmente transpostas para o processo de execução fiscal, já que também neste a citação do cônjuge para requerer a separação judicial de bens é obrigatória nas situações em que, sendo a dívida de exclusiva responsabilidade de um dos cônjuges, tenham sido penhorados bens comuns (artigo 220.º do CPPT) ou quando a penhora incida sobre bens imóveis ou móveis sujeitos a registo (artigo 239.º do CPPT), a mesma só é válida ou transponível relativamente a situações em que esteja em questão a intervenção do cônjuge e não de um ex-cônjuge. Quer porque a letra da lei, no artigo 343.º do CPC, não permite que equiparemos cônjuge e ex-cônjuge. Quer porque as “relevantes” ocorrências processuais – dever de citação nos termos do artigo 220.º e 239.º do CPPT – não existem para os ex-cônjuges.

No caso concreto, já o dissemos, quando a dívida se constituiu, a execução reverteu contra o Executado e foi realizada a penhora já o casamento do Executado com a Embargante se dissolvera por divórcio. Ou seja, nestas datas já a Embargante não possuía a qualidade de cônjuge, pelo que a aplicação das apontadas limitações de meios ou de impropriedade do meio processual embargos de terceiro decorrentes do “estatuto equiparável” carecem de fundamento.

Em conclusão, o ex-cônjuge que não é parte na execução é efectivamente um terceiro na causa. Não determinando a lei que na situação em que sejam penhorados bens comuns deva, na qualidade de ex-cônjuge, ser citado nos termos do preceituado nos artigos 220.º e 239.º do CPPT, não existe fundamento legal para que lhe sejam restringidos ou alterados os meios processuais a que, por ser terceiro, tem direito a recorrer para defesa dos direitos que lhe estão reconhecidos no artigo 327.º do CPPT. Nem esse fundamento passa a existir pelo simples facto de essa citação (ilegal) ter ocorrido por vontade do Exequente, uma vez a qualidade de terceiro e a faculdade deste de recorrer ao incidente de embargos não pode derivar ou estar dependente de um acto voluntário do Exequente mas, sim, exclusivamente da verificação dos pressupostos que o legislador estabeleceu para esse efeito.

3.2.3.2. Da ofensa do direito da posse da Embargante

Alega a Recorrente que, independentemente de ser reconhecida a qualidade de terceira à Embargante, os presentes embargos não podiam ter sido julgados procedentes por nunca se ter verificado qualquer acto ofensivo da posse da Embargante.

Como está bem de ver, este erro de julgamento de direito apontado à sentença não tem a mínima razão de ser. O direito que a Recorrida invocou como tendo sido ofendido pela penhora foi o seu direito de propriedade.

A Recorrente não ignorará, como por diversas vezes já foi sublinhado em jurisprudência deste Supremo Tribunal, que os embargos de terceiro desde a entrada em vigor das alterações introduzida ao Código de Processo Civil pelo Decreto-Lei nº 329-A/95, de 12 de Dezembro deixaram de ter por exclusivo fundamento a afectação da posse para passarem a poder fundar-se na titularidade de outros direitos, em especial o direito de propriedade ou outro direito real de gozo menor. Ponto é, por nessa parte a redacção se ter mantido, que os direitos invocados sejam incompatíveis com a futura transmissão para terceiros do bem penhorado através de adjudicação ou venda.

Tendo a Embargante invocado o direito de propriedade sobre o imóvel penhorado, não estando em causa que este também lhe pertence nem que foi adquirido e registado antes data da penhora (porque se tivesse sido posteriormente não constituía fundamento de embargo por ser ineficaz em relação à execução), não há como não concluir que aquela penhora é incompatível com o direito que a Embargante se arrogou.

Improcedem, pois, as alegações da Recorrente sintetizadas nas conclusões XIV e XV do recurso.

3.2.3.3. Da legalidade da penhora por no âmbito de execução instaurada apenas contra um dos ex-cônjuges poderem ser penhorados bens que integram o património comum nas situações em que este não tenha sido partilhado.

A última questão que temos de enfrentar é a de saber se, estando provado que a dívida em cobrança coerciva nos autos de execução é da exclusiva responsabilidade do ex-cônjuge e que não houve partilha dos bens comuns do casal, pode o credor tributário penhorar bens desse património comum para satisfazer o pagamento daquela dívida.

Como muito bem realçou o Exmo. Procurador-Geral-Adjunto, a questão de direito que nos é colocada neste recurso é complexa, não é nova nem pacífica na doutrina e na jurisprudência, e tem vindo a ser colocada com regularidade a este Supremo Tribunal Administrativo que, pelo menos desde 2011, lhe vem dando sempre a mesma resposta.

É, pois, tendo por referência essa jurisprudência, que apreciamos e julgamos a questão ora em análise, transcrevendo parcialmente o acórdão de 18-5-2011, proferido no processo n.º 973/09, integralmente disponível em www.dgsi.pt, cuja identidade de facto e de direito (com excepção da inexistência de citação cujo fundamento já afastamos no ponto antecedente), é indiscutível.

Escreveu-se nesse acórdão o seguinte:

«(…)

Trata-se, pois, de dívida da responsabilidade do sujeito que a contraiu, e por ela responde apenas património deste, em harmonia com a regra contida no artigo 601.º do C.Civil quanto à garantia geral do cumprimento das obrigações. Isto é, respondem os bens de que o executado seja proprietário, a fracção de que seja titular em compropriedade e o direito que mantiver em património comum.

Diferente seria a situação se a dívida tivesse nascido na vigência da sociedade conjugal, se fosse uma dívida dos cônjuges (independentemente de se tratar de dívida própria de um deles ou de dívida comum a ambos), pois nesse caso podiam ser imediatamente penhorados os bens comuns do casal, por estes integrarem um património autónomo especialmente afectado aos encargos da sociedade conjugal. E, nessa situação, o posterior divórcio não exoneraria esse património comum, devendo o ex-cônjuge adquirir na execução uma posição igual à do cônjuge, o que obrigaria à sua citação para os efeitos previstos nos artigos 220.º e 239º do CPPT.

Já no presente caso, não cremos que o ex-cônjuge deva assumir na execução uma posição igual à do cônjuge do executado para os efeitos previstos nos aludidos preceitos do CPPT.

Desde logo, porque, após o divórcio, o ex-cônjuge passa a deter, relativamente ao património comum um direito a uma quota ideal do valor do conjunto de bens que o integram, a meio caminho juridicamente entre a comunhão hereditária e a compropriedade, sem se poder completamente reconduzir a nenhuma das duas figuras jurídicas. Como se refere no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça proferido em 18/11/2008, no Proc. n.º 08A2620, embora em situação diversa da que vimos analisando mas cuja doutrina sufragamos, «na comunhão conjugal existe um património colectivo, ou seja, um património com dois sujeitos que do mesmo são titulares e que globalmente lhes pertence, sendo um dos traços característicos de tal património autónomo o facto de cada um dos seus membros não poder pedir a sua divisão enquanto não cessar a causa determinante da sua constituição. Essa massa patrimonial não se reparte entre os cônjuges como na compropriedade ou comunhão do tipo romano: antes, como na antiga comunhão de tipo germânico, pertence-lhes em bloco e só em bloco. (...). Porém, uma vez dissolvido o vínculo conjugal, «o património comum converte-se em comunhão ou compropriedade do tipo romano, podendo, então, qualquer dos consortes dispor da sua quota ideal ou requerer a divisão da massa patrimonial através da partilha. É uma situação semelhante à sucessão mortis causa, ou seja, a uma herança, e é entendimento pacífico que esta, antes da partilha, constitui uma universitas juris, um património autónomo, com conteúdo próprio. Até à partilha, os direitos dos herdeiros recaem sobre o conjunto da herança; cada herdeiro apenas tem direito a uma parte ideal da herança e não a bens certos e determinados (cfr. acórdão deste STJ de 17.04.1980, in BMJ 296º-298).

Como escreveu Rabindranath Capelo de Sousa (Lições de Direito das Sucessões, pág. 185), citado no referido acórdão, “nos casos em que haja lugar à partilha da herança, segundo a opinião dominante, o domínio e posse sobre os bens em concreto da herança só se efectivam após a realização da partilha, uma vez que até aí a herança indivisa constitui um património autónomo nada mais tendo os herdeiros do que o direito a uma quota-parte do património hereditário”.

O mesmo é o pensamento do Prof. Pereira Coelho (Direito das Sucessões, 2ª ed., 1966-1967), também aí citado, quando esclarece que “não se trata de uma vulgar compropriedade entendida como participação na propriedade de bens certos e determinados. Pelo contrário, a contitularidade do direito à herança significa tanto como direito a uma parte ideal, não de cada um dos bens de que se compõe a herança, mas sim da própria herança em si considerada”».

O que significa que uma vez dissolvido o casamento celebrado segundo algum regime de comunhão de bens, passa o respectivo património de mão comum, até à respectiva partilha, à situação de indivisão, detendo cada um dos contitulares uma quota ideal do património globalmente considerado e não uma quota dos bens que compõem esse património. O que obriga à penhora do direito a bens indivisos (direito à meação) nos termos previstos no artigo 826.º do CPC e 232.º do CPPT, assim ficando excluída a possibilidade de penhora dos próprios bens acompanhada de citação do ex-cônjuge para requerer a separação de bens.

Esta solução respeita a regra do regime de comunhão de bens celebrado no casamento e não prejudica os interesses do ex-cônjuge ou de terceiros credores que tenham entrado em relacionamento jurídico-económico com algum dos membros do casal na pendência do matrimónio. Na verdade, tendo a dívida nascido depois do divórcio e por ela não respondendo o património colectivo afecto ao cumprimento dos encargos da sociedade conjugal, isto é, os “bens comuns do casal”, não há que salvaguardar a posição desses credores pela concessão da faculdade legal de penhora imediata dos bens comuns do casal. Assim como não há que acautelar a defesa dos interesses do ex-cônjuge através do mecanismo da citação para requerer a separação de bens, pois que após o divórcio ele pode livremente fazer cessar a indivisão, instaurando processo de inventário para partilha dos bens, ao contrário do que acontecia na pendência do matrimónio (durante o qual não pode alterar o regime matrimonial de bens nem pedir a divisão dos bens comuns, razão por que a lei concede ao cônjuge não responsável pela dívida a faculdade de separar o património comum na pendência de processo executivo, de forma a poupá-lo a qualquer prejuízo).

Do exposto decorre que a embargante não pode assumir na execução uma posição igual à do cônjuge, constituindo os embargos de terceiro o meio processual adequado para defesa dos seus direitos relativamente à penhora efectuada. Penhora que não pode incidir sobre os próprios bens que integram a comunhão, mas apenas sobre o direito que o executado detém no património comum».

É esta, como deixámos adiantado, a posição que perfilhamos, pelo que, não tendo no caso sido realizada a penhora do direito que o Executado detém sobre o bem comum, há, julgando-se a penhora ilegal, que confirmar também nesta parte a sentença recorrida.

4. Decisão

Face ao exposto, acordam os Juízes da Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo em negar provimento ao recurso jurisdicional interposto pela Fazenda Pública.

Custas a cargo da Recorrente.

Registe e notifique.

Lisboa, 18 de Novembro de 2020. - Anabela Ferreira Alves e Russo (relatora) – José Gomes Correia – Aníbal Augusto Ruivo Ferraz (declaração de voto: Não subscrevo a afirmação produzida, na “Fundamentação de direito”, após referência a entendimento firmado na doutrina e jurisprudência, no sentido de que «E embora não logremos encontrar qualquer óbice a que esta doutrina e jurisprudência possam ser integralmente transpostas para o processo de execução fiscal,». Isto porque, a regulamentação privativa, inscrita no Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), é suficiente para tratar, judicialmente, as situações em discussão e apresenta particularidades (relacionadas com as especificidades do direito tributário) suscetíveis de, potencialmente, conflituarem com as regras previstas para as execuções cíveis.