Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0721/16
Data do Acordão:10/12/2016
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:FONSECA CARVALHO
Descritores:MAIS VALIAS
APLICAÇÃO DA LEI FISCAL NO TEMPO
IMPOSTOS
Sumário:I - As mais-valias obtidas com a alienação onerosa de partes sociais são ganhos que se consideram obtidos no momento da alienação – artigo 10º, nº 1, al. b), e nsº 3 e 4 do CIRS;
II - O acto jurídico da sua alienação é que constitui o facto tributário e porque tal acto é instantâneo e autónomo é ao momento temporal em que a alienação ocorre que se tem de atender para efeitos de verificação da sua tributação ou isenção dela em sede de IRS;
III - A Lei nº 15/2010, de 26 de Julho só dispondo para o futuro não pode ser aplicada retroactivamente sob pena de violação do nº 1 do artigo 12 da LGT e 103 da CRP.
Nº Convencional:JSTA000P20975
Nº do Documento:SA2201610120721
Data de Entrada:06/06/2016
Recorrente:FAZENDA PÚBLICA
Recorrido 1:A.... E OUTRA
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: Acordam os juízes da Secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo

Relatório

Não se conformando com a sentença do Tribunal Tributário de Lisboa que julgou procedente a impugnação judicial deduzida por A……………. e outra contra a liquidação de IRS respeitante ao ano de 2010 veio a Fazenda Pública dela interpor recurso para a Secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo assim concluindo as suas alegações:
A) Visa o recurso reagir contra sentença que julgou procedente a impugnação deduzida por A………. e B……………. contra a decisão de indeferimento da reclamação graciosa por si apresentada contra a liquidação do IRS do ano de 2010 no valor de € 654091,14,
B) Resulta da sentença de que ora se recorre que o tribunal a quo considerou” Mostra-se assim procedente a acção impondo-se a anulação do acto impugnado que indeferiu a reclamação graciosa deduzida pelos impugnantes e em consequência a anulação da liquidação em causa na parte em que tributa as mais valias obtidas com a alienação em 12 03 2010 de acções representativas do capital social da sociedade C………………….. SA adquiridas em 04 12 2006 por incorrer em vício de violação de lei por erro nos pressupostos de direito traduzido na violação do artigo 12 nº 1 da LGT já que os referidos ganhos se aplica o disposto no artigo 10 nº 2 do CIRS na redacção anterior à Lei nº 15/2010 de 26 de Julho”.
C) Ora com tal entendimento não nos podemos conformar razão pela qual da sentença que decide com base em tal fundamento se recorre imputando-lhe vício de erro de julgamento já que procede à interpretação e aplicação incorrectas da norma reguladora do caso ajuizado.
D) Assim é nosso entendimento que no que a rendimentos emergentes da alienação de acções aquilo que nos termos do CIRS está sujeito a tributação é o saldo das transacções efectuadas e como tal e sendo que este só pode ser apurado no final do ano nessa altura já estava em vigor a mencionada Lei 15/2010 pelo que esta seria de aplicar ao caso em apreço sendo portanto legal e justa a liquidação aqui em causa.
E) Quer isto dizer que contrariamente ao que se considera na sentença recorrida a aplicação da lei que alterou o regime de tributação das mais valias ao caso em apreço não resulta em retroactividade mas em aplicação retrospectiva ou seja é uma norma que prevê consequências jurídicas para situações que se constituíram antes da sua entrada em vigor mas que se mantêm após tal data.
F) Ora tal como resulta do teor do acórdão nº 85/2010 do Tribunal Constitucional. (a retroactividade proibida no nº 3 do artigo 104 da Constituição é a retroactividade própria ou autêntica. Ou seja, proíbe-se a retroactividade que traduz na aplicação da lei nova a factos (no caso factos tributários) antigos (anteriores portanto à entrada em vigor da lei
G) E assim sendo e considerando que no caso a alienação das acções ocorre efectivamente antes da entrada em vigor da lei em análise mas os seus efeitos fiscalmente examinando ocorrem já na sua vigência dado que estes se consubstanciam em 31 de Dezembro de 2010, não existe aplicação retroactiva mas antes uma aplicação retrospectiva das normas razão pela qual consideramos nada haver a censurar à liquidação efectuada.
H) Pelo que é nosso entendimento assente na convicção que a realidade sujeita a tributação no final do ano fiscal em causa não é apenas a mais valia individualmente realizada na operação singular aqui em causa mas o saldo positivo verificado no final do ano fiscal entre as mais valias e menos valias geradas durante todo esse ano ou seja suportada na natureza de formação sucessiva do facto tributário o qual só no final do ano se completa que a situação aqui controvertida fica sujeita à lei fiscal em vigor no último dia do ano ou seja ao quadro estabelecido pela lei 15/2010 de 26 de Julho vigente no final do ano de 2010.
I) Mais ainda se requer que atendendo a que o valor da acção é superior a €275.000,00 que seja a ATA dispensada do pagamento do remanescente da taxa de justiça nos termos do nº 7 do artigo 6º do Regulamento das Custas Processuais tendo em consideração o valor e natureza da causa.
Termos em que deve ser concedido provimento ao recurso e manter-se o acto de liquidação impugnado.

Contra alegaram os recorridos pugnando pela manutenção do decidido, requerendo também a dispensa do pagamento do remanescente da taxa de justiça.

O Mº Pº emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso e pronunciando-se pelo deferimento do pedido da dispensa do pagamento do remanescente da taxa de justiça.

Colhidos os vistos cumpre decidir.

Fundamentação

De facto:
Foi a seguinte factualidade que o tribunal a quo deu como provada e que as partes não questionam:
A) Em 04 12 2006 o impugnante A…………. adquiriu à sociedade D…………. 126.169 acções representativas do capital social da sociedade C………… SA pelo montante de €335.122,14 cfr. Doc. de folhas 54 a 60 do processo administrativo tributário (PAT) Vol I reclamação graciosa
B) Em 12 03 2010 o impugnante A…………. alienou as acções identificadas em A) à sociedade D…………… pelo montante de €3.550.000,00 cfr. Doc. de folhas 54 do PAT Vol. I.
C) Em 29 de Maio de 2001 os impugnantes apresentaram a declaração de rendimentos modelo 3 na qual declararam os rendimentos constantes de folhas 133 dos autos e do PAT Vol I a folhas 89 a 9
D) Em 07 06 2011 foi emitida a liquidação de IRS nº 20115002837025 respeitante ao ano de 2010 notificada aos impugnantes em Julho de 2011, cfr doc de folhas 81 do PAT.
E) Na referida liquidação foi apurado um montante de imposto a pagar de €654.091,14, cfr folhas 81 do PAT
F) Em 26 09 2011 foi efectuado o pagamento do imposto liquidado no valor de € 654.091,14, cfr folhas 83 do PAT.
G) Em 23 12 2011 os impugnantes apresentaram reclamação graciosa invocando a preterição do direito de audição prévia, a falta de fundamentação do acto e a inaplicabilidade do regime decorrente da lei 15/2010 de 26 07 sob pena de inconstitucional aplicação retroactiva da lei, cfr doc de folhas 3 a 84 do PAT Vol I
H) Notificados do projecto de decisão de indeferimento para se pronunciarem os impugnantes não exerceram tal direito, cfr doc de folhas 101 a 196 do PAT VOl I
I) Por despacho datado de 25 07 2012 foi indeferida a reclamação graciosa cfr folhas 107 a 110 do PAT Vol I e 70 dos autos
J) Na referida decisão considerou-se não violado o direito de audição prévia uma vez que a liquidação foi efectuada de acordo com os elementos declarados pelos contribuintes e que a liquidação reclamada não era ilegal com fundamento no entendimento de que o IRS é um imposto periódico de formação sucessiva pelo que a aplicação da lei que alterou o regime de tributação das mais valias por se tratar de lei retrospectiva que não se inclui na retroactividade autêntica, essa sim proibida pelo artigo 103 nº 3 da CRP, não é inconstitucional, já que à data da alienação das acções não se tinham verificado todos os efeitos do facto tributário não constituindo as expectativas invocadas legítimas nem se verificando a violação do princípio da confiança, cfr folhas 107 a 110 do PAT, Vol.I e 70 dos autos
K) Os impugnantes foram notificados da decisão que indeferiu a reclamação graciosa em 31 07 2012 cfr folhas 113 do PAT Vol. I e 64 dos autos.
L) Em 03 09 2012 foi apresentada a presente impugnação, cfr folhas 2.

De direito:
Perante a factualidade dada como provada o Mº Juiz analisando os invocados vícios de preterição de audição prévia e da falta de fundamentação da decisão julgou que se não verificavam “in casu” tais ilegalidades já que face ao disposto no artigo 100 do CPA, tendo o imposto sido liquidado integralmente com base nas declarações do contribuinte sem lugar a instrução procedimental não existe dever de audição prévia, prevendo até o nº 2 do artigo 60 da LGT a sua dispensa e porque não existe também falta de fundamentação da decisão pois que a mesma contém elementos de facto e de direito que permitem ao contribuinte conhecer das razões do indeferimento.
Passou por isso a analisar a invocada ilegalidade da tributação das mais valias por violação do princípio da irretroactividade da lei fiscal princípio esse consagrado no artigo 1043/ 3 da CRP.
E considerando que existia violação de tal princípio atendo o disposto no artigo 12 da LGT julgou procedente a impugnação e anulou o acto que indeferiu a reclamação graciosa e o acto da liquidação na parte impugnada relativa à tributação das mais valias obtidas na alienação das acções efectuada em 12 03 2010.
Também face ao erro manifesto dos serviços julgou procedente o pedido relativo aos juros indemnizatórios.
É contra esta decisão que se insurge a recorrente ATA.
Reitera que a liquidação impugnada deve manter-se por não existir aplicação retroactiva da lei fiscal neste caso.
Considera que sendo o IRS um imposto periódico e sucessivo só o saldo apurado em 31 de Dezembro do ano a que o IRS respeita é que forma o facto tributário pelo que pese embora as acções terem sido alienadas em data em que vigorava a isenção de tributação das mais valias decorrentes de tal alienação o certo é que tendo tal regime sido revogado pela Lei nº 15 10 2010 entrada em vigor em 26 de Julho de 2010 dada a sua vigência em 31 de Dezembro de 2010 não existe aplicação retroactiva da lei fiscal mas antes uma aplicação retrospectiva o que já não contende com o disposto no artigo 12 da LGT nem com o nº 3 do artigo 103 da CRP.
Por sua vez os recorridos pugnam pela manutenção do decidido sustentando que a alienação das partes sociais é um facto simples e instantâneo na medida em que é constituído por único negócio jurídico esgotando-se nesse mesmo negócio.
Não obstando a tal o disposto no artigo 43 nº 1 do CIRS que mais não dispõe a não ser sobre a determinação do rendimento tributável não sendo contudo uma norma de incidência.
Vejamos.
O nº 6 do preâmbulo do DL 442-A/88 de 30 de Novembro que aprovou o CIRS afirma que o IRS comporta nove categoria de rendimentos entre as quais a sétima relativa a mais valias dessa forma harmonizando a concepção da tributação pessoal que o CIRS persegue sem contudo deixar de ter em atenção às particularidades relevantes dessas diferentes categorias de rendimento.
As mais valias são tratadas como rendimento da categoria G nos termos do disposto no artigo 1º nº 1 do CIRS.
A questão que está em discussão é apenas a de decidir se a liquidação de IRS relativo às mais valias gerado pela alienação das acções detidas pelo contribuinte há mais de 12 meses e efectuada em 12 03 2010. Anteriormente à vigência da Lei nº 15/2010, em data em que esses ganhos estavam então isentos de IRS, enferma de ilegalidade por aplicação retroactiva da lei fiscal.
A resposta tal questão depende do entendimento que decorrente da natureza de tal alienação decidindo se tal alienação é ou não facto instantâneo e isolado e como tal facto tributário autónomos alternativa decidir se, como entende a ATA, a mais valia gerada pela alienação se deve qualificar como mais um elemento a integrar no facto tributário de formação sucessiva “cujo terminus” ocorre em 31 de Dezembro do ano civil em causa.
Consideramos que face ao disposto no artigo 1º do CIRS conjugado como disposto no artigo 10 nº 3 do mesmo diploma legal que as mais valias consideradas como ganhos obtidos derivados do facto instantâneo e singular da sua alienação determinam que essa acto de alienação seja o facto tributário a relevar aquando do apuramento do IRS.
Donde tais ganhos se obtidos em momento temporal e nas condições em que a sua obtenção está isenta por força da lei de serem tributados em IRS não poderem ser objecto de tal tributação por força de lei fiscal revogatória de tal isenção sob pena de aplicação retroactiva de lei fiscal. Em violação do disposto nos artigos 12/1 da LGT e nº 3 do artigo 103 da CRP.
A tal não obsta o facto de o apuramento do IRS ocorrer apenas em 31 de Dezembro do ano em causa já que a determinação e cálculo do imposto não contende com a norma de incidência que é uma norma objectiva.
Neste sentido aliás se pronunciou já este Supremo Tribunal Administrativo em vários arestos, designadamente no acórdão de 17 02 2016 in processo 0668/15 cujo sumário dada a sua clareza se passa a transcrever:
“I- O Código do IRS estabelece, de forma clara e expressa, que constituem mais-valias os ganhos obtidos com a alienação onerosa de partes sociais, e que tais ganhos se consideram obtidos no momento da alienação - artigo 10º, nº 1, al. b), e nsº 3 e 4. E sendo o ganho apurado nesse preciso momento – pela diferença entre o valor de realização e o de aquisição do bem transmitido – as mais-valias não podem deixar de reportar-se a cada ganho de per si.
II - Razão por que o facto tributário nasce e esgota-se no momento autónomo e completo da alienação e da realização das mais-valias, sendo, por isso, um facto tributário instantâneo e não um facto tributário complexo de formação sucessiva ao longo de um ano, pese embora o valor a considerar para a determinação da base tributável para efeitos de IRS seja o correspondente ao saldo anual apurado entre as mais-valias e as menos-valias realizadas no mesmo ano.
III - A Lei nº 15/2010, de 26 de Julho, é omissa no que toca ao estabelecimento de regras específicas quanto à sua aplicação no tempo, pois não contém qualquer norma que deponha sobre a sua aplicação temporal, limitando-se a prescrever que “A presente lei entra em vigor no dia seguinte ao da sua publicação”. Razão por que se impõe aplicar a regra geral que rege a aplicação da lei fiscal substantiva no tempo, plasmada no artigo 12º da LGT.
IV - As mais-valias produzidas antes de 27/07/2010 com a alienação de acções detidas há mais de 12 meses continuam a seguir o regime de não sujeição que vinha determinado no nº 2 do CIRS anteriormente às alterações introduzidas pela Lei nº 15/2010 de 26 de Julho, e, como tal, não concorrem para a formação do saldo anual tributável de mais-valias a que se refere o artigo 43º do CIRS.”
Tal questão fora já objecto de apreciação pelo Pleno da Secção do Contencioso Tributário no acórdão de 16 09 2015 incurso nº 01504/15.
Porque se concorda com o aí decidido passamos a transcrever na parte que ao caso interessa o acórdão do STA chamado à colacção no acórdão do Pleno da Secção do Contencioso tributário atrás referido:
A questão fundamental de direito que opõe a decisão arbitral ao acórdão do Supremo Tribunal Administrativo consiste em saber se é ou não legalmente admissível submeter a tributação das mais-valias decorrentes da venda de partes sociais (acções) no período compreendido entre 1 de Janeiro de 2010 e 26 de Julho de 2010 ao regime legal instituído pela Lei n.º 15/2010, que entrou em vigor no dia 27 de Julho do mesmo ano.
No que toca à situação fáctica em apreciação, importa reter que a referida Lei 15/2010 revogou o nº 2 do artigo 10º do CIRS, que, na sua alínea a), excluía da tributação as mais-valias provenientes da alienação de acções detidas pelo respectivo titular durante mais de 12 meses, e alterou o nº 4 do artigo 72º do mesmo diploma, fixando em 20% a taxa especial de tributação que era, anteriormente, de 10%.
Sob o ponto de vista constitucional, ambos os arestos consideraram que a proibição da retroactividade das normas de natureza fiscal, a que alude o artigo 103º, nº 3, da CRP, veda a aplicação da lei nova a factos que tenham produzido todos os seus efeitos ao abrigo da lei antiga. A divisão surge, porém, quanto ao momento em que ocorre o facto tributário que origina a obrigação tributária em questão: segundo o acórdão fundamento, o facto tributário é instantâneo, nascendo e completando-se no momento da alienação, dado que se consubstancia no incremento patrimonial que nela se realiza, enquanto segundo a decisão arbitral o facto tributário é complexo e de formação sucessiva, completando-se apenas no final do ano, dado que a tributação incide sobre a diferença ou saldo entre as mais-valias e as menos-valias apuradas no termo do exercício.
E tal problemática tem de ser prioritariamente analisada e resolvida, porquanto a norma que regula a aplicação da lei tributária no tempo, contida no artigo 12º da LGT e que tem aplicação caso o legislador não regule expressamente a questão da aplicação no tempo de uma nova lei, estabelece que «1. As normas tributárias aplicam-se aos factos posteriores à sua entrada em vigor, não podendo ser criados quaisquer impostos retroactivos» e «2. Se o facto tributário for de formação sucessiva, a lei nova só se aplica ao período decorrido a partir da sua entrada em vigor». O que constitui a reafirmação do princípio geral de direito firmado no nosso sistema jurídico e constante do artigo 12.º do Cód.Civil, como do princípio constitucional da irretroactividade da lei tributária constante do artigo 103º da CRP.
Vejamos, pois, tendo em atenção que se trata de matéria assaz controversa, que tem vindo a obter decisões opostas e contraditórias no seio do próprio tribunal arbitral (como se pode ver pela leitura nomeadamente, das seguintes decisões arbitrais: de 10/08/2012, no Proc nº 25/2011-T, de 31/03/2015, no Proc. nº 770/2014-T, de 18/01/2014, no Proc. n.º 135/2013-T, e de 27/02/2015, no Proc. nº 509/2014T), algumas das quais acolhem a posição sufragada pelo Supremo Tribunal Administrativo nos dois arestos que proferiu sobre a matéria, e outras divergem dela, como sucedeu no caso da decisão recorrida.
Como se sabe, os acréscimos patrimoniais que o Código do IRS considera como mais-valias tributáveis na Categoria G correspondem, essencialmente, a ganhos resultantes de uma valorização de bens (os denominados “ganhos trazidos pelo vento” ou windfall gains no dizer anglo-saxónico), cujo tratamento fiscal na legislação portuguesa contém muitas especificidades, desde logo face à opção, por parte do legislador, de apenas tributar as mais-valias no momento da realização (o que contradiz a teoria do rendimento-acréscimo, que caso fosse adoptada implicaria que fossem sujeitas a tributação todas as valorizações patrimoniais ocorridas, quer fossem ou não realizadas).
Com efeito, em matéria de incidência de imposto sobre o rendimento das pessoas singulares, o Código do IRS estabelece que “constituem mais-valias os ganhos obtidos que (…) resultem da alienação onerosa de partes sociais e de outros valores mobiliários” e determina que “os ganhos consideram-se obtidos no momento da alienação” - artigo 10º, nº 1, al. b), e nsº 3 e 4. Isto é, estabelece, de forma clara e inequívoca, que os incrementos patrimoniais ou ganhos derivados da alienação onerosa de partes sociais, que se consubstanciam na diferença entre o valor da aquisição e o valor de realização desses bens, constituem mais-valias que se consideram obtidas no momento da alienação.
Por conseguinte, as mais-valias surgem logo que o valor arrecadado pelo respectivo titular/transmitente é superior ao valor pelo qual adquirira o bem, isto é, logo que ocorre a alienação e é alcançado o inerente ganho. O que quer dizer que é neste ganho, obtido no momento da alienação, que reside o facto tributário gerador das mais-valias. E sendo o ganho medido pela diferença entre o valor de realização e o da aquisição do próprio bem, e, por conseguinte, avaliado em cada concreto acto de alienação, torna-se claro que a mais-valia se reporta a cada ganho de per si.
Razão por que … consideramos que o facto tributário se reporta ao momento em que se realizam as mais-valias, ou, por outras palavras, o facto tributário que as origina e conforma nasce e esgota-se no preciso momento (autónomo e completo) da alienação e coetânea realização das mais-valias, sendo, por isso, um facto tributário instantâneo, e não um facto tributário complexo de formação sucessiva ao longo de um ano.
É certo que as mais-valias, tal como os demais rendimentos sujeitos a IRS, são declaradas anualmente (art. 57º do CIRS) e que o rendimento colectável anual do sujeito passivo corresponde ao saldo positivo apurado entre as mais-valias e as menos-valias que se tenham concretizado no mesmo ano (art. 43º nº 1 do CIRS). Mas essa operação de agregação entre as mais-valias e as menos-valias não tem a virtualidade de alterar ou transmutar a natureza dos factos tributários subjacentes. O que daí pode concluir-se é, apenas, que as mais-valias e as menos-valias alcançadas durante o mesmo ano são declaradas num único momento - na declaração anual de IRS - e que ambas concorrem para o apuramento do saldo final que vai servir para determinar e quantificar o rendimento anual sujeito a tributação em IRS.
Por outras palavras, a norma que prevê a agregação necessária ao apuro do saldo positivo entre as mais-valias e as menos-valias em face de todos os actos de alienação ocorridos no ano, constitui uma norma sobre a determinação da base tributável para efeitos de IRS, isto é, uma norma sobre a determinação do rendimento colectável, e não uma norma sobre a incidência, como, de resto, ressalta da organização sistemática do Código do IRS, onde a referência a esse saldo se encontra inserida no capítulo que trata da determinação do rendimento colectável e não no capítulo que trata da incidência do imposto. E, como é óbvio, o facto tributário tem de ser localizado no tempo em face da respectiva norma de incidência, e não em face da norma de determinação do rendimento colectável.
Em suma, o saldo positivo que será tributado não se confunde com o facto tributário em si. Tal saldo tem relevo apenas para o acerto do rendimento colectável e determinação da obrigação de pagamento de imposto que emerge (ou não) para o sujeito passivo em sede de IRS, carecendo de relevo para a formação do facto tributário em si, já que este, como se viu, surge isolado no tempo, ocorrendo por mero efeito da obtenção do ganho no momento de cada acto de alienação dos bens mobiliários em questão.
E o facto de o IRS ser um imposto de natureza periódica não inviabiliza que seja composto por rendimentos de formação instantânea e por rendimentos de formação sucessiva. Com efeito, enquanto alguns rendimentos são, pela natureza do seu facto gerador, de formação sucessiva no tempo, já outros, como os acréscimos patrimoniais que a lei fiscal considera como mais-valias tributáveis na Categoria G, provêm de operações isoladamente realizadas ou instantâneas, em que cada facto gerador se apresenta como autónomo e completo, isto é, sem exigência de qualquer facto ou ocorrência posterior.
Por tudo isto, somos levados a sufragar a posição acolhida no acórdão fundamento, cuja argumentação jurídica, dado o seu grau de convincência, consideramos ser essencial reproduzir.
«No que se reporta às mais-valias estas constituem aumentos inesperados do valor dos ativos patrimoniais, não sendo por definição um rendimento-produto, por não constituírem a contrapartida da participação na atividade produtiva (cf. neste sentido, José Guilherme Xavier de Basto, IRS Incidência Real e Determinação dos Rendimentos Líquidos, Coimbra Editora, p. 379).
Um dos princípios gerais da sua tributação é, desde logo, o princípio da realização, isto é, só há tributação quando a mais-valia é realizada, quando o ativo é transacionado, excluindo-se de tributação os aumentos de valor dos activos que não tenham sido objeto de alienação onerosa. (…).
Em sede de IRS, o art. 10º, nº 1, al. b) do Código insere no campo de incidência da tributação as mais-valias de partes sociais e valores mobiliários, sendo que esta incidência supõe a realização da mais-valia, ou seja, a sua alienação onerosa. E é esta alienação onerosa o facto gerador (vd. José Guilherme Xavier de Basto, IRS Incidência Real e Determinação dos Rendimentos Líquidos, Coimbra Editora, p. 397).
Como escreve José Guilherme Xavier de Basto (in IRS Incidência Real e Determinação dos Rendimentos Líquidos, Coimbra Editora, p. 397 e 427) “No que respeita ao momento em que o imposto é exigível […] rege o n.º 3 do artigo 10.º, que estabelece, como regra geral, que os ganhos se consideram obtidos no momento da prática dos actos previstos no n.º 1”. Quer dizer, o facto gerador reporta-se ao momento do ato que “realiza” a mais-valia. Dir-se-á, em termos gerais, que o momento relevante é, pois, o da alienação do activo em que se apuraram mais-valias tributáveis, ou operação a ela equiparada.”. Daqui resulta que, em geral (opostamente ao que sucede na alínea b) deste normativo), a exigibilidade do imposto coincide com o momento em que se verifica o seu facto gerador.
Quanto ao seu regime fiscal, no caso das mais-valias mobiliárias, ele passa pela não obrigatoriedade do englobamento das mais-valias tributáveis (72.º, n.º 7 do CIRS) e pela tributação a uma taxa especial (art. 72.º, n.º 4 do CIRS). E nos termos do art. 43.º, n.º 1 do CIRS o que se tributa nas mais-valias é “o saldo apurado entre as mais-valias e as menos-valias realizadas no mesmo ano”.
Assim, optando pelo englobamento os rendimentos de mais-valias (ou melhor o saldo entre mais-valias e menos-valias) serão adicionados aos demais rendimentos para que sejam tributados pela globalidade às taxas gerais aplicáveis à situação particular, em função da totalidade dos rendimentos englobados. Não optando pelo englobamento, a mais-valia apurada é sujeita a tributação a uma taxa especial.
Ora, é bom de ver que no caso das mais-valias de participações sociais sendo o facto gerador do imposto a sua alienação onerosa, não estamos perante um facto tributário complexo, de formação sucessiva ao longo de um ano, mas sim perante um facto tributário instantâneo.
O facto tributário que dá origem ao imposto esgota-se na realização da mais-valia (Atente-se que já o imposto de mais-valias era tido como de obrigação única - cf. Ac. do STA de 18.1.1995, P. 18287).
E a este entendimento não obsta a circunstância de ser tributado “o saldo apurado entre as mais-valias e as menos-valias realizadas no mesmo ano”, pois que o que está em causa no art. 43.º, n.º 1 do CIRS é, ao lado das normas que regem a determinação do ganho sujeito a imposto, a determinação da matéria coletável no que se reporta aos rendimentos resultantes de mais-valias.
Trata-se, a nosso ver, de uma situação semelhante às tributações autónomas em sede de IRC, onde se concluiu que “o facto de a liquidação do imposto ser efetuada no fim de um determinado período não transforma o mesmo num imposto periódico, de formação sucessiva ou de caráter duradouro. Essa operação de liquidação traduz-se apenas na agregação, para efeito de cobrança, do conjunto de operações sujeitas a essa tributação [...]” [cf. Ac. do Tribunal Constitucional n.º 310/2012].
Com efeito, também nas mais-valias resultantes da alienação de participações sociais o tributo incide sobre operações que se produzem e esgotam de modo instantâneo, surgindo o facto gerador do tributo isolado no tempo. Simplesmente há uma consolidação anual das mais-valias e menos-valias para efeito de apuramento da matéria coletável, sobre a qual vai incidir a taxa especial ou que vai ser englobada aos rendimentos das demais categorias.
A similitude com as situações de tributação autónoma é ainda maior quando, como in casu, o contribuinte não opta pelo englobamento, já que aqui ocorre verdadeiramente uma tributação separada, por aplicação de uma taxa fixa (vd. Rui Duarte Morais, Sobre o IRS; Almedina, 2.ª edição, p. 171). Ou seja, a taxa vai ser aplicada ao saldo anual, não havendo qualquer influência da grandeza desse saldo na determinação da taxa.
Tendo em conta que a “(…) a linha demarcadora do âmbito da retroatividade fiscal constitucionalmente admissível passará, desde logo, pela distinção entre situações tributárias «permanentes» e «periódicas» e «factos» cuja eficácia fiscal se esgota ou se firma «instantaneamente», para cada um deles «de per si» (maxime, pela distinção entre «impostos periódicos» e «impostos de obrigação única»), e passará provavelmente, depois, no que concerne àquele primeiro tipo de situações, pela distância temporal que já tiver mediado entre o período de produção dos rendimentos e a criação (ou modificação) do correspondente imposto. Isto, de todo o modo, sem prejuízo do relevo de outras circunstâncias, cujo possível peso não poderá ignorar-se.” (Cfr. Cardoso da Costa, "O Enquadramento Constitucional do Direito dos Impostos em Portugal", in Perspetivas Constitucionais nos 20 anos da Constituição, Vol. II, Coimbra, 1997, p. 418).
Entendemos que no caso da tributação das mais-valias estamos perante um tributo de obrigação única, incidindo sobre operações que se produzem e esgotam de modo instantâneo, sem prejuízo de a matéria coletável ser apurada anualmente.».
Por conseguinte, e em suma, os ganhos qualificados como mais-valias resultantes da alienação onerosa de acções consideram-se, por força de expressa determinação legal, obtidos no momento da alienação; e daí que a alienação em causa na decisão arbitral recorrida, realizada em 30/03/2010, se configure como um facto gerador instantâneo e autónomo, que não carece de qualquer evento posterior para se completar. Ademais, tendo existido essa única operação de alienação durante o ano de 2010, o facto tributário sempre se teria esgotado nessa transacção, não fazendo sentido invocar a necessidade de realização de uma operação de apuro de um saldo com outros (inexistentes) incrementos patrimoniais.
Posto isto, a questão que importa passar a conhecer é a da aplicação da lei no tempo, isto é, a de saber qual a lei aplicável aos ganhos obtidos com a alienação de acções ocorrida em 30/03/2010 e detidas pelo seu titular por mais de 12 meses, tendo em conta que nesse momento estava em vigor o artigo 10º, nº 2, al. a), do CIRS, segundo o qual “excluem-se do disposto no número anterior as mais-valias provenientes da alienação de: acções detidas pelo seu titular durante mais de 12 meses», mas que essa norma foi revogada pelo artigo 2º da Lei nº 15/2010, de 26 de julho. Esta Lei nº 15/2010 é omissa no que toca ao estabelecimento de regras específicas quanto à sua aplicação no tempo, pois não contém qualquer norma que deponha sobre a sua aplicação temporal, limitando-se a prescrever que “A presente lei entra em vigor no dia seguinte ao da sua publicação”. O que não pode deixar de representar uma opção silente do legislador no que toca a essa matéria, até porque essa problemática, da aplicação no tempo das alterações legislativas que o diploma veio introduzir na tributação das mais-valias, foi colocada e discutida no quadro do debate parlamentar que precedeu a aprovação desta Lei.
Ora, tendo o legislador optado por não disciplinar essa matéria, limitando-se a determinar a data da entrada em vigor do diploma no dia seguinte ao da sua publicação, sem estabelecer qualquer norma que permitisse a sua aplicação a um período tributário anterior, impõe-se, necessariamente, aplicar a regra geral que rege a aplicação da lei fiscal substantiva no tempo, plasmada no artigo 12º da LGT, sendo insustentável afastar tal regra ou princípio geral com o argumento de que existirão elementos históricos e genéticos que permitem inferir que o legislador terá pretendido que a lei nova se aplicasse a todas as transmissões realizadas no ano de 2010. É que ainda que fosse essa a vontade inicial do legislador, o certo é que acabou por não a expressar e conformar no texto legislativo, e tal conduz, necessariamente, à aplicação do princípio geral sobre a aplicação da lei tributária no tempo, segundo o qual as normas tributárias se aplicam apenas aos factos posteriores à sua entrada em vigor.
Razão por que consideramos que a lei aplicável é a vigente na data da ocorrência do facto tributário instantâneo gerador. E não há, no caso, qualquer dificuldade em situar esse facto no tempo, dado que a alienação é datada (30/03/2010), nem há qualquer questão que se coloque quanto ao princípio da progressividade do imposto, já que a consequência da aplicação do artigo 12º nº 1 da LGT é a não consideração das mais-valias em questão para efeitos de liquidação do imposto.
Assim sendo, também no que diz respeito a esta questão, de saber se a liquidação em análise respeitou as regras de aplicação da lei tributária no tempo consignadas no artigo 12º da LGT, se subscreve a argumentação jurídica tecida no acórdão fundamento.
E por todo o exposto julgamos ser claro que, no caso, ocorreu a aplicação de lei nova a factos tributários de natureza instantânea já completamente formados em momento anterior à data da sua entrada em vigor, o que envolve uma retroactividade autêntica, porquanto o que para esse efeito releva não é o momento da liquidação ou do apuramento do imposto, mas o momento em que ocorre o facto tributário que determina uma eventual liquidação e pagamento de imposto, pois é nessa altura que se exige que se encontre em vigor a lei que prevê a criação ou o agravamento do tributo (em obediência ao princípio da legalidade, na vertente fundamentada pelo princípio da proteção da confiança), de modo a que o cidadão possa equacionar as consequências fiscais do seu comportamento.
Em conclusão, as mais-valias em discussão nestes autos estão sujeitas ao regime legal vigente à data da venda, e preenchendo os pressupostos vertidos no artigo 10º, nº 2, al. a), do CIRS, estão excluídas de tributação, sendo, por isso, ilegal a liquidação que sobre elas incidiu.”.



Decisão:
Porque se concorda com o assim decidido acordam os juízes da Secção do Contencioso Tributário em negar provimento ao recurso.
Vem pelas recorrentes requerida a dispensa do remanescente da taxa de justiça nos termos do artigo 6º nº 7 do Regulamento das Custas Processuais.
Porque a causa, apesar do seu valor, não pode ser considerada de grande complexidade acordam os juízes da Secção do Contencioso Tributário do STA em deferir o requerido pedido de dispensa de pagamento do remanescente da taxa de justiça.
Custas pela recorrente.

Lisboa, 12 de Outubro de 2016. - Fonseca Carvalho (relator) - Isabel Marques da Silva - Pedro Delgado.