Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0803/12
Data do Acordão:08/08/2012
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:LINO RIBEIRO
Descritores:AUDIÊNCIA PRÉVIA
PROCESSO JUDICIAL
PRESTAÇÃO DE GARANTIA
PROCESSO DE EXECUÇÃO FISCAL
Sumário:I – O n° 1 do artigo 103° da LGT, ao referir que «o processo de execução fiscal tem natureza judicial», exprime literalmente o sentido de que a execução fiscal se realiza através de um «processo» e não de um «procedimento administrativo», no pressuposto hoje indiscutível que estamos perante realidades com natureza distintas.
II – Da alínea h) do n° 1 do artigo 54° da LGT e da alínea g) do n° 1 do artigo 44° do CPPT resulta que apenas se inclui no âmbito do procedimento tributário a «cobrança das obrigações tributárias, na parte que não tiver natureza judicial».
III – Como o processo de execução fiscal é todo ele de natureza judicial, independentemente da natureza materialmente administrativa ou jurisdicional dos actos que nele sejam praticados, a conclusão lógica é que as normas previstas para o procedimento não se aplicam à categoria processo de execução fiscal.
IV – Pelos efeitos produzidos, o acto de indeferimento do pedido de prestação de garantia é um acto predominantemente processual: impede o efeito suspensivo da execução, procedendo-se de imediato à penhora ou à compensação de dívidas (cfr. n° 2 do art. 169° n° 1 do art. 89° do CPPT).
V – Por isso, à formação desse acto processual não se aplicam as regras do procedimento tributário designadamente a do artigo 60º da LGT.
Nº Convencional:JSTA00067755
Nº do Documento:SA2201208080803
Data de Entrada:07/12/2012
Recorrente:A..., LDA
Recorrido 1:FAZENDA PÚBLICA
Votação:UNANIMIDADE
Meio Processual:REC JURISDICIONAL
Objecto:SENT TAF PORTO PER SALTUM
Decisão:NEGA PROVIMENTO
Área Temática 1:DIR PROC TRIBUT CONT - EXEC FISCAL
Legislação Nacional:LGT98 ART54 N1 H ART60 ART103
CPPTRIB99 ART60 ART44 N1 G ART151 ART276 ART89 N1 ART169 N2 ART170 N3 ART198 N2 ART199 N2
CONST76 ART202
CPC96 ART190 N4 ART191 N1 ART192 N1 ART223 N3 ART246 ART252 C ART257 N1 ART258
Jurisprudência Nacional:AC STA PROC0185/12 DE 2012/03/07; AC STA PROC0665/12 DE 2012/07/13; AC STA PROC0983/11 DE 2011/11/30; AC STA PROC0446/12 DE 2012/05/09; AC TC 331/92 DE 1992/10/21; AC TC 160/07 DE 2007/03/06
Referência a Doutrina:LIMA GUERREIRO LEI GERAL TRIBUTÁRIA ANOTADA 2000 PAG421-422.
Aditamento:
Texto Integral: Acordam na Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo
1. A……, Lda, identificada nos autos, interpõe recurso jurisdicional da sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto que julgou improcedente a reclamação que, ao abrigo do artigo 276° do CPPT, deduziu do despacho do Chefe de Finanças de Gondomar que não admitiu como garantia idónea à suspensão da execução fiscal contra si instaurada a constituição de hipoteca sobre um veículo pesado de mercadorias.
Para tal, nas respectivas alegações, conclui o seguinte:
a) Em conclusão, pode afirmar-se que na Douta Sentença recorrida, foi violado disposto no referido art. 60°, n° 1 da LGT quando a AT não procedeu a audição do ora recorrente, nos termos do disposto no art. 60° da LGT, sobre o projecto de decisão desfavorável às suas pretensões, in casu, do pedido de atribuição do efeito suspensivo da execução (neste sentido cfr. Acórdãos do STA de 30/11/2011, processo 0983/2011, de 14/12/2011, processo 01072/2011 e do TCA do Sul de 29/11/2011, processo 05168/11, todos em www.dgsi.pt.).
b) Pelo que, face ao exposto deve ser revogada a Douta Sentença recorrida e substituída por outra que conceda provimento à reclamação da recorrente, sendo revogado o despacho reclamado.

1.2. Não houve contra-alegações.
1.3. O Ministério Público emitiu parecer no sentido do provimento do recurso, por ter ocorrido violação do princípio da colaboração.

2. A sentença deu como assente a seguinte factualidade.

1 - Em nome da ora reclamante, foi instaurado o processo de execução fiscal n° 1783201101062360 para cobrança de uma dívida exequenda no valor de € 2.181,72, respeitante a uma liquidação adicional de IRC do ano de 2009 - cfr. fls. 2 destes autos.
2 - Contra a liquidação adicional de IRC do ano de 2009, referida em 1), a ora reclamante apresentou impugnação judicial em 15.11.2011, nos termos constantes de fls. 5 e que aqui se dá por reproduzida.
3 - Em 15.11.2011, a reclamante, em requerimento dirigido ao Exmo. Chefe do Serviço de Finanças de Gondomar, solicitou o efeito suspensivo dos autos de execução apresentando como garantia o “penhor do veículo pesado de marca BEDFORD matrícula …-…-…” - cfr. fls. 3 destes autos.
4 - Em 22.11.2011 foi proferido o despacho pelo Exmo. Chefe do Serviço de Finanças de Gondomar, 1, com a seguinte fundamentação:
“(...) Vem a executada A……, Lda., requerer a atribuição de efeito suspensivo ao processo executivo n° 1783201101062360, por ter impugnado as liquidações que originaram o processo, oferecendo como garantia, o penhor do veículo pesado de marca BEDFORD matrícula …-…-… (...). Nos termos do n° 1 do art. 199° do CPPT a garantia deve consistir em garantia bancária, caução ou seguro-caução, isto é, deve dar-se preferência às garantias que apresentem maior grau de liquidez (...). Contudo, o art. 199º n° 2, do mesmo Código dispõe que a garantia, para os fins previstos no art. 169° do mesmo Código, poderá consistir, ainda, a requerimento do executado e mediante concordância da administração tributária, em penhor ou hipoteca voluntária. (...). No caso concreto, a executada requer a aceitação de penhor (certamente quererá dizer hipoteca) a constituir sobre o veículo automóvel antes identificado. (…) Porém, não são fornecidos elementos que permitam avaliar se o veículo oferecido é uma garantia idónea, pelo que decido pela não aceitação do referido veículo como garantia, indeferindo pois, o pedido (…)”. (ATO RECLAMADO) - cfr. fls. 11 destes autos.
5 - A reclamante foi notificada do despacho referido em 4), por carta datada de 23.11.2003, cfr. fls. 14 a 17 destes autos.
6 - A reclamação foi enviada por via postal em 09.12.2011 - cfr. fls. 24 a 26 destes autos.
3. O problema que se coloca no processo, em reexame da decisão recorrida, consiste em determinar se aos actos praticados na execução fiscal são aplicáveis as normas do procedimento tributário, nomeadamente a do artigo 60º da LGT que estabelece o direito de participação dos contribuintes, na modalidade de audição prévia, na formação das decisões que lhes digam respeito.
Para garantia do crédito tributário em execução coerciva, a executada requereu ao órgão de execução a prestação de garantia idónea, mediante a constituição de hipoteca voluntária sobre um veículo de mercadorias. O órgão de execução fiscal indeferiu tal pedido com fundamento em que «não são fornecidos elementos que permitam avaliar se o veículo oferecido é uma garantia idónea».
O executado reclama judicialmente contra o acto de indeferimento com o único argumento de que foi violado o direito de audiência prévia previsto no artigo 60° do CPPT.
A sentença recorrida julgou improcedente a reclamação, no entendimento de que a execução fiscal «como processo judicial que é, ao mesmo não se aplica o regime de audiência prévia previsto no artigo 60° da LGT, enquanto expressão do princípio da participação, dado que este regime somente é aplicável no âmbito do procedimento tributário».
Efectivamente, assim é.
A questão da natureza dos actos praticados na execução fiscal pelo órgão de execução tem vindo a ser julgado pela jurisprudência tributária sobretudo a propósito do acto de indeferimento do pedido de dispensa da prestação de garantia, um acto que, do ponto de vista substancial, tem a mesma natureza que o acto de sentido contrário que indefere o pedido de prestação da garantia.
Relativamente àquele acto, a opinião corrente e reiterada da jurisprudência é no sentido de que a decisão do pedido de dispensa de garantia não é precedida da audição prévia do requerente.
Mas se a decisão é essa, existe contudo alguma divergência quanto à justificação, que se prende essencialmente com as dificuldades de conceptualização da execução fiscal e dos actos que nela são praticados. Arvoram-se vários fundamentos para justificar inexistência da audição prévia: (i) não se trata de um acto praticado num “procedimento tributário”, mas num “incidente processual” (ac. de 7/3/2012, rec. n° 185/12 e de 13/7/2012, rec. n° 665/12); (ii) é um procedimento “enxertado” na execução, mas não há instrução, porque toda a prova documental deve ser apresentada com o requerimento (ac. de 30/11/2011, rec. n° 0983/11); (iii) é um acto materialmente administrativo praticado num procedimento urgente em que se justifica a preterição da formalidade (ac. de 975/2012, rec. n° 0446/12).
Em nosso entender, e seguindo de perto a argumentação exposta nos dois primeiros acórdãos, não é a caracterização do acto de recusa da prestação de determinada garantia ou o acto de indeferimento do pedido de dispensa de a prestar como ‘actos materialmente administrativos” que impõe a obrigatoriedade da audição prévia, nem é a inexistência de “instrução” ou a “urgência” da decisão que justificam a dispensa da audição. Isto porque a natureza da execução fiscal e dos actos que nela praticados, assim como os meios de reacção que os interessados nela dispõem, não permitem concluir que se está perante um procedimento administrativo, ainda que “enxertado” num “processo judicial”, pelo que não há qualquer necessidade de utilizar as normas do CPA que excepcionam o direito de audiência prévia.
A inexistência de audição prévia radica na circunstância de se tratar de um acto praticado num processo de execução fiscal e não de um acto praticado num procedimento tributário. É quase intuitivo aperceber que os desvios ao desenvolvimento normal de um processo devem ser tratado como “incidentes” ou “processos incidentais”, consoante o grau de autonomia que tenham relativamente a ele, e não como categorias jurídicas estrutural e funcionalmente distintas, como é o caso do procedimento administrativo.
A solução desta questão tem por ponto de partida a determinação do sentido e alcance do artigo 103° da LGT, em cujo n° 1 se diz que «o processo de execução fiscal tem natureza judicial, sem prejuízo da participação dos órgãos da administração tributária nos actos que não tenham natureza jurisdicional»; e no n° 2 se prescreve que «é garantido aos interessados o direito de reclamação para o juiz da execução fiscal dos actos materialmente administrativos praticados por órgãos da administração tributária, nos termos do número anterior».
O enunciado normativo «o processo de execução fiscal tem natureza judicial», exprime literalmente o sentido de que a execução fiscal se realiza através de um «processo» e não de um «procedimento administrativo», no pressuposto hoje indiscutível que estamos perante realidades com natureza distinta. Como a questão já não é apenas de nomen iuris diferentes para o mesmo fenómeno processual, mas de categorias jurídicas funcional e estruturalmente diferenciadas, impõe-se averiguar se a “letra da lei” exprime correctamente o significado normativo nela contido.
À primeira vista, a maior dificuldade está no facto da norma dizer que a execução fiscal tem natureza de «processo judicial», quando é certo que a maior parte dos actos jurídicos compreendidos nessa forma processual não correspondem ao exercício de uma actividade jurisdicional. Como se sabe, do ponto de vista formal ou orgânico, à actividade dos órgãos inseridos na organização judicial dá-se o nome de função judicial; enquanto do ponto de vista material, a essa actividade dá-se o nome de função jurisdicional (cfr. art. 202° da CRP); e essa actividade é realizada de forma processualizada, a qual se assume, organicamente, como processo judicial e, materialmente, como processo jurisdicional.
Ora, deste ponto de vista, a execução não se podia identificar na totalidade com um processo de natureza judicial, porque o órgão de execução fiscal é um ente público não judicial. Neste sentido, nas palavras da lei, a execução fiscal apenas seria processo (judicial) na parte jurisdicionalizada, a referida no artigo 151º do CPPT, sendo procedimento (tributário) todos os demais actos jurídicos nela praticados pelos órgãos da administração tributária.
Mas a imperatividade do n° 1 do artigo 103° não permite chegar a essa conclusão.
O que se extrai dessa norma é que a natureza judicial do processo de execução fiscal não pode prejudicar a possibilidade de participação dos órgãos da administração tributária nos actos não jurisdicionais. Com esta directiva, a lei pretende que se construa um modelo de execução fiscal, segundo a forma do processo judicial, que a um só tempo comporte momentos jurisdicionais, da competência do juiz, e momentos administrativos, da competência do órgão da administração tributária.
Ao atribuir-se à execução fiscal a natureza judicial numa Lei de Bases, como é a LGT, está-se a impor a obrigatoriedade de se moldar a tramitação da execução segundo as formas próprias dos processos judiciais, o que implica a aplicação supletiva das regras do processo civil. E nenhum obstáculo de ordem constitucional existe à feitura de um processo com esse figurino, desde que não se acometa ao órgão de execução fiscal a prática de actos jurisdicionais (cfr. acs. do TC n° 331/92, de 21/10/92, n° 80/2003, de 12/2/03 e n° 160/07, de 6/3/07).
A estruturação da execução fiscal segundo o modelo dos processos judiciais, apesar de impulsionada e movida por um órgão administrativo, afasta qualquer tentativa de o enquadra na categoria jurídica de procedimento administrativo. O que bem se compreende porque actualmente procedimento e processo são realidades teleológica e formalmente diferenciadas. O procedimento surge não só como um instrumento de racionalização da actividade decisória da Administração, mas também como instrumento de legitimação da Administração, enquanto entidade que determina e regula os interesses em conflito, e assim, tomando decisões em que está pessoalmente empenhada. Ora, não isso que acontece na execução fiscal, em que o órgão de execução fiscal evidencia um estatuto supra partes, intervindo no exclusivo interesse da paz jurídica, obrigado a apreciar e decidir as questões enquanto autoridade exterior e neutra perante o litígio, mesmo que tenha que decidir contra si próprio, como acontece com o reconhecimento oficioso da prescrição.
Se bem repararmos, essa distinção é claramente assumido pelo legislador quando na alínea h) do n° 1 do artigo 54° da LGT e na alínea g) do n° 1 do artigo 44° do CPPT apenas inclui no âmbito do procedimento tributário a «cobrança das obrigações tributárias, na parte que não tiver natureza judicial». Como o «processo» de execução fiscal é todo ele de natureza judicial, independentemente da natureza materialmente administrativa ou jurisdicional dos actos que nele sejam praticados, a conclusão lógica é que as normas previstas para o procedimento não se aplicam à categoria processo de execução fiscal.
Na realidade, constata-se que as lacunas do processo de execução fiscal são integradas pelas normas do processo civil, o que bem acentua a natureza de «processo judicial» e não de «procedimento tributário». Relativamente aos principais actos que compõem a execução, como a citação, penhora, venda, convocação de credores, verificação e graduação de créditos, o CPPT remete para as normas congéneres do CPC e não para quaisquer normas procedimentais (cfr. n°4 do art. 190º, n° 1 do art. 191°, n° 1 do art. 192°, n° 3 do art. 223°, 246°, 252°, al. c) do n° 1 do art. 257° e 258°). Daqui decorre a qualificação da execução fiscal como um meio processual, um instrumento criado pela ordem jurídica para a cobrança coerciva de obrigações tributárias (e das pecuniárias impostas por acto administrativo) mediante um processo e não mediante um procedimento administrativo.
Por isso mesmo, concorda-se inteiramente como o comentário que Lima Guerreiro faz ao artigo 103° da LGT, defendendo que «o processo de execução fiscal não tem, segundo o que a norma do número 1 expressamente declara, natureza meramente administrativa ou mesmo mista, mas é unitária e integralmente um processo judicial. Essa natureza integralmente judicial do processo não prejudica, no entanto, a participação dos órgãos da administração tributária nos actos sem natureza materialmente jurisdicional, ou seja, na prática dos chamados actos materialmente administrativos da execução fiscal. Não é, pois, cindível o processo de execução em uma fase formalmente administrativa e outra administrativa judicial. Ele é unitariamente um processo de natureza judicial» (cfr. Lei Geral Tributária – Anotada – Editora, Rei dos Livros, 2000, pág. 421 e 422).
E não se deve estranhar que a execução fiscal se processe segundo o modelo do processo executivo judicial, apesar de intervenção de entes não judiciais. O facto de, em regra, o procedimento administrativo ser a forma da administração e o processo a forma da jurisdição, tal não significa que não possa haver meios processuais em consonância com a diversidade de situações típicas em crise. Veja-se o que acontece com o processo de contra-ordenação, em que a Administração desenvolve uma actividade materialmente jurisdicional, ou com o processo de jurisdição voluntária, em que o juiz desenvolve uma actividade materialmente administrativa. De igual modo, nada impede que as duas funções possam ser exercidas na mesma unidade processual, como aconteceu com a desjurisdicionalização relativa do processo executivo comum levada a efeito pelas alterações efectuadas à lei processual civil pelo DL n° 38/2003 de 8/3, ao entregar-se a direcção da execução a um solicitador de execução, como poderes de autoridade, reservando ao juiz o controlo a posterior dos actos executivos.
Portanto, a diversidade de interesses e pretensões de tutela pode determinar a imposição normativa de um módulo de composição que não corresponde ao modo normal de levar a cabo o exercício da respectiva função.
Com esta fisionomia, a execução fiscal é um exemplo da actividade administrativa sujeita as formas processuais, actuando através de um verdadeiro processo, como tal designado na lei, fora da função jurisdicional do Estado, e não através do modo específico do exercício da função administrativa. E não interessa saber se processo e procedimento são duas espécies do mesmo género ou se são dois géneros opostos, pois a LGT e o CPPT considera-os categorias jurídicas bem distintas e autónomas.
A objecção que se pode dirigir contra esta tese consiste em acentuar que o acto de indeferimento do pedido de prestação de garantia é um “acto materialmente administrativo” e por conseguinte só pode ser produzido através de um procedimento.
Mas esta alegação não deve impressionar-nos.
Todos os actos lesivos dos direitos processuais do executado praticados pelo órgão de execução fiscal, ainda que apliquem normas de direito privado (v.g. constituição de penhor, hipoteca, reconhecimento de direito de preferência, etc.), são actos materialmente administrativos para efeitos de reclamação judicial. A conjugação do n°2 do artigo 103° da LGT com os artigos 151° e 276° do CPPT indica-se o que significa, para efeitos de execução fiscal, o conceito de “acto materialmente administrativo”.
Como o modelo de execução fiscal è construído segundo a forma de processo judicial, mas comporta ao mesmo tempo momentos jurisdicionais, da competência do juiz, e momentos administrativos, da competência do órgão da administração tributária, o conceito de acto materialmente administrativo tem que analisado numa tripla dimensão: orgânica, funcional e material.
Do ponto de vista orgânico, são jurisdicionais quando praticados pelo juiz e são administrativos quando praticados por um órgão administrativo, seja o órgão de execução ou outro. Portanto, é irrelevante a distinção que por vezes se faz entre órgão que age como credor exequente e órgão que age como agente de execução.
Do ponto de vista funcional, são actos cujos efeitos se produzem no e para o processo de execução fiscal e que por isso se caracterizam por uma natureza formal ou instrumental, ao serviço da pretensão de fundo dirigida à cobrança de créditos tributários. Ora, se execução fiscal deve ser qualificada como um processo, então o conjunto de actos por ele formado são actos processuais e não actos procedimentais. São actos processuais porque fazem parte do complexo de actos que formam a sequência processual e/ou porque têm relevância no desenvolvimento da relação processual. Não são actos procedimentais, porque não estão enquadrados num procedimento tributário que funcione como instrumento de concretização da relação jurídica tributária material que se estabeleceu entre o contribuinte e a administração tributária. A única conexão material que existe entre o procedimento tributário e o processo de execução fiscal concretiza-se na necessária antecedência daquele relativamente a este, na medida em foi nele que se formou o acto tributário subjacente ao título executivo.
Do ponto de vista material, na definição do artigo 276° do CPPT, são actos que no processo afectam os direitos e interesses legítimos do executado ou de terceiro. São “actos materiais” porque afectam verdadeiras posições jurídicas materiais que o executado dispõe no processo. A circunstância de caracterizarem em pretensões de carácter instrumental, não impede o reconhecimento de que tais posições subjectivas são, em si mesmo, posições substantivas que, se forem respeitadas pelo órgão de execução fiscal, proporcionam ao executado utilidades efectivas, ainda que instrumentais.
A partir do momento em que é instaurada a execução fiscal, emerge na esfera jurídica do executado, ao lado da posição substantiva que dá corpo à relação jurídica tributária materializada no título executivo, uma posição específica, integrada poderes, faculdades, deveres e sujeições, reportada ao desenvolvimento, modificação ou definição da relação processual. Ora, se essa posição subjectiva processual for afectada por um acto processual ilícito, o n° 2 do artigo 103° da LGT garante ao executado a abertura da via jurisdicional para defesa dessa posição. O direito à reclamação, através do processo expedito e urgente regulado nos artigos 276° a 278° do CPPT, é pois um direito subjectivo processual que o executado tem para se defender dos actos processuais lesivas das posições jurídicas que a lei processual lhe atribui.
Em consonância com essa norma, o artigo 276° do CPPT estabelece que são susceptíveis de reclamação, as decisões proferidas pelo órgão de execução fiscal e outras autoridades da administração tributária «que no processo afectem os direitos e interesses legítimos do executado». Portanto, os actos materialmente administrativos objecto de reclamação são apenas aqueles que forem produzidos «no processo», ou seja, os actos processuais, ainda que simultaneamente aplicam normas de direito material.
E assim se deve caracterizar o acto que o indefere o pedido de prestação de garantia.
Pelos efeitos produzidos, é um acto predominantemente processual: impede o efeito suspensivo da execução iniciado com o pedido de prestação de garantia, procedendo-se de imediato à penhora ou à compensação de dívidas (cfr. n° 2 do art. 169° n° 1 do art. 89° do CPPT).
É claro que a faculdade que o executado dispõe de prestar a garantia idónea mediante hipoteca voluntária, prevista no n° 2 do artigo 199° do CPPT, foi atingida pelo indeferimento dessa pretensão. Na medida em que a lei reconhece ao executado a faculdade de prestar garantia através de hipoteca voluntária corresponde, em si mesmo, a uma verdadeira posição jurídica substantiva, que lhe proporciona uma utilidade efectiva que lhe foi negada por aquele acto e que até pode ser fonte de pretensão indemnizatória, quando agredido por acto ilícito.
Mas essa posição jurídica material apresenta uma clara natureza instrumental, que lhe advém do facto de, por si só, não proporcionar ao executado a satisfação da posição subjectiva de fundo que defende na execução, e que é a de evitar o prosseguimento duma execução irregular ou injusta. A prestação da garantia ou a sua isenção são direitos de natureza processual, que funcionam como instrumentos ao serviço do interesse opositivo do executado, que apenas se concretizará com a procedência da impugnação judicial ou da oposição à execução. Os seus efeitos produzem-se quase exclusivamente no âmbito da execução, ainda que indirectamente se dirijam à obtenção do interesse de fundo que move o executado na execução. Por isso mesmo, ao proporcionar-lhe uma utilidade meramente instrumental, a prestação de garantia não pode deixar de ser qualificada como uma pretensão subjectiva de carácter processual.
Ora, na execução fiscal a protecção jurídica dos direitos processuais do executado é assegurada através do controlo a posteriori dos actos executivos, sobre os quais cabe sempre ao juiz a última palavra. O status activus processualis do executado revela-se num processo jurisdicional realizado na e através da execução fiscal, que lhe dá garantias de defesa e contraditório bem superiores às que resultam da audiência prévia à prática do acto processual, ainda que dele resultem efeitos substantivos. Com efeito, seguindo o modelo do agravo em processo civil, o executado pode reagir imediatamente, no prazo de 10 dias, contra as eventuais ilegalidades praticadas no decurso da execução, com possibilidade da reclamação subir imediatamente se causar «prejuízo irreparável» ou, como tem defendido a jurisprudência, se a sua retenção a tornar absolutamente inútil.
Não se pode dizer que o executado precisa de ser previamente ouvido sobre os actos processuais que afectam os seus direitos processuais porque não há confiança na eficácia da protecção jurisdicional, quando a abertura de uma “fase jurisdicional” no próprio processo compensa de sobremaneira uma “fase procedimental”, ou porque é necessário garantir o “contraditório procedimental”, quando a celeridade processual lhe impôs o dever de instruir documentalmente os respectivos requerimentos (v.g. n° 3 do art. 170° e n° 2 do art. 198° do CPPT). A execução fiscal está estruturada para fornecer ao executado todas as garantias de defesa contra actos processuais ilegais, pelo que, se o legislador não teve necessidade de criar mais uma fase procedimental precedente à prática dos actos executivos, não se vislumbra que direitos fundamentais do executado possam justificar e exigir a introdução de uma nova “fase procedimental”, com o prejuízo que isso acarreta para realização célere do interesse público na cobrança dos tributos.
Em suma: determinada a natureza processual dos actos praticados pelo órgão de execução fiscal, conclui-se pela inaplicabilidade das normas próprias do procedimento tributário, como é o caso do artigo 60º relativo ao direito de audição prévia, ao acto que indeferiu o pedido de isenção de garantia.
Assim sendo, no caso dos autos, foi indeferido um pedido de prestação de garantia, acto processual cuja prática, tal como se decidiu na sentença recorrida, não precisa de ser precedido de audição prévia.
4. Pelo exposto, acordam os juízes da Secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo em negar provimento ao recurso.
Custas pela recorrente.
Lisboa, 8 de Agosto de 2012. – Lino Ribeiro (relator) – Fernanda Xavier – Francisco Rothes.