Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0186/10
Data do Acordão:09/08/2010
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:PIMENTA DO VALE
Descritores:RESPONSABILIDADE SUBSIDIÁRIA
COIMA
EXECUÇÃO FISCAL
INCONSTITUCIONALIDADE MATERIAL
CULPA
GERENTE DE EMPRESA
PRINCÍPIO DA INTRANSMISSIBILIDADE DAS PENAS
PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA
Sumário:I - É materialmente inconstitucional, por violação dos princípios da intransmissibilidade das penas e da presunção de inocência, consagrados nos artºs 30º, nº 3 e 32º, nº 2 da CRP, o disposto no artº 8º do Regime Geral das Infracções Tributárias relativo à responsabilidade subsidiária dos administradores, gerentes e outras pessoas, em relação ao pagamento de coimas aplicadas à sociedade.
II - O processo de execução fiscal não é o meio processual adequado para a cobrança de dívidas emergentes de responsabilidade civil extracontratual nem é possível a reversão da execução para cobrança de dívidas não tributárias com esse fundamento.
III - A responsabilidade subsidiária por dívidas de coimas, prevista no art. 8º, nº 1, al. a) do RGIT, depende da prova da culpa do responsável na génese da insuficiência do património social para pagamento da dívida, pelo que está afastada a possibilidade de tal responsabilização quando no despacho de reversão não se invoca a existência dessa culpa.
IV - Neste tipo de processos instaurados na sequência de reversão de coimas, que são formalmente de oposição a execução fiscal, está em causa uma responsabilidade prevista no RGIT, a entender-se que é a oposição à execução o único meio que o revertido pode utilizar para a defesa dos seus interesses, têm de ser asseguradas neste meio processual condições de defesa idênticas às que são proporcionadas ao arguido no processo contra-ordenacional, designadamente a possibilidade de conhecer oficiosamente de todas as questões relevantes, em que se inclui a de “alterar a decisão do tribunal recorrido sem qualquer vinculação aos termos e ao sentido da decisão recorrida”, que é própria dos recursos jurisdicionais em processos de contra-ordenações.
Nº Convencional:JSTA00066560
Nº do Documento:SA2201009080186
Data de Entrada:03/12/2010
Recorrente:FAZENDA PÚBLICA
Recorrido 1:A...
Votação:UNANIMIDADE
Meio Processual:REC JURISDICIONAL.
Objecto:SENT TAF MIRANDELA PER SALTUM.
Decisão:NEGA PROVIMENTO.
Área Temática 1:DIR FISC - CONTRA ORDENAÇÃO.
Legislação Nacional:RGIT01 ART8.
CONST97 ART30 N3 ART32 N2.
CP07 ART11.
CPPTRIB99 ART148 N1 B.
CCIV66 ART342 N1.
Jurisprudência Nacional:AC STA PROC64/10 DE 2010/04/14.; AC STA PROC829/08 DE 2009/02/04.; AC STA PROC1056/07 DE 2008/03/06.; AC STA PROC31/08 DE 2009/07/01.
Aditamento:
Texto Integral: Acordam nesta Secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo:
1 – A Fazenda Pública, não se conformando com a sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal de Mirandela que concedeu provimento à oposição à execução fiscal que A..., melhor identificado nos autos, deduziu contra a execução fiscal que contra si reverteu, na qualidade de responsável subsidiário da empresa “B..., Lda”, dela veio interpor o presente recurso, formulando as seguintes conclusões:
1ª O que está em discussão no presente recurso, é uma questão meramente de DIREITO, que se prende com a (in)constitucionalidade da responsabilidade subsidiária dos administradores, gerentes ou outras pessoas que tenham exercido a administração das pessoas colectivas originariamente, devedoras, nos termos do artigo 8 do Regime Geral das Infracções Tributárias.
2ª A douta sentença, aqui recorrida, decidiu mal, quanto à reversão da execução quanto às coimas, relativamente ao oponente revertido, no sentido de que julgou procedente a oposição quanto a esta parte, tendo como consequência legal determinado a extinção da execução nesta parte.
3ª Fundamentou a sua decisão na doutrina sufragada por Jorge Sousa e Simas, na qual a aplicação de uma pena de multa ou coima consubstancia-se na criação de uma relação de crédito de que é titular o Estado e devedor o condenado e a imposição da obrigação de pagamento da multa ou coima é precisamente a forma de cumprimento da sanção respectiva, ...e por isso quem paga a multa ou a coima coactivamente está a cumprir uma sanção. Nestas condições é duvidosa a constitucionalidade material destas responsabilidades por não assentar na verificação em relação ao responsável dos pressupostos legais de que depende a aplicação da respectiva sanção. Com efeito, no nº 30 nº 3 da CRP enuncia-se o principio da intransmissibilidade das penas, que embora previsto só para estas, deverá aplicar-se a qualquer tipo de sanções, por ser essa a única solução que se harmoniza com os fins que justificam a aplicação de sanções, que são de repressão e prevenção e não de obtenção de receitas”
4ª E ainda que, “os fins das sanções aplicáveis por infracções tributárias são exclusivamente de prevenção especial e geral, pelo efeito ressocializador ou a ameaça da sanção levar o infractor a alterar o seu comportamento futuro e conseguir que outras pessoas...se abstenham de praticar factos idênticos ...pelo que, a aplicação de sanção a pessoa a quem não pode ser imputada responsabilidade pela prática não é necessária para a satisfação dos fins que a previsão de sanções tem em vista, e por isso, é constitucionalmente proibida a sua aplicação, por força do artigo 18 nº 2 da CRP”.
5ª A sentença, do tribunal a quo fundamentou a sua decisão, quanto à reversão das coimas, na jurisprudência sufragada até agora pelo STA, indicando alguns arestos, no sentido de que, é “materialmente Inconstitucional, por violação dos princípios da intransmissibilidade das penas e da presunção da inocência consagrados nos artigos 30 e 32 nº 2 da CRP, o disposto no artigo 8 do RGIT, relativo à responsabilidade subsidiária dos administradores, gerentes e outras pessoas, em relação ao pagamento de coimas aplicadas à sociedade, e que assim não podem ser exigidas ao revertido, ainda que em termos de responsabilidade subsidiária” (in douta sentença página 11), citando aqui, o Acórdão sufragado pelo STA.
6ª Não obstante ter referenciado o recente Acórdão do Tribunal Constitucional, com o nº 129/2009, de 13 de Março, não só não explicou como não fundamentou porque razão não aderiu nem adoptou o decidido neste aresto, tecendo apenas a consideração de que a respectiva fundamentação era brilhante.
7ª Com efeito, este Acórdão decidiu “não julgar inconstitucionais as normas das alíneas a) e b) do artigo 8 do RGIT..., na parte em que se refere à responsabilidade subsidiária dos administradores e gerentes por coimas aplicadas a pessoas colectivas em processo de contra-ordenação”, não há motivo, para que se não aplique, no caso em apreço a presente norma, responsabilizando o oponente, revertido, também pelas dívidas exequendas respeitantes aos processos executivos por coimas, identificados na referida oposição.
8ª Fundamentado que, a norma do artigo 8 nº 1 alíneas a) e b) do RGIT prevê a forma de responsabilidade civil subsidiária dos administradores e gerentes, que resulta do facto culposo que lhes é imputável de terem gerado uma situação de insuficiência patrimonial da empresa, que tenha sido causadora do não pagamento da multa ou coima que era devida, ou de não terem procedido a esse pagamento quando a sociedade ou pessoa colectiva foi notificada para o efeito ainda durante o período o exercício do seu cargo.
9ª O que aqui está em causa, não é a mera transmissão de uma responsabilidade contra-ordenacional que era originariamente imputável à sociedade ou pessoa colectiva, mas antes, a imposição de um dever indemnizatório que deriva do facto ilícito culposo que é praticado pelo administrador ou gerente, constituindo causa adequada do dano que resulta, para a Administração Fiscal, da não obtenção da receita em que se traduzia o pagamento da multa ou coima que eram devidas.
10ª Pois que, a simples circunstância de o montante indemnizatório corresponder ao valor da multa ou coima não paga significa que é essa, de acordo com os critérios da responsabilidade civil, a expressão pecuniária do dano que ao lesante cabe reparar que é necessariamente coincidente com a receita que deixa de ter dado entrada cofres da Fazenda Nacional, não permitindo concluir que tenha havido a própria transmissão para o administrador ou gerente da responsabilidade contra-ordenacional.
11ª O facto de a execução fiscal poder prosseguir contra o administrador ou gerente é uma mera consequência processual da existência de uma responsabilidade subsidiária, não constituindo, em si, qualquer início de que ocorre, no caso em apreço, a transmissão para terceiro da sanção aplicada no processo de contra ordenação (art. 160 CPPT).
12ª Acresce ainda que a responsabilidade subsidiária dos administradores e gerentes assenta, não no próprio facto típico que é caracterizado como infracção contra-ordenacional, mas num facto autónomo, que se traduz num comportamento pessoal determinante da produção de um dano para a Administração Fiscal. É esse facto, de carácter ilícito, imputável ao agente, a título de culpa, que fundamenta o dever de indemnizar, e que, como tal, origina a responsabilidade civil.
13ª Assim, deverá considerar-se que não existe, na previsão da norma do artigo 8 nº 1 alíneas a) e b) do RGIT, um qualquer mecanismo de transmissibilidade contra-ordenacional, nem ocorre qualquer violação do disposto no artigo 30 nº 3 da CRP, mesmo que, se pudesse entender, o que não é líquido, que a proibição aí contida se torna aplicável no domínio das contra ordenações.
14ª Concluindo-se como se conclui, que a norma do artigo 8 nº 1 nas alíneas a) e b) do RGIT não pode entender-se como consagrando uma modalidade de transmissão para os gerentes e administradores, da coima aplicada à pessoa colectiva, facilmente se compreende que tal dispositivo não pode por em causa o princípio da presunção da inocência do arguido.
15ª Ainda que se entenda que, o princípio consagrado no preceito do artigo 32 nº 2 da CRP, tem também aplicação no âmbito dos processos de contra ordenação, como refracção da garantia dos direitos de audiência e defesa do arguido, que é tornada extensiva a essa forma de processo pelo artigo 32 nº 10 da CRP, o certo é que, não estamos perante uma imputação a terceiro de uma infracção contra ordenacional relativamente à qual este não tenha tido oportunidade de se defender, mas perante uma mera responsabilidade civil subsidiária que resulta de um facto ilícito e culposo que não se confunde com o facto típico a que corresponde a aplicação da coima.
16ª Tese que perfilhamos inteiramente, porque é àquela que mais se harmoniza com o sentido e o fim, com que, a Administração Fiscal responsabiliza civil e subsidiariamente, os administradores e gerentes, ainda que somente de facto, que exercem funções de administração em pessoas colectivas, sociedades, pelas multas e coimas aplicadas a infracções por factos praticados no período do exercício do seu cargo.
17ª Verificando-se, como se verifica no caso da presente oposição, que ficou provado que, o oponente, no período a que respeitam as dívidas fiscais e a aplicação das coimas por incumprimento das respectivas obrigações fiscais a que a devedora originária estava obrigada a cumprir e não cumpriu, exercia o cargo de gerente, quer de direito, quer de facto, na devedora originária, a consequência legal, só pode mesmo ser, a de o responsabilizar civilmente, pelo pagamento das referidas coimas.
18ª Por outro lado, tendo o Acórdão nº 129/2009 da 3ª secção do Tribunal Constitucional decidido “não julgar inconstitucionais as normas das alíneas a) e b) do artigo 8 do RGIT..., na parte em que se refere à responsabilidade subsidiária dos administradores e gerentes por coimas aplicadas a pessoas colectivas em processo de contra-ordenação”, não há motivo, para que se não aplique, no caso em apreço a presente norma, responsabilizando o oponente, revertido, também pelas dívidas exequendas respeitantes aos processos executivos por coimas, identificados na referida oposição.
19ª Consequentemente, a sentença recorrida, na parte em que decidiu, julgar procedente a oposição no que toca às coimas, decidiu contra “lege”, violando o artigo 203 da CRP, uma vez que, os tribunais estão sujeitos à lei.
A recorrida contra-alegou nos termos que constam de fls. 222 e segs., que se dão aqui por integralmente reproduzidos para todos os efeitos legais, para concluir do seguinte modo:
1. Entende o ora recorrido que a douta sentença proferida no âmbito dos presentes autos não suscita qualquer censura;
2. De facto, o Meritíssimo Juiz do Tribunal a quo considerou que as coimas não podem ser exigidas ao revertido em termos de responsabilidade subsidiária;
3. Essa exigência - artigo 8º do RGIT - é materialmente inconstitucional, por violação dos princípios da intransmissibilidade das penas e da presunção da inocência, consagrados no artigo 30º, nº 3 e 32º nº 2 da Constituição da República Portuguesa;
4. Sem prescindir, é matéria assente que a sociedade primitiva executada foi declarada insolvente em 11.02.2005, por sentença transitada em julgado;
5. Ora, a insolvência das sociedades equivale à morte física das pessoas singulares, daí decorrendo a extinção do procedimento contra-ordenacional da obrigação do pagamento das coimas e da execução fiscal instaurada com essa finalidade;
6. E, nessa conformidade, não poderão reverter as coimas contra os responsáveis subsidiários;
7. Esta matéria constitui jurisprudência pacífica e reiterada do Supremo Tribunal Administrativo;
8. Pelo que, a douta sentença de que recorre a Fazenda Pública deverá manter-se no universo jurídico, com todas as consequências legais daí inerentes.
O Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido de ser concedido provimento ao presente recurso.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
2 - A sentença recorrida fixou a seguinte matéria de facto:
1- Em 19-04-2000 foi instaurado o processo de execução nº 0531200001004794 no Serviço de Finanças de Mirandela, contra “B..., Ld.”, para cobrança coerciva de IVA do ano de 2000, no valor de €671,17- informação de fls. 48-49.
2- Em 21-02-2001 foram apensados os processos:
-05312000010002631, de dívida de coimas do ano de 1999, no montante de €364,12;
-05312000010001376 de dívida de coimas do ano de 1999, no montante de €169,59;
- 05312000010001465 de dívida ao Centro Social de Segurança Social no montante de € 1667,27;
- 05312000010002089 de dívida ao Centro Social de Segurança Social no montante de €903,43;
Idem.
3- Em 10-01-2007 foram desapensados os processos 0531200001001376, 0531200001001465, 0531200001002089 e 0531200001002631 por prescrição - idem.
4- Na mesma data foram apensados os seguintes processos:
- 053120020100025, 0531200401501011 por dívidas de IVA no montante de € 2.992,80 do ano de 2001, 0531200601000322 por dívidas de coimas no montante de € 3284,5 e 0531200601011308 por dívidas de coimas no montante de €493.
5- Em 29-01-2007, após o exercício do direito de audição, por despacho do Chefe Finanças, a execução foi revertida contra o aqui oponente na qualidade de sócio gerente.
Idem.
6- O oponente foi citado em 08-11-2007 - idem.
7- A petição inicial deu entrada no Serviço de Finanças de Mirandela em 07-12-2007 - fls. 4.
8- Por sentença de 11-02-2005, transitada em julgado, foi declarada a insolvência da sociedade executada - doc. 4 junto com a petição.
9- Faziam parte dos órgãos sociais da sociedade executada o ora oponente e a sua mulher, C..., sendo ambos sócios gerentes - doc. 6 junto com a petição.
10- A C... faleceu em 13-01-2002 - doc. 3 junto com a petição.
11- O oponente, entre 02 de Maio de 2001 e 30 de Outubro de 2002 trabalhou para a sociedade “A. D..., Ldª”, que posteriormente se transformou na sociedade “E..., Ldª” - docs. 7 e 8 junto com a petição.
12- O oponente apenas recebeu remuneração da primitiva executada no mês de Março de 2000, no valor de € 349,16, a título de remuneração de carácter permanente - doc. 9 junto com a petição.
13- O oponente assinou, em 26-05-1995 a declaração de início de actividade da primitiva executada - doc. 7 junto com a contestação.
14- O oponente em 29-06-2001 procedeu à declaração de alteração para efeitos de IVA na primitiva executada - doc. 8 junto com a contestação.
15- O oponente, em 31-05-2000 apresentou a declaração de rendimentos referente ao exercício de 1998, Mod. 22-IRC - doc. 9 junto com a contestação.
16- Na mesma data apresentou a declaração anual do IVA referente ao mesmo ano - doc. 10 junto com a contestação.
17- O oponente outorgou e assinou o contrato de cedência de exploração da primitiva executada, em 1 de Junho de 1995, na qualidade de sócio-gerente - doc. 11 junto com a contestação.
18- O Administrador da Insolvência da primitiva executada refere em vários momentos do processo da insolvência “um documento elaborado nos termos a que se refere a alínea e) do nº 1 do art. 24º. do CIRE foi oportunamente subscrito e remetido pelo gerente da devedora...” “... da análise do documento é possível concluir que a sociedade insolvente... presumivelmente desenvolveu nos últimos três anos de exercício... devem considerar-se anteriores a Abril de 2001...” “...a impossibilidade de manutenção da empresa apenas com o trabalho de um gerente, situação que perdurou até Abril de 2001”. “Quanto às causa da insolvência...factos descritos pelo sócio da devedora”; “o gerente da sociedade insolvente informou”; “pelo gerente da sociedade insolvente Sr°. A..., um ...“ - doc. 11 junto com a contestação, páginas 3, 4, 5 e 7.
19- No documento 11 junto com a contestação, a página 11, subscrito pelo oponente, consta: “mesmo assim, e na tentativa de recuperar a empresa, o sócio gerente que expõe, manteve-se a laborar na mesma ... tentando substitui os quatro funcionários que se tinham despedido.”.
20- Os funcionários que se despediram da primitiva executada dirigiram a sua carta de despedimento, em 19 de Janeiro de 2000 ao “Ex.mo Senhor Gerente da firma B..., Ldª” - doc. 11 junto com a contestação, página 12 a 15.
21- Em requerimento dirigido ao Juiz de Direito do 1° juízo do Tribunal Judicial da Comarca de Mirandela subscrito pelo oponente consta: “em finais de 1999 sofreu um esgotamento nervoso provado pela situação difícil da empresa” e que “em finais de Dezembro de 1999, se deslocou temporalmente para o Porto para se restabelecer” que “os funcionários da empresa fizeram constar que o gerente se teria ausentado para parte incerta”, que “interrompeu o tratamento e em 6 de Fevereiro de 2000 se deslocou a Mirandela, com o fim dos funcionários entregarem as chaves das instalações e transmitirem possíveis informações de alguns assuntos pendentes”, que “tentou manter a empresa algum tempo a laborar” - doc. 11 junto com a contestação, página 19.
3 – A questão que constitui objecto do presente recurso consiste em saber se os gerentes de uma sociedade comercial podem ser responsabilizados subsidiariamente por dívidas de coimas aplicadas por contra-ordenações tributárias, para além de custas e selos dos processos de contra-ordenações.
Tem sido praticamente pacífica a jurisprudência desta Secção do STA no sentido de ser materialmente inconstitucional o artº 8º do RGIT, na parte em que prevê a responsabilidade subsidiária dos gerentes por coimas aplicadas a sociedade comerciais, por ofensa do disposto nos artºs 30º, nº 3 (princípio da intransmissibilidade das penas) e 32º, nº 2 (presunção de inocência do arguido) da CRP.
A este propósito, escreveu-se no recente Acórdão desta secção do STA de 14/4/10, in rec. nº 64/10, que o agora Relator subscreveu, que “No art. 8.º do RGIT definiu-se a responsabilidade subsidiária dos gerentes por coimas, nos seguintes termos, no que aqui interessa:
Artigo 8.º
Responsabilidade civil pelas multas e coimas
1 - Os administradores, gerentes e outras pessoas que exerçam, ainda que somente de facto, funções de administração em pessoas colectivas, sociedades ainda que irregularmente constituídas, e outras entidades fiscalmente equiparadas são subsidiariamente responsáveis:
a) Pelas multas ou coimas aplicadas a infracções por factos praticados no período do exercício do seu cargo ou por factos anteriores quando tiver sido por culpa sua que o património da sociedade ou pessoa colectiva se tornou insuficiente para o seu pagamento;
b) Pelas multas ou coimas devidas por factos anteriores quando a decisão definitiva que as aplicar for notificada durante o período do exercício do seu cargo e lhes seja imputável a falta de pagamento.
Como se vê, neste regime, no que concerne às coimas, a responsabilidade subsidiária, embora dita de natureza civil, é directamente uma responsabilidade por dívidas de coimas e não por dívidas próprias do responsável subsidiário, autónomas em relação à responsabilidade do devedor originário por coimas.
Na verdade, a tese defendida pela Fazenda Pública, na esteira do Tribunal Constitucional, de se estar perante uma responsabilidade autónoma do responsável subsidiário, assente num «facto autónomo, inteiramente diverso» do que constitui infracção, e não uma responsabilidade pela coima, para além de não ter um suporte minimamente consistente no texto legal, que se refere expressamente e por duas vezes a responsabilidade pelas coimas e não por qualquer dívida autónoma, conduziria às consequências inaceitáveis, em termos de razoabilidade, coerência e justiça, de a dívida do devedor subsidiário poder subsistir independentemente da dívida do devedor originário (por exemplo, manter-se nos casos em que dívida originária se extingue por prescrição da sanção ou amnistia, ou a anulação da decisão condenatória em processo de revisão).
Por outro lado, se se tratasse de uma responsabilidade subsidiária própria do responsável subsidiário, assente num facto próprio por que apenas ele é responsável, não se compreenderia que existisse direito do regresso do responsável subsidiário em relação ao devedor originário, como está expressamente previsto no n.º 9 do art. 11.º do Código Penal, para a responsabilidade subsidiária aí prevista, que é de aplicação subsidiária relativamente aos processos de contra-ordenações, por força do disposto nos arts 3.º, alínea b) do RGIT e 41.º, n.º 1, do Regime Geral das Contra-ordenações.
Na verdade, só há direito de regresso nos casos em que alguém paga uma dívida de outrem, pelo que se o devedor subsidiário o tem é, necessariamente, por que pagou uma dívida do devedor originário e não uma dívida própria.
Para além disso, se o responsável subsidiário que pagou não tivesse pago a coima, mas uma dívida própria completamente distinta, a dívida de coima subsistiria, pelo que o devedor originário continuaria a poder ser obrigado a pagá-la, mesmo depois de o responsável subsidiário ter pago a tal sua dívida própria, proporcionando à Fazenda Pública a possibilidade de cobrar duas vezes a mesma quantia, o que não tem justificação aceitável.
Assim, a única forma de encontrar congruência no referido regime de responsabilidade subsidiária é, de facto, entender que o responsável subsidiário paga a dívida de coima, que o pagamento extingue a dívida respectiva (impossibilitando a posterior exigência da mesma ao devedor originário), que a dívida do responsável subsidiário se extingue se se extinguir a sanção, que o responsável subsidiário que pagar tem direito de regresso.
Mas, o problema é que, sendo assim, está-se perante uma transmissão da dívida de coima para o responsável subsidiário que é materialmente inconstitucional, por ofensa do princípio da intransmissibilidade das penas, enunciado no art. 30.º, n.º 3, da CRP que, como corolário do princípio da necessidade (não se satisfazem os fins das sanções pecuniárias, de prevenção geral e especial, com a aplicação de sanção a pessoa diferente da que praticou a infracção), não pode deixar de ser aplicável à generalidade das sanções pecuniárias.
Só deixaria de ser assim, se se pudesse entender que a obtenção de receitas é um fim das sanções pecuniárias, mas isso, para além de não parecer aceitável (no limite, a Administração, para optimizar a prossecução desse fim, deveria incentivar o mais possível as violações da lei, para promover a obtenção de mais receitas...) é desmentido pelo regime da conversão da pena de multa em prisão que se prevê no art. 49.º do Código Penal, por onde se vê que o condenado, mesmo que tenha possibilidade de pagar a multa, pode optar pela prisão, extinguindo com o cumprimento desta, a dívida pecuniária: satisfeitos os fins de prevenção geral e especial com o cumprimento da pena de prisão, extingue-se a dívida pecuniária, o que é uma prova de que a obtenção de receitas não é também um fim das penas, pois esse hipotético fim não ficaria satisfeito com o cumprimento da pena de prisão.
Assim, embora a epígrafe do art. 8.º do RGIT tente camuflar esta transmissão de responsabilidade por infracções sobre a epígrafe de «Responsabilidade civil pelas multas e coimas», o certo é que «é uma realidade insofismável que quem faz o pagamento de uma sanção pecuniária é quem a está a cumprir e que, efectuado o cumprimento por terceiro ele deixa de ser exigível ao autor da infracção, pelo que esta responsabilização se reconduz a uma transmissão do dever de cumprimento da sanção do responsável pela infracção para outras pessoas» (Acórdão deste Supremo Tribunal Administrativo de 4-2-2009, processo n. 829/08).
…Mas, também por outras vias é de afastar a responsabilidade subsidiária das oponentes.
Neste tipo de processos, que são formalmente de oposição à execução fiscal, está em causa uma responsabilidade prevista no RGIT, pelo que, a entender-se que é a oposição à execução o único meio que o revertido pode utilizar para a defesa dos seus interesses (Não podendo, designadamente, por falta de legitimidade, à face do disposto no art. 59.º, n.º 2, do Regime Geral das Contra-ordenações, impugnar no processo contra-ordenacional a decisão administrativa de aplicação de coima, como se entendeu no acórdão deste Supremo Tribunal de 6-3-2008, processo n.º 1056/07.) têm de ser asseguradas neste meio processual condições de defesa idênticas às que são proporcionadas ao arguido no processo contra-ordenacional, designadamente a possibilidade de conhecer oficiosamente de todas as questões relevantes, em que se inclui a de «alterar a decisão do tribunal recorrido sem qualquer vinculação aos termos e ao sentido da decisão recorrida», que é própria dos recursos jurisdicionais em processos de contra-ordenações.
Como já decidiu este Supremo Tribunal Administrativo (Acórdão deste Supremo Tribunal Administrativo de 1-7-2009. processo n.º 31/08), se se entendesse, como defende a Fazenda Pública, com a concordância do Ministério Público, que a responsabilidade dos devedores subsidiários pelas dívidas por coimas da sociedade originária devedora é uma responsabilidade de natureza civil extracontratual e não uma responsabilidade pelo pagamento de coimas, a sua cobrança através de reversão da execução fiscal efectuada em processo de execução fiscal seria de afastar, por a cobrança de dívidas de responsabilidade civil extracontratual emergente de coimas não estar prevista.
Na verdade, as dívidas que podem ser cobradas em processo de execução fiscal são apenas as indicadas no art. 148.º do CPPT e em legislação especial, sendo apenas em relação a essas que pode ser decidida reversão, como se conclui do art. 153º. do mesmo Código.
As dívidas de coimas, podem ser cobradas em processo de execução fiscal, pois estão previstas no art. 148.º, n.º 1, alínea b), do CPPT, não havendo obstáculo processual a que pudesse haver reversão. Mas, as de responsabilidade civil extracontratual não podem ser cobradas através de processo de execução fiscal e, consequentemente, não pode haver reversão.
…Para além disso, é manifestamente insuficiente a fundamentação dos despachos de reversão em que não se faz qualquer referência a culpa nem a qualquer facto imputável às oponentes.
Na verdade, as responsabilidade subsidiária por coimas originadas por factos ocorridos no período de exercício do cargo de gerente, como é o caso dos autos, apenas existe «quando tiver sido por culpa sua que o património da sociedade ou pessoa colectiva se tornou insuficiente para o seu pagamento» [a situação prevista na alínea b) reporta-se a coimas devidas por factos anteriores ao exercício do cargo].
Ora, no caso dos autos, não é referido nem demonstrado nos despachos de reversão que tenha sido por culpa do Oponente que o património da sociedade se tornou insuficiente para pagamento das coimas, pelo que não se sabe sequer por que é que se entendeu decidir a reversão.
Não havendo uma presunção legal de culpa, cabe à Fazenda Pública o ónus da prova dos pressupostos da responsabilidade subsidiária que invoca (art. 342.º, n.º 1, do CC), pelo que a dúvida sobre tal ponto sempre teria de ser valorada contra aquela.
Por isso, também por não estarem demonstrados os pressupostos da responsabilidade subsidiária, é de afastar a responsabilização das oponentes pelas coimas em causa”.
4 - Nestes termos, acorda-se em negar provimento ao recurso jurisdicional e em confirmar a sentença recorrida, com esta fundamentação.
Custas pela Fazenda Pública, fixando-se a procuradoria em 1/6.
Lisboa, 8 de Setembro de 2010. – Pimenta do Vale (relator) – Jorge Lino – Casimiro Gonçalves.