Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:01899/18.0BELSB
Data do Acordão:09/11/2019
Tribunal:1 SECÇÃO
Relator:MARIA BENEDITA URBANO
Descritores:AUTORIZAÇÃO DE RESIDÊNCIA
APLICAÇÃO DA LEI NO TEMPO
Sumário:
Nº Convencional:JSTA000P24871
Nº do Documento:SA12019091101899/18
Data de Entrada:07/03/2019
Recorrente:A............
Recorrido 1:DIRECTOR DO SERVIÇO DE ESTRANGEIROS E FRONTEIRAS DA DRLVTA
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: Acordam em conferência na Secção de Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo:

I – Relatório

A…………, devidamente identificada nos autos, recorre para este Supremo Tribunal do Acórdão do TCAS, de 07.03.19, em que se acordou “em julgar procedente o recurso, revogar a sentença recorrida e julgar a intimação improcedente”.

Na base deste recurso está uma acção de intimação para protecção de direitos, liberdades intentada, ao abrigo do artigo 109.º do CPTA, no TAC de Lisboa, em que se peticiona, a final, a intimação do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) “a emitir o título de residência do requerente com carácter urgente e sem mais delongas”. “Caso o douto tribunal não entenda que o pedido do autor foi objecto de deferimento no aludido dia 05/09/2017, então, declarar, por força do decurso do prazo legal para decisão, o deferimento tácito do mesmo”. “Mais se requer que ao SEF seja aplicada a sanção compulsória, prevista no artigo 169.º do CPA, a fixar pelo douto tribunal, por cada dia de incumprimento da sentença”.

2. Inconformada com a decisão do TCAS, a A. interpôs o presente recurso jurisdicional de revista, tendo, para o efeito apresentado alegações, que concluíram do seguinte modo (cfr. fls. …):

“64º) O presente recurso e sua admissão são absolutamente necessários com vista a serem preservados os valores previstos na Constituição da República Portuguesa e a dignidade da pessoa humana.

65º) Estão em causa em exclusivo valores fundamentais.

66º) O tribunal de primeira instância decidiu muito bem.

67º) O tribunal a quo concluiu e bem que o R. deve ser condenado a emitir a autorização de residência.

68º) O tribunal a quo concluiu e bem que face aos factos e à lei que assiste plena razão ao A.

69º) Agiu bem o Exmo. Sr. Procurador-Geral Adjunto ao mencionar que a recorrente não aponta à sentença recorrida qualquer vício que a afecte.

70º) O R. não cumpre com as formalidades legais previstas nos artigos 637º e 639º nº 1 do CPC.

71º) A inadequação do meio processual não é um vício que possa ser conhecido em sede de recurso.

72º) O recurso deve ser considerado improcedente por falta de objecto e impossibilidade de alegação da inadequação do meio processual em fase de recurso.

73º) O normativo aplicável ao tempo da conclusão do procedimento em 05 de Setembro de 2017 eram as Leis 59/17 de 31/7 e Lei 102/17 de 28/8.

74º) Através da Lei 59/17, de 31/7, o procedimento do art.º 88.º/2 deixou de constituir um procedimento oficioso, discricionário e excepcional.

75º) Com a Lei 59/17 e Lei 102/17 o regime do art.º 88º/2 passa a ser um pleno exercício do direito do cidadão estrangeiro sujeito a regras e prazos legais específicos e apertados.

76º) Desde que o cidadão estrangeiro preencha os novos requisitos cumulativos passa a ter direito à respetiva residência legal.

77º) Não tem razão o acórdão ao vir dizer que em 05 de Setembro de 2017 ainda estava em causa um procedimento excepcional.

78º) Na altura e quando a Autora concluiu o procedimento e pagou as taxas legais já NÃO existia um procedimento excepcional.

79º) A lei 23/2007 de 4/7 e a lei 29/12 já tinham sido revogadas.

80º) A letra e o espírito atualmente são outros.

81º) O SEF na atualidade já não pode e a coberto do chamado procedimento excecional e como fazia antigamente sujeitar os cidadãos estrangeiros à espera a um, dois e mais anos para uma decisão.

82º) A realidade atualmente é outra. Atualmente o cidadão estrangeiro goza de um verdadeiro direito.

83º) A fundamentação do acórdão do TCA SUL assenta em legislação não vigente ao tempo e revogada.

84º) Deve ser declarado improcedente o recurso e mantendo-se como na primeira instância.

85º) O presente meio processual é sem margem para qualquer dúvida o mais idóneo.

86º) Estão reunidas as condições legais para o uso do presente instrumento legal.

87º) A medida cautelar é precária e as ações principais levam anos a decidir.

88º) Estamos perante a violação de valores constitucionais.

89º) Princípios da boa-fé, Justiça, da boa administração, da decisão, previstos nos artigos 5º, 8º, 10º, 13º todos do CPA e plasmados no artº 266º da Constituição da República Portuguesa.

90º) Está em risco a identidade da autora, a sua movimentação em território nacional, cf. artigos 26º e 27º todos da Constituição da República Portuguesa.

91º) Está em causa o valor família, cf. art.º 36º, maternidade cf. 68º da Constituição da República Portuguesa.

92º) Está em causa a segurança no emprego, cf. art.º 53º da Constituição da República Portuguesa.

93º) Estão em causa a dignidade da pessoa humana, cf. art.º 1º, está em causa o princípio de igualdade e de equiparação aos cidadãos nacionais, cf. artigos 13º e artigo 15º todos da Constituição da República Portuguesa.

94º) A Autora tem o seu presente e futuro complemente comprometidos com este acórdão do TCA SUL.

95º) Pode ser-lhe cancelada a sua residência legal a qualquer momento e caso isso aconteça será a ruína pessoal e familiar. O colapso.

96º) Violaram-se os artigos 1º, 2º, 12º, 13º, 15º, 26º, 27º, 36º, 67º, 68.º da Constituição da República Portuguesa e ainda o artigo 109º CPTA e ainda o art.º 88º/2 das leis 59/17 e lei 102/17 e ainda artes 5º, 8º, 10º, 13º todos do CPA e ainda art.º 637° e 639º do CPC”.

3. O recorrido SEF não produziu contra-alegações.

4. Por acórdão deste Supremo Tribunal [na sua formação de apreciação preliminar prevista no n.º 1 do artigo 150.º do CPTA], de 07.06.19 (fls. …), veio a ser admitida a revista, na parte que agora mais interessa, nos seguintes termos:

A autora e aqui recorrente pediu «in judicio» a intimação do SEF (art. 109º do CPTA) a emitir a seu favor uma autorização de residência em Portugal.

O TAC julgou a intimação procedente a condenou o SEF a passar esse título, no prazo de dez dias.

Todavia, o TCA considerou que essa autorização de residência, porque enquadrada na solução excepcional - e, portanto, discricionária - prevista no art. 88º n.º 2, da Lei n.º 23/2007, de 4/7, não podia ser objecto de um pedido de intimação. Por isso, o acórdão recorrido revogou a sentença do TAC e absolveu o SEF do pedido.

Na sua revista, a recorrente, para além de dizer que o TCA decidiu fora do âmbito da apelação, assinala que o aresto aplicou uma versão revogada daquele art. 88º, n.º 2.

Ora, este segundo ponto é - ao invés do primeiro - imediatamente persuasivo. Na verdade, a Lei n.º 59/2017, de 31/7 – que é anterior à formulação do pedido da autora, junto do SEF, de que se lhe passasse a autorização de residência – alterou a redacção do art. 88º, n.º 2, da Lei n.º 23/2007, de 4/7, suprimindo a excepcionalidade que constava do texto inicial da norma.

Portanto, tudo indica que o acórdão «sub specie» se fundamentou numa «lex praeterita». E este simples pormenor justifica o recebimento da revista, para se melhorar a aplicação do direito”.

5. O Digno Magistrado do Ministério Público, notificado nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 146.º do CPTA, emitiu parecer no sentido do parcial provimento do recurso, “com revogação do douto Acórdão recorrido e a baixa dos autos ao TCAS para eventual ampliação da matéria de facto e reponderação da prova, face ao regime que se mostra aplicável, com a prolação de nova decisão que a tenha em conta”.

6. Sem vistos, nos termos do artigo 36.º, n.º 1, al. e), e n.º 2, do CPTA, vêm os autos à conferência para decidir.

II – Fundamentação

1. De facto:

Remete-se para a matéria de facto dada como provada no acórdão recorrido, a qual aqui se dá por integralmente reproduzida, nos termos do artigo 663.º, n.º 6, do CPC.

2. De direito:

2.1. Cumpre apreciar as questões suscitadas pela ora recorrente – delimitado que está o objecto do respectivo recurso pelas conclusões das correspondentes alegações –, fundamentalmente, a questão da inadequação do meio processual utilizado para efeitos de obrigar a emissão da autorização de residência.

Vejamos.

Conforme sublinhado no acórdão prolatado por este Supremo Tribunal [na sua formação de apreciação preliminar prevista no n.º 1 do artigo 150.º do CPTA], de 07.06.19, é fundamental, com vista à melhor resolução do litígio que opõe a ora recorrente ao SEF, determinar qual a lei que lhe é aplicável, e, portanto, qual a redacção do n.º 2 do artigo 88.º a que se deve atender. Entendeu o TCAS que deve aplicar-se a Lei n.º 29/2012, de 09.08, que introduziu a primeira alteração à Lei n.º 23/2007, de 04.07, a qual aprovou o regime jurídico de entrada, permanência, saída e afastamento de estrangeiros do território nacional (“[redação conferida pela Lei n.º 29/2012, de 9 de agosto, em vigor à data de apresentação do requerimento da recorrida]”).

Atentemos no teor do artigo 2.º (Vigência) da Lei n.º 74/98, de 11.11 (Lei Formulária, com a última redacção dada pela Lei n.º 43/2014, de 11.07):


Artigo 2.º

“1 - Os atos legislativos e os outros atos de conteúdo genérico entram em vigor no dia neles fixado, não podendo, em caso algum, o início da vigência verificar-se no próprio dia da publicação.
2 - Na falta de fixação do dia, os diplomas referidos no número anterior entram em vigor, em todo o território nacional e no estrangeiro, no quinto dia após a publicação.
3 - (Revogado.)
4 - O prazo referido no n.º 2 conta-se a partir do dia imediato ao da sua disponibilização no sítio da Internet gerido pela Imprensa Nacional-Casa da Moeda, S. A.”.

A Lei n.º 59/17, de 31.07, que procedeu à quarta alteração da Lei n.º 23/2017, foi publicada no DRE em 31 de Julho de 2017. Atento o disposto no mencionado preceito da Lei Formulária, e porque na Lei n.º 59/17 não vem mencionada a respectiva data da sua entrada em vigor, há que entender que essa entrada em vigor se deu em 5 de Agosto de 2017. Ora, o requerimento da A., ora recorrente, deu entrada no SEF em 05.09.17, data em que também foram pagos os emolumentos devidos e concedida a prorrogação da autorização de residência. Assim sendo, andou mal o acórdão recorrido quando sustentou que se aplicava ao caso dos autos a redacção dada pela Lei n.º 29/2012, de 09.08, o que é particularmente relevante in casu, haja em vista que a redacção do n.º 2 do artigo 88.º foi substancialmente alterada, comprometendo a solução dada no aresto em questão. Atentemos no teor dessa alteração:

2 - Mediante manifestação de interesse apresentada através do sítio do SEF na Internet ou diretamente numa das suas delegações regionais, é dispensado o requisito previsto na alínea a) do n.º 1 do artigo 77.º, desde que o cidadão estrangeiro, além das demais condições gerais previstas naquela disposição, preencha as seguintes condições:
a) Possua um contrato de trabalho ou promessa de contrato de trabalho ou tenha uma relação laboral comprovada por sindicato, por representante de comunidades migrantes com assento no Conselho para as Migrações ou pela Autoridade para as Condições do Trabalho
b) Tenha entrado legalmente em território nacional
c) Esteja inscrito na segurança social, salvo os casos em que o documento apresentado nos termos da alínea a) seja uma promessa de contrato de trabalho”.

Sem necessidade de argumentação complementar, cabe apenas mencionar que se este STA se pronunciasse sobre questões que o TCAS não apreciou e decidiu, isso equivaleria a desrespeitar o direito ao do duplo grau de jurisdição, na medida em que isso equivaleria à “supressão” de uma instância de recurso.

Em face de todo o exposto, e considerando o disposto nos artigos 679.º e 665.º do CPC, aplicáveis ex vi dos artigos 1.º e 140.º do CPTA, devem os autos baixar ao TCAS para apreciação e decisão da presente intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias.

Cabe sublinhar que os trabalhadores oriundos de países terceiros em situação regular e, em menor escala, os que se encontram em situação irregular, beneficiam de uma protecção multinível no que respeita aos direitos fundamentais. Assim, além da legislação nacional, é-lhes aplicada, designadamente e nos termos nelas previstos, a Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia e a Convenção Europeia dos Direitos Humanos.

III – Decisão


Nos termos e com os fundamentos expostos, acordam os Juízes da Secção de Contencioso Administrativo em conceder provimento ao recurso, revogando o acórdão recorrido e ordenando a baixa dos autos ao TCAS para os efeitos supra mencionados.

Custas pelo recorrido.

Lisboa, 11 de Setembro de 2019. – Maria Benedita Malaquias Pires Urbano (relatora) – Jorge Artur Madeira dos Santos - Teresa Maria Sena Ferreira de Sousa (em substituição).