Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0179/12
Data do Acordão:03/07/2012
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:FERNANDA MAÇÃS
Descritores:IRS
DETERMINAÇÃO DA MATÉRIA COLECTÁVEL
NORMA DE INCIDÊNCIA
PRESUNÇÃO LEGAL
MÉTODOS INDIRECTOS
AVALIAÇÃO
MANIFESTAÇÕES DE FORTUNA
INTERPRETAÇÃO CONFORME A CONSTITUIÇÃO
SINAIS EXTERIORES DE RIQUEZA
Sumário:I - O art. 89-A da LGT não pode ser interpretado de forma isolada devendo chamar-se à colação, desde logo, outras normas legais que estabelecem regras informadoras de todo o sistema fiscal, designadamente o art. 73º da LGT, segundo o qual «as presunções consagradas nas normas de incidência tributária admitem sempre prova em contrário» e, bem assim, os princípios constitucionais da igualdade, da capacidade contributiva e da tributação dos rendimentos reais;
II - Evidenciada a aquisição pelo recorrente de um imóvel com valor de aquisição superior a € 250.000,00, quando declara rendimentos líquidos que mostram uma desproporção superior a 50%, para menos, em relação ao rendimento padrão (que foi fixado pelo legislador em 20% do valor da aquisição, em conformidade com a tabela constante do nº 4 do art. 89º-A da LGT), consideram-se verificados os pressupostos legais para a avaliação indirecta do seu rendimento tributável;
III - Para prova da ilegitimidade deste acto de avaliação indirecta só deve dar-se relevância à justificação total do montante que permitiu a “manifestação de fortuna”, pelo que a justificação meramente parcial não afasta a aplicabilidade da determinação indirecta dos rendimentos que permitiram tal manifestação de fortuna;
IV - Já assim não será no que respeita à fixação do rendimento sujeito a tributação como incremento patrimonial” em sede de IRS, onde a justificação parcial há-de relevar para a fixação presuntiva do montante do “acréscimo patrimonial não justificado” sujeito a imposto, por força do disposto no art. 73º da LGT e, bem assim, dos princípios constitucionais da igualdade, da capacidade contributiva e da tributação dos rendimentos reais;
V - Embora a justificação parcial da manifestação de fortuna não afaste a aplicação do método de avaliação indirecta previsto no artigo 89º-A da LGT, não pode deixar de ser considerada na quantificação do rendimento tributável que vai ser determinado por esse método, entendendo-se que a quantificação do rendimento tributável do recorrente deve ser igual a 20% do valor de aquisição deduzindo-se a este valor de aquisição o montante do empréstimo bancário que o recorrente demonstrou ter efectuado para a aquisição do imóvel, uma vez que esse montante não está nem pode estar sujeito a IRS, não podendo, consequentemente, ser presumido ou considerado como rendimento sujeito a tributação, sob pena de estarmos perante uma tributação em que estaria de todo ausente o critério da capacidade contributiva;
VI - No caso em apreço não tendo a administração tributária efectuado a dedução relativa ao empréstimo bancário na avaliação do rendimento tributável do recorrente a que procedeu, há manifesto excesso na quantificação, o que fere de ilegalidade o acto que fixou ao recorrente o rendimento tributável de € 99.000,00 com recurso a avaliação indirecta.
Nº Convencional:JSTA00067457
Nº do Documento:SA2201203070179
Data de Entrada:02/16/2012
Recorrente:DIRGER DOS IMPOSTOS
Recorrido 1:A...
Votação:UNANIMIDADE
Meio Processual:REC JURISDICIONAL
Objecto:SENT TAF PORTO PER SALTUM
Decisão:NEGA PROVIMENTO
Área Temática 1:DIR FISC - IRS
Área Temática 2:DIR CONST - SISTEM FINANC FISC
Legislação Nacional:LGT98 ART73 ART85 N1 ART87 N1 D ART89-A
CIRS88 ART9 N1 D
CPPTRIB99 ART64
CCIV66 ART350 N2
CONST76 ART2 ART13
CICAP62 ART14 PAR2
Jurisprudência Nacional:AC STAPLENO PROC761/08 DE 2009/01/28; AC STA PROC403/09 DE 2009/05/27; AC STA PROC234/08 DE 2008/04/16; AC STA PROC441/11 DE 2012/02/29; AC TC PROC63/96 DE 1997/04/29; AC TC PROC374/96 DE 1997/05/14; AC TC PROC696/96 DE 1997/07/02
Referência a Doutrina:XAVIER DE BASTOS IRS INCIDÊNCIA REAL E DETERMINAÇÃO DOS RENDIMENTOS LIQUIDOS PAG368-369
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Aditamento:
Texto Integral: Acordam na Secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo:
I – Relatório
1. A……, com a identificação constante dos autos, interpôs recurso, no TAF do Porto, da decisão de avaliação da matéria colectável por métodos indirectos, em sede de IRS, relativo ao ano de 2008, proferida pelo Director de Finanças do Porto, em 26/04/2011, que foi julgado procedente por sentença proferida pela Mmª. Juíza do Tribunal Administrativo e Fiscal e anulando o despacho recorrido.
2. Não se conformando com tal decisão, veio o Director de Finanças do Porto interpor recurso para a Secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo, nos termos conjugados do disposto na alínea b) do artigo 26º do ETAF e dos artigos 280º a 283º do CPPT, concluindo das suas alegações o seguinte:
“I - Pelo elenco de fundamentos acima descritos, infere-se que a douta sentença, julgou procedente o recurso à margem referenciado com as consequências aí sufragadas, e consequentemente, determinou a anulação da decisão de avaliação da matéria colectável pelo método indirecto, escorando a sua decisão na jurisprudência vertida no Acórdão do STA, proferido no âmbito do Proc. 0734/09, de 19.05.2010.
II - Todavia, somos da opinião que o douto Tribunal a quo, esteou a sua decisão na errónea interpretação do artº 89º-A e art.º 8º ambos da LGT, e, concomitantemente, em clara e manifesta violação dos princípios constitucionais da separação de poderes, da legalidade fiscal, da administração da justiça e da sujeição à lei - cfr. artº 2., 103º n.º 2, 202º e 203º todos da CRP.
III - Com efeito, e de harmonia com o citado artº 89º-A da LGT, sempre que o contribuinte “declare rendimentos que mostrem uma desproporção superior a 50%, para menos, em relação ao rendimento padrão” resultante da tabela prevista no nº 4 do art. 89º-A, e não efectue a prova prevista no nº 3 daquele normativo legal, encontram-se preenchidos os requisitos legais pura se proceder à avaliação indirecta da matéria colectável em sede de IRS. (Veja-se a este propósito o entendimento vertido no Parecer n.º 75/2005 do Centro de Estudos Fiscais, proferido por João Menezes Leitão).
IV — Ora, defende quer o douto tribunal a quo, quer o Acórdão do STA de 19.05.2010 proferido no Proc. 0734/09, que na quantificação do rendimento tributável, ao valor padrão - 20% do valor de aquisição do imóvel -, deverá abater-se o valor justificado, ou seja, propugnam as referidas decisões judiciais que, quando o sujeito passivo não faça - como se lhe impõe -, a prova de que correspondem à realidade os rendimentos declarados, o valor padrão de rendimento tributável - 20% do valor de manifestações de fortuna evidenciadas - seja diminuído até ao montante da prova justificativa que ele faça, dessas manifestações de fortuna.
V - A sindicar-se tal entendimento, implicaria prima facie, estar-se por hipótese a permitir, que em caso de o sujeito passivo fazer prova justificativa de 20% do valor das manifestações de fortuna evidenciadas, então não haveria lugar a rendimento tributável, entendimento esse, que se encontra manifestamente fora da voluntas legis consagrada no artº 89º-A da LGT (sublinhado nosso).
VI - Concomitantemente, o entendimento perfilhado improcede desde logo, face à redacção do art.º 89º-A da LGT, porquanto, não encontra assento ou guarida nem no espírito da lei nem na letra da norma, (como se exige no disposto no artº 9º do Código Civil) e por esse facto, tal interpretação não goza de validade jurídica.
VII - Não encontra assento no espírito da lei, atendendo a que as manifestações de fortuna constituem um instrumento jurídico de luta contra a fraude e evasão fiscais, que se materializa num método substitutivo, em que não sendo possível apurar os rendimentos efectivamente auferidos pelo sujeito passivo este é tributado de forma indirecta, através de um rendimento padrão, que resulta da valoração dos bens adquiridos, designados como manifestações de fortuna.
VIII - Não encontra guarida na letra da lei, ou seja, não encontra na letra da lei o mínimo de correspondência verbal, porque na letra da lei – artº. 89º-A da LGT -. não se prevê nem se consagra que se subtraia ao valor de aquisição o valor justificado por quaisquer outras fontes nara efeitos de cálculo do rendimento padrão.
IX — Donde colhemos, que em observância ao elemento literal, em nenhuma situação a lei permite subtrair ao valor de aquisição o valor justificado por outras fontes para calcular o rendimento padrão.
X - Convém referir que, no art.º 89º-A da LGT, o rendimento padrão se apura determinando 20% do valor de aquisição e serve, numa primeira fase para verificar se o rendimento declarado é desproporcionado em pelo menos 50% desse valor, pelo que, a ocorrer tal apuramento, estão verificados os pressupostos legais para recurso à avaliação indirecta da matéria colectável.
XI - Retira-se com manifesta clareza que a lei faz incidir o ónus de comprovar a totalidade da proveniência do capital dispendido, não sendo aceitável a possibilidade de comprovação parcial do valor de aquisição, por quaisquer outras fontes, a fim de ser tomado como referência para o rendimento padrão (veja-se neste seguimento, o entendimento sindicado por Xavier de Basto in Revista Fiscalidade n.° 5 — o Princípio da Tributação do rendimento real e a Lei Geral Tributária).
XII - Refira-se que, nos termos da lei uma realidade é o valor de aquisição das manifestações de fortuna evidenciadas, e outra realidade é o rendimento padrão, que a lei presume e fixa em 20% apenas daquele valor de aquisição.
XIII - Note-se que, para efeitos de combate à evasão fiscal — augúrio do artº 89º-A da LGT — a única solução é a exigência da prova de meios ou rendimento igual, no mínimo ao valor de aquisição das manifestações de fortuna evidenciadas, sendo manifestamente inaceitável que se tenha de provar, não o valor das manifestações de fortuna evidenciadas, mas o rendimento padrão, o qual já é legalmente presumido.
XIV - Deste modo, a lei estaria precisamente a consentir a evasão fiscal que justamente pretende travar por meio do mecanismo legal em foco, porquanto, este rendimento padrão é um rendimento presumido na suposição, conforme ao senso comum (id quod plerumque accidit), da existência de evasão fiscal fortemente indiciada por manifestações de fortuna em franca discrepância com os rendimentos declarados.
XV - Atente-se ainda que, segundo a lei, o valor padrão não pode ser “descontado” ou baixado, pelo contrário: tal «valor padrão» poderá ser aumentado, se a Administração Tributária estiver na posse de elementos que lhe permitam lixar um rendimento superior (este propósito aderimos ao entendimento vertido no voto de vencido do Ilustre Juiz Conselheiro Jorge Lino R Alves de Sousa, no âmbito do citado Acórdão Proc. n.° 0734/09 de 19.05.2005).
XVI — Realce-se ainda, em abono desta posição o entendimento sufragado pela jurisprudência desse Supremo Tribunal Administrativo, mormente o Acórdão do STA do Pleno Contencioso Tributário, no âmbito do Processo n.° 0761/08 datado de 28.01.2009, em que é Relator o Ilustre Juiz Conselheiro Pimenta do Vale, o Acórdão do STA referente ao Proc nº 390/07 datado de 06.06.2007, cujo Relator é o Juiz Conselheiro António Calhau, e ainda entre outros, os seguintes acórdãos: o Acórdão do STA, Processo n.º 0234/08, de 16.04.2008; Acórdão TCAS, Processo 01678/07, de 20.03.2007; Acórdão TCAS, Processo 03083/09, de 21.04.2009; e Acórdão TCAS, Processo 01090/06, de 20.04.2006 (todos disponíveis in www.dgsi.pt).
XVII - Atendendo ao exposto, o entendimento sufragado pelo douto Tribunal a quo e o Acórdão do STA de 19.05.2010 proferido no Proc. 0734/09, é desprovido de qualquer suporte legal, por desconformidade com o elemento literal e com o espírito do art.º 89º-A da LGT, não colhendo, concomitantemente, apoio à luz da doutrina e jurisprudência citada.
XVIII - Ao pugnar pela incorporação dos valores parcialmente justificados no cálculo do rendimento padrão - calculando-o apenas sobre o remanescente não justificado do valor da manifestação de fortuna - o Acórdão do STA, que serviu de referência fundamentadora à sentença recorrida, colide com a letra do nº 4 do artigo 89º-A e, igualmente, com o seu espírito.
XIX - Isso mesmo parece reconhecer o Acórdão datado de 19.05.2010 proferido no Proc. 0734/09 quando anuncia que se apoia no “espírito do sistema, conformado pelos princípios constitucionais e legais pertinentes atendendo à natureza das normas em causa” o que, só por si, constituiria apoio escasso, considerando a natureza das normas em causa que são normas de incidência tributária e/ou normas de determinação substantiva da matéria tributável com repercussão directa na quantificação do imposto devido.
XX - A interpretação jurídica da citada norma do art.º 89º-A da LGT, vertida no entendimento do douto Tribunal a quo e no Acórdão do STA de 19.05.2010, Proc. 0734/09, além de extravasar o sentido literal da norma, porquanto, não encontra nem no espírito nem na letra da lei o mínimo de correspondência verbal, viola os princípios constitucionais da separação dos poderes, da legalidade tributária, da administração da justiça e da obediência à lei a que aludem os art. 2º, 103º nº 2, 202º e 203º todos da Constituição da República Portuguesa (doravante CRP e no art. 8º da LGT.
XXI - O princípio da separação e interdependência dos poderes, enquanto princípio fundamental constitutivo do Estado de Direito democrático, tem subjacente a ideia clássica de que é através da divisão e separação de poderes que se asseguram as dimensões democrática e de juridicidade estatal e assenta na premissa de que os titulares constitucionais do poder legislativo têm o monopólio em matéria de aprovação de actos legislativos, pelo que, numa sociedade democrática. Aberta, plural e fraccionada, a invocação da injustiça da lei não pode abrir a porta ao despotismo judicial.
XXII - No que ao caso contende, as considerações tecidas pelo douto Tribunal a quo, ancorando-se no Acórdão do STA de 19.05.2010 proferido no Proc. 0734/09, decidindo como decidiu não está, assim, a atender ao elemento literal do citado artº 89º-A da LGT nem à mens legislatoris que lhe está subjacente, mas sim, a arquitectar e a trilhar um entendimento desconforme ao espírito e à letra do citado normativo, por via jurisprudencial.
XXIII - Ao sustentar a justificação parcial, está-se a perpetrar que o valor padrão, possa ser descontado ou baixado, o que conflitua manifestamente com o teor da norma do artº 89º-A da LGT (Na mesma esteira veja-se o entendimento plasmado por João Sérgio Ribeiro in Tributação Presuntiva do Rendimento, Um contributo para Reequacionar os Métodos Indirectos de determinação da Matéria Tributável, Almedina, pag.304)
XXIV - Ademais, tal interpretação, manifestamente desconforme com o principio da separação de poderes como desígnio do Estado de Direito Democrático (cfr. artº. 22 da Constituição), viola, ainda, o princípio da segurança e da confiança jurídica como emanações do princípio do Estado de Direito Democrático e do princípio da legalidade tributária (artº 103º nº.2 da CRP), bem como a obrigação constitucional de os Tribunais se manterem vinculados à lei (vd. art. 203º da CRP).
XXV - Primeiramente, o princípio da legalidade tributária protege, especialmente, certas categorias de normas, sinalizando as balizas da sua interpretação em termos significativamente mais apertados do que as que se aplicam às demais normas, excluindo, designadamente, o recurso à analogia, ou seja, neste tipo de normas tributárias a letra adquire um peso particular porque recorta tipos, relativamente aos quais não é admissível interpretação fora dos limites estritos da interpretação extensiva que seja visivelmente acomodável na letra da lei.
XXVI - Ora, não é este o caso da interpretação sob recurso que desafia a letra da lei visando redesenhar a base de cálculo do acto de avaliação indirecta, substituindo o valor da manifestação de fortuna pelo remanescente não justificado desse valor, sendo um salto muito grande para caber nos limites da interpretação extensiva. E isso mesmo parece reconhecido quando se convoca em abono desta interpretação apenas “o espírito do sistema”.
XXVII - Efectivamente, nem mesmo o espírito do sistema aceita a convocatória para defender esta tese, porquanto, prima facie, a natureza indirecta da avaliação da matéria colectável prevista no artº 89º-A pressupõe a incapacidade de aceder às fontes da capacidade contributiva indiciadas pelas manifestações de fortuna, seja para classificar o rendimento que lhe está subjacente, seja para quantificar e tributar directamente. Essa é a essência dos métodos de tributação indirecta e não uma anomalia.
XXVIII - É por a capacidade contributiva estar escondida sob um manto que lhe confere opacidade face às normas de tributação directa que a tributação indirecta prescinde de factos geradores concretos e de uma qualificação típica, bastando o art. 89º-A da LGT para encaminhar essa capacidade contributiva meramente indiciada para a categoria residual do IRS que é a G.
XXIX - Por isso, não é alheia à configuração do mecanismo previsto no art.º 89º-A uma certa vocação sancionatória sobre comportamentos que constituem ilícitos fiscais e que vedam o acesso à tributação directa que é aquela que é a preferida pelo ordenamento tributário.
XXX - Corrigir a letra do n.º 4 do art.º 89º-A por forma a incorporar na fórmula de cálculo legalmente tipificada, como um abatimento, a parcela do valor da manifestação de fortuna que o contribuinte logrou justificar, para além de ser isso mesmo, uma correcção, não é consistente com a ideia matricial da tributação indirecta, aproximando-a de uma tributação directa sem que estejam disponíveis mecanismos equivalentes para realizar uma quantificação igualmente directa da capacidade contributiva global. Para que isso fosse possível no seio do espírito do sistema, seria necessário que a capacidade contributiva fosse colhida a partir de muitos mais factos indiciadores que permitissem retratar a capacidade contributiva global e não apenas a partir dos factos tipificados como manifestação de fortuna, os quais permitirão, quanto muito, abrir uma pequeníssima perspectiva sobre a efectiva capacidade contributiva.
XXXI - O que não pode vingar na interpretação sob recurso, é o facto de se tratar de interpretação correctiva de normas de incidência tributária, incorporando elementos atípicos em normas especialmente protegidas pelo princípio constitucional da legalidade plasmado no art.º 103º n.º 2. da Constituição e desenvolvido nelo art.º 8º da LGT.
XXXII - Consagrando a CRP, o princípio da separação de poderes (artº 2º da CRP), da legalidade fiscal (artº 103º. nº. 2), da administração da justiça (artº. 202º da CRP) e da sujeição à lei, o entendimento propugnado na douta sentença a quo bem como o Acórdão do STA em que se alicerça, viola o disposto artº 2º, 103º nº. 2, 202º e 2O3º, todos da CRP.
XXXIII - Refira-se ainda, em desabono do entendimento perfilhado nas citadas decisões, que a lei distingue a realidade contundente com o valor de aquisição das manifestações de fortuna evidenciadas, doutra realidade respeitante ao rendimento padrão a que a lei presume e fixa em 20% daquele valor de aquisição.
XXXIV - As manifestações de fortuna tipificadas no nº 4 do art.º 89º-A, não constituem, em si mesmas, factos tributários e, portanto, não são o objecto da tributação indirecta. Caso o fossem, a tributação seria directa.
XXXV - Não constitui objecto do art. 89º-A tributar manifestações de fortuna, o objecto da norma é tributar ingressos de rendimento anteriores ao facto que faz detonar a avaliação indirecta, sendo o facto típico designado como manifestação de fortuna apenas o detonador do procedimento tributário que poderá ou não desaguar num acto de fixação indirecta de rendimentos tributáveis.
XXXVI - Isto é uma decorrência natural da admissão pela lei da tributação indirecta, a qual, por definição, pressupõe a relevância tributária de rendimentos que se desconhecem quanto à fonte ou fontes e quanto ao volume, mas cuja existência é fortemente indiciada a partir da ocorrência dos factos legalmente tipificados como manifestações de fortuna.
XXXVII - Ora, o art.º 89º-A da LGT não pretende mais do que identificar factos que revelam disponibilidade de meios financeiros inconsistentes com os rendimentos declarados para, a partir daí, perseguir indícios de rendimentos não declarados aos quais não é possível aceder de forma directa. As manifestações de fortuna tipificadas no nº. 4 do artigo 89º-A da LGT não relevam em si mesmas como factos tributários, mas apenas como detonadores de um procedimento tributário de avaliação indirecta e, já no âmbito deste, como indícios de capacidade contributiva imputáveis a factos que resistem a deixar-se conhecer e, portanto, a serem apreendidos por normas de tributação directa.
XXXVIII - É a impossibilidade de acesso directo aos factos geradores da capacidade contributiva revelada pela manifestação de fortuna que leva a lei a tributar indirectamente a capacidade contributiva subjacente à manifestação de fortuna sempre que os sujeitos passivos não facultem a prova de que correspondem à realidade os rendimentos declarados ou de que é outra a fonte da manifestação de fortuna (v.g. rendimentos não sujeitos ou isentos).
XXXIX - Ora, os critérios de quantificação do rendimento padrão não constituem tipos abertos, o que vale por dizer que não há lugar à aplicação de qualquer outro valor inferior em sede de determinação do rendimento por manifestações de fortuna, sendo a lei taxativa nesse sentido (Veja-se JOSÉ XAVIER DE BASTO, in O princípio da tributação do rendimento real e a Lei Geral Tributária)
XL - A lei apenas possibilita que, em certas circunstâncias, a administração fixe rendimento superior ao rendimento padrão apurado segundo a tabela, mas nunca rendimento inferior (Atente-se ao ideário argumentativo de Diogo Leite de Campos, Benjamim Silva Rodrigues e Jorge Lopes de Sousa in Lei Geral Tributária Comentada e Anotada, 3ª edição, páginas 453 e 454, Vislis Editores].
XLI - Neste desiderato, nunca poderia o acto recorrido fixar matéria tributável diferente daquela que fixou por ser a que corresponde ao rendimento padrão definido no n.º 4 do artigo 89.º-A da LGT.
XLII - Acresce ainda que, em face deste ideário argumentativo, e a relevar-se a solução propugnada pela sentença recorrida e pelo Acórdão do STA, ou seja, a permitir-se a justificação parcial e por essa via a discussão da quantificação da matéria tributável em sede de manifestações de fortuna, então, necessariamente se teria de despoletar o mecanismo estatuído no artº 91º da LGT, e permitir a revisão da matéria tributável fixada por métodos indirectos.
XLIII - Existindo a possibilidade de o sujeito passivo em sede de manifestações de fortuna, proceder à justificação parcial dos rendimentos que permitiram tal manifestação de fortuna, então concomitantemente ter-se-ia de permitir, a abertura de um procedimento de 2º grau com vista a permitir a revisão da matéria tributável, em sede de comissão de revisão a que alude o disposto no artº 91º da LGT.
XLIV - Pelo que, também aqui, a solução encontrada pela sentença recorrida e pelo douto Acórdão do STA, enfermam de errada apreciação de direito, designadamente do art.º 89º-A e artº 91º ambos da LGT.
XLV - Por último, refira-se que a douta sentença a quo, não obstante perfilhar o entendimento vertido pelo Acórdão do STA nº 0734/09 de 19.05.2010, não abarca integralmente todo o seu segmento decisório.
XLVI - Consagrando o referido Acórdão que, não pode, pois, deixar de ser reconhecido ao contribuinte o direito de provar o manifesto excesso dessa quantificação, pela demonstração de que o seu rendimento tributável não pode ser igual ao rendimento padrão que a lei fica ou presume, então a douta sentença recorrida no caso sub judice, teria de decidir pela admissão da justificação parcial ao montante da manifestação de fortuna, e aplicar, em consonância com o entendimento no citado Acórdão, 20% sobre o valor não justificado.
XLVII - Ou seja, a douta decisão a quo, teria de firmar o entendimento plasmado no citado Acórdão, e ao caso aplicar 20% sobre o valor de € 195.000,00 não justificados, pelo que assim não decidindo, fica a douta sentença eivada de manifesta desconformidade com o entendimento perfilhado no Acórdão, em que se firmou.
Termos em que, concedendo-se provimento ao recurso, deve a decisão do Tribunal a quo ser revogada, mantendo-se o acto tributário decisão de avaliação da matéria colectável pelo método indirecto com todas as legais consequências.”
3. O então recorrente, ora recorrido, veio produzir contra-alegações, das quais se extraem as seguintes conclusões:
“I. Está devidamente assente nos autos que o Contribuinte aqui em questão adquiriu, em 2008, um imóvel destinado à sua actividade de comerciante, pelo preço de € 495.000,00 (quatrocentos e noventa e cinco mil euros), recorrendo para tal aquisição a um crédito bancário de € 300.000,00 (trezentos mil euros) e a dinheiro recebido da China, enviado por parentes seus e, bem assim que no mesmo ano de 2008, o contribuinte aqui Recorrido apresentou um rendimento colectável bruto de € 41.258,10;
II. Perante tais factos é pretensão da administração tributária agora recorrente acrescer à matéria colectável deste contribuinte, como rendimento da categoria G do ano de 2008, um montante de € 99.000,00, pela aplicação do rendimento padrão determinado no artigo 89°-A da LGT (20%) correspondente ao preço total de aquisição do imóvel.
III. Com esta pretensão, desconsiderando liminarmente para efeitos de tributação o recurso ao crédito bancário no valor de € 300.000,00, bem como o rendimento do contribuinte no ano em questão, no montante de € 41.258,10 e assim, desconsiderando para efeitos de tributação os princípios da proporcionalidade, e da tributação dos rendimentos reais, subjacentes ao sistema tributário português e o princípio da capacidade contributiva, corolário fiscal do princípio geral da igualdade estruturante do nosso sistema constitucional global, defendendo que o mecanismo previsto no artigo 89-A da LGT teria vocação sancionatória sobre comportamentos que constituiriam ilícitos fiscais e que vedam o acesso à tributação directa.
IV. A tributação dos rendimentos pessoais, tem em conta, nos termos expressos na Constituição, as necessidades e os rendimentos do agregado familiar, pelo que, qualquer vocação sancionatória que se pretenda retirar de uma norma de incidência tributária, ainda que de incidência indirecta, seria sempre uma vocação Inconstitucional
V. Pelo que não pode ser outra a interpretação dada ao artigo 89°-A da LGT, senão aquela que vem espelhada na sentença posta em crise no presente recurso e que é aquela que bem fundamentada está no acórdão do STA supra identificado, sob pena de inconstitucionalidade do preceito.
VI. Aceitando-se que a desqualificação das manifestações de fortuna como fundamento de avaliação indirecta da matéria colectável implica a justificação integral do valor utilizado na aquisição do bem em causa, não pode, porém, deixar de ter-se em causa, para a quantificação da consequente tributação, a justificação parcial e o rendimento efectivamente obtido, pois que aquela tributação — não obstante indirecta — visa a determinação tão próxima quanto possível dos rendimentos reais com vista à sua devida tributação.
VII. E esta assumpção implica, desde logo necessariamente, que não pode tratar-se de forma igual o contribuinte que se socorreu exclusivamente de fundos próprios, e aquele que recorreu a crédito bancário para suportar parte substancial do preço liquidado, bem como que não acrescer-se à matéria colectável do contribuinte que não apresentou quaisquer rendimentos, montante igual àquele que será acrescido à matéria colectável do contribuinte que apresentou no exercício em causa rendimentos de valores relevantes, sendo que em ambos os casos estaríamos perante graves e flagrantes violações do princípio da igualdade e da capacidade contributiva, que acarretariam inevitavelmente a inconstitucionalidade do preceituado no artigo 89°-A da LGT.
VIII. Bem andou, pois, o Tribunal a quo ao determinar a anulação do despacho recorrido por excessiva quantificação, decisão que decorre directamente da imperiosa adequação da norma prevista no artigo 89°-A da LGT aos princípios constitucionais, v.g. da igualdade e da capacidade contributiva, bem como da impossibilidade de tributar um rendimento inexistente — o do montante do crédito obtido — questão que cremos impassível sequer de discussão.
IX. Estes mesmos princípios constitucionais — da igualdade e da capacidade contributiva — impõem ainda que a quantificação do rendimento tributário dos sujeitos passivos de IRS reveladores das ditas “manifestações de fortuna” seja idêntico quando idênticas sejam as ditas “manifestações de fortuna”, pelo que determinando a lei a aplicação de um rendimento padrão de 20% da manifestação de fortuna apurada e não integralmente justificada, este rendimento padrão tem de ser o rendimento padrão para qualquer contribuinte em idêntica situação;
X. Ou seja, o rendimento padrão que seja apurado numa determinada situação de manifestação de fortuna não poderá acrescer, sem mais, ao rendimento já apurado e declarado pelo contribuinte no exercício em questão, sob pena de tratarmos de forma diferente o que é igual e de penalizarmos — até com um eventual incremento da taxa de tributação — o contribuinte que declarou alguns rendimentos, beneficiando o que nenhuns declarou, devendo antes ser analisado por comparação com o rendimento declarado, assim se apurando a diferença — quando exista — para determinação do acréscimo eventualmente aplicável à matéria colectável;
XI. No caso sub judice bem andou o Tribunal a quo determinando como rendimento padrão referente aos 195.000,00 remanescentes do preço de aquisição do imóvel em € 39.000,00, valor inferior ao rendimento do contribuinte para o exercício em causa.
XII. Dúvidas não podem pois subsistir de que esta situação aqui sub judice deve ser tratada de forma diferente de situações diferentes, como sejam as de aquisições em exercícios em que nenhum rendimento foi declarado ou as de aquisições por recurso exclusivo a meios próprios não justificados.
XIII. Impondo-se, assim, seja julgado improcedente o recurso interposto pela direcção de finanças do Porto, mantendo-se in totum a sentença proferida em primeira instância pelo Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto.
Termos em que deverá ser julgado improcedente o presente Recurso mantendo-se a decisão pelo recorrente posta em crise, com o que se fará, como sempre, inteira e sã JUSTIÇA!”
4. O Exmº. Magistrado do Ministério Público junto deste STA emite parecer no sentido de que deve ser negado provimento ao recurso louvando-se no Acórdão do Pleno da Secção do Contencioso Tributário, de 19 de Maio de 2010, proc nº 0734/09.
5. Com dispensa de vistos, por o processo ser urgente, cumpre apreciar e decidir.
II – Fundamentos
1. DE FACTO
Dos autos considera-se como assente a seguinte factualidade com relevância para a decisão:
A). Por escritura pública outorgada em 28 de Abril de 2008, o recorrente adquiriu, pelo preço de € 495.000, à “B……, S.A.”, um prédio urbano composto de edifício de rés-do-chão e andar, destinado a comércio e indústria, sito no lugar de …… ou ……, lote número ……, freguesia de ……, concelho de Vila do Conde, descrito na conservatória do Registo Predial de Vila do Conde, sob o n° mil quatrocentos e cinquenta e três/……, inscrito na respectiva matriz sob o n° 3087, com o valor patrimonial de € 259.675,78, cfr. teor do doc. de fls. 21 a 27 dos autos, que aqui se dá por integralmente reproduzido;
B). No âmbito da compra referida no número anterior o Recorrente celebrou ainda um contrato de mútuo com hipoteca e fiança com o Banco Espírito Santo, S.A., Sociedade Aberta, no valor de € 300.000, o qual lhe foi concedido pelo prazo de cento e oitenta meses, cfr. teor do doc. de fls. 28 a 41 dos autos, que aqui se dá por integralmente reproduzido.
C). A Direcção de Finanças do Porto, enviou, em 23-02-2008, carta registada ao Recorrente, tendo em vista o exercício do direito de audição relativamente à tributação nos termos do art° 89°-A da LGT, que foi devolvida com a indicação “objecto não reclamado”, cfr. teor do doc. de fls. 8 a 12 do Processo Administrativo (PA), que aqui se dá por integralmente reproduzido.
D). Em 26-04-2008, foi proferido, pelo Director de Finanças do Porto, despacho de fixação da matéria colectável, em sede de IRS, nos termos dos art°s 87°, alínea d) e 89°-A, n° 4, da LGT, fixando o rendimento tributável em € 99.000, para o ano de 2008, tendo por base o relatório da inspecção tributária, do qual consta o seguinte:
“Tendo por base os elementos disponíveis no sistema informático da Direcção Geral dos Impostos (DGCI), nomeadamente, a Declaração Notarial modelo 11, verifica-se que no ano de 2008 o contribuinte acima identificado A……, adquiriu pelo valor de 495.000 € o prédio urbano sito na freguesia de ……, Vila do Conde, inscrito na matriz sob o artigo 3087 (escritura de compra e venda de 23-04-2008 vendedor — B……, SA).
(…)
Nos termos do citado normativo legal, ao valor da respectiva aquisição corresponde o rendimento padrão de 99.000 € (...)
Relativamente ao mesmo ano de 2008, o mesmo contribuinte apresentou declaração modelo 3 de JRS (Imposto sobre o Rendimento de Pessoas Singulares) com o rendimento global de 41.258,10 €. Este rendimento global, consideradas as deduções específicas previstas no Código do IRS, originou o rendimento colectável de 37.577,46€.
(…)
Da referida Escritura retira-se que, para a aquisição do imóvel identificado na alínea a) do ponto 1., o contribuinte recorreu ao crédito (Banco Espírito Santo) no montante de 300.000 € como de resto evidencia a Declaração Notarial modelo 11, valor cuja proveniência se considera demonstrada.
Porém, para haver afastamento da avaliação indirecta prevista no art° 89-A da Lei Geral Tributária, tem de existir uma justificação total da manifestação de fortuna evidenciada. No caso em apreço não foi justificada a totalidade do valor de aquisição do imóvel”Cfr. teor do doc. de fls. 4 a 7 do PA, que aqui se dá por integralmente reproduzido.
E). Por carta registada com aviso de recepção, datada de 27-04-2011 e recepcionada em 04-05-2011, foi o Recorrente notificado do teor do despacho referido em D), cfr. teor do doc. de fls. 2 do PA, que aqui se dá por integralmente reproduzido.
F). A presente acção deu entrada no Tribunal em 13-05-2011, cfr. teor de fls. 2 dos autos.
G). Foram transferidos, por ordem de C……, D…… e E……, durante o ano de 2008, para conta titulada pelo Recorrente no Banco BPT, SA, os seguintes montantes:



Cf. teor dos doc. de fls. 48 a 78 dos autos, que aqui se dão por integralmente reproduzidos.
H). Em 11-03-2008, o Recorrente transferiu de conta de que era titular no Banco BPI, S.A., para conta de que era titular no Banco Espírito Santo, S.A., o montante de € 227.000, cf. teor dos docs. de fls. 78 e 176 dos autos, que aqui se dão por integralmente reproduzidos.
I). O Recorrente, em 16.04.2008, possuía depósitos no Banco Espírito Santo, S.A., no valor de € 336.751,50, cf. teor do doc. de fls. 175 dos autos, que aqui se dá por integralmente reproduzido.
J). Em 23-04-2008 o Recorrente era titular de conta de depósito à ordem no Banco Espírito Santo, S.A., com saldo no valor de € 237,000, tendo emitido, na mesma data, cheque no valor de € 495.000, cf. teor dos docs. de fls. 175 a 180 dos autos, que aqui se dão por integralmente reproduzidos (…)”.
2. DE DIREITO
2.1. As questões a apreciar e decidir
Resulta da matéria dada como provada que, por escritura pública outorgada em 28 de Abril de 2008, o recorrido adquiriu, pelo preço de € 495.000, um prédio urbano e celebrou ainda um contrato de mútuo com hipoteca e fiança com o Banco Espírito Santo, S.A., Sociedade Aberta, no valor de € 300.000, o qual lhe foi concedido pelo prazo de cento e oitenta meses.
Por despacho proferido pelo Director de Finanças do Porto, de 26/4/2008, foi determinada a matéria colectável, em sede de IRS, nos termos dos art°s 87°, alínea d), e 89°-A, n° 4, da LGT, fixando-se o rendimento tributável em € 99.000, para o ano de 2008, tendo por base o relatório da inspecção tributária, do qual consta o seguinte:
“Tendo por base os elementos disponíveis no sistema informático da Direcção Geral dos Impostos (DGCI), nomeadamente, a Declaração Notarial modelo 11, verifica-se que no ano de 2008 o contribuinte acima identificado A……, adquiriu pelo valor de 495.000 € o prédio urbano sito na freguesia de ……, Vila do Conde, inscrito na matriz sob o artigo 3087 (escritura de compra e venda de 23-04-2008 vendedor — B……, SA).
(…)
Nos termos do citado normativo legal, ao valor da respectiva aquisição corresponde o rendimento padrão de 99.000 € (...)
Relativamente ao mesmo ano de 2008, o mesmo contribuinte apresentou declaração modelo 3 de JRS (Imposto sobre o Rendimento de Pessoas Singulares) com o rendimento global de 41.258,10 €. Este rendimento global, consideradas as deduções específicas previstas no Código do IRS, originou o rendimento colectável de 37.577,46€.
(…)
Da referida Escritura retira-se que, para a aquisição do imóvel identificado na alínea a) do ponto 1., o contribuinte recorreu ao crédito (Banco Espírito Santo) no montante de 300.000 € como de resto evidencia a Declaração Notarial modelo 11, valor cuja proveniência se considera demonstrada.
Porém, para haver afastamento da avaliação indirecta prevista no art° 89-A da Lei Geral Tributária, tem de existir uma justificação total da manifestação de fortuna evidenciada. No caso em apreço não foi justificada a totalidade do valor de aquisição do imóvel”Cfr. teor do doc. de fls. 4 a 7 do PA, que aqui se dá por integralmente reproduzido.
Vem o presente recurso interposto pela Fazenda Pública da sentença proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto que julgou procedente o recurso da decisão de avaliação da matéria colectável por métodos indirectos, em sede de IRS, relativo ao ano de 2008, proferido pelo Director de Finanças do Porto, de 26/4/2011, considerando a determinação da matéria colectável ilegal por excessiva.
Para tanto, ponderou o Mmº. Juiz “a quo” que:
· “No que concerne à verificação dos pressupostos de avaliação indirecta da matéria colectável, encontra-se devidamente provado nos autos que o Recorrente declarou rendimentos em sede de IRS, relativos ao ano de 2008, no valor de € 41.258,10, tendo, no decurso deste ano, adquirido um imóvel pelo preço global de €495.00, encontrando-se, assim, enquadrado nos valores constantes da tabela do nº 4 do art. 89º-A”;
· “Assim face aos rendimentos declarados e ao bem imóvel adquirido pelo recorrente, cumpria à Administração Fiscal substituir-se-lhe e apurar a matéria colectável nos termos legais - artigos 65º, nº 2, al. b) do CIRS e 89º-A da LGT, pois haverá lugar a avaliação indirecta quando o contribuinte evidencie manifestações de fortuna e declare rendimentos que mostrem uma desproporção superior a 50% pelo menos, em relação ao rendimento padrão resultante da referida tabela”;
· Por outro lado, ponderou ainda o Mmº Juiz “a quo”, tendo presente a doutrina fixada por Acórdão do Pleno da Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo, processo nº 0734/09, que cabia à Administração Fiscal considerar parcialmente justificado pelo recorrido o montante dispendido com a aquisição do imóvel através do empréstimo bancário. Ou seja, “apesar de se encontrarem preenchidos os pressupostos de aplicação das manifestações de fortuna, nos termos do art. 89º-A da LGT, a determinação da matéria colectável revela-se ilegal, por excessiva, porquanto dever-se-ia ter considerado como rendimento presumido o cálculo da taxa de 20% aplicado ao remanescente não justificado (€195.000)” [€450.00-€300.000 (empréstimo bancário)], “o que perfaria o montante de €39.000 e não, conforme se apresenta calculado pela Administração Tributária, no montante de €99.000.
Contra este entendimentos e insurge a Fazenda Pública, alegando em síntese:
· O Tribunal “a quo”, baseou a sua decisão na errónea interpretação do artº 89º-A e art.º 8º ambos da LGT, e, concomitantemente, em clara e manifesta violação dos princípios constitucionais da separação de poderes, da legalidade fiscal, da administração da justiça e da sujeição à lei, cfr. os arts. 2º, 103º, nº2, 202º, e 203º todos da CRP;
· A interpretação a que chegou o tribunal “a quo” não encontra assento no espírito da lei, nem na letra da lei;
· O valor padrão não pode ser “descontado” ou baixado, pelo contrário: tal «valor padrão» poderá ser aumentado, se a Administração Tributária estiver na posse de elementos que lhe permitam fixar um rendimento superior, citando-se para o efeito o voto de vencido do Juiz Conselheiro Jorge Lino R Alves de Sousa, no âmbito do citado Acórdão Proc. n.° 0734/09 de 19.05.2005;
· Trata-se de interpretação correctiva de normas de incidência tributária, incorporando elementos atípicos em normas especialmente protegidas pelo princípio constitucional da legalidade plasmado no art.º 103º, n.º 2, da Constituição e desenvolvido pelo art.º 8º da LGT;
· A permitir-se a justificação parcial e por essa via a discussão da quantificação da matéria tributável em sede de manifestações de fortuna, então, necessariamente se teria de despoletar o mecanismo estatuído no artº 91º da LGT, e permitir a revisão da matéria tributável fixada por métodos indirectos;
· A douta sentença recorrida não perfilhou o entendimento plasmado no Acórdão do STA nº 734/09, porque assim sendo teria decidir pela admissão da justificação parcial ao montante da manifestação de fortuna, e aplicar, em consonância com o entendimento no citado Acórdão, 20% sobre o valor não justificado;
· Ou seja, a douta decisão “a quo”, teria de firmar o entendimento plasmado no citado Acórdão, e ao caso aplicar 20% sobre o valor de € 195.000,00 não justificados, pelo que assim não decidindo, fica a douta sentença eivada de manifesta desconformidade com o entendimento perfilhado no Acórdão, em que se firmou.
Da análise das conclusões das alegações de recurso, uma vez que são estas as relevantes para aferir do objecto e âmbito do presente recurso [cfr. o art. 684º, nº 3, do CPC, e o art. 2º, alínea e), do CPPT)], as questões a decidir prendem-se com o sentido e alcance dado pela sentença recorrida ao art. 89º-A da LTG.
Considerando que a interpretação do referido preceito seguida pela sentença “a quo” se baseou na jurisprudência vazada no Acórdão do Pleno da Secção do Contencioso Tributário do STA de 19/5/2010, proc. nº 0734, e as questões de direito suscitadas pela recorrente foram rebatidas por este STA no referido Acórdão, iremos sumariamente reiterar essa jurisprudência adaptando-a ao caso em apreço.
Vejamos.
2.2. Do sentido e alcance do art. 89º-A da LGT
O art.º 89.º-A da LGT, na redacção anterior à Lei n.º 53-A/06 de 29/12 e à Lei n.º 19/08 de 21/4, dispõe que “há lugar a avaliação indirecta da matéria colectável quando falte a declaração de rendimentos e o contribuinte evidencie as manifestações de fortuna constantes da tabela prevista no n.º 4 ou quando declare rendimentos que mostrem uma desproporção superior a 50%, para menos, em relação ao rendimento padrão resultante da referida tabela”.
Por sua vez, o seu n.º 2, estabelece que, entre as manifestações de fortuna previstas na tabela supra referida estão as aquisições de imóveis, cujo valor de aquisição seja igual ou inferior a 50.000 contos (€ 249.398,95), adquiridos no ano em causa ou nos três anos anteriores adquiridos pelo sujeito passivo ou qualquer elemento do agregado familiar [al. a)] e os bens que aqueles fruam, adquiridos nesse ano ou nos três anos anteriores, por sociedade na qual detenham, directa ou indirectamente, participação maioritária, ou por entidade sediada em território de fiscalidade privilegiada ou cujo regime não permita identificar o titular respectivo [al. b)].
Por último, determina o seu n.º 3 que “verificadas as situações previstas no n.º 1, cabe ao sujeito passivo a prova de que correspondem à realidade os rendimentos declarados e de que é outra a fonte das manifestações de fortuna evidenciadas, nomeadamente herança ou doação, rendimentos que não esteja obrigado a declarar, utilização do seu capital ou recurso ao crédito”.
Um dos problemas que este preceito suscita gira, desde logo, em torno de saber quando é que há lugar à aplicação de métodos indirectos na avaliação da matéria colectável e qual o papel do denominado “rendimento padrão”, a que se refere o nº 1 do art. 89º-A, da LGT.
Em relação a este primeiro problema, constitui jurisprudência reiterada que não obstante a prova parcial da proveniência do preço que foi pago por determinado imóvel, mostrando os rendimentos declarados uma desproporção superior a 50% para menos em relação ao rendimento resultante da tabela do nº 4 do art.89º-A da LGT, fica ainda assim legitimada a aplicação do método indirecto de avaliação da matéria colectável.
No Acórdão que estamos a seguir pode ler-se que “cabendo à Administração tributária o ónus de prova da verificação dos pressupostos legais vinculativos da sua actuação, cabe-lhe provar que o rendimento líquido declarado pelo sujeito passivo mostra uma desproporção superior a 50%, para menos, em relação ao rendimento padrão fixado na referida tabela.
O rendimento padrão serve assim, numa primeira fase, para verificar se ocorrem os pressupostos legais para o recurso a métodos indirectos de determinação do rendimento tributável. E uma vez provados esses pressupostos, passa a competir ao sujeito passivo o ónus de prova da ilegitimidade do acto por erro nos pressupostos, pela demonstração de que correspondem à realidade os rendimentos declarados e de que é outra a fonte da manifestação de fortuna evidenciada, nomeadamente herança ou doação, rendimentos que não esteja obrigado a declarar, utilização do seu capital ou recurso ao crédito (n.º 3 do artigo 89.º-A da LGT)”.
Assim sendo, significa que a justificação meramente parcial do montante que permitiu a “manifestação de fortuna” não afasta a aplicabilidade da determinação indirecta dos rendimentos globais que permitiram tal manifestação de fortuna.
Neste mesmo sentido, cfr., além do Acórdão que estamos a seguir, o Acórdão do STA, de 16/4/2008, proc. nº 0234/08, o Acórdão do Pleno da Secção de Contencioso Tributário do STA , de 28/1/09, no recurso n.º 761/08, e também no Acórdão da mesma Secção, de 27/5/09, no recurso n.º 403/09, onde expressamente se afirma que “o valor justificado por outras fontes de rendimento ou património apenas releva para a tentativa de demonstração de que, apesar da verificação em abstracto dos pressupostos legais da avaliação indirecta, esta não deve ocorrer porque as manifestações de fortuna evidenciadas foram adquiridas com aquele valor”.
No caso dos autos, não tendo o recorrido justificado a totalidade do montante que lhe permitiu efectuar a aquisição do imóvel pelo preço global de €495.000, e tendo ficado provado que declarou rendimentos em sede de IRS, relativos ao ano de 2008, no valor de € 41.258.10, os rendimentos declarados mostram uma desproporção superior a 50%, para menos, em relação ao rendimento padrão resultante da tabela prevista no nº 4 do art. 89º-A da LGT (que no caso era 20% do valor da aquisição, isto é, € 99.000), pelo que se encontram preenchidos os requisitos legais para a avaliação indirecta.
Outro problema que o preceito suscita prende-se com o problema de saber qual o relevo da justificação parcial das manifestações de fortuna no que respeita à fixação do rendimento sujeito a tributação como incremento patrimonial em sede de IRS.
No caso dos autos, ficou demonstrado, conforme consta da matéria dada como provada, que o recorrido justificou parcialmente a manifestação de fortuna através de um empréstimo bancário de € 300.000,00 que a Administração Fiscal desconsiderou, na fixação do rendimento padrão tributável (ponto B do probatório).
A questão está precisamente em saber se o rendimento tributável em sede de IRS a enquadrar na categoria G no ano em causa (2008) há-de corresponder ao rendimento padrão obtido por aplicação de 20% ao valor da aquisição, isto é, 20% sobre €495.000,00 o que corresponde a € 99.000,00 tal como pretende a Fazenda Pública, ou se, dando relevância à justificação parcial da manifestação de fortuna, o rendimento tributável há-de resultar da aplicação dos 20% sobre (€495.000 00 - € 300.000,00), isto é, 20% sobre €195.000,00 o que daria o valor de € 39.000,00.
A primeira tese é a que corresponde à interpretação estritamente literal do art. 89º-A, nº 4, da LGT, que apenas prevê de forma expressa a possibilidade de afastamento do valor determinado tendo por referência o “rendimento padrão” quando a administração tributária fixar rendimento superior, de acordo com os critérios fixados no artigo 90º, e que conta com o apoio de alguma jurisprudência deste Supremo Tribunal. Com efeito, pode ler-se designadamente no Acórdão do Pleno desta Secção, de 28/1/2009, proc. nº 0761/08, que a segunda tese mencionada (a que defende que na determinação do rendimento tributável a fixar pela AF ao valor da manifestação de fortuna em causa se há-de reduzir o montante justificado, aplicando-se então sobre o resultado obtido, o critério fixado na lei para determinar o rendimento padrão), “não tem, porém, qualquer correspondência com a norma aplicável, pois em nenhuma situação a lei manda subtrair ao valor de aquisição o valor justificado por outras fontes para calcular o rendimento padrão”.
Não obstante o exposto, entende-se, tal como ficou consignado no Acórdão que estamos a seguir, que outra é a solução imposta pelo espírito do sistema, conformado pelos princípios constitucionais e legais pertinentes atendendo à natureza das normas em causa.
Com efeito, o referido preceito não pode ser interpretado de forma isolada, devendo chamar-se à colação, desde logo, outras normas legais que estabelecem regras informadoras de todo o sistema fiscal, designadamente o art. 73º da LTG, segundo o qual «as presunções consagradas nas normas de incidência tributária admitem sempre prova em contrário».
Ora, quanto à sua natureza, as normas previstas no n.º 4 do artigo 89.º-A da LGT não podem deixar de ser, nesta segunda fase (em que em causa está a determinação e quantificação do rendimento sujeito a IRS), normas de incidência objectiva de IRS, integrantes da norma contida na alínea d) do n.º 1 do artigo 9.º do respectivo Código (Neste sentido, cfr. JOSÉ GUILHERME XAVIER DE BASTO, IRS: Incidência Real e Determinação dos Rendimentos Líquidos, Coimbra, 2007, pp. 368/369, nota (415).), ou, pelo menos, normas que densificam e concretizam aquelas e, como tais, sujeitas a idênticas regras e princípios (Segundo JORGE DE SOUSA, “para efeitos previstos no art. 73º da LGT e no art. 64º do CPPT, deve entender-se que a referência a normas de incidência é utilizada na acepção lata, pois as razões que justificam a admissibilidade de ilidir presunções, que se ligam à comprovação da existência real dos pressupostos subjectivos e objectivos da tributação, que é exigida pelo princípio constitucional, valem relativamente a qualquer destes pressupostos” (cfr. Código de Procedimento e de Processo Tributário, 6ª ed., Áreas Editora, Lisboa, 2011, anotação ao art. 64º do CPPT, p. 586).).
Como refere JORGE DE SOUSA, “As presunções em matéria de incidência tributária podem ser explícitas, reveladas pela utilização da expressão «presume-se» ou semelhante (…)”, mas “também podem estar implícitas em normas de incidência, designadamente de incidência objectiva”.
Para este autor, “(…) as normas que ficcionam valores para efeitos de determinar a medida dos rendimentos contêm presunções implícitas, já que não se pode aceitar, à face do princípio constitucional da igualdade, que se queiram tributar rendimentos inexistentes; por isso as ficções de valores de matéria tributável foram introduzidas na lei no pressuposto de que correspondem à realidade os valores determinados por via de presunção. Em situações deste tipo, está-se perante a aplicação de presunções contidas em normas de incidência objectiva (conceito em que se englobam as normas sobre determinação de matéria tributável de natureza substantiva, como é jurisprudência assente do TC), pelo que os interessados podem ilidi-las, ao abrigo do disposto no art. 73º da LGT, e fazer uso do procedimento de ilisão de presunções previsto neste art. 64º do CPPT; é admissível ilidir as presunções implícitas porque o que se pretende «sempre» é atribuir rendimentos reais e não inexistentes e é por esta razão, de se querer «sempre» tributar valores reais, que o art. 73º da LGT permite «sempre» ilidir presunções” (Cfr. ob. cit., anotação ao art. 64º do CPPT, p. 590. Nestes sentido, cfr. o recente Acórdão deste Supremo Tribunal, de 29 de Fevereiro de 2012, proc. nº 441/2011.).
Por aplicação da doutrina exposta, ter-se-á de considerar, no caso em apreço, ser aplicável a proibição de presunções legais absolutas e inilidíveis de rendimentos derivada do princípio da capacidade contributiva que, no plano da lei ordinária, o art. 73º da LGT expressamente consagra (Cfr. CASALTA NABAIS, O Dever Fundamental de Pagar Impostos, Coimbra, Almedina, 1998, em especial, pp. 497/498.).
Nesta sequência, bem andou a sentença recorrida ao reconhecer ao recorrido o direito de provar o manifesto excesso de quantificação e que o seu rendimento tributável não podia ser igual ao rendimento padrão que a lei fixa e presume, uma vez que conseguiu demonstrar a proveniência de parte do montante que permitiu a manifestação de fortuna. Como ficou consignado no Acórdão que estamos a seguir, “impedir o contribuinte de fazer essa prova ou defender que não se pode dar qualquer relevância à demonstração da proveniência parcial do rendimento utilizado na manifestação da fortuna, argumentando que a quantificação tem, necessariamente, de ser aquela que resulta da aplicação de um critério estritamente legal e que parte de uma ficção ou presunção de um determinado rendimento sujeito a tributação (rendimento padrão), constituiria, desde logo, uma clara e directa violação do artigo 73.º da LGT, pois que sendo a situação em apreço uma daquelas que bule com a incidência objectiva de IRS, há que dar à parte desfavorecida com esta presunção a possibilidade de a ilidir, mediante prova em contrário (n.º 2 do artigo 350.º do Código Civil)”.
Mas a solução defendida pela Fazenda Pública, no sentido da consagração de uma presunção absoluta e inilidível, conduziria também à violação inadmissível do princípio da igualdade, da capacidade contributiva e da tributação dos rendimentos reais.
Com efeito, a não relevância da justificação parcial da manifestação de fortuna, levaria a tributar de forma igual situações diversas, uma vez que perante contribuintes relativamente aos quais se verificassem os pressupostos legais do recurso à avaliação indirecta por “sinais exteriores de riqueza” e que tivessem adquirido imóveis de valor idêntico, estaríamos a permitir que aos que nada justificassem ser tributados em sede de categoria G de IRS por montante exactamente igual aos que tivessem justificado que, por exemplo, parte significativa da fonte do acréscimo patrimonial lhes tinha advindo do recurso a um empréstimo bancário. Realce-se que a aplicação cega da norma do art. 89º-A da LGT poderá conduzir ao extremo de um contribuinte ter demonstrado 99% do valor da manifestação de fortuna e mesmo aí ser tributado de igual modo que aquele que não conseguiu fazer qualquer demonstração.
Acresce que a proceder esta interpretação, o montante obtido, por exemplo, como no caso dos autos, por via do empréstimo bancário acabaria também por ser tributado, não obstante tratar-se comprovadamente de montante não sujeito a tributação em sede de IRS.
Assim sendo, tal como se concluiu no Acórdão nº 0734/09, “a interpretação adoptada no acórdão recorrido conduz, inevitavelmente, a um tratamento grosseiramente igualitário de situações diversas e bem assim autoriza e valida a tributação de rendimentos que, comprovadamente, não estão sujeitos a tributação em sede de IRS, razões pelas quais deve ser rejeitada sob pena de afronta aos princípios da igualdade, da capacidade contributiva e da tributação dos rendimentos reais”.
Neste sentido vai o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 348/97, de 29 de Abril de 1997, que julgou inconstitucional, por violação do princípio da igualdade consagrado no artigo 13.º da Constituição, a norma do §2 do artigo 14.º do Código do Imposto de Capitais, na parte em que não permite a elisão de onerosidade dos mútuos efectuados pelas sociedades a favor dos respectivos sócios. Para tanto ponderou-se no referido Acórdão que “o estabelecimento de presunções com o objectivo de conferir certeza e simplicidade às relações fiscais, de permitir uma pronta e regular percepção dos impostos e de evitar a evasão e a fraude fiscal como adverte Casalta Nabais (…) «tem de compatibilizar-se com o princípio em análise, o que passa quer pela ilegitimidade constitucional das presunções absolutas na medida em que impedem o contribuinte de provar a inexistência da capacidade contributiva visada na respectiva lei, quer pela exigência de idoneidade das presunções relativas para apresentarem o pressuposto económico tido em conta»”.
Por sua vez, em anotação ao mencionado Acórdão, CASALTA NABAIS (Cfr. “Presunções Inilidíveis e Princípio da Capacidade Contributiva: Acórdão n.º 348/97, processo n.º 63/96”, Fisco, n. 84/85, Setembro/Outubro 1998, ano IX, pp. 85/95.) entende que além da violação do princípio da igualdade há violação do princípio da capacidade contributiva, concluindo que a referida “norma também é inconstitucional em si mesma, na medida em que permite a tributação de situações sem qualquer suporte na capacidade contributiva. (…). Ao obstar, em termos absolutos, à possibilidade de o contribuinte provar a eventual insuficiência ou mesmo ausência de manifestações da respectiva capacidade contributiva, uma tal norma pode constituir-se em suporte duma tributação em que está de todo ausente o critério da capacidade contributiva”.
Não obstante o exposto, no caso em apreço é ainda possível salvar a norma em causa de um juízo de inconstitucionalidade, por ser ainda possível, ainda que não decorra de forma imediata do texto literal, eleger um sentido para o art. 89º, nº4, da LGT, que está conforme à Constituição (“A interpretação conforme à Constituição não consiste (…) tanto escolher entre vários sentidos possíveis e normais de qualquer preceito o que seja mais conforme com a Constituição quanto em discernir no limite - na fronteira da inconstitucionalidade - um sentido que, embora não aparente ou não decorrente de outros elementos de interpretação, é o sentido necessário e o que se torna possível por virtude da força conformadora da Lei Fundamental”, cfr. o Acórdão do Tribunal Constitucional nº 490/97, proc. nº 696/96. ), por mediação dos princípios constitucionais referidos e, bem assim, de outras normas do sistema jurídico, como já mencionado.
Com efeito, sublinhou-se no referido Acórdão, “a natureza subsidiária da avaliação indirecta (artigo 85.º, n.º 1, da LGT) - de que, ao menos na perspectiva do legislador [cfr. a alínea d) do n.º 1 do artigo 87.º da LGT], a avaliação por sinais exteriores de riqueza comunga -, e bem assim a regra segundo a qual à avaliação directa se aplicam, sempre que possível e a lei não prescreva em sentido diferente, as regras da avaliação directa (artigo 85.º n.º 2, da LGT) parecem igualmente militar no sentido de que a justificação parcial feita pelo contribuinte do acréscimo patrimonial há-de reflectir-se na fixação do rendimento a sujeitar a imposto, tanto mais que o n.º 4 do artigo 89.º-A da LGT expressamente admite o afastamento da tributação do montante determinado pelo “rendimento padrão” quando existam indícios fundados, de acordo com os critérios previstos no artigo 90.º, que permitam à administração tributária fixar rendimento superior, o que permite afirmar o carácter supletivo do recurso ao rendimento padrão”. O acabado de referir permite concluir que, pelo menos na perspectiva da Administração tributária, o referido rendimento não consubstancia uma presunção absoluta e inilidível. Ora, se assim é para a Administração tributária, perante meros indícios, embora fundados e consonantes com critérios legalmente definidos, não se vê que deva ser de outro modo quando a situação seja a inversa e o contribuinte disso faça prova, por força dos princípios da igualdade e da capacidade contributiva.
Acresce ainda que esta solução constitui ainda uma exigência do princípio do Estado de Direito democrático (art. 2º da CRP) que postula também no âmbito do procedimento tributário “esse justo equilíbrio, essa paridade de posições jurídicas recíprocas, nas situações em que não se vislumbra que um interesse de especial relevo imponha solução diversa” (Cfr. o Acórdão que vimos seguindo citando PEDRO MACHETE, Estado de Direito Democrático e Administração Paritária, Coimbra, Almedina, 2007. ).
Por último, a solução propugnada no Acórdão que estamos a seguir e adoptada na sentença “a quo” é a sustentada pela mais recente doutrina que tratou directamente a questão (No sentido da solução adoptada no Acórdão quanto quando se defende que, quando o contribuinte não faça, como deve fazer, «a prova de que correspondem à realidade os rendimentos declarados», o «valor padrão» de rendimento tributável [20% do valor de «manifestações de fortuna evidenciadas] seja diminuído até ao montante da prova justificativa que ele faça dessas manifestações de fortuna, cfr. JOÃO SÉRGIO RIBEIRO, A Tributação Presuntiva do Rendimento: Um Contributo para Reequacionar os Métodos Indirectos de Determinação da Matéria Tributável, Coimbra, Almedina, Abril 2010, pp. 301/305. ).
Em suma, os argumentos expostos conduzem que se extraia, para o caso concreto, que a justificação parcial, embora não afaste a aplicação do método de avaliação indirecta previsto no artigo 89.º-A da LGT, não pode deixar de ser considerada na quantificação do rendimento tributável que vai ser determinado por esse método. Assim, deve entender-se que a quantificação do rendimento tributável do recorrente deve ser igual a 20% do valor de aquisição deduzido do montante do empréstimo bancário que demonstrou ter efectuado para a aquisição do imóvel em questão, já que este montante não está, nem pode estar, sujeito a IRS, não podendo, consequentemente, ser presumido ou considerado como rendimento sujeito a tributação, sob pena de estarmos perante uma tributação em que estaria de todo ausente o critério da capacidade contributiva (Segundo jurisprudência do Tribunal Constitucional Italiano, “as presunções devem apoiar-se em elementos concretamente positivos que as justifiquem racionalmente e admitir prova em contrário, de modo a que o imposto se ligue a um pressuposto económico certo, provado e não apenas provável” (cfr. citação do Acórdão do Tribunal Constitucional nº 384/97).) .
Por tudo o que vão exposto, considerando que, no caso em apreço, a Administração tributária, na avaliação do rendimento tributável do rendimento do recorrente, não procedeu a nenhuma dedução relativa ao empréstimo bancário, terá de concluir-se pela existência de manifesto excesso na quantificação, o que fere de ilegalidade o acto que constitui o objecto do presente recurso judicial - acto que fixou ao ora recorrente o rendimento tributável de € 99.000,00 com recurso a avaliação indirecta –, pelo que se impõe a respectiva anulação judicial.
A douta sentença recorrida que decidiu neste sentido merece, pois, ser confirmada, não merecendo o recurso, nesta sequência, provimento.
III- DECISÃO
Termos em que se acorda em negar provimento ao recurso, mantendo a sentença recorrida.
Lisboa, 7 de Março de 2012. - Fernanda Maçãs (relatora) - Casimiro Gonçalves - Lino Ribeiro.