Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0112/20.4BALSB
Data do Acordão:11/24/2021
Tribunal:PLENO DA SECÇÃO DO CT
Relator:GUSTAVO LOPES COURINHA
Descritores:QUESTÃO FUNDAMENTAL DE DIREITO
Sumário:
Nº Convencional:JSTA000P28583
Nº do Documento:SAP202111240112/20
Data de Entrada:10/01/2020
Recorrente:AT – AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA
Recorrido 1:A...................
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: Acordam no Pleno da Secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo


I – RELATÓRIO

I.1 Alegações
I. A DIRECTORA-GERAL DA AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA, inconformada com a decisão arbitral proferida no processo nº 616/2019-T que correu termos no Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD), julgou procedente o pedido de pronúncia quanto à liquidação de IRS deduzido por Z…………………… na qualidade de revertida no processo de execução fiscal para cobrança da dívida originariamente imputada à sociedade Y………………. Lda, vem dela recorrer para o Supremo Tribunal Administrativo, nos termos do disposto no art. 152º, nº1 do CPTA (Código de Processo dos Tribunais Administrativos) e do nº 2, do art. 25º do RJAT (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, aprovado pelo DL nº 10/2011, de 20 de Janeiro), com a alteração introduzida pela Lei nº 119/2019, de 18/09, por considerar que a referida decisão arbitral recorrida colide com a decisão arbitral proferida no processo nº 118/2015-T do CAAD, em 30/10/2015 – o qual transitou em julgado.

II. Por despacho a fls. 574 do SITAF, o Ex.º Relator junto deste Supremo Tribunal veio admitir o recurso para o Pleno da Secção de Contencioso Tributário deste Supremo Tribunal, ordenando a notificação à entidade recorrida para contra alegar e ao Ministério Público para emitir de Parecer.

III. A recorrente Fazenda Pública, veio apresentar alegações de recurso a fls. 3 a 29 do SITAF, no sentido de demonstrar a alegada oposição de julgados, formulando as seguintes conclusões:
A. O presente Recurso para Uniformização de Jurisprudência vem interposto nos termos do art.º 152º nº1 do CPTA (Código de Processo dos Tribunais Administrativos) e nº 2 do art.º 25º do RJAT (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, aprovado pelo DL nº 10/2011, de 20 de Janeiro), e tem por objecto a Decisão Arbitral proferida no âmbito do processo nº 616/2019-T pelo Tribunal Arbitral constituído no Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD), por se encontrar em contradição com a Decisão proferida no âmbito do processo nº 118/2015-T, pelo Tribunal Arbitral constituído no CAAD, no segmento decisório que se reporta ao entendimento que nas situações de rendimentos sujeitos a retenção que não tenham sido contabilizados nem comunicados como tal aos respectivos beneficiários, o substituto assume responsabilidade solidária pelo imposto não retido, entendendo o Tribunal a quo que a AT deveria primeiro exigir o imposto aos trabalhadores (substituídos/beneficiários) e só depois é que poderia exigir o imposto ao substituto (entidade patronal).
B. A decisão sob recurso entendeu que: “Deste modo, no caso concreto o ato de liquidação e consequente notificação, deveriam ter sido dirigidos contra o responsável originário – os substituídos, titulares dos rendimentos sujeitos a imposto – e não unicamente contra o responsável solidário. Não estando em causa uma situação abrangida pelo artigo 21.º, n. º1, da LGT, inexiste, na esfera deste, qualquer facto tributário, pelo que a liquidação terá de ser feita na esfera do sujeito passivo originário.”
C. Por seu turno, a decisão fundamento, também ela proferida por um tribunal arbitral constituído no CAAD, teve um entendimento diametralmente oposto, concluindo da seguinte forma:
“A Lei nº 53-A/2006,de 29 de Dezembro (LOE 2007) aditou ao normativo um número 4 (e também um nº 5) no sentido seguinte: “4. Tratando-se de rendimentos sujeitos a retenção na fonte que não tenham sido contabilizados nem comunicados como tal aos respectivos beneficiários, o substituto assume responsabilidade solidária pelo imposto não retido”. No Relatório do Orçamento de Estado para 2007 (a folhas 26 e seguintes) depois de se consagrar que uma das principais medidas da política fiscal respeitam “ao reforço do combate à fraude e evasão fiscais, designadamente através do aprofundamento das cláusulas anti abuso” referencia-se, expressamente, a “instituição de um regime de responsabilização solidária do substituto pelo imposto não retido aos beneficiários dos rendimentos em situações qualificadas como práticas fraudulentas relacionadas com a omissão ou redução do montante das remunerações pagas, seja pela sua não contabilização, seja pela sua caracterização como rendimentos não sujeitos a tributação (vg., ajudas de custo)”(sublinhado nosso).
(…)
Os “princípios gerais de interpretação” para onde nos remete o transcrito nº 1, são estabelecidos no artigo 9º do Código Civil, que reza o seguinte:
Artigo 9º
Interpretação da lei
“1. A interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada.
2. Não pode, porém, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso.
3. Na fixação e alcance do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados”.
É pois à luz destes princípios e igualmente tendo em conta a intenção e os fins visados pelo legislador subjacentes à alteração levada a cabo no artigo 103º do CIRS que não encontramos razões para discordar da interpretação que a AT fez do mesmo, traduzida e corporizada na prática, e face ao regime de responsabilidade solidária aí consagrado, na possibilidade de exigência do pagamento do imposto de forma indistinta, ao substituto ou ao substituído, da acordo com o regime em questão.”
D. O entendimento vertido na decisão recorrida colide com a decisão fundamento quanto à mesma questão fundamental de direito que se prende com saber se, nas situações em há rendimentos sujeitos a retenção na fonte que não tenham sido contabilizados nem comunicados como tal aos respectivos beneficiários, o substituto deve assumir responsabilidade solidária pelo imposto não retido, tendo a AT possibilidade de exigência do pagamento do imposto de forma indistinta, ao substituto ou ao substituído (cfr. art.º 103º, nº4 CIRS) ou, nestes casos, deverá desaplicar-se a norma especial aplicando-se a norma geral, prevista no artº 21º, da LGT, obrigando a AT em primeiro lugar a exigir o imposto não retido ao substituído e só depois ao substituto?
E. As duas decisões divergem no entendimento do enquadramento daquela situação, sendo que na decisão fundamento o entendimento é que a AT tem a possibilidade de exigência do pagamento do imposto de forma indistinta ao substituto ou ao substituído (cfr. artº 103º, nº4 CIRS) e a decisão sob recurso tem um entendimento oposto.
F. Como tem sido afirmado de forma constante pela jurisprudência do STA, a identidade da questão fundamental de direito reporta-se, concomitantemente, aos preceitos ou princípios jurídicos aplicados e às situações de facto que eles concretamente disciplinaram. E que essa identidade não necessita de ser formal ou absoluta, mas uma identidade essencial. No presente caso até se verifica uma identidade praticamente absoluta, já que o processo 119/2015-T (que foi copiado quase integralmente para o corpo da decisão sob recurso) é exactamente igual ao processo nº 118/2015-T (que é a decisão fundamento), pois é a mesma sociedade que interpôs a acção, devido aos mesmos factos, embora respeitante a um ano diferente.
G. A decisão arbitral recorrida e a decisão fundamento versam sobre situações fácticas substancialmente idênticas, entendendo-se não como uma total identidade dos factos mas apenas como a sua subsunção às mesmas normas legais (Cfr Jorge Lopes de Sousa, Código de Procedimento e de Processo Tributário Anotado e Comentado, 6ª edição, 2011, Volume IV, p.475 809). O que se verifica também in casu.
H. Está em causa em ambos os processos arbitrais a mesma questão, isto é se, nas situações em há rendimentos sujeitos a retenção na fonte que não tenham sido contabilizados nem comunicados como tal aos respectivos beneficiários, o substituto deve assumir responsabilidade solidária pelo imposto não retido, tendo a AT possibilidade de exigência do pagamento do imposto de forma indistinta, ao substituto ou ao substituído (cfr. art.º 103º, nº4 CIRS) ou, nestes casos, deverá desaplicar-se a norma especial aplicando-se a norma geral, prevista no artº 21º, da LGT, obrigando a AT em primeiro lugar a exigir o imposto não retido ao substituído e só depois ao substituto?
I. Portanto, não restam dúvidas sobre a identidade das duas situações.
J. Porém, a posição contida na decisão proferida no processo nº 115/2015-T (decisão fundamento) parece-nos ser aquela que mais vai de encontro com uma correcta interpretação dos preceitos legais aqui aplicáveis.
K. Com efeito, o elemento literal não é o único a ter em consideração no âmbito da tarefa interpretativa.
L. Interpretar a lei é atribuir-lhe um significado, determinar o seu sentido a fim de se entender a sua correcta aplicação a um caso concreto.
M. A interpretação jurídica realiza-se através de elementos, meios, factores ou critérios que devem utilizar-se harmónica e não isoladamente.
N. O primeiro são as palavras em que a lei se expressa (elemento literal); os outros a que se seguidamente se recorre, constituem os elementos, geralmente denominados lógicos (histórico, racional e teleológico).
O. O elemento literal também apelidado de gramatical, são as palavras em que a lei se exprime e constitui o ponto de partida do intérprete e o limite da interpretação.
P. A letra da lei tem duas funções: a negativa (ou de exclusão) e positiva (ou de selecção). A primeira afasta qualquer interpretação que não tenha uma base de apoio na lei (teoria da alusão); a segunda privilegia, sucessivamente, de ente vários significados possíveis, o técnico jurídico, o especial e o fixado pelo uso geral da linguagem.
Q. Mas, além do elemento literal, o intérprete tem de se socorrer algumas vezes dos elementos lógicos com os quais se tenta determinar o espírito da lei, a sua racionalidade ou a sua lógica.
R. Estes elementos lógicos agrupam-se em três categorias: a) elemento histórico que atende à história da lei (trabalhos preparatórios, elementos do preâmbulo ou relatório da lei e occasio legis [circunstâncias sociais ou políticas e económicas em que a lei foi elaborada]; b) o elemento sistemático que indica que as leis se interpretam uma pelas outras porque a ordem jurídica forma um sistema e a norma deve ser tomada como parte de um todo, parte do sistema; c) elemento racional ou teleológico que leva a atender-se ao fim ou objectivo que a norma visa realizar, qual foi a sua razão de ser (ratio legis).
S. No presente caso, podemos ler no Relatório do Orçamento de Estado para 2007 (a folhas 26 e seguintes) depois de se consagrar que uma das principais medidas da política fiscal respeitam “ao reforço do combate à fraude e evasão fiscais, designadamente através do aprofundamento das cláusulas anti abuso” referencia-se, expressamente, a “instituição de um regime de responsabilização solidária do substituto pelo imposto não retido aos beneficiários dos rendimentos em situações qualificadas como práticas fraudulentas relacionadas com a omissão ou redução do montante das remunerações pagas, seja pela sua não contabilização, seja pela sua caracterização como rendimentos não sujeitos a tributação (vg., ajudas de custo)”(sublinhado nosso).
T. Ou seja, o legislador, conhecedor da realidade laboral portuguesa e sabendo que há situações em que os trabalhadores recebem um ordenado base muito baixo e a grande fatia pecuniária é entregue sob as vestes de ajudas de custo, decidiu criar uma norma antiabuso, pretendendo, com isso, dissuadir aquela prática, pois tem consequências terríveis para os trabalhadores caso tenham que recorrer ao subsídio de desemprego e, mais tarde, no montante da reforma.
U. Contabilisticamente não é possível determinar qual o valor de ajudas de custo pagas a cada um dos funcionários, nem se o respetivo pagamento individual foi registado por caixa ou depósitos à ordem.
V. O registo do gasto com ajudas de custo e o registo dos respetivos pagamentos são completamente independentes do processamento de salários, sendo que os salários são integralmente pagos por transferência bancária, mas o montante de ajudas de custo registadas não.
W. Porém, os custos com remunerações (contas 6311, 6321, 6322 e 6323) totalizaram o montante de 1.853.145,94 EUR.
X. Isto significa que o montante de ajudas de custo contabilizadas (3.292.101,57 EUR) é muito superior ao montante global de remunerações pagas, na ordem dos 177%.
Y. A sociedade aqui em apreço dedicando-se ao sector da construção civil, dispunha, em 2014, de apenas 4 funcionários no seu quadro (com contrato sem termo), 2 sócios gerentes e 101 trabalhadores incertos, contratados por projeto para exercerem funções nas respetivas obras.
Z. Sendo evidente que os trabalhadores são contratados para executar as tarefas no local da obra para a qual foram contratados (a termo incerto), sendo, desde logo, do conhecimento de ambas as partes o local onde irá ser realizado o trabalho.
AA. Nos contratos de trabalho celebrados entre a sociedade e os funcionários temporariamente contratados consta, na cláusula segunda, que “o local da prestação de trabalho será feito entre o estabelecimento do 1º outorgante e em local da obra, designado pelo 1º outorgante”. Fica desde logo estabelecido entre as partes, e por escrito, que os funcionários serão afetos à obra que a empresa designar. Os funcionários necessários para cada obra/projeto são contratados depois de adjudicada a obra pelos clientes.
BB. O principal pressuposto para a atribuição de ajudas de custo é a existência de deslocação do funcionário em serviço para local diferente do seu domicílio necessário, sendo o seu domicílio necessário o local onde aceitou prestar o serviço. Tal enquadramento, para pressuposto de atribuição de ajudas de custo, seria possível caso os trabalhadores tivessem sido contratados para prestar serviço em Portugal e aceitassem trabalhar deslocados em qualquer uma das obras em que a sociedade viesse a exercer a sua atividade, incluindo no estrangeiro.
CC. Acontece que, relativamente ao caso em apreço, os trabalhadores contratados (a termo incerto) são, desde o primeiro dia de trabalho, inclusive, exclusivamente afetos a obras no estrangeiro, ao que acresce o facto de, naquele ano, a sociedade não apresentar quaisquer evidências de obras realizadas em Portugal.
DD. Consequentemente, e inerente ao próprio propósito da celebração dos referidos contratos de trabalho, o domicílio necessário/profissional subjacente a cada contrato de trabalho celebrado, é, desde logo, a obra no estrangeiro à qual é afeto o respetivo funcionário, pelo que não se verifica a existência de deslocação para local diferente.
EE. Como confirmação do referido, do cruzamento dos dados constantes dos mapas de ajudas de custo e dos contratos de trabalho conclui-se que desde o primeiro dia de contrato de trabalho, são registadas ajudas de custo no respetivo mapa, pelo valor global diário. Confirma-se que os trabalhadores são automaticamente afetos à respetiva obra que justificou a celebração do seu contrato de trabalho a termo incerto.
FF. Não esquecendo que a característica essencial das ajudas de custo é o seu carácter compensatório, visando reembolsar o trabalhador pelas despesas que foi obrigado a suportar em favor da sua entidade patronal, por motivo de deslocações ao serviço desta, com carácter temporário e fora do local habitual de trabalho fixado, que devam ser imputadas à sua atividade laboral e no interesse da sua entidade empregadora. Por conseguinte, não deve existir qualquer correspondência entre a sua perceção e a prestação do trabalho.
GG. Assim, não restam dúvidas que os montantes pagos como ajudas de custo eram, em boa verdade, remuneração sujeita a retenção, porém não foram contabilizados nem comunicados como tal aos respectivos beneficiários.
HH. Fazendo apelo ao elemento sistemático não faria qualquer sentido entender que devemos aplicar a norma prevista no artigo 21º, nº1 da LGT uma vez que existe a norma especial prevista no artigo 103º, nº4 do CIRS, pois estaríamos a violar o princípio segundo o qual a norma especial derroga a norma geral.
II. Quanto ao elemento racional as normas em apreço devem ser interpretadas no sentido da decisão fundamento, ou seja “face ao regime de responsabilidade solidária aí consagrado (artº 103º, nº4 do CIRS), na possibilidade de exigência do pagamento do imposto de forma indistinta, ao substituto ou ao substituído, de acordo com o regime em questão”.

I.2 – Contra-alegações
Foram produzidas contra-alegações no âmbito da instância com o seguinte quadro conclusivo, a fls. 580 a 587 do SITAF:
I. Não existe qualquer contradição entre o acórdão 118/2015-T do CAAD, invocado como acórdão fundamento e o acórdão recorrido, o proferido no processo 616/2019-T, a questão fundamental de direito apreciado em ambos não sendo a mesma.
II. No primeiro apreciando-se a legitimidade da entidade sobre quem impende a obrigação de efetuar retenção, e que o não fez, de ser responsável pelo pagamento do imposto que a final venha a ser liquidado ao devedor do imposto de rendimento.
III. No segundo apreciando-se a outra questão de direito, a de sendo a entidade responsável pela retenção, devedora solidária pelo pagamento da dívida fiscal resultante da liquidação, necessário se torna que primeiro seja liquidado o imposto ao devedor principal o recebedor do rendimento, no caso o trabalhador, e só depois de tal se ter realizado e a dívida assim criada se ter tornado certa líquida e exigível, também em relação a este, pode esta ser exigida ao substituto fiscal, que não o é do imposto mas sim da dívida criada.
IV. Enquanto tal liquidação prévia não acontecer na esfera do trabalhador que recebeu o rendimento, não há facto fiscal que possa ser exigido à entidade patronal.
V. A entidade patronal não tendo recebido qualquer rendimento não pode ser objeto de liquidação em sede de IRS, pelo que a prática da AT de estimar um qualquer imposto de IRS que eventualmente estivesse em dívida, sem que proceda a tal liquidação na esfera do trabalhador, não constitui qualquer liquidação capaz de constituir uma dívida fiscal por que esta possa ser responsabilizada.
VI. Prática que com o presente recurso, alegadamente de uniformização de jurisprudência, a AT pretende ver legitimada, mas que não o deve ser por parte do STA.
VII. Não apenas porque constituiria um abuso da lei processual que apenas permite ao STA pronunciar-se quando se verificam os legais requisitos para tal, mas igualmente porque tal constituiria a consagração de uma sistemática violação dos direitos dos contribuintes, desde logo dos trabalhadores, que passariam a ser responsabilizados originariamente por uma dívida fiscal que eventualmente até desconhecem e de que se não podem defender, por inexistência de qualquer liquidação de imposto que lhes tivesse sido feito.
VIII. E se eventualmente se sentir a necessidade de acabar em definitivo com a prática abusiva da AT na errada interpretação do nº 4 do artigo 103º do CIRS, não serão estes autos o momento e local possível.
IX. Na apreciação da questão fundamental de direito que no acórdão recorrido o CAAD através da sua sucessiva apreciação por diferentes juízes, de elevadíssima craveira, ex-juizes Conselheiros Jorge Lopes de Sousa e Fernanda Maçãs e Dr. José Pedro Carvalho, entre certamente outros, criaram um conjunto de decisões que são uniformes, coerentes, devida e profundamente fundamentadas, que devem continuar a fazer corrente jurisprudencial.
X. Não devendo este ser interrompida, e em consequência não ser declarada a existência de qualquer contradição de acórdãos que deva merecer uniformização de jurisprudência.

I.3 – Parecer do Ministério Público
Foi emitido o seguinte Parecer pelo Ministério Público, que se encontra a fls. 607 e seguintes do SITAF:
“PARECER
INTRODUÇÃO
A Fazenda Pública vem interpor recurso para uniformização de jurisprudência, ao abrigo do disposto no artigo 25, nº 2, do RJAT (redacção da Lei nº119/2019, de 18 de Setembro), da decisão arbitral proferida no processo nº 616/2019-T CAAD, datada de 3 de Agosto de 2020,
Por alegada oposição com a decisão proferida no processo nº 115/2018T, do mesmo CAAD, datada de 30 de Outubro de 2015.
Cumpre-nos, pois, emitir parecer, o que faremos de imediato
ADMISSIBILIDADE/ PROSSEGUIMENTO DO RECURSO
São requisitos do prosseguimento do recurso para uniformização de jurisprudência:
a)-Contradição entre um acórdão do TCA ou do STA e a decisão arbitral ou entre duas decisões arbitrais;
b)- Trânsito em julgado do acórdão (decisão) fundamento;
c)- Existência de contradição sobre a mesma questão fundamental de direito;
d)- Ser a orientação perfilhada no acórdão (decisão) impugnado desconforme com a jurisprudência mais recentemente consolidada do STA (cf. Acórdão do STA, de 5/07/2012, proc. nº01168/11, disponível em www.dgsi.pt).
Por sua vez, quanto à caracterização da questão fundamental de direito:
a)- Deve haver identidade da questão de direito sobre a qual incidiu o acórdão (decisão) em oposição, que tem pressuposta a identidade dos respectivos pressupostos de facto;
b)- A oposição deverá emergir de decisões expressas e não apenas implícitas;
c)- Não obsta ao reconhecimento da existência de contradição que os acórdãos (decisões) sejam proferidos na vigência de diplomas legais diversos se as normas aplicadas contiverem regulamentação essencialmente idêntica;
d)- As normas diversamente, aplicadas podem ser substantivas ou processuais;
e)- Em oposição ao acórdão (decisão) recorrido pode ser invocado mais de um acórdão (decisão) fundamento, desde que as questões sobre as quais existam soluções antagónicas sejam distintas (cf. Acórdão do STA, de 6/06/2012, proc.nº01103/09).
Posto isto, afigura-se-nos, salvo o devido respeito por melhor opinião, que, in casu, não se verificam os pressupostos para prosseguimento do recurso para uniformização de jurisprudência.
Na verdade, enquanto o acórdão fundamento se pronuncia sobre a legalidade da existência de substituição fiscal por parte da entidade obrigada à retenção de IRS em relação ao devedor do imposto em cobrança,
Concluindo que, embora não sendo a entidade patronal o objecto de incidência do imposto de IRS, é solidariamente responsável pela dívida fiscal que resulta da liquidação de tal imposto ao devedor originário, o trabalhador que recebeu a remuneração.
O acórdão recorrido, não colocou em causa tal entendimento, concluindo que a entidade patronal que pagou o rendimento ao trabalhador e não realizou a retenção de IRS, é responsável solidário pela dívida fiscal deste último.
No entanto, para determinação de tal responsabilidade, há que determinar de qual o montante da dívida de IRS na esfera jurídica do trabalhador, e só depois de esta estar certa, líquida e exigível, se a pode exigir do responsável solidário, e até à medida que da retenção que este não realizou.
Ou seja, só após a liquidação o imposto devido será permitido à AT exigir do responsável solidário o pagamento da dívida que o contribuinte de IRS não tenha desde logo pago
E desde que o montante que lhe seja exigido não ultrapasse o valor da retenção que deveria ter realizado, tal sendo o limite máximo da sua responsabilidade.
Mas não lhe pode ser exigido mais do que a dívida que o seu trabalhador estaria obrigado a pagar após a liquidação adicional do imposto.
Nesta conformidade, salvo o devido respeito por melhor opinião, as situações de facto na decisão arbitral recorrida e na decisão fundamento não são idênticas;
A matéria de direito apreciada na decisão recorrida e na decisão fundamento não são idênticas;
Consequentemente, não se perfilharam nas decisões arbitrais soluções opostas, pois tanto as situações de facto, como a matéria de direito são diferentes.
Pelo que se nos afigura que não se deve tomar conhecimento do presente recurso
CONCLUSÃO
Destarte, nos termos e com os fundamentos expostos, não se deverá tomar conhecimento do presente recurso.”


I.4 – Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.


II – FUNDAMENTAÇÃO

II. 1 – De facto
A decisão arbitral sob recurso considerou como provados os seguintes factos:
A) A sociedade comercial “Y………………, Lda.” (adiante designada por Sociedade), anteriormente denominada “X…………., Lda”, devedora originária do imposto em causa neste processo, exerce a atividade de serralharia civil nomeadamente na área da soldadura e montagem de estruturas, constando no seu site que “a X……….., Lda. atua diretamente ou por via de subempreitada nas várias áreas que a empresa abrange: construções metálicas, offshore, construção naval, tubagem industrial e naval, reparações industriais e navais, etc. Em qualquer destas áreas a C... está preparada para estudar, orçamentar, fabricar e montar projetos de uma forma modular, completos, ou por sectores; sejam eles projetos em estaleiros navais, industriais, construções em oficinas, ou nas nossas instalações” – conforme página 5/20 do relatório de inspecção junto pela AT e pela Requerente e face à posição global da Requerente no PPA e nas alegações;
B) A Sociedade tem a sede na cidade de Braga tem instalações administrativas e oficinas industriais de serralharia, na Rua ………….. nº ….., em Viana do Castelo, onde funcionam ainda os serviços técnicos e administrativos (Zona Industrial ...) – conforme artigo 7º do PPA e parágrafos 4º e 6º do PA (relatório da inspecção tributária – página 4/20);
C) A sociedade mudou, em 08 de Maio de 2015, a sua sede para a Avenida ………….. nº ….. em Braga, pelo facto dos serviços da Segurança Social de Braga funcionarem de uma forma mais célere que os serviços de ...– conforme parágrafos 4º e 6º do PA (relatório da inspecção tributária – página 4/20) e depoimento das testemunhas V……………, U…………………… e T……………..;
D) Durante o ano de 2014 a sociedade, como 1º outorgante, indicando a sua sede na Rua ………… nº 4900-… Viana do Castelo, celebrou vários contratos de trabalho com profissionais da categoria profissional de soldadura, construção e reparação navais, todos com residências em Portugal, onde expressou “contrato de trabalho a termo incerto”, tendo como local de celebração “...” e constando como local de trabalho “o local de prestação de trabalho será feito entre o estabelecimento do 1º outorgante e em local da obra, designado pelo 1º outorgante” – conforme anexo IV ao relatório de inspecção tributária, artigo 51º do PPA, posição global da Requerente no PPA que confirma este tipo de formalização contratual e depoimentos das testemunhas V…………………., U……………… e T……………. quanto ao facto de se tratar de residentes em Portugal;
E) Do conjunto de trabalhadores que a Sociedade tinha no ano de 2014, muitos transitaram de anos anteriores e muitos continuaram para os anos seguintes – conforme artigo 41º do PPA e depoimento das testemunhas V……………, U…………….. e T…………….
F) A Sociedade, em 2014, diretamente e em Portugal, vendeu serviços no valor de 357 milhares de euros, e pré-fabricou em oficina módulos e outros trabalhos de serralharia que incorporou nos serviços e obras que realizou no estrangeiro – conforme documento nº 3 junto com o PPA, artigo 38º do PPA e depoimento das testemunhas V………………, U……………….. e T…………….
G) A Sociedade no âmbito de uma obra que envolveu uma prestação de serviços de cerca de 6 000 000,00 de euros e que realizou na Holanda, arrendou um espaço para escritório, outro para armazém e um outro espaço para guardar utensílios e equipamentos, tendo ocorrido pequenas despesas no escritório, próprias do mesmo, nomeadamente em bebidas e café – conforme artigos 51º, 55º, 56º, 57º, 58º, 62º a 64º do PPA e depoimento da testemunha V………………..
H) Quanto à Sociedade, a Direção de Finanças de Braga emitiu a Ordem de Serviço nº OI201800934 visando um procedimento de inspecção externo, parcial, de confirmação do cumprimento das obrigações dos sujeitos passivos e demais obrigados tributários, com origem no cruzamento interno de informações, decorrente do facto do sujeito passivo pagar ajudas de custo de valor superior a 50% do valor de remunerações pagas (incluindo aquelas) e anomalias decorrentes da análise interna das operações intracomunitárias, quanto ao ano de 2014, procedimento que decorreu entre 2018-05-02 e 2018-11-22 – conforme artigo 6º do PPA e página 2/20 do relatório de inspecção tributária junto pela Requerida com o PA;
I) Na sequência do procedimento atrás referido a Requerida emitiu um relatório de inspecção, que foi notificado à Sociedade, em cujo ponto III consta o seguinte:
“III. Descrição dos factos e fundamentos das correções meramente aritméticas à matéria tributável
III.1 Ajudas de custo
Conforme referido no ponto 11.3.3, a conta "63 — Gastos com pessoal" tem um peso muito significativo na estrutura de gastos da empresa representando, em 2014, cerca de 83,5% do seu volume de negócios.
Analisadas as subcontas que compõe esta conta, destaca-se desde logo o peso significativo da subconta "Ajudas de custo" que ascendeu, neste ano, a um total de 3.292.101,57 EUR:
...
Os custos com remunerações (contas 6311, 6321, 6322 e 6323) totalizaram o montante de 1.853.145,94 EUR. Isto significa que o montante de ajudas de custo contabilizadas (3.292.101 EUR) é muito superior ao montante global de remunerações pagas, na ordem dos 177%.
Esta conta (63272- Ajudas de custo) é contabilizada por contrapartida da conta de pessoal "238298 - Ajudas custo" que agrega o montante global de ajudas de custo contabilizadas, sem separação (contabilística) por funcionário. Posteriormente esta conta de terceiros vai sendo saldada por contrapartida da respetiva conta de depósitos à ordem ou caixa, por via dos pagamentos efetuados.
De salientar que contabilisticamente não é possível determinar qual o valor de ajudas de custo pagas a cada um dos funcionários, nem se o respetivo pagamento individual foi registado por caixa ou depósitos à ordem. O registo do gasto com ajudas de custo e o registo dos respetivos pagamentos são completamente independentes do processamento de salários, sendo que os salários são integralmente pagos por transferência bancária, mas o montante de ajudas de custo registadas não.
Os documentos de suporte dos lançamentos de gastos com ajudas de custo são documentos internos, denominados "mapa de ajudas de custo por deslocação ao estrangeiro" (ANEXO III). Da análise destes mapas arquivados na contabilidade destaca-se desde logo que, salvo raras exceções, não estão na sua generalidade assinados pelos respetivos funcionários e o valor diário constante dos mesmos é sempre de 89,35 EUR, com exceção de 4 funcionários, cuja ajuda de custo diária é ligeiramente inferior.
É importante frisar que o valor das ajudas de custo em 2014 está enquadrado legalmente no regime de atribuição previsto na Portaria 1553-D/2008, de 31 de dezembro, após Decreto-Lei 137/2010, de 28 do mesmo mês, sob a Lei 66-B/2012.
Para enquadramento destes gastos como ajudas de custo, foram solicitados para análise os contratos de trabalho efetuados com estes trabalhadores.
Os contratos de trabalho dos trabalhadores afetos às obras, para quem foram processadas ajudas de custo, são todos "Contratos de trabalho a termo incerto", conforme exemplo anexo (ANEXO IV).
Este tipo de contrato (a termo incerto) é um acordo por escrito entre a entidade patronal e o colaborador com um período de início, mas sem um fim estipulado. Segundo o nº 1 do artigo 140º do Código do Trabalho, este tipo de contrato apenas pode ser celebrado para cumprir uma necessidade temporária da empresa e pelo período estritamente necessário à satisfação da mesma, nomeadamente para a execução de obra, projeto ou outra atividade definida e temporária, incluindo a execução, direção ou fiscalização de trabalhos de construção civil, obras públicas, montagens e reparações industriais, em regime de empreitada ou em administração direta, bem como os respetivos projetos ou outra atividade complementar de controlo e acompanhamento.
Segundo consta do Relatório Único da empresa, a X…………, Lda dispunha em 2014 de apenas 4 funcionários no seu quadro (com contrato sem termo), 2 sócios gerentes e 101 trabalhadores incertos, contratados por projeto para exercerem funções nas respetivas obras. a X………….., Lda recorre a este tipo de contrato para não sobrecarregar a sua estrutura fixa de gastos adaptando-se à incerteza e sazonalidade da atividade, contratando apenas o pessoal que necessita para fazer face aos projetos que vai angariando nos seus clientes e pelo tempo necessário para fazer face a essa necessidade.
Conclui-se desde logo que os funcionários são contratados para executar as tarefas no local da obra para a qual foram contratados (a termo incerto), sendo desde logo do conhecimento de ambas as partes o local onde irá ser realizado o trabalho.
Nos contratos de trabalho celebrados entre a X……………, Ldª e os funcionários temporariamente contratados consta, na cláusula segunda, que "o local da prestação de trabalho será feito entre o estabelecimento do 1º outorgante e em local da obra, designado pelo 1º outorgante". Fica desde logo estabelecido entre as partes, e por escrito, que os funcionários serão afetos à obra que a empresa designar. Os funcionários necessários para cada obra/projeto são contratados depois de adjudicada a obra pelos clientes.
O principal pressuposto para a atribuição de ajudas de custo é a existência de deslocação do funcionário em serviço para local diferente do seu domicílio necessário, sendo o seu domicílio necessário o local onde aceitou prestar o serviço. Tal enquadramento, para pressuposto de atribuição de ajudas de custo, seria possível caso os trabalhadores tivessem sido contratados para prestar serviço em Portugal e aceitassem trabalhar deslocados em qualquer uma das obras em que a X…………….., Lda, viesse a exercer a sua atividade, incluindo no estrangeiro.
Acontece que, relativamente ao caso em apreço, e tal como a seguir ficará claramente demonstrado, os trabalhadores contratados (a termo incerto) são, desde o primeiro dia de trabalho, inclusive, exclusivamente afetos a obras no estrangeiro, ao que acresce o facto de, naquele ano, a X…………., Lda não apresentar quaisquer evidências de obras realizadas em Portugal.
Consequentemente, e inerente ao próprio propósito da celebração dos referidos contratos de trabalho, o domicílio necessário/profissional subjacente a cada contrato de trabalho celebrado, é, desde logo, a obra no estrangeiro à qual é afeto o respetivo funcionário, pelo que não se verifica a existência de deslocação para local diferente.
Como confirmação do referido, do cruzamento dos dados constantes dos mapas de ajudas de custo e dos contratos de trabalho conclui-se que desde o primeiro dia de contrato de trabalho, são registadas ajudas de custo no respetivo mapa, pelo valor global diário. (ANEXO V). Confirma-se que os trabalhadores são automaticamente afetos à respetiva obra que justificou a celebração do seu contrato de trabalho a termo incerto.
Tendo em conta o especial enquadramento fiscal deste tipo de gastos, que no caso do montante registado pela X………….., Lda não foi sujeito a qualquer tipo de tributação, nem em sede de IRS nem em sede de IRC, importa referir que a característica essencial das ajudas de custo é o seu carácter compensatório, visando reembolsar o trabalhador pelas despesas que foi obrigado a suportar em favor da sua entidade patronal, por motivo de deslocações ao serviço desta, com carácter temporário e fora do local habitual de trabalho fixado, que devam ser imputadas à sua atividade laborai e no interesse da sua entidade empregadora. Por conseguinte, não deve existir qualquer correspondência entre a sua perceção e a prestação do trabalho.
Dado este aspeto compensatório e uma vez que não devem representar qualquer acréscimo patrimonial, as ajudas de custo não devem ser consideradas rendimento para efeitos tributários, destinando-se apenas a compensar gastos que afetam negativamente a esfera patrimonial do trabalhador.
No entanto, a empresa tem contabilizados nos seus gastos valores de rendas suportadas com dois imóveis na holanda, durante todo o ano. Nos recibos de rendas referem "warehouse" e “office" mas, de acordo com as moradas referidas no mesmo, constatamos que se trata de dois imóveis habitacionais, com dois pisos.
Por outro lado, na contabilidade da empresa estão também registadas em gastos diversas despesas de restaurantes e de supermercado, ao longo do ano, suportadas no estrangeiro (ANEXO VI).
Resumidamente, é relevante, para efeitos da atribuição de ajudas de custo, que o trabalhador esteja deslocado relativamente ao seu local de trabalho fixado e que, por força dessa deslocação, incorra em despesas que devem ser suportadas pela entidade patronal porque efetuadas ao serviço e a favor desta, situação que não se verifica no caso em apreço, conforme mencionado anteriormente, dado que os trabalhadores são exclusivamente contratados para prestar serviço nas respetivas obras/projeto para o qual foram contratados, para além de que a empresa suportou diretamente gastos relacionados com rendas, deslocações e estadas.
...
No quadro seguinte são apresentados 3 exemplos que refletem o procedimento comum em relação aos funcionários incertos, elaborado com base no respetivo contrato de trabalho, mapa de afetação dos funcionários às obras (fornecido pelo sujeito passivo) e mapa de ajudas de custo do primeiro mês ao serviço da empresa (ANEXO VII —documentos comprovativos).


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Da análise destes quadros podemos concluir que desde o primeiro dia do contrato que os funcionários são afetos à respetiva obra e desde esse dia, inclusive, são processadas ajudas de custo no respetivo mapa. Não há por isso uma deslocação dos funcionários em relação ao local de trabalho fixado pois os mesmos são de imediato afetos à obra para a qual foram contratados, ao que acresce o facto de, naquele ano, a X……………, Lda não apresentar quaisquer evidências de obras realizadas em Portugal, pelo que, só se pode concluir que, no momento da celebração dos referidos contratos de trabalho, ambas as partes assumem, desde logo, essa afetação (a uma obra no estrangeiro) pelo que as condições salariais, nomeadamente no que diz respeito ao montante do salário acordado, não poderia ser indiferente a isso, pese embora, tenha sido dado o errado enquadramento de uma parte substancial do mesmo com natural interesse para ambas as partes).
Foram também registados como gastos da X………… Lda, os montantes pagos pelas viagens dos trabalhadores. Do cruzamento efetuado entre os dados constantes dos documentos de suporte a estes gastos com viagens (nomeadamente dados das reservas com identificação dos passageiros) e os mapas de ajudas de custo, foi possível detetar diversas situações em que os funcionários não estavam no local da obra (no estrangeiro) mas que esses dias constam no respetivo mapa a ajuda de custo diária (ANEXO VIII).
Comprova-se assim que, além dos funcionários serem contratados para exercerem funções nos locais das obras (não há deslocação) e existirem custos de alimentação e alojamento suportados pela X…………… Lda. os montantes registados nos mapas de ajudas de custo não poderão corresponder integralmente a compensações pelos gastos incorridos no estrangeiro pois, nestes casos, mesmo o funcionário não estando no local da obra (estrangeiro), foram processados valores de ajudas de custo diárias.
O valor registado em gastos referentes a ajudas de custos não está comprovado e o valor pago aos funcionários não pode ter este enquadramento pois não cumpre, desde logo, com o requisito base para esta consideração.
III.1.1 Rendimento do trabalho — Retenção de IRS
Tal como já referido e, ao contrário do que sucedeu com vencimentos, o montante registado a título de ajudas de custo não foi integralmente pago por transferência bancária.
Assim, colocado em causa o enquadramento daqueles gastos como ajudas de custo, importa desde logo distinguir o montante comprovadamente pago por transferência bancária (2.613.338,38 EUR) e o montante movimentado por contrapartida da conta caixa (678.763,19 EUR).
O artº 82º do DL. 49.408, de 24-11-1969 (Regime jurídico do Contrato Individual de Trabalho) determina que:
«1 - Só se considera retribuição aquilo a que, nos termos do contrato, das normas que o regem ou dos usos, o trabalhador tem direito como contrapartida do seu trabalho
2 - A retribuição compreende a remuneração de base e todas as prestações regulares e periódicas feitas, directa ou indirectamente, em dinheiro ou em espécie.
3 - Até prova em contrário, presume-se constituir retribuição toda e qualquer prestação da entidade patronal ao trabalhador»
A lei consagrou também, no nº 3 do artº 258º do Código do Trabalho, esta presunção ao determinar que "presume-se constituir retribuição qualquer prestação do empregador ao trabalhador".
Estabeleceu-se, pois, nestes normativos uma presunção no sentido de que qualquer atribuição patrimonial efetuada pelo empregador em benefício do trabalhador, salvo prova em contrário, constitui parcela da retribuição.
Assim, relativamente às importâncias comprovadamente pagas aos funcionários, como sendo referentes a ajudas de custo, comprova-se que as mesmas não podem ser justificadas como tal, pois:
i) Os mapas não estão assinados pelos funcionários nem os valores expressos nos recibos de vencimento, pelo que não há prova de que funcionários tenham tido conhecimento e concordância dos valores processados;
ii) O local de trabalho para o qual estes funcionários são contratados, a termo incerto, corresponde ao local das várias obras/projectos adjudicados, portanto não se verifica a condição de o trabalhador se encontrar deslocado do seu local de trabalho habitual (domicílio necessário);
iii) São registadas ajudas de custo no mapa independentemente do funcionário estar ou não no estrangeiro e desde o primeiro dia em que se encontra em vigor o respetivo contrato de trabalho, inclusivamente no dia em que este é assinado;
iv) Há despesas com alojamentos (rendas e hotéis) e alimentação (despesas de supermercado e outras), registadas em gastos na empresa que comprovam que a empresa suporta gastos em manter os seus trabalhadores no estrangeiro.
Os valores comprovadamente pagos constituem, assim, nos termos dos normativos invocados; parcela da retribuição.
Conclui-se assim que os montantes efetivamente pagos pelo sujeito passivo, como sendo ajudas de custo (enquadramento dado pela empresa), devem ser considerados como rendimentos do trabalho dependente, conforme o disposto no artº 2º do Código do IRS, tributados para efeitos fiscais em sede daquele imposto e sujeitos a retenção na fonte nos termos dos artigos 98º e nº 1 do 99º do Código do IRS, pelo que caberia ao sujeito passivo ter comunicado aos respetivos beneficiários esses quantitativos.
Nos termos do nº 4, do artº 103º, do Código do IRS, "Tratando-se de rendimentos sujeitos a retenção que não tenham sido contabilizados nem comunicados como tal aos respetivos beneficiários, o substituto assume responsabilidade solidária pelo imposto não retido". Nestes termos, o sujeito passivo assume a responsabilidade solidária pelo imposto não retido referente aos valores pagos a título de ajudas de custo.
Para apuramento do montante de imposto que deixou de ser retido em relação a cada um dos funcionários da empresa foi recolhida a informação relacionada com a sua situação cadastral, do agregado familiar à data, e montante de rendimentos declarados pela empresa, nas declarações mensais de rendimentos.
Relativamente ao agregado, foi considerado aquele que foi declarado pelo trabalhador em sede de IRS em 2014, considerando-se a situação de "não casado, um titular, sem dependentes" nos casos em que essa declaração não existe.
Relativamente aos funcionários estrangeiros, pelo facto de serem considerados não residentes em Portugal, foi aplicada a taxa liberatória de 25%, prevista no nº 4 do artº 71º do Código do IRS.
Consta em anexo (ANEXO IX) um mapa com o detalhe da situação familiar de cada trabalhador (titulares de rendimentos e número de dependentes), rendimentos mensais auferidos, taxa de retenção na fonte aplicável e respetivos cálculos do imposto em falta.
No quadro seguinte são apresentados os quantitativos mensais do imposto em falta apurado, a título de Retenções na Fonte:

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- conforme relatório de inspecção tributária junto com o PA pela requerida – páginas 8/20 a 15/20;
J) Em data não apurada, na sequência do relatório da inspecção tributária acima referido, a Requerida notificou a Sociedade da liquidação adicional em sede de IRS aqui impugnada, com o número 2018 6410000845 no valor de € 893.461,00 e de juros compensatórios no valor de € 155.285,62, o que perfaz um total de 1 048 746,62 €uros – conforme nota de liquidação junta com o PPA;
K) A sociedade Y……………….., Lda. não impugnou a liquidação objeto dos presentes autos, nem pagou o imposto liquidado, tendo sido instaurada a execução fiscal com o número 3174201901011758, em que se apurou não existirem bens suficientes para o seu pagamento, tendo sido revertida contra a aqui Requerente, com fundamento na alínea b) do nº 1 do artigo 24º da LGT – conforme artigo 2º do PPA;
L) Em 19.09.2019 a Requerente entregou no CAAD o presente pedido de pronúncia arbitral – conforme registo do SGP do CAAD.

A decisão arbitral fundamento, proferido pelo Centro de Arbitragem Administrativa no âmbito do processo nº 0118/2015-T datado de 30/10/2015, deu como provado a seguinte factualidade:
1.A ora Requerente é uma sociedade anónima, com sede na Rua … nº …- 1º em …, contribuinte fiscal nº …, que desde 26/11/2012 se encontra registada para o exercício de “actividades de Empresas de Trabalho Temporário” a que compete o CAE 78200,
2.Enquadrando-se para efeitos de IVA no Regime Normal de periodicidade mensal e para efeitos de IRC no Regime Geral.
3.Em 14/06/2011 pela Direcção Distrital de Finanças do Porto, foi emitida a ordem de serviço nº 0I2011 … que determinou acção inspectiva à Requerente, que teve início em 01/07/2011.
4. A acção inspectiva à contabilidade da Requerente, “teve origem no facto de os custos com pessoal patentes nos Anexos A das Declarações Anuais de Informação Contabilística e Fiscal serem significativamente superiores aos valores constantes dos Anexos J entregues pelo SP, adicionados do valor da contribuição para a Segurança Social encargo do contribuinte, e consequentemente aos valores totais declarados pelos diversos funcionários com rendimentos da Categoria A de IRS, pagos nos anos de 2008 e 2009.”
5. Os actos de liquidação, subjacentes nº 2011 …, (IRS- Retenções na Fonte) e nº 2011 … a 2011 … (Juros Compensatórios), foram apurados em resultado da acção inspectiva em causa;
6. Em 10 de Fevereiro de 2012, a Requerente apresentou reclamação graciosa contra as referidas liquidações, à qual veio a caber o nº … 2012 … (cfr. documento nº 3 junto com o pedido de pronúncia arbitral);
7. Com data de 9 de Julho de 2012, foi proferido despacho de indeferimento da dita reclamação graciosa pela Técnica Economista Assessora da DDF do Porto, por Subdelegação de competências da Diretora de Finanças do Porto (PA anexo 1)
8. Tal despacho de indeferimento foi notificado à Requerente através do Ofício nº …/…/2012 de 11 de Julho de 2012 e por esta recepcionado;
9. Na sequência do qual, em 08 de Agosto de 2012, a Requerente apresentou recurso hierárquico ao qual veio a ser atribuído o nº …/2012; (cfr.documento nº 4, junto com o pedido de pronúncia arbitral e PA anexo)
10. O recurso hierárquico em causa veio a ser totalmente indeferido, por despacho de 24 de Outubro de 2014, proferido pela Exma. Senhora Subdirectora Geral dos Impostos, e notificado à ora Requerente em 24 de Novembro seguinte, através do Ofício nº … (PA anexo);
11. Em 22 de Fevereiro de 2015, a Requerente apresentou o seu requerimento de pedido de pronúncia arbitral junto do CAAD, que deu origem ao presente processo.
Do relatório de inspecção tributária consta, para além do mais, e com relevo que:
“A A… é titular do Alvará nº … do Instituto do Emprego e Formação Profissional (IEFP), estando desta forma autorizada a exercer a actividade de trabalho temporário, prevista nos termos dos artigos 5º a 8º do Decreto Lei nº 260/2009, de 25 de Setembro”,
“Da análise dos balancetes analíticos antes de apuramento de resultados dos exercícios verifica-se que a A… contabilizou nos mesmos, em diversas subcontas da conta POC- “64- Custos com Pessoal”, verbas pagas a título de ajudas de custo aos seus funcionários nos montantes anuais de 1.023.589,98 € e 1.291. 025,04 €, respectivamente, excluindo as que já considerou rendimentos da Categoria A de IRS”
“Os contratos de trabalho celebrado pela A… com os trabalhadores temporários estabelecem, normalmente na cláusula sexta qual o local de trabalho do trabalhador temporário, local este que corresponde ao local de trabalho necessário previsto nos Decreto – Lei nº 106/98, de 24 de Abri, e Decreto-Lei nº 192/95, de 28 de Julho.”
“Nos contratos de prestação de serviços celebrados com os seus clientes, não são identificados os trabalhadores cedidos, ficando estabelecido o salário de referência para cada categoria de trabalhador (tudo incluído), bem como o valor hora a facturar pelo A... por categoria e por cada trabalhador cedido”,
“Nas facturas emitidas aos seus clientes, a A... não menciona o número de trabalhadores cedidos, e não identifica os mesmos e não descrimina os valores facturados a título de prestação de serviço e a título de ajudas de custo para cada um deles, constando nas suas facturas apenas uma única rubrica “Cedência de pessoal para trabalhos na vossa obra nº ------“ com a indicação do período a que respeita a facturação, sendo que na zona inferior das suas facturas surge um carimbo com o título “Declaração” seguido do seguinte texto “Para efeitos do dispositivo da alínea f) do artigo 42º do CIRC, nova redacção dada pelo nº 1 do artº 30º da Lei nº 87-B/98 de 31 de Dezembro, declaramos que a presente factura inclui de forma expressa Ajudas de Custo no montante de” surgindo aposto manualmente, num espaço para o efeito o valor de ajudas de custo supostamente incluídas no total facturado”
“ A A... possui boletins itinerários mensais elaborados pela própria empresa e sem a assinatura das funcionários a que respeitam, identificando o trabalhador (nome e categoria profissional) e demonstrando os dias, tipo de serviço, o local e compensação diária que originaram a sua atribuição, constatando-se que grande parte das referidas ajudas de custo visam compensar os trabalhadores por estes efetuadas aos seus domicílios necessários, localidades nas quais aceitaram contratualmente exercer a sua atividade laboral pelo que as mesmas consubstanciam remunerações efectivas da al. d) do nº 3 do artº 2º do CIRS, conjugada com o DL. nº 106/98, de 24 de abril, que deveriam ter sido, aquando da sua atribuição, alvo de retenção na fonte sendo a “A...”, nos termos do nº 4 do art. 103º do CIRS, responsável solidário pelo pagamento das verbas não retidas”;
“ A “A...”, pelo simples facto de os trabalhadores irem trabalhar para determinada obra da empresa utilizadora da trabalho temporário e tal implicar deslocações, entende que desse facto decorre o direito ao abono de ajudas de custo […];
“ […] as prestações auferidas a título de “ajudas de custo” que correspondem a deslocações ao local de trabalho patente nos contratos de trabalho integravam a respectiva atribuição ou remuneração de trabalho, constituindo um complemento desta, pois foram atribuídas ao trabalhador independentemente da existência nesses mesmos dias de quaisquer deslocações ocasionais efectuadas em serviço da entidade patronal, pelo que será de considerar essas verbas como rendimentos do trabalho dependente sujeitos a IRS, nos termos do artigo 2º do CIRS e do Decreto-Lei 106/98.”

II.2 – De Direito
I. Dispõe o artigo 25.º do RJAT – e dispunha na sua redaçao à data da interposição do presente Recurso – que:
1 - A decisão arbitral sobre o mérito da pretensão deduzida que ponha termo ao processo arbitral é susceptível de recurso para o Tribunal Constitucional na parte em que recuse a aplicação de qualquer norma com fundamento na sua inconstitucionalidade ou que aplique norma cuja inconstitucionalidade tenha sido suscitada.
2 - A decisão arbitral sobre o mérito da pretensão deduzida que ponha termo ao processo arbitral é ainda suscetível de recurso para o Supremo Tribunal Administrativo quando esteja em oposição, quanto à mesma questão fundamental de direito, com outra decisão arbitral ou com acórdão proferido pelo Tribunal Central Administrativo ou pelo Supremo Tribunal Administrativo.
3 - Ao recurso previsto no número anterior é aplicável, com as necessárias adaptações, o regime do recurso para uniformização de jurisprudência regulado no artigo 152.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, contando-se o prazo para o recurso a partir da notificação da decisão arbitral.
4 - Os recursos previstos nos números anteriores são apresentados, por meio de requerimento acompanhado de cópia do processo arbitral, no tribunal competente para conhecer do recurso.
5 - A interposição de recurso é obrigatoriamente comunicada ao Centro de Arbitragem Administrativa e à outra parte.

II. Vejamos, então e antes de tudo o mais, se se verificam as condições de recorribilidade previstas no n.º 2 deste artigo 25.º do RJAT:
- que a decisão arbitral recorrida se tenha pronunciado sobre o mérito da pretensão deduzida e tenha posto termo ao processo arbitral;

- que a mesma esteja em oposição, quanto à mesma questão fundamental de Direito, com acórdão proferido pelo Tribunal Central Administrativo ou pelo Supremo Tribunal Administrativo ou com outra decisão arbitral, nos termos do mesmo artigo;

- que a orientação perfilhada na decisão arbitral não esteja de acordo com a jurisprudência mais recente consolidada do Supremo Tribunal Administrativo, nos termos do n.º 3 do artigo 152.º do CPTA, para o qual o n.º 3 do artigo 25.º remete;

- que o acórdão fundamento tenha transitado em julgado, nos termos do artigo 688.º, n.º 2 do CPC, aplicável ex vi artigo 140.º, n.º 3 do CPPT.

III. Mais se entende que é idêntica a questão fundamental de Direito quando:

- as situações fácticas em ambos os arestos sejam substancialmente idênticas, entendendo-se, como tal, para este efeito, as que sejam subsumidas às mesmas normas legais;

- o quadro legislativo seja também substancialmente idêntico, o que sucederá quando seja o mesmo o regime jurídico aplicável ou quando as alterações legislativas a relevar num dos acórdãos não interfira, nem directa nem indirectamente, na resolução da questão de direito controvertida;

- quando a divergência entre as decisões (recorrida e fundamento) se verifica ao nível das próprias decisões e não exclusivamente quanto aos respectivos fundamentos.


IV. Ora, vertendo ao caso dos presentes autos, pode-se concluir, quanto à condição de identidade do circunstancialismo factual e jurídico, que existe uma evidente semelhança entre os casos tratados nas decisões recorrida e fundamento.
Do ponto de vista dos factos, as situações constantes da decisão recorrida e da decisão fundamento são próximas:
- respeitam a pagamentos não qualificados como “remunerações”, antes se apresentando como supostas ajudas de custo – num caso, traduzidas em compensações por deslocações próprias e noutro a compensações por deslocações, alojamento e alimentação;
- os sujeitos passivos correspondem a empresas com distintos objectos sociais (serralharia civil e trabalho temporário), mas com idênticos quadros contabilísticos irregulares e com ausência de comunicação aos beneficiários, no que respeita ao decisivo circunstancialismo previsto no n.º 4 do artigo 103.º do Código do IRS.
Assim sendo, nenhum obstáculo se levanta, nesta sede, à admissibilidade do presente Recurso.

V. O mesmo se conclui do ponto de vista do circunstancialismo jurídico, com ambas as decisões a terem por pano de fundo o n.º 4 do artigo 103.º do Código do IRS, norma introduzida pelo artigo 46.º da Lei n.º 53-A/2006, de 29 de Dezembro e sem quaisquer modificações de redacção ocorridas desde então. São, por conseguinte, semelhantes as redações e o quadro legal enformador, seja aquando da respectiva aplicação da norma em causa, seja à data em que as decisões em confronto foram proferidas.
É, por fim, indiscutível que ambas as decisões se pronunciam de mérito sobre as questões que lhes foram colocadas e que, paralelamente, a decisão fundamento já transitou em julgado, podendo assim ser objecto de confronto com a decisão ora recorrida.

VI. Resta, portanto, apenas apurar se ambas as decisões se pronunciaram sobre a mesma questão de Direito, sendo certo que é entendimento da Recorrida, assim como do Ministério Público, que tal condição não se encontra verificada.
Importa, a este respeito e a título preliminar, começar por registar que a Recorrente sustenta dever firmar-se jurisprudência no sentido de que “as normas em apreço devem ser interpretadas no sentido da decisão fundamento, ou seja “face ao regime de responsabilidade solidária aí consagrado (artº 103º, nº4 do CIRS), na possibilidade de exigência do pagamento do imposto de forma indistinta, ao substituto ou ao substituído, de acordo com o regime em questão”.
Vejamos, então.

VII. Pode ler-se na decisão fundamento que o objecto da mesma consiste em: “saber-se se as liquidações efectuadas em nome da Requerente, e a esta notificadas, com fundamento no disposto no artº 103º, nº 4 do CIRS, enfermam ou não de ilegalidade”, concluindo-se que “De forma diferente [à responsabilidade subsidiária], no regime da solidariedade, esta actuando num plano de horizontalidade, o credor poderá indistintamente, exigir de qualquer dos responsáveis / devedores o seu crédito. Vigora aqui o regime previsto no artigo 512º do Código Civil, segundo o qual: “a obrigação é solidária, quando cada um dos devedores responde pela prestação integral e esta a todos libera, ou quando um dos credores tem a faculdade de exigir, por si só, a prestação integral e esta libera o devedor para com todos eles”.” E prossegue-se na decisão arbitral fundamento, sublinhando que: “A alteração legislativa produzida, e para o que aqui releva, instituiu um regime de responsabilidade para a entidade retentora do rendimento na sua qualidade de substituto, em linha com o beneficiário do mesmo (substituído/trabalhador), ou seja, criou na previsão do normativo em causa um regime de responsabilidade solidária, mesmo antes da fase coerciva do recebimento do imposto.” Mais adiante, detalha-se que: “É pois à luz destes princípios e igualmente tendo em conta a intenção e os fins visados pelo legislador subjacentes à alteração levada a cabo no artigo 103º do CIRS que não encontramos razões para discordar da interpretação que a AT fez do mesmo, traduzida e corporizada na prática, e face ao regime de responsabilidade solidária aí consagrado, na possibilidade de exigência do pagamento do imposto de forma indistinta, ao substituto ou ao substituído, da acordo com o regime em questão.” Em seguida, pode ler-se que, segundo a Requerente no processo arbitral: “…a interpretação do nº 4 do artigo 103º do CIRS, na redacção que lhe foi conferida pela LOE 2007, levada a cabo pela AT, no sentido de “viabilizar a exigência do imposto não retido ainda, em fase de pagamento voluntário, e já não, apenas, na fase de cobrança coerciva” (cfr. artigo 93º do pedido de pronúncia arbitral) viola vários princípios constitucionais…” (sublinhados nossos), estendendo-se, depois, a decisão arbitral amplamente acerca da não violação de tais princípios da Lei Fundamental. E por fim, no segmento decisório, conclui-se coerentemente pela legalidade das liquidações.

VIII. Por seu turno, na decisão recorrida, “A questão que a Requerente coloca é a de saber se, nestas situações de responsabilidade solidária do substituto, lhe pode ser exigido o pagamento da dívida na fase de pagamento voluntário, designadamente sendo ele e não o devedor originário notificado para o pagamento voluntário da quantia liquidada.”, entendendo-se que “Por isso, é de concluir que tem de ser proporcionada sempre ao devedor principal a possibilidade de pagar voluntariamente a dívida tributária, na sequência da notificação da liquidação. Assim, se é certo que o responsável solidário também pode ser notificado para pagamento voluntário da dívida, antes de ser instaurada execução fiscal, também será de entender que a sua notificação deverá ser posterior à do devedor originário, só tendo lugar no caso de o pagamento voluntário por este não ser efetuado.” (sublinhado nosso) e, ainda, que “Poderia, por isso, a Requerida demandar a Requerente, até ao limite do montante de imposto que deveria ter retido, depois de previamente determinado o quantum da sua responsabilidade, através da liquidação do imposto devido pelos sujeitos passivos originários, o que não ocorreu.” (sublinhado nosso), donde se conclui, em síntese, que “…o facto tributário que gera a responsabilidade solidária é constituído pelo não pagamento voluntário pelos devedores principais dos montantes de IRS não retidos possam ser exigido a cada um destes…”. Daqui resultou, em coerência, a decisão arbitral de anular as contestadas liquidações adicionais de IRS.

IX. Ora, confrontando em detalhe ambas as decisões, terá de se concluir que, embora em termos não necessariamente convergentes, a interpretação seguida nas decisões em confronto não é, ainda assim e em bom rigor, contraditória.
Com efeito, a decisão recorrida estriba a ilegalidade que aponta às liquidações por si anuladas na exigibilidade (não cumprida) de uma liquidação prévia (que funciona como uma espécie de interpelação) de IRS junto do substituído, da qual resulte apurado o montante do imposto a pagar, no seguimento do qual será, só então, possível exigir ao substituto tributário o montante de imposto que pode ir até ao valor que devia ter sido retido e não o foi. E, por isso, anula as liquidações.
Já na decisão fundamento, a questão em debate reconduz-se a saber se é na fase do cumprimento voluntário ou na fase do cumprimento coercivo da obrigação fiscal que se deve efectivar a solidariedade prevista no n.º 4 do artigo 103.º do Código do IRS e se pode ser exigido o pagamento da dívida fiscal ao substituto tributário logo no primeiro daqueles momentos. E conclui tal decisão, também em coerência, que a AT pode, ainda na fase de cumprimento voluntário, exigir a obrigação fiscal ao substituto tributário, não sendo necessário o início de qualquer processo executivo.
Ou seja, as decisões não adotam leituras frontalmente contraditórias, não sendo por isso insusceptíveis de conciliar; com efeito, não é impossível sustentar, em confluência de ambas as decisões, que se possa exigir do substituto tributário o montante do imposto não retido ainda numa fase pré-executiva, desde que previamente determinado o valor do mesmo por meio de uma prévia liquidação de IRS efetuada ao substituído tributário e sem esperar pelo incumprimento da obrigação fiscal por parte deste.

X. Em conclusão, forçoso é, por conseguinte, concluir que não se pode considerar como verificada a condição decisiva de admissibilidade do presente Recurso: a de a decisão arbitral recorrida estar em frontal oposição, quanto à mesma questão fundamental de Direito, com uma outra decisão arbitral transitada em julgado.


III. DECISÃO
Nestes termos, acordam os Juízes deste Supremo Tribunal em não tomar conhecimento do mérito do presente Recurso.


Custas pela Recorrente.

Lisboa, 24 de Novembro de 2021. - Gustavo André Simões Lopes Courinha (relator) - Isabel Cristina Mota Marques da Silva – Francisco António Pedrosa de Areal Rothes – Jorge Miguel Barroso de Aragão Seia – José Gomes Correia – Joaquim Manuel Charneca Condesso – Nuno Filipe Morgado Teixeira Bastos – Aníbal Augusto Ruivo Ferraz – Pedro Nuno Pinto Vergueiro – Paula Fernanda Cadilhe Ribeiro – Anabela Ferreira Alves e Russo