Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0769/12
Data do Acordão:12/05/2012
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:VALENTE TORRÃO
Descritores:RECURSO DE REVISTA EXCEPCIONAL
PRESSUPOSTOS
Sumário:I - O recurso de revista consagrado no artigo 150º do CPTA tem natureza absolutamente excecional. Daí que apenas seja admissível nos precisos e estritos termos em que o legislador o consagrou.
II - Este recurso destina-se a viabilizar a reapreciação pelo Supremo Tribunal Administrativo de questão que, pela sua relevância jurídica ou social, se revista de importância fundamental ou quando a admissão do recurso seja claramente necessária para uma melhor aplicação do direito.
III - Não preenche os requisitos atrás enunciados a questão da interpretação do artº 71º, nº 3 do CIVA relativamente ao prazo de regularização de faturas para efeitos de recuperação de IVA liquidado em excesso, quer porque não se afigura de especial complexidade, suscitando dúvidas de interpretação na doutrina e na jurisprudência, quer ainda por não se antevê a possibilidade de esta questão vir a surgir em elevado número de casos a submeter aos tribunais.
Nº Convencional:JSTA000P14973
Nº do Documento:SA2201212050769
Data de Entrada:07/06/2012
Recorrente:A..., S.A.
Recorrido 1:FAZENDA PÚBLICA
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: Acordam na Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo:

I - “ A……., S.A.”, melhor identificada nos autos, veio, ao abrigo do disposto no artº 150º do CPTA, recorrer do acórdão Tribunal Central Administrativo Sul em 14.02.2012 que confirmou a decisão proferida pelo Tribunal Tributário de Lisboa, que julgou improcedente a impugnação por ela deduzida contra as liquidações adicionais de IVA e juros compensatórios referentes ao ano de 2002, apresentando para o efeito, alegações nas quais conclui:

Iª). No que respeita ao OBJETO dos presentes autos, o mesmo consiste “na aplicação do n.º 3 do artigo 71° do Código do IVA“ ou seja: matéria atinente a regularização de IVA decorrente de faturas inexatas efetuada por via de notas de crédito das quais resultou imposto a favor do sujeito passivo, no caso, a ora Recorrente.

IIª). A norma em apreço é a que corresponde ao atual artigo 78º, n.º 3 do Código do IVA, tendo apenas sido alterado o prazo nela previsto de um ano para dois anos, pelo que a necessidade de uma interpretação legal se demonstra completamente atual e premente no atual quadro legislativo.

IIIª). Encontram-se verificados, in casu, os requisitos de que o artigo 150º do CPTA faz depender a admissão do Recurso de Revista, a saber: está em causa a apreciação de uma questão que, pela sua relevância jurídica ou social, se reveste de importância fundamental e a admissão do recurso demonstra-se fundamental para uma melhor aplicação do direito.

IVª). A interpretação normativa do Tribunal recorrido respeita, desde logo, a regularizações de IVA de que decorre imposto a favor do sujeito passivo - ou do Estado - que contende com os princípios constitucionais relativos a direitos, liberdades e garantias, ao sistema financeiro e fiscal do Estado Português, de onde decorre diretamente a sua relevância social e jurídica.

Vª). O Tribunal recorrido interpreta a norma em apreço no sentido de que “no caso de faturas inexatas, em que se verifique haver IVA liquidado em excesso, o sujeito passivo “apenas” pode recuperar a situação no prazo de um ano, contado da data de emissão das faturas envolvidas e consequente nascimento do direito à dedução, tendo, para o efeito, de estar na posse de prova de que o adquirente tomou conhecimento da respetiva retificação” e

VIª). Conclui que “o versado artigo do CIVA, ao instituir a possibilidade de retificação do imposto, cumpre a exigência comunitária de que a matéria coletável seja reduzida em determinados casos, impondo, contudo, condições, requisitos, para tal: que a operação retificativa tenha lugar num período temporal específico e que o sujeito passivo se muna de um tipo concreto de prova, do conhecimento da operação por parte de outros intervenientes no negócio.” (sublinhado nosso).

VIIª). A interpretação referida e a fundamentação do aresto recorrido assenta em erro de julgamento ao confundir direito à dedução do imposto - que não está em causa nestes autos - com direito a regularizações de imposto liquidado a mais por erro na emissão da fatura - que é o que está em causa nos autos.

VIIIª). A interpretação constante do acórdão recorrido da norma ínsita no n.º 3 do artigo 71° do Código do IVA é violadora das Diretivas do IVA, quer a que atualmente se encontra em vigor, como a que ao tempo se encontrava (“Sexta Diretiva”), resultando essa violação do conteúdo dos acórdãos do TJUE, a saber: acórdão de 26.1.2012, no Processo C-588/10 (Acórdão Kraft Foods Polska), acórdão de 6.11.2003 nos processos apensos C-78/02 a C-80/02 (Elliniko Dimosio e outros) e acórdão de 13.12.1989 no Processo C-242187 (Genius Holding BV), nos quais este Tribunal decide que os Estados-membros devem assegurar o princípio da neutralidade do sistema de IVA e, para o feito, providenciar, nos seus sistemas legais internos, a possibilidade de correção de qualquer imposto indevidamente faturado, não criando condições que inviabilizem tal correção e torna excessivamente difícil a efetivação da regularização.

IXª). Verifica-se, para efeitos da admissão da presente revista, a necessidade de revisão da interpretação legal consignada no aresto recorrido na medida em que o mesmo ultrapassa os estritos limites da matéria destes autos e implica a responsabilidade dos próprios órgãos do Estado na correta aplicação do direito e do respeito pelo Direito Comunitário, com vista à salvaguarda de um eventual incumprimento por parte do Estado Português e dos órgãos jurisdicionais internos.

Xª). De facto, importa decidir e implementar, em definitivo, a boa prática da interpretação e aplicação da lei em matéria de regularizações de IVA e a sua adequação à legislação comunitária e se a interpretação e aplicação legal contida no aresto recorrido está conforme com a mesma, salvaguardando desta forma as próprias obrigações e interesses dos órgãos administrativos do Estado, Administração Tributária incluída e, em última instância, dos próprios órgãos jurisdicionais vinculados, como estão, às disposições legais comunitárias que devem cumprir e fazer cumprir.

XIª). Verifica-se também estarmos perante uma questão fundamental e de relevância jurídica e social pois o que está em causa são as condições em que um qualquer sujeito passivo de IVA pode concretizar a correção de IVA, liquidado a mais/em excesso por erro de emissão da fatura. Ou seja, situações de relevância jurídica e social, muito frequentes e cujo regime jurídico importa definir em termos de certeza e segurança jurídicas, ou seja, sem margem para dúvidas e, ademais, considerando que tal interpretação deve ser feita ao abrigo das normas relativas ao princípio da legalidade tributária, superiormente consagradas no artigo 103º da CRP, mas também ao abrigo dos princípios da neutralidade que rege o regime do IVA e sem implicações de distorção de concorrência por força da incorreta interpretação e/ou aplicação da lei, de evitar com toda a premência.

XIIª). Da interpretação constante no acórdão recorrido resultam condições desproporcionadas e que tornam difícil e excessivamente oneroso um direito à retificação de IVA pago a mais garantido pelo Direito Comunitário. Tanto que o legislador português já reconheceu que o dito prazo de um ano seria insuficiente, tendo-o discretamente alargado para dois anos na redação que a Lei nº 53-A/2006 de 29 de dezembro deu ao artigo 71°, no 3 (atual artigo 78°, nº 3) do Código do IVA, a qual, porém não estava em vigor à data dos factos.

XIIIª). Ademais, trata-se de matéria que não se encontra ainda definida pela jurisprudência superior, quer a nível interpretativo, quer da própria aplicação da lei, desconhecendo-se jurisprudência interna sobre este tema e sendo de considerar que o Acórdão do STA, invocado pelo Tribunal recorrido, se refere às condições do direito à dedução e não às condições do direito à regularização de IVA indevidamente liquidado a mais por erro na emissão da fatura. A jurisprudência interna é abundante no que toca ao regime jurídico do direito à dedução de imposto, mas desconhece-se em absoluto a existência de jurisprudência sobre a questão destes autos.

XIVª). Importa, ainda concluir que a interpretação adequada da lei se manifesta de toda a utilidade não apenas para a boa decisão da causa no caso concreto dos autos, como também como salvaguarda dos direito e interesses legítimos do Estado e dos órgãos jurisdicionais internos a quem incumbe tal tarefa, acautelando eventuais responsabilidade futuras em sede do regime de responsabilidade civil extra contratual do Estado em sede de aplicação da melhor jurisprudência comunitária de que o famoso Acórdão Koblër, emitido em 30.9.2003 pelo Tribunal de Justiça no processo C-224/01, é um exemplo.

XVª). De onde se conclui que deve ser o presente Recurso de Revista ser admitido de forma a que por estar em causa a apreciação de uma questão de relevância jurídica e social que se reveste de importância fundamental que extravasa os estritos limites dos presente autos e, ainda, por ser necessária, com premência, uma melhor aplicação do direito, designadamente tendo em conta da doutrina firmada pelo Tribunal de Justiça da Comunidade Europeia que, deforma clara e previamente à apreciação que sobre o mérito venha a ser feita, se manifesta claramente em oposição com a interpretação legislativa do Tribunal recorrido.

Com o que se estará em condições de fazer a Justiça.

III.A Fazenda Publica não contra alegou.

IV. O Mº Pº emitiu o douto parecer que consta a fls. 393/395 nos autos, no qual se pronunciou pela não admissão do recurso de revista, isto porque “No caso em análise …não se verificam os requisitos de admissão da revista” ou sendo o mesmo admitido, o recurso deverá improceder.

V. Colhidos os vistos legais cabe agora decidir.

VI. Com interesse para a decisão, foram dados como provados em 1ª instância os seguintes factos:

A) A Impugnante tem por objeto o “COMÉRCIO DE VEÍCULOS AUTOMÓVEIS”, CAE 50100, estando enquadrada em sede de IVA no regime normal de tributação, de periodicidade mensal (cfr. fls. 25 e 31 do recurso hierárquico apenso);

B) A Impugnante solicitou na declaração periódica referente ao mês de março de 2003 um reembolso de IVA no montante de € 14.938.306,44 (cfr. docs. de fls. 25 a 30 do recurso hierárquico apenso e acordo);

C) Na sequência de tal pedido, foi efetuada pelos Serviços de Inspeção Tributária uma ação de inspeção interna à ora Impugnante, no âmbito da qual se procedeu a correções ao valor de IVA a reembolsar, no valor total de € 1.835,966,37 (cfr. relatório de inspeção de fls. 15 a 18 do processo administrativo apenso, docs. de fls. 25 a 30 do recurso hierárquico apenso e acordo);

D) Conforme resulta do teor do mencionado relatório de inspeção, a correção aqui contestada, no valor de €1.827.602,34, teve como fundamento o seguinte:
1 - A empresa procedeu à anulação de faturas emitidas, por lapso, por um valor superior, retificando o imposto sobre o valor acrescentado liquidado a mais. Esta regularização não atendeu ao exposto na parte final do artigo 71°, n° 3 do CIVA, ou seja, a retificação não foi efetuada no prazo de um ano.
A correção podia ainda ser autorizada nos termos do artigo 71°, n° 7 do CIVA, mediante requerimento dirigido ao Diretor Geral dos Impostos. O prazo seria de cinco ou quatro anos seguintes, conforme os documentos fossem de 1997 ou 1998 e 1999, 2000 ou 2001, respetivamente.
O total de regularizações do IVA a favor do sujeito passivo, no período de dezembro de 2002, são no montante de 1.827.602,34 euros (...)”

E) Consta como anexo 1 ao relatório de inspeção uma listagem das notas de crédito emitidas pela impugnante como suporte da regularização de IVA pretendida, com referência às datas da sua emissão e das faturas a que correspondem, que se situam entre 04.02.1997 a 31.12.2001 (cfr. fls. 54 a 75 do processo administrativo apenso);

F) Em consequência das referidas correções supra mencionadas, foi emitida pela Administração Tributária a liquidação adicional de IVA do ano de 2002, com o n.º 04022204, no valor de € 1.830.864,72, bem como a liquidação dos respetivos juros compensatórios, com o n.º 04022203, no montante de 73.282,12, ambas com data limite de pagamento voluntário de 31.03.2004 (cfr. cópia do doc. de cobrança de fls. 30-31 dos autos);

G) Em 24.03.2004 foi apresentada pela ora Impugnante reclamação graciosa das liquidações identificadas em F), nos termos constantes de fls. 79 a 87 do processo administrativo apenso, solicitando a anulação parcial da liquidação de IVA, pelo montante de € 1.827.602,24, e dos juros compensatórios correspondentes;

H) Esta reclamação veio a ser indeferida por despacho de 04.10.2007, do que foi dado conhecimento à Impugnante pelo ofício n.º 082735, de 09.10.2004 (cfr. docs. de fls. 32 a 35 dos autos);

I) Da decisão proferida em sede de reclamação graciosa veio a Impugnante apresentar recurso hierárquico, em 14.11.2007, nos termos constantes a fls. 36 a 44 dos autos, o qual foi objeto de despacho de indeferimento, datado de 13.03.2009, comunicado à Impugnante pelo oficio n.º 044337, de 29.05.2009 (cfr. docs. de fls. 18 a 28 dos autos);

J) A presente impugnação deu entrada em tribunal em 18.08.2009, conforme carimbo de entrada aposto a fls. 2.

VII. Está em causa nos autos um recurso de revista interposto de acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, que, por sua vez, havia decidido recurso interposto de decisão do Tribunal Tributário de Lisboa.

VII.1. Segundo o disposto no n.º 1 do artigo 150.º do CPTA, “das decisões proferidas em 2.ª instância pelo Tribunal Central Administrativo pode haver, excecionalmente, revista para o Supremo Tribunal Administrativo quando esteja em causa a apreciação de uma questão que, pela sua relevância jurídica ou social, se revista de importância fundamental ou quando a admissão do recurso seja claramente necessária para uma melhor aplicação do direito”, competindo a decisão sobre o preenchimento de tais pressupostos, em termos de apreciação liminar sumária, à formação prevista no n.º 5 do referido preceito legal.

Tal preceito prevê, assim, a possibilidade recurso de revista excecional para o STA quando esteja em causa a apreciação de uma questão que, pela sua relevância jurídica ou social, se revista de importância fundamental ou quando a admissão do recurso seja claramente necessária para uma melhor aplicação do direito.

Razão por que a jurisprudência tem reiteradamente sublinhado a excecionalidade deste recurso, referindo que ele só pode ser admitido nos estritos limites fixados no preceito, sob pena de se desvirtuarem os fins tidos em vista pelo legislador.

Por conseguinte, este recurso só é admissível se for claramente necessário para uma melhor aplicação do direito ou se estivermos perante uma questão que pela sua relevância jurídica ou social se revista de importância fundamental, sendo que esta importância fundamental tem de ser detetada, não perante o interesse teórico ou académico da questão, mas perante o seu interesse prático e objetivo, medido pela utilidade da revista em face da capacidade de expansão da controvérsia ou da sua vocação para ultrapassar os limites da situação singular.

Deste modo, e como tem sido explicado nos inúmeros acórdãos proferidos por esta formação, que aqui nos dispensamos de enumerar, a relevância jurídica fundamental deve ser detetada perante a relevância prática da questão, medida pela sua utilidade face à capacidade de expansão da controvérsia, e verificar-se-á tanto em face de questões de direito substantivo como de direito processual, quando apresentem especial ou elevada complexidade (seja em razão da dificuldade das operações exegéticas a efetuar, seja de um enquadramento normativo especialmente intrincado, complexo ou confuso, seja da necessidade de compatibilizar diversos regimes legais, princípios e institutos jurídicos) ou quando a sua análise suscite dúvidas sérias ao nível da jurisprudência e/ou da doutrina.

Já a relevância social fundamental verificar-se-á quando estiver em causa um caso que apresente contornos indiciadores de que a utilidade da decisão extravasa os limites do caso concreto e das partes envolvidas no litígio, representando uma orientação para a resolução desses prováveis futuros casos, e se detete um interesse comunitário significativo na resolução da questão.

Por outro lado, a clara necessidade da revista para uma melhor aplicação do direito há de resultar da repetição ou possibilidade de repetição noutros casos e necessidade de garantir a uniformização do direito, estando em causa matérias importantes tratadas pelas instâncias de forma pouco consistente e/ou contraditória, impondo-se a intervenção do órgão de cúpula da justiça como condição para dissipar dúvidas e alcançar melhor aplicação do direito. Pelo que a admissão do recurso terá lugar, designadamente, quando o caso concreto contém uma questão bem caracterizada e passível de se repetir em casos futuros e a decisão nas instâncias esteja ostensivamente errada ou seja juridicamente insustentável, ou se suscitem fundadas dúvidas por se verificar uma divisão de correntes jurisprudenciais ou doutrinais, gerando incerteza e instabilidade na resolução dos litígios, tornando-se objetivamente útil a intervenção do STA na qualidade de órgão de regulação do sistema.

Deste modo, e como repetidamente tem sido afirmado pela jurisprudência, o que em primeira linha está em causa no recurso excecional de revista não é a solução concreta do caso subjacente, não é a eliminação da nulidade ou do erro de julgamento em que porventura caíram as instâncias, de modo a que o direito ou interesse do recorrente obtenha adequada tutela jurisdicional, pois que para isso existem os demais recursos, ditos ordinários.

Vejamos se tais requisitos se verificam no caso vertente.

VII.2. A questão que a Recorrente pretende dirimir nesta revista é a de saber se, no caso de faturas inexatas em que se verifique haver IVA liquidado em excesso, o sujeito passivo apenas pode recuperar a situação no prazo de um ano, contado da emissão das faturas envolvidas e do consequente nascimento do direito à dedução.

O acórdão recorrido (tal como a decisão de 1ª instância) decidiu no sentido de que, não tendo a recorrente respeitado na regularização o prazo consagrado no artº 71º, nº 3 do CIVA, não podia recuperar o IVA liquidado em excesso.

A recorrente, por sua vez, entende que tal interpretação é violadora das Diretivas do IVA, quer a que atualmente se encontra em vigor, como a que ao tempo se encontrava (“Sexta Diretiva”), resultando essa violação do conteúdo dos acórdãos do TJUE, a saber: acórdão de 26.1.2012, no Processo C-588/10 (Acórdão Kraft Foods Polska), acórdão de 6.11.2003 nos processos apensos C-78/02 a C-80/02 (Elliniko Dimosio e outros) e acórdão de 13.12.1989 no Processo C-242187 (Genius Holding BV), nos quais este Tribunal decide que os Estados-membros devem assegurar o princípio da neutralidade do sistema de IVA e, para o feito, providenciar, nos seus sistemas legais internos, a possibilidade de correção de qualquer imposto indevidamente faturado, não criando condições que inviabilizem tal correção e torna excessivamente difícil a efetivação da regularização.

Por isto mesmo, verifica-se a necessidade de revisão da interpretação legal consignada no aresto recorrido na medida em que o mesmo ultrapassa os estritos limites da matéria destes autos e implica a responsabilidade dos próprios órgãos do Estado na correta aplicação do direito e do respeito pelo Direito Comunitário, com vista à salvaguarda de um eventual incumprimento por parte do Estado Português e dos órgãos jurisdicionais internos.

Verifica-se também estarmos perante uma questão fundamental e de relevância jurídica e social pois o que está em causa são as condições em que um qualquer sujeito passivo de IVA pode concretizar a correção de IVA, liquidado a mais/em excesso por erro de emissão da fatura. Ou seja, situações de relevância jurídica e social, muito frequentes e cujo regime jurídico importa definir em termos de certeza e segurança jurídicas, ou seja, sem margem para dúvidas e, ademais, considerando que tal interpretação deve ser feita ao abrigo das normas relativas ao princípio da legalidade tributária, superiormente consagradas no artigo 103º da CRP, mas também ao abrigo dos princípios da neutralidade que rege o regime do IVA e sem implicações de distorção de concorrência por força da incorreta interpretação e/ou aplicação da lei, de evitar com toda a premência.

Da interpretação constante no acórdão recorrido resultam condições desproporcionadas e que tornam difícil e excessivamente oneroso um direito à retificação de IVA pago a mais garantido pelo Direito Comunitário. Tanto que o legislador português já reconheceu que o dito prazo de um ano seria insuficiente, tendo-o discretamente alargado para dois anos na redação que a Lei nº 53-A/2006 de 29 de dezembro deu ao artigo 71°, no 3 (atual artigo 78°, nº 3) do Código do IVA, a qual, porém não estava em vigor à data dos factos.

Ademais, trata-se de matéria que não se encontra ainda definida pela jurisprudência superior, quer a nível interpretativo, quer da própria aplicação da lei, desconhecendo-se jurisprudência interna sobre este tema e sendo de considerar que o Acórdão do STA, invocado pelo Tribunal recorrido, se refere às condições do direito à dedução e não às condições do direito à regularização de IVA indevidamente liquidado a mais por erro na emissão da fatura. A jurisprudência interna é abundante no que toca ao regime jurídico do direito à dedução de imposto, mas desconhece-se em absoluto a existência de jurisprudência sobre a questão destes autos.

VII.3. Ora, desde já se dirá que a interpretação feita pelas instâncias e, em particular pelo acórdão recorrido, não evidencia qualquer erro grosseiro, atendendo ao que à data dispunham os nºs 3, 5 e 7 do artº 71º do CIVA, que dispunham, respetivamente, o seguinte:
3 - Nos casos de faturas inexatas que já tenham dado lugar ao registo referido no artigo 45º, a retificação é obrigatória quando houver imposto liquidado a menos e poderá ser efetuada sem qualquer penalidade até ao final do período de imposto seguinte àquele a que respeita a fatura a retificar; é facultativa, se houver imposto liquidado a mais, mas apenas poderá ser efetuada no prazo de um ano.
5 - Quando o valor tributável de uma operação ou o respetivo imposto sofrerem retificação para menos, a regularização a favor do sujeito passivo só poderá ser efetuada quando este tiver na sua posse prova de que o adquirente tomou conhecimento da retificação ou de que foi reembolsado do imposto, sem o que se considerará indevida a respetiva dedução.
7 - Em casos devidamente justificados, a correção dos erros referidos no número anterior de que tenha resultado imposto entregue a mais pode ainda ser autorizada nos quatro anos civis seguintes ao período a que se reporta o erro, mediante requerimento dirigido ao diretor-geral dos Impostos”.

Neste mesmo sentido se pronunciou o acórdão deste STA, de 02.03.2011, proferido no Processo nº 0878/10, onde ficou escrito que a retificação facultativa de IVA relativo ao ano de 1993, por iniciativa do contribuinte, tem de respeitar o prazo de um ano previsto no n.º 3 do artigo 71.º do CIVA (atual artigo 78.º).

Também do acórdão de 18.05.2011, proferido no Processo nº 0966/10, resulta doutrina semelhante quando se refere que “Para além do artº. 71.º, n.º 6, do CIVA, não existe qualquer disposição legal que se possa interpretar como permitindo ao sujeito passivo o exercício do direito à dedução em momento posterior aos que resultam deste artº. 22.º indicados, nos casos em que, por lapso efetuado na sua contabilidade, só detete que tinha direito à dedução em momento posterior àquele em que o devia efetuar.
Isto é, se a situação não se enquadra naquele n.º 6 do art. 71.º também não se enquadra em nenhuma outra disposição legal.
Por isso, não tem qualquer utilidade apreciar se a situação, abstratamente, é suscetível de enquadramento neste n.º 6 do art. 71.º, uma vez que é ponto assente que a Impugnante não efetuou a dedução dentro do prazo de um ano aí previsto nem pediu a autorização para utilizar o prazo de quatro anos, prevista no n.º 7 do mesmo artigo e, por isso, a dedução efetuada pela Impugnante não encontra cobertura jurídica nestas normas.
O que significa que, mesmo que a situação seja suscetível de enquadramento naquele n.º 6, a legalidade da liquidação estará assegurada por não ter sido observado o limite temporal aí fixado e não ter sido pedida a autorização prevista no n.º 7, que condicionam o direito de dedução”.

Então, não estando a decisão das instâncias ostensivamente errada nem se podendo afirmar que é juridicamente insustentável a tese que nelas foi sufragada, não se suscitando, sequer, fundadas dúvidas sobre a bondade da decisão por inexistir divisão de correntes doutrinais ou jurisprudenciais suscetíveis de gerar incerteza e instabilidade na resolução da questão, a admissão desta revista não se pode ancorar numa hipotética necessidade de intervenção do órgão de cúpula da justiça como condição para dissipar dúvidas.

Dito de outro modo, não se visiona na apreciação feita pelo tribunal recorrido qualquer erro grosseiro ou decisão descabidamente ilógica e infundada que imponha a admissão da revista como “claramente necessária para uma melhor aplicação do direito”, sendo manifesto que o que a Recorrente pretende é submeter a questão a uma tripla instância.

Por outro lado, tendo presente o decidido no acórdão recorrido, temos que a questão em análise não se apresenta como particularmente difícil ou confusa do ponto de vista jurídico, não demandando a sua resolução a realização de operações exegéticas de especial dificuldade jurídica, reconduzindo-se a uma tarefa de interpretação da norma contida nos n.ºs 3 e 5 do artigo 71.º do CIVA, que não revela especial complexidade.

Finalmente, também se não vislumbra uma especial “relevância social” na resolução da dita questão, por não se detetar um interesse comunitário significativo nessa apreciação e resolução, tendo em conta que se trata de norma que vigora na ordem jurídica há muitos anos e a sua interpretação raramente tem sido questionada junto dos tribunais, como a recorrente, aliás, refere dizendo que a questão nunca foi apreciada (mas, como acima referido, já foi expressamente apreciada, pelo menos, uma vez no sentido agora decidido)

Por todo o exposto, não correspondendo o recurso excecional de revista à introdução generalizada de uma nova instância de recurso e não podendo ser utilizado para a imputação de erros de julgamento ao acórdão recorrido sem a verificação dos requisitos previstos no art.º 150.º do CPTA, não pode ser admitido o presente recurso.

VIII. Nestes termos e pelo exposto, por falta dos pressupostos legais, não se admite o presente recurso de revista.

Custas pela Recorrente.
Lisboa, 5 de dezembro de 2012. – Valente Torrão (relator) – Dulce Neto – Alfredo Madureira.